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Guerra das Cores Perdidas

Juliana Duarte

2013
Para Pedro
Sumário
O Mundo Verde____________________________________________7

O Animal de Poder________________________________________23

O Novo Papa_____________________________________________31

Evocações_______________________________________________40

Os Prisioneiros____________________________________________47

O Treinamento____________________________________________56

O Trem_________________________________________________64

O Bar___________________________________________________74

Aniversário_______________________________________________86

A Maga Branca___________________________________________100

O Castelo dos Horrores____________________________________112

A Ira de Fiska____________________________________________125

Demônios______________________________________________133

As Salas Secretas__________________________________________142

Magia Avançada__________________________________________153

O Anjo Imortal__________________________________________166

A Fúria da Natureza_______________________________________185
A Execução_____________________________________________196

Cores da Magia___________________________________________204

Entre o Negro e o Branco__________________________________223

Aquela que mexia com fogo_________________________________238

O Retorno______________________________________________252

O Diário de Mustse_______________________________________260

A Sala Número Um_______________________________________282

O Menino de 400 Anos____________________________________305

Priela Knossa____________________________________________314

Um Mundo Louco e Colorido!_______________________________331

Poderes________________________________________________353

Fraquezas_______________________________________________366

O Mundo Vermelho_______________________________________373
Guerra das Cores Perdidas

O Mundo Verde

Você já viu algo assim antes? De tamanha beleza, graça e formosura. A


magnificente paisagem, as nuvens douradas que cortam os céus com
nobreza e verdade.
Eis meu mundo e eu o amo.
Nossa terra é chamada pelos forasteiros de Mundo Cinza. Nós a
nomeamos Mundo Verde, pois acreditamos que condiz com sua
verdadeira natureza: árvores gigantes e coloridas por todos os lados, das
espécies mais exóticas. Nuvens brilhantes, um sol de esmeralda.
Lembro que quando criança eu brincava de esconder–me nos troncos
das sequóias vermelhas. Uma chuva de folhas caía sobre mim. Eu e as
outras crianças segurávamos as folhas coloridas aos montes, como
confetes, numa grande festa.
Somente Panl não brincava conosco. Ela sempre foi muito séria para
essas coisas. Enquanto nós nos divertíamos trançando os cipós das
árvores, tais quais cabelos emaranhados pelo vento, ela vagava pelas
regiões montanhosas assobiando para os pássaros.
Ela sabia aquilo que deveria alcançar: o objetivo mais nobre desse
mundo.
Nós, o povo verde, possuímos características muito particulares. Somos
divididos em quatro regiões.
Somos os caminhantes da região do norte, regidos sob o elemento terra.
Nossa pele possui a cor dos troncos das árvores. Alguns possuem uma
pele muito clara, como os troncos mais delicados. Outros a tem na cor
marrom escura, como os troncos mais grossos e rústicos. Em geral os de
pele escura têm consistência mais grossa e resistente, e é dessa divisão de
onde surgem os maiores guerreiros. Possuímos olhos e cabelos castanhos
de diferentes tonalidades e assim nos camuflamos facilmente nas
florestas fechadas.
Eu e minha família somos descendentes dos escuros, também chamados
de povo xilema. Meus pais constantemente falam de nossos
antepassados guerreiros com orgulho, em histórias antigas que nos
contam desde que éramos crianças.

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O povo floema de pele clara é mais dedicado à área das belas artes.
Também os admiro, vários amigos meus são desses clãs, embora existam
também artistas xilema e guerreiros floema.
O povo do leste é regido sob o elemento ar. Dizem que os líderes de clãs
são capazes de adquirir o controle sobre o peso e voar. Eles possuem nas
costas asas atrofiadas feitas de folhas. São geralmente magros e leves, ao
contrário de nosso povo, que já possui uma maior consistência muscular.
O povo do sul é do elemento fogo. Possuem a pele completamente
negra e carbonizada. É sempre bonito ver um caminhante do sul, com
seu sorriso gigante cheio de dentes brancos perfeitos e os dedos da cor
do carvão. Eles têm cabelos amarelos, vermelhos e alaranjados. Os olhos
são de mesma cor.
Os caminhantes do oeste dominam o elemento água. A tonalidade de
suas peles varia do azul escuro ao azul claro. Raramente nascem alguns
com pele levemente esverdeada. Quando essas criaturas raras nascem
costuma–se nomeá–las com a letra “Z”, pois essa letra é utilizada
somente para nomear membros da nobreza de todos os povos. Em geral
possuem cabelos e olhos completamente negros.
A questão espiritual é muito forte em nosso mundo, assim como na
maioria dos outros mundos dos quais já ouvi falar. Sobre os outros
mundos apenas ouvimos rumores, pois não nos é permitido pisar em
terras estrangeiras e assim ocorre com a maioria dos demais povos. Isso
porque existe a lenda de que um sangue estrangeiro que pisa em terras de
solo não materno resulta em grandes guerras. Existiram algumas guerras
entre mundos no passado que dizimaram muitos dos nossos e felizmente
permaneceram apenas na memória.
A dedicação ao espiritual é considerada o caminho mais elevado que uma
criatura do povo verde pode seguir. No entanto, são poucos os que
possuem vocação suficiente para esse grande desafio. Não é uma escolha
fácil, pois exige muito sacrifício, disciplina e dedicação.
A maioria de meus colegas e amigos sempre admiraram os monges,
sacerdotes e altos sacerdotes. Quando crianças todos eles, quando
questionados sobre seus sonhos e sobre o futuro, apontavam essa
carreira como a mais desejável e promissora.
No entanto, quando crescemos muitos de nós deixam de lado esses
sonhos antigos e lendas para viverem o mundo real, desejando profissões

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mais próximas de nossa realidade e condição, que garantiriam um futuro


estável e conforto.
Eu mesma me perguntei se desistiria de tudo para seguir o fluxo:
arrumar um emprego qualquer e tentar me contentar com pouco.
Contudo, o exemplo admirável da minha irmã jamais me permitiu voltar
atrás.
Nós não somos de uma família nobre, mas ainda assim temos alguns
nomes de antepassados de peso. A maioria não os conhece; é um
orgulho estritamente familiar, restrito à carreira militar. Mas não era essa
a área que minha irmã almejava.
Ela sempre visou o posto de alta sacerdotisa do norte: o título mais
sublime entre o povo da terra. No que concerne ao caminho espiritual,
existem muitos monges, um seleto número de sacerdotes – que treinam
os monges – e apenas um alto sacerdote, que instrui os sacerdotes.
Sendo assim, existem apenas quatro altos sacerdotes em nosso mundo:
um designado a cada direção. E mesmo dentro os quatro existe um líder
espiritual supremo que guiará o mundo inteiro: o papa ou papisa.
Recentemente houve um difícil teste de seleção para escolher os novos
altos sacerdotes de cada direção que guiarão espiritualmente o mundo.
Isso ocorreu devido ao falecimento dos quatro altos sacerdotes ao
mesmo tempo num horrível desastre climático ocorrido numa
conferência religiosa no centro de nosso mundo. Isso foi altamente
questionado, pois, como senhores supremos dos elementos, os altos
sacerdotes não teriam poder para impedir o desastre? Houve rumores de
assassinato, mas as autoridades calaram todos eles. E os assassinos
deveriam ser magos muito poderosos para serem capazes de lidar com os
quatro ao mesmo tempo, sem falar nos outros sacerdotes e monges que
também pereceram na ocasião.
Muitos sacerdotes, aterrorizados pelos rumores, desistiram de se
candidatar ao posto supremo. Sendo assim, foram poucos os candidatos
nessa ocasião, embora isso não tire o mérito da minha irmã, que foi a
vencedora e conquistou o cobiçado posto de alta sacerdotisa da terra.
Meus pais ficaram muito orgulhosos. Houve uma festa de celebração,
que reuniu importantes autoridades do governo e membros de seitas
eclesiásticas.
Eu mesma fui uma convidada especial, por ser irmã da alta sacerdotisa.

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Nesse dia prendi meus vastos cabelos castanhos escuros em dois coques;
esse era um penteado chique para celebrações desse porte. Usei um
vestido verde escuro e delineei meus olhos castanhos escuros de negro.
Batom vermelho escuro nos lábios, unhas pintadas, pulseiras, brincos,
colar, sapatilhas.
E lá estava eu, num cantinho da festa, sentindo–me completamente
perdida naquele local em que as únicas pessoas que eu realmente
conhecia eram meus pais e minha irmã, além de alguns parentes distantes
que eu raramente via.
Meus pais conversavam alegremente com os parentes. Observei minha
respeitável irmã, em seu porte majestoso. Ela era incrivelmente bonita;
de uma beleza rara, exótica, estonteante. Desnecessário dizer que nós
nos parecíamos pouco. Na verdade, sempre que um parente ou
desconhecido mencionava que nós duas nos parecíamos eu me sentia
extremamente feliz, embora sentisse pena da minha irmã, já que estava
sendo praticamente insultada com a comparação. Ainda assim, ela nada
dizia. Nem mesmo um sorriso ou alteração facial.
Ela era extremamente séria. Era raro ver um sorriso em seus lábios, se é
que eu já vira um dia. Enquanto meus cabelos eram meio ondulados,
levemente crespos e rebeldes, os dela eram repletos de cachos bem
definidos: cabelos de caracóis, longos, perfeitos. Tínhamos cabelos de
cor semelhante, mas os olhos dela eram de um tom castanho médio.
Ela tinha a pele em tom marrom mais escuro que o meu. O contraste
entre o tom castanho mais claro dos olhos dela e o castanho escuro de
sua pele eram o que gerava aquela beleza exótica, rústica e violenta. O
olhar dela era assustador, provocante, sensual.
Naquele dia ela trajava o manto clerical marrom escuro, portado somente
pela alta sacerdotisa da terra. Seu colar, brincos e pulseiras eram de ouro
puro, todos com o símbolo do elemento terra incrustado: o triângulo
invertido cortado por uma linha horizontal. Ela usava botas marrons,
com detalhes dourados.
Carregava um enorme cajado dourado com o símbolo de um planeta
circundado por um anel. Aquele cajado era incrível, de uma beleza
fenomenal. Eu tinha vontade de pedir para segurá–lo por um momento,
ele parecia pesado. Mas eu não tinha coragem de fazer um pedido como
aquele para ela. Eu a respeitava muito e, sinceramente, também a temia.

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Era assim desde que éramos crianças. Eu apenas a admirava de longe.


Em segredo, desejava ser como ela um dia, mas depois dessa incrível
conquista isso certamente não seria possível.
Minha irmã estava mais bela do que eu jamais a vira. Usava uma sombra
verde escura nos olhos e um batom marrom semelhante ao seu tom de
pele. Ela se parecia com a árvore mais majestosa e perfeita, com a rainha
do universo.
Chegou o momento da celebração formal, em que cada um dos altos
sacerdotes receberiam seus anéis. Importantes sacerdotes do conselho
dos anciãos iriam realizar a cerimônia.
Um dos anciãos desenrolou uma folha de pergaminho e começou a
declamar os termos formais da celebração, anunciando o quanto a
ocasião era sublime. Cada palavra dele aquecia meu coração de tal forma
que me fazia desejar mais do que nunca, em toda a minha existência,
seguir o caminho monástico.
“Não seja tola. Você jamais irá superar a sua irmã e impressionar
verdadeiramente seus pais. Acabou. Ela já adquiriu a posição suprema”.
Quando eu olhava para a minha irmã, me enchia de admiração e orgulho,
mas também de uma pontada de inveja. Era simplesmente inevitável. Ela
era surpreendentemente bela, inquestionavelmente inteligente, com uma
vocação espiritual inacreditável e todas as qualidades possíveis de se
imaginar. Ao que parecia, algumas pessoas nasceram para o caminho da
perfeição, do sucesso e da felicidade.
Mas... ela era feliz? Por que sempre conservava um semblante tão sério,
fechado, impenetrável? Como eu queria saber o que se passava realmente
em seu coração...
– Panl Vrweitch Barzz.
Quando o mestre da cerimônia anunciou o nome da minha irmã, todos
na sala a fitaram com respeito e a orquestra iniciou uma música.
Eu jamais irei me esquecer daquele momento: a melodia triste e
inspiradora, minha irmã caminhando em passos lentos, tão elegante,
reverenciando formalmente o mestre da cerimônia. Recebeu o anel
sagrado com aplausos. O coral cantou e minha irmã deu um discurso de
agradecimento.
Ela falou de coisas importantes: paz entre povos, equilíbrio, guerras,
magia, poder. Eram termos muito grandes para caber em meu pequeno

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coração palpitante.
Depois de terminado o discurso, ela abraçou meus pais e parentes.
Houve um momento em que ela aproximou–se de mim e me abraçou
também.
Ela não pronunciou nenhuma palavra e eu também não. Foi um
momento de muita emoção para mim, mas eu não consegui dizer nada.
Depois disso, ela se afastou novamente.
“Jamais conseguirei expressar o que sinto por você, minha amada irmã; o
quanto te admiro e respeito. Espero que possa ter captado todos os
meus sentimentos por esse abraço”
Esses foram apenas pensamentos que jamais expressei.
Quando consegui sair de meu transe, atentei para os próximos altos
sacerdotes que foram chamados.
– Belida Lacon Pok.
Eis a alta sacerdotisa do leste, de elemento ar. Suas asas de folhas verde–
vivas eram consideravelmente desenvolvidas; prova de sua majestade,
que muitas vezes se reflete em traços físicos. Vestia um manto cinzento
semelhante ao seu tom de pele. Era adornada por jóias de prata e
carregava um cajado prateado de estrela. Seus cabelos eram bem curtos,
finos e delicados.
Logo o terceiro nome foi chamado:
– Sassa Xinqui Kovu.
A alta sacerdotisa do sul, senhora do elemento fogo, tinha pele negra
como breu e trajava o manto vermelho do fogo. Carregava o cajado de
bronze do sol. Seus cabelos longos eram loiros e ondulados, parte deles
presos; a outra parte caia–lhe pelos ombros adoravelmente. Seus olhos
eram alaranjados.
E, finalmente, uma surpresa quando o último nome foi anunciado:
– Zermer Darfir Zonja.
Eu já tinha ouvido falar naquele nome antes. Minha irmã já o
mencionara algumas vezes e, mesmo entre alguns conhecidos meus, ele
devia ser relativamente famoso. Mas era a primeira vez que eu o via
pessoalmente.
Ele era o maior rival da minha irmã. Ele e ela eram os candidatos mais
fortes para o posto de papa.
Meu maior espanto foi ver a cor da pele dele: um azul extremamente

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esverdeado. A pele era praticamente verde! Um tom claro, mesclado a


um azul límpido. Tão claro que era possível ver as veias com clareza,
beirando ao transparente. Eu não duvidava que fosse possível enxergar
traços de seus órgãos internos sob a pele.
A pele verde em um habitante das terras do oeste era uma evidência clara
de que ele era membro da alta nobreza. Sua família devia ser milionária e
seus descendentes famosos. E mesmo entre a nobreza era muito raro
algum caminhante do oeste nascer com pele verde. As crianças nascidas
assim eram tidas como seres prometidos a realizar grandes feitos
espirituais no mundo. A maioria delas estava destinada ao caminho
monástico.
E eis aquela pessoa, selando seu destino. Tornou–se quem nasceu para
ser.
Ele trajava o manto azul claro do alto sacerdote da água. Carregava um
cajado de lua. Usava jóias de água–marinha. E, diferente da maioria de
seu povo, ele não tinha olhos e cabelos negros. Seus cabelos eram lisos e
muito brancos, embora ele fosse jovem. Seus olhos também eram
brancos, levemente dourados. Seu corpo era muito estranho, pois era
possível enxergar por dentro do rosto, por trás dos olhos. Os cabelos
eram tão finos que pareciam prestes a se desmanchar.
Ouvi falar que ele não podia ficar longe da água por muito tempo.
Embora a maioria dos habitantes do oeste se sentissem mais fortes e
recuperassem energias em ambiente aquático, para ele era quase como
uma dependência.
Mas isso era tudo o que eu ouvira falar e que podia adivinhar sobre ele.
O resto era um mistério.
Quando ele começou a discursar, até sua voz me soou estranha. Ele
falava como se sentisse dificuldade, falta de ar. Era uma voz fraca, quase
como se ele tivesse uma doença...
Depois que a formalidade encerrou, percebi que houve certo momento
em que eclesiásticos aproximaram minha irmã e o tal Zermer, o que
ambos pareceram não gostar muito. Mesmo assim, trocaram breves
palavras polidas e depois se afastaram.
Os dois eram praticamente opostos: minha irmã era símbolo de força,
um olhar rígido, porte poderoso. Ele, aparentemente fraco e doente,
embora houvesse certo brilho em seu olhar. Minha irmã era como um

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símbolo guerreiro de um clã de bravos heróis. Ele era como um animal


de uma raça exótica e em extinção, para ser admirado. Destacava–se
bastante naquela sala, principalmente devido a sua pele esquisita. Ele
também era muito alto, quase desengonçado ao caminhar. Não parecia
muito acostumado a ambientes terrestres.
Desnecessário comentar que ambos eram a atração da noite. As outras
duas altas sacerdotisas também recebiam alguma ovação, mas não tanta.
Mas confesso que eu estava mais interessada em conversar com a minha
irmã do que saber sobre o outro alto sacerdote, que para mim era
simplesmente um desconhecido. Se eu fosse uma sacerdotisa ou monja
talvez ela me desse mais atenção. Naquele momento ela conversava com
outras sacerdotisas da terra.
Minha irmã mal parava em casa devido ao seu treinamento intenso,
portanto eram raras as chances de eu vê–la: algo como uma vez por mês
no máximo. E mesmo esses momentos eram breves e eu não tinha
coragem de interromper seu descanso e incomodá–la com conversas
triviais...
Quando Panl era criança, ela permanecia apenas em seu mundo
reservado de experiências mágicas. Não se interessava pelas brincadeiras
das outras meninas. Ela não tinha amigas no passado e mesmo nos dias
de hoje, entre as sacerdotisas, algo me dizia que ela permanecia a ser a
pessoa reservada, séria e solitária que sempre foi.
Eu a conhecia nesse aspecto: para ela aquela cerimônia era mera
formalidade e não significava nada. Ela desejava sair daquele ambiente o
quanto antes e voltar às suas práticas fantásticas de magia.
Eu tinha poucas amigas e nem gostava tanto das que eu tinha. Já estava
cansada das velhas brincadeiras sem significado. Queria ter objetivos
mais sérios para a minha existência e seguir aquele exemplo vivo que
compartilhava meu sangue.
Nesse momento, uma menina provavelmente da minha idade
aproximou–se de mim.
– Prazer, irmã de Panl.
Então era isso que eu era? “Irmã de Panl” e nada mais.
Observei quem me dirigiu a palavra. Era obviamente membro do povo
da água. Isso estava bastante evidente devido à sua pele azul clara.
Cabelos lisos e negros, tocando–lhe os ombros; franja curta. Olhos

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pretos e vívidos. Ela usava um vestido elegante, sapato de salto alto e


uma maquiagem bem leve, que lhe caiu bem. Era uma menina
bonitinha...
– Quem é você?
Ela levantou as sobrancelhas negras diante de minha pergunta.
– Estou surpresa que não me conheça. Poucos nesse salão não sabem
meu nome.
Diante dessas palavras, fiz uma expressão intrigada.
– O que deseja? – perguntei, fingindo desinteresse em sua identidade.
– Me mandaram conversar com você, então aqui estou.
– Quem mandou? – perguntei, cada vez mais perplexa.
– O alto sacerdote e futuro papa, Zermer Zonja.
A situação estava cada vez mais estranha. Muitas sensações diferentes me
invadiram diante dessa frase, mas o sentimento mais forte foi de raiva.
Afinal, ouvi–la afirmar que aquele sujeito seria certamente o futuro papa
era um desrespeito ao potencial da minha respeitável irmã. Vi–me na
obrigação de defendê–la.
– Ah – ela deu um leve sorriso de ironia – você acredita que sua irmã
será a papisa? Sinto desapontá–la, mas o alto sacerdote do oeste possui
um porte mais majestoso e maior competência. Tanto fisicamente como
intelectualmente é inegável admitir quem é o melhor. Ele nasceu para ser
o papa. Os adivinhos revelaram isso à família desde que ele nasceu. Não
queira ir contra a vontade de nosso povo.
Cada palavra que ela dizia me parecia mais absurda, mas mantive a
seriedade.
– O próximo papa será definido unicamente com base na habilidade e
sabedoria dos candidatos. Não pense que a cor exótica da pele dele ou
influência da família serão vantagens.
Ela mostrou um pouco de aborrecimento ao ouvir isso. Não me olhou
com bons olhos.
– Meu nome é Grina Zonja, irmã mais nova de Zermer Zonja e também
sua única irmã de sangue. Se por alguma calúnia a sua irmã for escolhida,
ela vai se arrepender do dia em que nasceu.
Aquilo me soava claramente como uma ameaça, embora aquela
menininha não parecesse muito ameaçadora... quase ri.
– Por que não diz isso diretamente para Panl? Ou não tem coragem? –

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desafiei–a.
Dessa vez ela ficou quieta; apenas fitou–me com raiva. Se nem eu mesma
tinha coragem de falar com minha irmã, era óbvio que aquela menina
qualquer não ousaria nem mesmo aproximar–se dela. Quanto mais para
dizer aquelas coisas absurdas.
Em seguida, o próprio Zermer aproximou–se de Grina e segurou–a pelo
braço.
– É o bastante – falou Zermer – Grina, você vem comigo. Solicitei que
você fizesse amizade com ela e não que discutisse. Sinto muito, senhorita
Barzz.
Zermer afastou–se, levando Grina pelo braço. Ela apenas lançou–me um
olhar esnobe e acompanhou–o.
Aquele incidente me deixou muito pensativa. Ao contrário do que
imaginei, Zermer devia ser uma pessoa educada e humilde. Mas o fato de
sugerir que sua irmã conversasse comigo me soou meio hipócrita: ele
queria dar uma de bonzinho por fora, enquanto na verdade desejava que
minha irmã fosse destruída. Eu não duvidava que aquilo não passasse de
uma encenação e que Zermer tivesse mandando que ela dissesse aquelas
coisas.
De qualquer forma, aqueles dois me pareciam criaturas desprezíveis: por
falta de coragem de dirigir a palavra a minha irmã, eles queriam me usar
para o joguinho deles. Obviamente eles desconheciam que o meu
diálogo com Panl era zero. Eu jamais a incomodaria, muito menos para
relatar aquele incidente.
Servi suco de uva numa taça e sentei–me sozinha numa mesa isolada.
Permaneci observando os convidados. Por um lado era divertido ver os
seres dos quatro povos reunidos: aquela mistura linda de cores e raças.
Por outro lado, eu já estava entediada, sentia que não devia estar ali.
Embora admirasse os monges e quisesse saber mais sobre o caminho
monástico, eu não tinha coragem de conversar com nenhum deles.
Sinceramente, a única pessoa com quem eu tinha coragem de conversar
seria com a petulante Grina. Afinal, ela já havia sido mal educada comigo
e eu me sentia no direito de retrucar.
Bolei uma estratégia: percebi que Grina gostava dos salgados de tomate e
que eles eram bem servidos quando se colocava óleo sobre eles. Reuni
algumas garrafas de óleo espalhadas pelas mesas e coloquei–as sobre a

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minha. Dessa forma ela teria que se dirigir até o local em que eu me
encontrava.
Isso demorou longos minutos. Muitas pessoas vinham até a minha mesa
pegar o óleo e aquilo era um incômodo.
Quando Grina se aproximou, ela apenas segurou a garrafa rispidamente
e fez menção de se retirar.
– Tenho algo a te perguntar.
Ela apenas me fitou desconfiada sem dizer nada. Aguardou que eu
falasse.
– Você sabe como se faz para seguir o caminho monástico?
Grina fez uma expressão de desprezo.
– Você não sabe algo simples assim? Por que não pergunta para a sua
irmã?
– Posso compartilhar com você o que minha irmã me conta se você me
revelar o que sabe.
Ela concordou. Claro que ela queria saber mais sobre a minha irmã:
talvez tentar descobrir algum ponto fraco e revelar para Zermer. Ela
sentou–se ao meu lado.
– Não tenho interesse nesses assuntos, portanto sei pouco – disse Grina
– agora conte–me você.
– Duvido muito que não tenha interesse. Não quer estudar para ser
monja?
– Isso não lhe diz respeito.
Aquela conversa não estava muito promissora.
– Qual a idade mínima para começar o treinamento? – resolvi perguntar.
– Não creio que exista uma idade mínima – respondeu Grina – devido
ao grande potencial captado em Zermer, ele iniciou um rigoroso
treinamento desde os sete anos.
– Ao potencial você se refere apenas ao fato de ele possuir pele
esverdeada?
– Essa é uma evidência mais do que suficiente caso não saiba, menina
ignorante – esbravejou Grina – se eu também tivesse nascido com tal cor
de pele, hoje em dia eu já seria uma grande mestra de magia, mesmo com
minha idade.
– Pensei que você tivesse dito não ter interesse nessa área – comentei.
– Na verdade me interesso, mas que posso fazer? Meu irmão é ocupado

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demais com seus afazeres para ter tempo para me ensinar.


Não fiz nenhum comentário. Ela era como eu: não sabia de nada,
desejava saber, mas não tinha ideia a quem perguntar.
– Você gosta de brincar de se esconder por trás das árvores? – resolvi
perguntar.
– Ouvi falar que seu povo aprecia escalar as árvores e coisas desse tipo –
respondeu Grina – mas não tenho o menor interesse.
– Quer ir lá fora para tentar? – perguntei, entusiasmada – se balançar o
tronco será agraciada por uma chuva de folhas coloridos!
– Nem pensar. Isso sujaria meu vestido.
Resolvi desistir. A teimosia dela não tinha solução.
– Por outro lado, se aceitar um banho no lago depois, eu topo
experimentar a sua brincadeira estúpida com árvores – propôs Grina.
– Feito!
Nós duas saímos da grande catedral. Embora o interior do salão fosse
adornado com os mais belos símbolos arcanos e decoração sublime, lá
fora havia o maior espetáculo da natureza.
Já era noite e uma gigantesca lua alaranjada reinava nos céus. Havia
tantas estrelas que o próprio firmamento já não era visível.
A atmosfera era mágica. Parecia que a própria natureza sabia que aquela
era uma noite especial. E lá estavam as árvores gigantes avermelhadas,
em sua imponência, como haveria de ser.
Expliquei a Grina como se brincava de esconder por dentre as árvores.
Ela achou a brincadeira bem infantil, mas aceitou. Brincamos disso por
alguns minutos, mas ela logo enjoou.
– Vamos tomar um banho no lago – propôs Grina.
Meio relutante, aceitei. Tiramos os sapatos, mas entramos de vestido e
tudo, arruinando o penteado e a maquiagem. No fundo não nos
importávamos.
– Pedi para Platas vir aqui essa noite. Onde está minha amiga?
E, para a minha surpresa, um gracioso bebê foca branco emergiu das
águas. Grina abraçou–a. No momento em que a foca aproximou–se, a
água começou a ficar gelada! Ela até mesmo congelou em algumas
partes.
– Seu animal totem...? – perguntei, boquiaberta.
– Acertou – Grina exibia–se ao lado de sua foquinha – Platas é minha

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companheira há quase um ano. Tive a honra de receber meu animal de


poder. Esse é um privilégio para poucos.
– Você é mestra de magia do gelo? – perguntei a ela, cada vez mais
impressionada.
– Pouco sei sobre magia – explicou Grina – mas minha companheira
sabe muito. É um dom. Acredito que um dia irei dominar o gelo. Já
consigo aguentar temperaturas abaixo de zero tranquilamente, com
pouco vestuário. Eu e minha amiga treinamos e ela me mostra o
caminho.
Diferente de mim, Grina já tinha conhecimentos básicos sobre certos
tipos de magia. Eu ainda não obtivera meu animal de poder e foi com
embaraço que admiti isso a ela.
– Não se preocupe – falou Grina – um dia ele virá até você. Esse é o
primeiro passo para iniciar a sua jornada mágica.
Foi naquele dia que compreendi o que era necessário para seguir o
caminho espiritual: ter o primeiro contato com seu animal de poder. Mas
até agora ele ainda não viera a mim. Isso significava que eu ainda não
estava preparada.
Eu mal recordava do dia em que Panl recebeu seu animal, pois eu era
muito pequena. A única coisa que me lembro é que foi a ocasião em que
a vi mais feliz, em toda a minha vida. Embora não tenha sorrido, ela
apenas ficava abraçada ao seu bichinho: um pequeno castor, o qual ela
nomeou Xiuva. Posteriormente, conforme ela adquiria maior poder,
muitos a recomendavam trocar de animal, para adquirir algo mais
sublime como um cavalo ou um urso. Mas Panl prometeu que jamais
abandonaria Xiuva e que ela seria seu animal de poder até o dia de sua
morte.
Também prometi a mim mesma que eu jamais abandonaria meu
bichinho, mesmo que ele fosse uma criatura fraca e com poucos poderes.
Ver Grina com seu companheiro era mágico. Ela amava Platas e a foca
também demonstrava afeição por sua dona. Grina me mostrava com
alegria como já era capaz de congelar pequenos objetos.
– É bem difícil no começo, consome muita energia. Só consigo fazer em
meu ambiente de poder: a água; e somente quando Platas está comigo.
Era um poder limitado, mas ainda assim admirável.
– O que acontece se o dono ou o animal de poder morre? – resolvi

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perguntar, pois embora eu temesse a resposta, tinha curiosidade de saber.


– Depende muito do dono e do animal – respondeu Grina – se o dono
morre, em geral a maioria dos animais também perece poucas horas
depois.
– Suicídio? – perguntei, confusa.
– Não tenho certeza se é intencional. Acredito que o animal de poder
precise da força do dono para existir. E o inverso também é verdadeiro.
– Isso significa que o mago também morre caso seu animal totem venha
a falecer? – perguntei – É um tipo de mutualismo obrigatório?
– Um precisa do outro para existir. E conforme o tempo passa, a relação
entre ambos fica tão forte que eles se tornam praticamente um
organismo único. Mas isso poeticamente falando. Isso ocorre mais em
nível psicológico do que biológico.
Resolvi não fazer mais perguntas sobre isso. Embora eu desejasse muito
saber mais sobre magia, eu também sabia que havia altos preços a pagar
para utilizar tal poder.
– Você tem medo – concluiu Grina – por isso seu animal totem ainda
não veio até você. Não tenha medo. Estamos vivendo nesse mundo e
devemos pagar um preço tanto pela vida como por sensações
extraordinárias.
Eu conhecia bem o preço da vida: a morte. Mas o preço da magia era
muito mais assustador e complexo. Ouvi dizer que você precisava de
muito controle psicológico para se envolver com algo tão grande. Não
bastava poder psíquico. Disse isso a ela.
– O psíquico e o psicológico estão intimamente relacionados – explicou
Grina – entendi isso desde que Platas veio a mim. Quando altero meu
humor e meus sentimentos, o meu poder também se altera. Essa é uma
das diretrizes básicas da magia.
Embora conhecesse somente o básico e estivesse recém em seus
primeiros contatos com o espiritual, descobri que Grina poderia ser uma
excelente mestra para mim. Mas talvez eu fosse muito orgulhosa para
pedir algo assim. E no fundo eu sabia que não seria possível:
pertencíamos a terras diferentes, com outros costumes e tradições. Ela
morava numa cidade distante e tinha suas próprias preocupações.
Já era tarde e alguns convidados da festa começavam a ir embora. Eu me
deliciava em estar no lago, embora a água estivesse tão gelada.

20
Guerra das Cores Perdidas

Em certo momento, Zermer e seus pais saíram da catedral. Enquanto


seus pais se dirigiram a um navio, Zermer aproximou–se do lago.
– Grina, está na hora.
Grina fez um sinal afirmativo com a cabeça e saiu do lago, despedindo–
se de sua foquinha.
– Sabe bem que não deve expor seu animal totem dessa maneira – ele
advertiu–a – ele é sua fonte de poder e para seus inimigos será visto
como seu ponto fraco.
– Não se preocupe. Confio na minha amiga. Ah... desculpe. Não
perguntei como se chama.
Eu havia me esquecido de me apresentar, dadas as circunstâncias em que
nos conhecemos.
– Meu nome é Wain – respondi.
Logo depois, para a nossa surpresa, a própria Panl aproximou–se de nós.
– Arruinou seu vestido – observou Panl, séria como sempre – deverá dar
satisfações para nossa mãe.
Eu concordei com a cabeça, sentindo–me embaraçada. Era raro Panl
dirigir–se a mim. Sempre quando aquilo acontecia, eu ficava sem jeito,
meio impressionada, sem saber como reagir.
– Irei encontrá–lo novamente no dia do teste final, reverendo Zonja.
– Assim será, reverenda Barzz.
Ao dizer isso, ela afastou–se. Fiquei sem saber se deveria acompanhá–la
ou não. Acabei permanecendo no mesmo local, parada.
– Você está bem? – Grina perguntou ao irmão – Você sabe que precisa
de água. Toque o lago.
– Não se preocupe. Se eu não for capaz de superar essa minha limitação,
não mereço meu título de alto sacerdote.
E, mesmo com falta de ar, ele afastou–se também, seguindo os demais
sacerdotes.
Eu e Grina nos despedimos, pois precisávamos acompanhar nossos pais.
No entanto, antes de ir ela me entregou um pedaço de papel dobrado.
Minha irmã não nos acompanhou até em casa, como era de se esperar.
As monjas e sacerdotisas eram sua nova família, afinal...
Tomei um banho ao chegar em casa e recebi um sermão da minha mãe.
Depois do banho, na privacidade do meu quarto, resolvi ler a mensagem
de Grina.

21
Juliana Duarte

Era um bilhete revelando o local da coroação do novo papa. Somente


altos sacerdotes e eclesiásticos muito importantes eram permitidos num
evento como esse. Grina devia ter checado secretamente os documentos
de Zermer. Eu não teria coragem de fazer isso com minha irmã; na
verdade nem sonharia.
Não nos seria permitido assistir ao teste final dos quatro. No entanto, se
espiássemos a coroação saberíamos a identidade do novo papa primeiro
que todos. Se eu fosse pega espiando e minha irmã descobrisse... acho
que eu me mataria. Valia a pena perder a confiança da minha irmã
somente para atender aos caprichos de Grina? Era uma questão a ser
pensada.

22
Guerra das Cores Perdidas

O Animal de Poder

Eu tinha feito uma amiga, se é que dava para chamar Grina dessa forma.
Embora fosse mal educada e orgulhosa, ela tinha interesse em magia e
possuía até mesmo um companheiro mágico, o que a tornava mais
interessante do que meus outros amigos.
Falando nas minhas velhas amigas, Lahfa e Tuuxs me convidaram muitas
vezes para brincar, mas eu recusava. Afinal, eu queria passar mais tempo
nas florestas.
– Que está acontecendo? – perguntou–me Lahfa – Está se tornando
adulta? Não quer mais saber de brincar... isso é muita arrogância da sua
parte.
– Preciso passar mais tempo nas florestas para que meu animal de poder
me encontre – expliquei.
As duas riram quando eu disse isso. Senti–me chateada.
– Não leve a mal, Wain, mas isso é ridículo – falou Tuuxs – não é por ser
irmã da alta sacerdotisa que você terá mais facilidade em contatar seu
guardião. Isso leva anos de esforço para acontecer. Quer mesmo
sacrificar sua vida em troca disso? Tem gente que passa décadas nessas
florestas.
– Aos que sinceramente desejam, encontrarão o que procuram – falei – o
animal da minha irmã veio a ela quando ela tinha somente oito anos.
– Você está se comparando a Panl? Preste atenção no que está dizendo!
– falou Tuuxs – Ela tem vocação. Se você tivesse, já estaria no caminho
monástico há muito tempo.
– Cada um tem seu tempo – eu disse a elas – pelo menos eu não desisto
no primeiro obstáculo, diferente de vocês. Antigamente todas tínhamos
o sonho de sermos monjas. Que aconteceu a esse sonho?
– Minha mãe disse que monges não ganham salário e não podem
comprar coisas caras e ter luxo, fora aquelas jóias que o templo empresta
para celebrações especiais – respondeu Lahfa – você quer ser uma
mendiga? Rastejando pelas florestas como uma minhoca?
– Quando eu estiver soltando bolas de fogo pelas mãos não me peçam
para esquentar seus jantares com elas – avisei.

23
Juliana Duarte

– Posso comprar um fogão, obrigada – falou Lahfa.


– Você está falando besteiras de novo – disse Tuuxs – você é do povo da
terra e não do fogo. Qual será seu poder? Atirar pedregulhos?
As duas riram de novo. Percebi que estava na hora de fazer novas amigas
e fui embora, sem nem me despedir.
Passei várias semanas vagando pelas florestas. Aquilo era muito árduo.
Eu sabia que precisava compreender a natureza e conectar–me ao
equilíbrio do mundo, mas não fazia a menor ideia de como fazer isso.
Tentei sentir a água, mergulhando nos lagos. Pude sentir o fogo nos dias
de sol escaldante e mesmo o ar, no vento que balançava a folhagem das
árvores. No entanto, eu conhecia a força do meu elemento: a terra que
eu sentia sob meus pés descalços.
Eu acabava voltando para casa de vez em quando, nos momentos em
que sentia muita fome ou quando os mosquitos, o frio ou calor se
tornavam insuportáveis. Mas depois de algumas horas de conforto, eu
acabava retornando para as florestas.
Eu não seria capaz de encarar minhas duas amigas de novo caso eu
passasse menos de um mês nessa busca e desistisse. Queria pelo menos
continuar lá nos três meses de férias. Quando as aulas recomeçassem,
mesmo sem resultados eu poderia me gabar de que passara as férias
inteiras realizando algo sério. Talvez a atividade mais nobre desse mundo.
Era difícil viver naquele ambiente. Eu estava me alimentando somente de
frutas. Não tinha coragem de matar um animal para me alimentar. E se
eu o matasse, sentiria nojo de tirar a pele e cozinhá–lo.
Com magia seria tudo muito fácil. Eu poderia realizar muitas coisas num
piscar de olhos, ou assim parecia. Eu não sabia bem até que ponto seria
possível realizar feitos incríveis. Eu apenas ouvia os rumores de que os
sacerdotes da água podiam respirar embaixo d'água e provocar tsunamis;
os sacerdotes do ar seriam capazes de voar e chamar furacões; os do
fogo suportavam condições extremas de calor, podendo até mesmo
causar erupções de vulcões; e os da terra podiam provocar terremotos e
comunicar–se com os espíritos das árvores.
Falava–se muito nos espíritos dos elementos, ou elementais. No caso de
nosso povo, devíamos buscar o contato com os gnomos e dríades,
elementais da terra.
Eu colocava as mãos sobre os troncos das árvores tentando sentir a

24
Guerra das Cores Perdidas

energia, mas era complexo tentar adivinhar como proceder sem


orientação. Eu dormia sobre a terra dura e acordava com dor nas costas.
Havia muitas áreas da magia. No começo se aprendia a trabalhar com a
própria energia e se fabricavam utensílios rústicos para projetá–la:
varinhas, cajados, bastões... mas eu me sentiria perdida ao sacudir um
galho sem saber se eu estava apenas brincando de ter um poder que eu
jamais possuiria.
Em vez de tentar fabricar utensílios ou trabalhar com minha energia
interior, eu apenas abraçava as árvores, como se os espíritos pudessem
escutar o meu desejo.
“Por favor, magia, venha a mim; meu animal de poder, venha a mim...”.
A verdade é que eu não sabia o que eu desejava. Afinal, que eu deveria
desejar?
Eu ouvi falar que os sacerdotes realizavam rituais complexos, com
utensílios elaborados, espadas, mantos, cajados, velas, cálices, caldeirões e
toda a parafernália de um feiticeiro. Mas claro que nenhum deles podia
dar detalhes sobre isso, pois eram encontros secretos da ordem.
Talvez eles invocassem os espíritos dos elementos. E o que ocorreria
depois? Algo fantástico? Talvez invocassem um deus... existiriam mesmo
os deuses? Que eram deuses?
Eu tinha muitas perguntas e nenhuma delas poderia ser respondida.
Afinal, eu só seria admitida na ordem no dia em que adquirisse meu
animal totem.
Teve momentos em que chorei no meio da floresta. Ao que parecia,
independente dos meus esforços, eu não tinha o dom. E não adiantaria
ler uma montanha de livros nas bibliotecas. Afinal, os melhores livros,
que continham os segredos mais sublimes, eram acessíveis somente aos
monges.
Diziam que nos outros mundos havia seres muito avançados que
mexiam com invocações de espíritos dos mortos, anjos e demônios. A
magia de nossa sociedade era atrasada? Eu a considerava fantástica e
tinha orgulho de ser parte do povo dessa terra. Eu só acreditaria na
potencialidade das outras raças se pudesse ver com meus próprios olhos,
o que jamais seria possível. Nem mesmo o papa ou o rei tinham
permissão para deixar nosso mundo.
Mas que importavam as outras raças? Lendas, histórias, eu deveria

25
Juliana Duarte

esquecê–las e viver a vida real.


Talvez eu precisasse aceitar que a vida espiritual não era para mim. Eu
mal aguentava dois dias numa floresta sem voltar para casa para tomar
um banho, comer uma refeição, tomar um refresco e dormir numa cama
macia.
O preço daquele poder era sacrificar o conforto, abandonar minha vida
normal e viver eternamente sem luxos, sem caprichos. Ter pouco contato
com meus pais e com meus amigos, jamais poder brincar de novo. Era o
caminho para me tornar uma adulta, uma pessoa séria.
Por que eu queria poder, afinal? Talvez no fundo eu desejasse um
bichinho que fosse um companheiro mágico que jamais me abandonasse.
Minhas amigas ficavam arrogantes, mal educadas e mais insuportáveis a
cada dia. Mas meu bichinho seria sempre fiel e eu poderia contar com ele
em todos os momentos.
“Eu mal tenho amigos, quero um companheiro para toda a vida; por
favor, tenha piedade...”
Eu mentalizava coisas como essa o tempo todo, na esperança de que as
árvores pudessem ler pensamentos.
Em suma, eu não sabia nada sobre filosofia da magia, sobre as regras da
magia ou qualquer conhecimento teórico relacionado, fora rumores.
Sendo assim, eu deveria seguir minha intuição. O desejo de ter um
bichinho que fosse sempre meu amigo não seria um desejo sincero o
suficiente?
Eu olhava ao redor e via formigas, mosquitos, lesmas. Eles poderiam ser
animais de poder? Eu até tentava me comunicar com as formigas, mas
sem sucesso. Mas se alguém pisasse nela acidentalmente eu também
morreria? Talvez fosse melhor ter uma vida curta possuindo um animal
totem do que uma vida longa sem ele. Mas os mosquitos não pareciam
gostar de mim, viviam me picando e cantando...
Em um dia senti–me exausta. Mas a exaustão também me gerou uma
grande força. Naquele dia caminhei muito e cheguei à área das cavernas.
Muitas criaturas costumavam aparecer por aqueles lados.
Finalmente encontrei um lagarto. Mas ele não me deu a menor atenção
e mergulhou por dentre os arbustos. Fui atrás dele, numa busca que
durou quase meia hora, até que ele simplesmente desapareceu. Também
me deparei com um macaco engraçadinho que atirava pedras em mim.

26
Guerra das Cores Perdidas

Minha busca não estava indo tão bem. Provavelmente nenhum bichinho
ia me querer...
Eu estava com muita sede. Perdi–me no meio da floresta, minha casa
estava longe e eu não poderia voltar. Esqueci–me onde havia lagos. Eu
torcia para que chovesse.
Passei um dia inteiro sem água e sem comida sob o sol forte. Talvez eu
fosse morrer antes de encontrar meu animal totem. Teria sido uma vida
muito infeliz. Mas ao menos eu teria morrido por uma causa nobre. Se
houvesse um deus para julgar a minha alma, talvez ele tivesse um pouco
de misericórdia. Eu não renasceria como anjo, então pelo menos eu
poderia reencarnar como o animal totem de alguém. Eu não seria tão
arrogante como o macaco. Ou eu poderia me tornar um elemental da
terra... para surpreender algum monge novato com alguma travessura.
Eu estava deitada sob a sombra de uma árvore, morrendo de calor, sem
energias para me mover. E em meio aos meus delírios eu vi uma cobra.
Ela se aproximou ameaçadora e eu morri de medo. Subi numa árvore
imediatamente, aos tropeços.
“Um animal totem do fogo”; a cobra não era para mim. Era raro uma
criatura de outro elemento apresentar–se. A cobra acabou desistindo de
me picar e se afastou.
Eu já tinha ouvido falar dos animais da nobreza, como leões, panteras,
cobras, corujas, águias, tubarões, lobos... eram criaturas difíceis de domar
e que se apresentavam somente para os verdadeiros merecedores: os
magistas mais poderosos.
E, honestamente, eu não queria algo nobre. Sinceramente, eu queria
qualquer coisa.
E o “senhor qualquer coisa” apresentou–se diante de mim num dos
galhos. A criatura estava em cima da árvore, com uma noz nas mãos: um
esquilo.
Fitamos–nos por alguns segundos. Eu percebi que ele não era um animal
comum. Tinha o potencial do totem; meu coração acelerou. Certos
animais, que possuem a alma mais evoluída, lembram de suas vidas
passadas e reencarnam como totens para pagar uma dívida.
Eu o queria; ele queria a mim. Ele subiu na minha mão. Nesse momento
senti uma sensação maravilhosa: um fluir de energia. Era o momento de
selar o pacto.

27
Juliana Duarte

– Seu nome será Bapum – falei de repente, sem nem saber se era eu a
escolher o nome ou se ele iria me contar sua identidade.
A energia se tornou mais forte quando eu disse tais palavras. Foi um dos
momentos mais fantásticos da minha vida. Era uma criatura tão
inocente, tão pura...
– Nunca me abandone – quando eu falei isso, algumas lágrimas saíram
dos meus olhos.
Mas eu entendia que ele precisaria permanecer na floresta em alguns
momentos. No entanto, nossa ligação estava assegurada.
– Preciso de água, Bapum – informei – estou com sede.
Ele pareceu entender o que eu disse, pois começou a escalar as árvores
rapidamente. Foi difícil segui–lo. No entanto, não chegamos a nenhum
rio. Minha sede estava me matando. Eu me sentia mal.
Bapum permaneceu ao meu lado o tempo todo, transmitindo–me
energia. Mas ele era tão fraquinho... pouco poderia fazer para me ajudar.
Sim, talvez eu morresse. Agora era uma possibilidade real. Mas eu
poderia morrer com um sorriso no rosto. Meu animal totem estava
comigo.
Eu estava quase desmaiando. Finalmente abri os olhos e me deparei com
um imponente castor; mais grandioso do que qualquer criatura que eu
jamais vira. Ele emitia uma energia fenomenal. Era extraordinário.
Quando ele aproximou–se de mim, senti–me muito mais forte. Ele
recuperou minhas energias. Eu ainda me sentia cansada, com sede, com
fome, com calor... mas ele havia alterado uma porção de mim que não
pude explicar. Havia me concedido uma força espiritual. Naquele
momento percebi que, possuindo uma grande quantidade dela, eu seria
capaz de superar qualquer limitação física.
Não sei se foi causado pelo meu cansaço ou se foi um delírio, mas vi
minha irmã materializar–se diante de mim. Ela vestia o manto marrom e
portava seu imponente cajado.
Ela traçou um círculo no ar e dentro dele dois triângulos formando um
hexagrama: o símbolo dos quatro elementos. Um círculo mágico de
energia pura materializou–se sobre a terra. Ela pronunciou algumas
palavras numa língua estranha e segurou na minha mão.
Nesse momento eu senti... uma energia purificada percorrer todo o meu
corpo. Era como veias espirituais, uma parte de mim que eu não sabia

28
Guerra das Cores Perdidas

que existia. Meu cérebro se tornou leve, senti como se minha alma
desejasse abandonar o meu corpo e tornar–se somente luz.
Aquele êxtase superou qualquer tipo de prazer desse mundo. Derramei
lágrimas, chorei muito. Aquilo era algo que eu não imaginava. Eu não
sabia que algo assim existia. Que um prazer como aquele fosse possível.
– Jamais faça algo tolo assim novamente – alertou–me minha irmã, em
sua seriedade usual. Não parecia comovida com minha situação.
Eu não sabia a que ela se referia. Eu não dera o máximo de mim para
alcançar um objetivo supremo? Por que eu estava errada?
Antes que eu dissesse qualquer coisa, ela acrescentou:
– Você precisa da sabedoria para conhecer os seus limites. De nada
adiantará progredir espiritualmente estando morta. Você também
causaria tristeza aos nossos pais.
Ela estava certa, como sempre.
Em seguida, ela pronunciou outras palavras mágicas e um belo corcel
surgiu por trás das árvores. Ela subiu nele, colocando–me diante dela.
– Parabéns pela conquista de seu animal totem. Agora que completou
sua jornada, irei levá–la para a sua casa.
E o corcel trotou com a velocidade do vento.
Pelo que entendi de suas palavras, ela não sentiria tristeza com minha
morte. Devia ter ido me salvar para que nossos pais não ficassem tristes.
Eu sabia que ela era indiferente, mas não imaginava tamanha frieza. Se
aquilo continuasse por muito tempo, eu passaria a odiá–la.
Aquela era a “minha casa”; não era mais a casa dela. Ela parecia ser capaz
de controlar qualquer tipo de animal, não somente a sua criatura de
poder. Que poder impressionante era aquele?
Quando eu desci do cavalo e cheguei em casa, antes que ela se fosse, tive
a coragem de perguntar:
– Você ficaria triste se eu morresse?
Ela fitou–me firmemente antes de responder.
– Claro, minha irmã, embora a morte seja necessária para manter o
equilíbrio da natureza. Você também deve entender que, embora
tenhamos o mesmo sangue, devemos tratar com igual respeito todas as
criaturas. Adeus.
E ela foi embora no corcel marrom.
Eu sabia exatamente o significado de suas palavras. Ela dava alguma

29
Juliana Duarte

atenção aos pais e à irmã somente para adequar–se às convenções


sociais. No entanto, no momento em que se abandona o lar para o
caminho monástico, os parentes não devem ser vistos de forma diferente
dos outros humanos. Eu entendia isso, mas era difícil aceitar.
Meus pais me abraçaram quando retornei. Estavam com saudades. O
grande carinho e preocupação que eu recebia de meus pais poderia
substituir a indiferença da minha irmã. Mas eu precisava entendê–la: ela
estava somente fazendo o que deveria ser feito; o que se espera de
alguém que segue as regras monásticas. Talvez eu mesma tivesse que
enfrentar isso um dia.
Tomei um banho frio maravilhoso. Minha mãe preparou–me uma janta
quente e deliciosa, que comi com gosto. Estava com muito sono e deitei
na cama. Foi só nesse momento que relembrei do meu esquilinho!
Saltei da cama. Eu o havia perdido? Toda a minha jornada fora em vão?
Saí do quarto e fui para o pátio de casa, procurando nos arredores. E lá
estava ele, me aguardando inocentemente na porta de casa.
Abracei–o e levei–o para o meu quarto. Apresentei Bapum para os meus
pais, que me parabenizaram. Ainda assim, eles me alertaram sobre as
consequências de ter aceitado o contato com o animal e dar o primeiro
passo no caminho da magia. Respondi que estava ciente das
consequências e que enfrentaria o que fosse necessário.
Naquela noite dormi com uma sensação muito especial dentro de mim.
A partir daí eu poderia começar a realizar meus sonhos e ter novas
descobertas, juntamente com meu companheiro mágico, para poder dar
os primeiros passos na minha nova vida que se iniciava.

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Guerra das Cores Perdidas

O Novo Papa

Enquanto eu ainda nem entrara na ordem monástica para ser admitida


como noviça, minha irmã naquele momento estava fazendo o teste para
tornar–se papisa.
Na minha opinião, ela tinha 50% de chance de ser a escolhida. O alto
sacerdote tinha 40% de chance e as outras duas 5% cada. Mas como eu
não sabia como eram feitos os testes, tudo podia acontecer...
Tive a oportunidade de encontrar–me com Grina naquele dia, já que pela
noite ocorreria a cerimônia de coroação, que tentaríamos espiar. Mas
sobre o local do teste nós não fazíamos a menor ideia.
– Zermer disse que não podia me contar muito sobre o teste, pois era
segredo – explicou Grina – mas ele mencionou que há um teste teórico
com uma prova bem extensa sobre conhecimentos de religião, ocultismo,
arte e filosofia. Eles terão das seis da manhã à uma da tarde para concluir
a prova. São questões dissertativas e uma redação. Os monges teóricos
irão corrigir os testes pela tarde enquanto os magos empíricos os levam
para o teste prático.
– Não compreendo que tipos de conhecimentos específicos caem nessas
provas – confessei – qual é a religião do nosso povo, afinal? Crença nos
espíritos dos elementos? Reencarnação? Anjos, demônios, deuses,
gênios...?
– Você realmente não sabe de nada – Grina fitou–me de canto – nossas
crenças são muito diversas, não há uma religião única. E a existência dos
espíritos dos elementos é real e não uma crença. Nossos antepassados
trabalham com eles há séculos. A reencarnação também é uma realidade,
assim como a existência de outros mundos e outras raças. As crenças
geralmente divergem quanto à existência de um Deus absoluto, vários
deuses ou nenhum Deus. A questão da existência da alma também é
debatida.
– Se não existe alma, o que reencarna?
– É o karma que reencarna, minha pequena mula – Grina voltou a se
aborrecer – só falta você me perguntar o que é karma e questionar temas
metafísicos como a finitude ou infinitude do universo, o tempo, as

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Juliana Duarte

dimensões... não vou te dar uma aula de teoria da magia.


– Algumas vezes você é tão gentil, Grina... – caçoei – sua paciência te
faria uma excelente professora. Se em filosofia é pedido metafísica, que
áreas se ressaltam no ocultismo e na arte?
– A arte ressalta o aspecto cerimonial. Em ocultismo são cobradas as leis
da magia, correspondência das cores, planetas, metais, dias da semana,
estações, ervas, função dos utensílios mágicos, magia clássica, autores
antigos e contemporâneos, fórmulas de grimórios, enfim, é uma lista
gigante maldita.
– Eu tenho muitas perguntas a fazer nesse momento.
– Nem comece – alertou Grina – eu não saberia respondê–las. Não sou
iniciada na ordem, você sabe disso. Mas já espiei alguns livros do meu
irmão, sem a permissão dele. E ele me conta pouco.
– Já é alguma coisa – falei – melhor do que Panl, que não me conta nada.
Ela é muito rígida em relação às diretrizes. Ela cala completamente
quando o tema é magia e esconde todos os seus livros, utensílios e
materiais. Nunca vi nada, a não ser muito pouco na ocasião em que ela
me resgatou da morte na floresta, como lhe contei.
Acariciei a cabeça do meu esquilinho. Os animais totem não reagiam
como os animais comuns; eram muito mais humanos.
– Ele é lindo – sorriu Grina – claro que o meu é bem mais bonito... ah,
sim! Você escutou os rumores de guerra?
– Não sei de nada – falei, completamente surpresa – que história é essa?
– Você deve se lembrar do episódio em que o antigo papa, os altos
sacerdotes, sacerdotes e monges foram massacrados na capela durante
uma ocasião de celebração.
– Então você afirma não ter sido um desastre e sim um assassinato?
– Óbvio – falou Grina – Zermer me contou sobre algumas conversas
ocorridas entre os eclesiásticos. Quem está envolvido na esfera
monástica sabe o que realmente aconteceu. Por esse motivo muitos
sacerdotes desistiram dos testes para alto sacerdote. Estão todos com
medo que os demônios retornem.
– Demônios...?
– Você é muito inocente, Wain. Admira–me ser irmã de Panl. Foram os
magos negros do Mundo Negro que realizaram a chacina. Eles já
provaram que possuem um maior poder que nós. Foi um ato de

32
Guerra das Cores Perdidas

terrorismo.
– Que eles querem aqui?
– Poder – respondeu Grina – que mais um mago negro desejaria? Em
nosso mundo o mais importante é entrar em sintonia com a natureza,
conectando–se com sua fúria, adquirindo poder sobre os elementos,
sobre as plantas e animais. Somos muito pacifistas para lidar com a
bestialidade daquelas feras.
– É verdade que eles são realmente mais poderosos que nós?
– Se armássemos um exército para enfrentá–los talvez tivéssemos
chance, mas eles nos pegaram desprevenidos.
– Desprevenidos? Que absurdo é esse que está dizendo? – perguntei –
Eles atacaram os magos de maior poder em nosso mundo e você alega
que nos pegaram desprevenidos?
– Você não entende. Nós, magistas verdes, ou magistas cinzas como eles
nos chamam, temos pouco poder em estado normal. Liberar uma alta
carga de energia de uma vez só exige um período de preparação. É como
a natureza: permanece calma geralmente, mas quando explode é na
forma de terríveis tsunamis e furacões! Se nos preparássemos para uma
guerra poderíamos derrotá–los, embora nossa natureza tivesse que pagar
o preço. Se nosso mundo fosse usado como plataforma de guerra, seria
muito difícil a nossa sociedade se erguer de novo. Destruir as nossas
árvores e nossos animais seria quase como nos destruir. Nossa ligação
com a natureza é muito forte e dependente.
– Por outro lado, precisamos estar aqui para utilizar o poder máximo, é
isso?
– Exatamente – respondeu Grina – há muito tempo foi assinado um
tratado que impede a entrada de estrangeiros nos outros mundos, devido
às guerras ocorridas no passado distante. Nós temos interesses diferentes
e a única chance de irmos aos outros mundos é depois da morte, caso
reencarnemos nesses outros lugares. Nessa vida é proibido. Houve casos
de cruzamentos entre raças, o que gerou descendentes fracos. Houve um
episódio em que os magos negros xenófobos reuniram centenas de
magos mestiços e os dizimaram para impedir a propagação da fraqueza e
destruição das raças.
– Não nos ensinam na escola nenhuma dessas coisas – comentei,
apavorada.

33
Juliana Duarte

– Claro que não. Eles não querem divulgar algo tão vergonhoso. Para
começar, magia é uma disciplina heterodoxa, adotada somente por raros
colégios. E a existência de outros mundos e raças praticamente se tornou
uma lenda. Isso porque os outros mundos existem em universos
paralelos. Eles só podem ser acessados através de uma prática ritualística
de invocação ou meditação, que são algumas das maiores operações de
magia avançada.
– Algo me diz que você não deveria estar me contando isso – observei –
parece conhecimento secreto dos mais proibidos.
– Tem razão – concordou Grina – melhor eu ficar quieta. Vamos
esquecer esse assunto. Talvez os magos negros tenham perdido o
interesse em nós ao achar que somos fracos, então não irão retornar.
Aposto que somos mais fortes que eles quando liberamos o poder total,
mas prefiro não descobrir. Se esses caras nos vencerem numa guerra vão
dizimar quem permanecer vivo. Eles são uns malditos sanguinários.
Eu me sentia mal só de ouvir falar nesse outro povo do Mundo Negro.
Era lamentável pensar que havia um mundo somente de pessoas más.
Seria o próprio inferno, habitado por demônios? Resolvi que era melhor
não perguntar. Tinha medo de receber uma confirmação.
– Fale–me sobre a prova prática que os altos sacerdotes farão – resolvi
mudar de assunto – sabe alguma coisa sobre ela?
– Quase nada, mas será o teste mais importante. Acredito que eles
deverão lidar com práticas avançadas como divinações, invocações,
conjurações e feitiçaria.
Pensei em perguntar o que era cada uma daquelas coisas, mas eu tinha
outra pergunta mais urgente:
– Invocação de elementais somente, certo? Não de... demônios ou algo
assim.
Ela me fitou de forma estranha.
– Invocação de príncipes dos elementais – respondeu Grina – meu
irmão invocará Nicksa, o príncipe da água; sua irmã invocará Gob, o
príncipe da terra. Que te faz pensar que eles invocariam demônios...?
– Talvez alguns monges exijam testes heterodoxos... bem, esqueça. Que
tal treinarmos nossos animais totem enquanto aguardamos? Ainda falta
muito até o fim do dia.
Nós duas fomos até a beira de um lago para que Grina chamasse Platas.

34
Guerra das Cores Perdidas

Eu e Bapum também iniciamos um treinamento. Grina me ensinava


como se fazia para treinar o companheiro mágico.
– Você precisa possuir empatia com ele. Vocês dois precisam entender os
sentimentos ou até mesmo pensamentos de ambos.
– Telepatia?
– Algo muito mais sutil. A prática de poderes sobrenaturais é um
mistério. Não sabemos se mesmo os sacerdotes os usam de fato. Zermer
nunca mencionou nada do tipo. Mas uma vez ele fez cair chuva num dia
em que reclamei muito do calor. Impressionante, não acha?
Foi tão divertido brincarmos com nossos animais de poder, que logo a
lua já estava alta no céu. A noite chegou sem mal percebermos. Afinal, o
treino de magia, embora exigisse seriedade, também tinha momentos
pacíficos e divertidos. Principalmente quando temos uma amiga com os
mesmos interesses e, principalmente, o amigo mais fiel: o companheiro
mágico.
Prometi a ele que jamais o abandonaria. Eu não o trocaria por nenhum
outro animal, não importa o quão imponente e bonito ele fosse. Para
mim ele seria único.
– São quase nove da noite – informou–me Grina – em breve eles virão.
Tenho certeza de que é esse o templo. Se meu irmão me descobrir aqui,
ele me mata.
– Imagine a minha! – falei – Tem certeza que algum desses monges não
tem poder de captar nossa presença ou algo assim?
– Não duvido de nada – falou Grina – precisaremos de muita sorte para
não nos pegarem.
Quando vi os magos se aproximarem meu coração bateu muito forte.
Cada um estava montado em um animal mágico.
A alta sacerdotisa do ar pairava sobre uma gigantesca harpia branca;
possivelmente seu animal de poder. A alta sacerdotisa do fogo montava
uma pantera, uma das montarias mais magníficas.
Minha irmã montava o imponente corcel marrom. A montaria poderia
ser diferente do animal de poder, nos casos em que o animal totem fosse
pequeno ou não pudesse carregar seu dono. Ainda assim, o castor era a
fonte máxima de poder de Panl e assim sempre seria.
– Algumas vezes os monges escondem seus verdadeiros animais totem e
mostram outros animais em público – explicou–me Grina.

35
Juliana Duarte

Eu sabia o motivo. Eles não queriam expor seus pontos fracos.


Para meu completo deslumbre, vi Zermer surgir do interior dos rios
montado numa medusa gigante, branca e transparente, lembrando muito
o tom de pele do próprio mago. Mas achei que seria indelicado perguntar
se aquele era o animal totem real de Zermer.
Havia outros sacerdotes anciãos que os acompanhavam, montados cada
um num animal; certamente os sábios que tinham aplicado os testes.
Finalmente todos eles entraram numa majestosa capela. Fomos até a
janela para espiar. Até ali não nos tinham percebido, o que era um bom
sinal. Ou se alguém nos tivesse notado, preferiram ignorar, o que
também seria algo positivo.
Na verdade, no meio da cerimônia um dos velhinhos de manto olhou
para nossa janela. Levamos um susto. Obviamente ele tinha nos visto e
não daria tempo de nos escondermos agora. Mas ele apenas esboçou um
leve sorriso em nossa direção e voltou a acompanhar a solenidade.
O mesmo sábio da ocasião da festa anterior dirigiu–se para frente e abriu
outro pergaminho. Começou a ler um discurso formal sobre a
importância e deveres do papa. Era tanta coisa que me deu sono. Mas eu
sabia que minha irmã estava à altura de lidar com o desafio.
– O primeiro colocado em nossos testes, que teve a soma de 96 pontos,
a segunda colocação mais alta da história de nossa ordem, foi...
Prendi a respiração, aguardando que o nome fosse anunciado.
– A reverenda Panl Vrweitch Barzz; agora nomeada papisa segundo
nosso conselho absoluto. Aproxime–se, por favor, Vossa Santidade.
Mal pude conter a minha felicidade. Agora eu era a irmã da papisa. No
dia seguinte o mundo inteiro conheceria a notícia, que eu soubera em
primeira mão.
Minha irmã aproximou–se para receber a coroa e o novo cajado. Ela foi
saudada respeitosamente por todos os presentes.
– O segundo colocado, com 93 pontos, foi o reverendo Zermer Darfir
Zonja. Ele irá substituir as obrigações de Nossa Santidade em caso de
ausência.
– Ele foi muito bem – sussurrou–me Grina – é raro os altos sacerdotes
receberem mais de 90 pontos nesse teste. O último papa foi nomeado
com 88 pontos. Parabéns pela sua irmã.
– Obrigada – eu sorri, sentindo–me muito orgulhosa por ela.

36
Guerra das Cores Perdidas

Era melhor eu permanecer em silêncio pelo resto da cerimônia caso eu


quisesse que minha irmã não tivesse motivos para passar a me odiar.
A alta sacerdotisa do fogo recebeu o terceiro lugar, com a soma de 89
pontos. O quarto lugar foi a sacerdotisa do ar, com 87. Aparentemente,
os atuais altos sacerdotes estavam mais do que preparados. Se a alta
sacerdotisa do fogo tivesse concorrido com os antigos altos sacerdotes
ela teria sido a papisa.
– Quem foi o papa que recebeu a maior nota da história? – perguntei –
Você sabe algo sobre isso?
Afinal, saber sobre alguém superior à minha irmã era no mínimo notável.
– Foi um louco bastardo que não tinha a menor vocação para papa –
respondeu Grina – o insano fez 99 pontos. Foi descontado um ponto
devido a uma brincadeira intencional que ele realizou no meio da prova
prática: invocou os quatro príncipes dos elementais ao mesmo tempo
embaixo da cadeira do orientador, fora do círculo mágico. Ele também
escreveu toda a prova teórica de trás para frente.
– Por que ele fez todas essas coisas no dia da prova mais sublime da
carreira de um magista? – perguntei, sem acreditar – Devia ser um
superdotado sem escrúpulos. Exigiram que ele invocasse os quatro
príncipes de uma vez?
– De forma alguma. O teste só requisita que você invoque o príncipe do
seu elemento. Acho que ele queria provar que era capaz de chamar os
quatro sem nenhuma dificuldade, mesmo fora do círculo, o que é mais
um desafio. Também quis mostrar que sabia tanto sobre a teoria que
teria tempo de responder mesmo escrevendo de trás para frente. Ele foi
o primeiro a entregar a prova, fez na metade do tempo. O ponto que ele
perdeu na classificação final foi por “indisciplina”. Isso ocorreu no
último teste para papa.
– Você acabou de dizer que o último papa foi nomeado com 88 pontos!
– Bom, o alto sacerdote dos 99 só exerceu sua função por um dia, pois
depois disso foi expulso e o papa que assumiu de fato foi o que tirou
segundo lugar.
– O que esse infeliz fez para ser expulso? – perguntei, já desacreditando
a história.
– Invocou dezenas de espíritos no meio de uma grande cidade. Ele
requisitou que cada criança escolhesse o que “achasse mais bonito” e o

37
Juliana Duarte

pegasse para si, traçando um círculo no chão para que encarnasse no


corpo. O que é um grande absurdo, é claro. Obviamente ele estava
zombando de todos e nem queria ser papa. Ele só entrou para a ordem
para “ver como era”.
“Existe louco para tudo”, pensei. O grande mistério era como tinham
autorizado um sujeito desses a entrar para a ordem de magia mais
respeitável de nosso mundo.
– Meu irmão disse que descobriram que ele era um ser de outra raça.
Mas ele não veio para cá para dizimar o nosso povo como os magos
negros. Ele é de outra cor da magia, veio somente para aprender mais
sobre nossos costumes. Os sacerdotes nem precisaram realizar um ritual
para enviá–lo de volta, pois ele mesmo retornou quando foi descoberto.
Ele possuía uma capacidade rara entre os magos que, acredito, nenhum
mago vivo de nosso mundo possui, embora haja histórias assim sobre
nossos antepassados: a transmutação. Esse mago era capaz de se
transformar em seu animal de poder.
– Uau...!
Nem mesmo minha irmã devia ser capaz de fazer aquilo. Eu não sabia
que seres de outros mundos poderiam aprender nossas magias tão
facilmente ou mesmo possuir animais de poder.
– Por que um animal de poder de nosso mundo aceitou um ser de outro
mundo?
– O animal de poder vê a nossa alma e não a nossa carne – explicou
Grina – A nossa alma pode encarnar em infinitos mundos. Eles sentem a
pureza de nosso coração. Mas pode ser que alguns animais com karma
ruim aceitem pessoas más. Eu realmente não sei.
– Nossa! O que está acontecendo no salão?!
Quase dei um grito ao dizer isso. Tapei a boca com as mãos, com receio
de ter falado alto. Mas todos pareciam concentrados demais na cerimônia
para notar.
As luzes tinham diminuído de intensidade. Um círculo de poder, rodeado
de velas e repleto de símbolos arcanos, foi traçado no chão. Panl estava
no centro do círculo e erguia uma espada.
– É uma evocação, sem dúvida – confirmou Grina – tem um... triângulo
traçado no chão. É uma operação de goécia! Sua irmã vai evocar um
demônio! Caramba!

38
Guerra das Cores Perdidas

Estávamos completamente perdidas. Meu coração quase saía pela boca.


Infelizmente não tínhamos prestado atenção nos motivos para que
aquela evocação ocorresse. Seria o último teste para a papisa demonstrar
seu poder para reinar no mundo espiritual? Mas por que logo um
demônio? Todos naquela sala estavam cientes do episódio em que o
demônio havia massacrado os presentes. Que raios de ideia maluca era
aquela? Eles tinham enlouquecido?
A verdade era que eu nada sabia sobre magia e não teria sabedoria para
julgar o que ocorria de fato naquela situação. Nem mesmo Grina saberia
adivinhar.
– Estou com um mau pressentimento – confessou Grina – acredito que
o tal papa 88 também propôs uma invocação do tipo no dia em que eles
morreram. Então não foram os magos negros que invadiram o nosso
mundo: eles foram convidados.
– Talvez eles queiram chamá–los de novo para se vingar? – arrisquei –
Para destruí–los?
– Nosso povo não é muito a favor de vinganças e assassinatos, muito
menos os nossos sacerdotes! Ou melhor, que eu saiba não existe
nenhuma diretriz impedindo de fazer o mal; contanto que tal “mal”
esteja em equilíbrio com a natureza, ele é permitido.
Aquilo tudo estava muito confuso. Eu não estava em condições de
compreender as regras de harmonia e equilíbrio da magia verde
enquanto minha irmã estava prestes a evocar um demônio na nossa
frente.
Ela pronunciava termos numa língua estranha. Passou mais de meia hora
ali, em pé, apenas repetindo os termos e energizando a espada. Embora
pouca coisa acontecesse, apenas assistir aquilo era incrível.
Finalmente apareceu alguma coisa no triângulo. Um tipo de poeira, uma
energia.
– Apareça agora! – ordenou a minha irmã – Sem deformidades ou
tortuosidades!
Finalmente, uma forma assustadora materializou–se no triângulo.

39
Juliana Duarte

Evocações

Era uma criatura estranha, que eu jamais vira na minha vida e jamais
imaginaria ver. Por mim eu estaria bem longe dali, mas meus olhos não
conseguiam desviar daquele ser magnífico.
Ele usava um tipo de terno branco com gravata vermelha, embora não se
parecesse tanto com os ternos que usávamos por aqui. Sapatos negros
lustrosos. Ele estava bem elegante.
Sua pele era pálida, levemente puxada para o tom vermelho. Seus cabelos
e olhos eram negros. Quatro chifres sobressaíam–se em sua fronte.
Ele falou algo em outra língua. Panl traduzia tudo o que ele dizia:
– Por que me perturbam? Existe alguma situação diplomática não
resolvida referente ao assunto anterior?
Minha irmã respondeu a seguir:
– Você assassinou dezenas dos nossos por nada e ainda assim exige que
esse assunto requeira diplomacia?
– Vejo que é a nova papisa. Felicitações. Será a próxima a ir para a
sepultura caso tenha a insolência de me desafiar, como procedeu o seu
infeliz antecessor.
Panl ia traduzindo tudo o que ambos diziam. O mago negro parecia
impaciente com isso.
– Você praticamente declarou guerra ao nosso povo com o seu ato.
– Acredite em mim: você não quer uma guerra contra os magos negros.
Somente um de nós esmagou cinquenta dos seus em dois segundos.
Você chama isso de guerra? Eu chamo de piada ruim.
– Veremos quem será o último a rir – desafiou Panl – exijo que seu
governo condene a morte o assassino.
– O “assassino” sou eu, em pessoa. Prazer. Sou também o ditador
vitalício do Mundo Negro. Quer que eu organize um tribunal para
condenar a mim mesmo? Verei o que posso fazer. Prometo que
organizarei a papelada até o dia do meu funeral.
Tanto o mago negro como minha irmã pareciam sem paciência para
resolver o assunto. Achei que a decisão mais sábia era deixar o mago
negro se retirar, já que, conforme ele afirmou, o assunto não poderia ser

40
Guerra das Cores Perdidas

resolvido.
– Ditador vitalício? – perguntou Panl – Quem disse que acredito em
você?
– Você tem meios de verificar? Quer que eu chame meu advogado? Eu
poderia concordar com a minha sentença de morte, mas você não teria
como averiguar se ela ocorreu de fato. Sua única opção é acreditar em
minha palavra. Experimente evocar outros magos negros e você receberá
a confirmação de minha alta posição no governo. Eu tenho muita
influência. Não há meios de você me tocar. Só peço que não me
aborreça com esse desejo irracional por vingança.
Se o governante deles já era péssimo, os demais habitantes deviam ser
ainda piores. Aborrecer outros deles com evocações seria correr um
risco desnecessário.
– Nesse caso, nós o condenaremos à morte aqui mesmo – decidiu Panl –
não há meios de você sair desse triângulo. Eu tenho o controle da
situação e não permitirei que volte ao seu mundo até que reconheça seu
erro.
Ele apenas fitou–a por um momento.
– Você acha que está me prendendo nesse triângulo inútil? Concordo
que triângulos funcionem, mas somente quando operados por magistas
competentes. Seu povo não possui conhecimento de alquimia ou
imortalidade da matéria. Sua idade real deve ser aquela que aparenta.
Esse tempo é muito pouco para que você seja uma rival de peso; você ou
qualquer um de seu povo. Estou cansado. Vou me sentar, pois vejo que a
conversa de hoje será longa.
O mago negro simplesmente saiu do triângulo, caminhou até o trono da
papisa e sentou–se! No mesmo instante, todos os sacerdotes apontaram
os cajados na direção dele.
– Não se preocupem – alertou o mago negro – nada farei a vocês até
concluirmos a conversa. Eu sou uma pessoa razoável e não realizo atos
precipitados que irão me trazer um peso desnecessário como governante.
Somente ataquei os cavalheiros daquela sala devido a insultos
imperdoáveis que recebi, assim como tentativas de me assassinar. Agi em
legítima defesa.
– Se é assim tão poderoso, poderia tê–los imobilizado sem matar –
observou Panl.

41
Juliana Duarte

– Para me perturbarem de novo no futuro? Não, obrigado. Mas pelo que


vejo, as próximas gerações continuarão a nos evocar até realizarem sua
“legítima vingança”. Para que deixem de me atormentar para sempre, a
única solução é exterminá–los. Como dizem as crianças: foram vocês que
começaram; não nós. O que o papa tolo anterior queria tratar conosco?
Ele queria apenas provar ser capaz de evocar demônios e de insultá–los,
em sua vaidade? Essa arrogância irá custar muito caro.
– Não deixem que ele os engane! Ataquem–no!
– Não, Panl!!
Antes que eu pudesse me conter, dei esse grito pela janela. Todos
olharam em nossa direção.
– Wain...? – eu nunca tinha visto minha irmã tão zangada – Saia já daqui!
Quando eu sair, você será severamente castigada, mas não por mim.
Nossos pais saberão. Você está brincando com sua segurança!
– Seria a preciosa irmã da papisa? – perguntou o mago negro,
interessado.
– Não ouse aproximar–se dela! – gritou Panl.
No entanto, ele simplesmente teleportou–se até a janela. Jogou a mim e a
Grina no meio do salão. Imobilizou a nós duas, como reféns.
– Acredito que agora você irá considerar meus termos – falou o mago
negro – exijo que assine esse tratado de proibição de evocação dos
nossos. A partir de agora será proibido o envolvimento de seres do
Mundo Cinza em nosso mundo. Qualquer tentativa nesse sentido
resultará em morte instantânea. Sem diplomacia!
Ele falou essa última frase muito alto e desenrolou um pergaminho. Panl,
embora estivesse nervosa, traduziu o que ele disse. Era a primeira vez
que eu a via com medo; medo por mim. Se ela estivesse sozinha não
temeria a própria morte, mas eu fiz a besteira de me envolver.
O mago negro estendeu o pergaminho e uma caneta para que ela
assinasse. Nesse momento Panl ficou muito insegura, sem saber o que
fazer.
A minha morte era algo muito pequeno comparado a um tratado que
proibiria o nosso povo a envolver–se com práticas de goécia. Mas afinal,
por que envolver–se com goécia? Era melhor vivermos em paz, sem
mexer com isso. No entanto, era inevitável que sacerdotes do futuro
fossem tentar a goécia novamente. E cada vez que tentassem haveria

42
Guerra das Cores Perdidas

mais massacres, o que resultaria inevitavelmente numa guerra.


Mas se arranjassem um jeito de matar aquele cara, os outros magos
negros não iam se revoltar e atacar nosso mundo? A não ser que aquele
sujeito não passasse de um assassino mentiroso que não faria falta em
nenhum dos mundos.
Panl picotou o papel na frente do mago negro.
– Não aceito mais negociações – decidiu Panl – ele é um assassino e deve
ser condenado. Matem–no.
Todos os magos presentes traçaram círculos de proteção com seus
cajados. Invocaram seus elementais de poder. Cada um dos altos
sacerdotes invocou o príncipe de seu elemento.
Agora que o mago negro percebeu que ela falava sério, já não estava
assim tão confiante. Ele traçou um triângulo e invocou outro demônio
para o interior dele.
Esse demônio era diferente. Senti uma sensação horrível ao olhar para
ele. Ele possuía sete chifres enormes na cabeça, como os chifres de um
unicórnio. Também tinha cabelos negros. Seus olhos eram vermelho–
sangue. Sua pele era levemente escamosa e avermelhada; quase como um
dragão. Trajava um manto negro. Ele cobriu a cabeça com um capuz,
ocultando totalmente as partes visíveis de seu corpo. Segurou uma
espada retorcida e começou a derramar o próprio sangue em pedaços de
papel em que havia quadrados mágicos com símbolos.
Ele emitiu um som gutural assustador. E, subitamente, atirou trinta
pedaços de papel ao mesmo tempo, para todos os lados.
Cada pedaço de papel atingiu um dos sacerdotes, com exceção dos
quatro altos sacerdotes.
A parte em que o papel atingiu foi decepada. A maior parte dos papéis
atingiu a cabeça ou o peito, de forma que a maioria foi decapitada ou
teve o peito partido ao meio. Todos eles morreram instantaneamente.
Aquilo levou, exatamente, dois segundos. Três sacerdotes tiveram apenas
o braço ou a perna decepados. Bastou que o mago de sete chifres
lançasse mais três papéis na cabeça deles e completasse o serviço.
O grande salão foi preenchido pelo cheiro do sangue e pela carne dos
cadáveres. Mas o episódio mais horrível ocorreu em seguida.
Dezenas de animais de poder invadiram a capela, quebrando portas e
janelas, lançando gritos e lamentos horríveis pela morte de seus donos.

43
Juliana Duarte

Em seguida, os animais começaram a matar uns aos outros, de forma


horrível e violenta. Nem mesmo um ficou vivo.
Além dos dois demônios, somente eu, Grina e os quatro altos sacerdotes
ainda estavam vivos. Contemplávamos a cena com horror, sem
pronunciar uma palavra.
O mago de terno falou alguma coisa, que Panl não traduziu, devido ao
choque que sentia. Provavelmente foi um comando para o mago de sete
chifres. Ao que parecia, ele iria usar uma magia diferente, mais poderosa,
para matar os quatro altos sacerdotes.
O ditador vitalício não era o assassino, embora também possuísse certo
poder. O real matador era seu subordinado.
Os quatro altos sacerdotes traçaram círculos de poder de cores vivas e
emitiram alguns sons. Estavam claramente invocando seus animais de
poder.
Os animais totem surgiram instantaneamente no salão. O animal real de
todos era diferente das montarias. Panl invocou seu castor. A sacerdotisa
do ar invocou um morcego. A sacerdotisa do fogo invocou uma cobra.
Zermer invocou uma raia.
O mago de terno falou alguma coisa. Panl fitou–o com horror quando
ouviu.
– Ele vai atacar os animais! – gritou Panl.
Os altos sacerdotes ainda tiveram tempo de invocar gelo, fogo e outros
tipos de raios para atacar o mago de chifres. Panl cravou o cajado no
chão e provocou um terremoto devastador que afundou o salão abaixo.
Eles foram lá para fora. Zermer mergulhou na água e começou a
provocar um tsunami, mas o mago de sete chifres invocou um espírito
semelhante a um fantasma negro. O espírito envolveu a raia e
despedaçou–a.
Zermer entrou em choque. Ficou de joelhos e colocou a mão sobre o
peito; sua respiração estava falhando.
O mago de sete chifres colocou–se diante dele, fitando–o com seus
horríveis olhos vermelhos e não teve piedade. Despedaçou Zermer;
mutilou–o completamente e os pedaços de seu corpo caíram no chão,
banhados em sangue azul esverdeado.
Grina gritou e chorou desesperadamente. Eu não podia acreditar no que
estava vendo.

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Guerra das Cores Perdidas

O mago de chifres esmagou o morcego da alta sacerdotisa do ar, que não


teve a menor chance. Ela estava levitando naquele momento e, sem o
morcego como fonte de poder, despencou numa queda livre de muitos
metros e morreu.
O mago de sete chifres decapitou a serpente com o cajado. Depois disso,
também decapitou a alta sacerdotisa do fogo, que mal teve chances de
lamentar a morte de seu companheiro mágico.
Minha irmã estava trêmula. Ela: a papisa, a alta sacerdotisa da terra.
Morrendo de medo!
O mago de terno zombou dela. Ele fez um movimento no ar, sugerindo
que minha irmã se ajoelhasse. Ela se encheu de fúria e tentou atacar o
mago de terno, falando alguma coisa no outro idioma, com muita raiva.
Mas, mesmo que Panl tivesse poder para matar o ditador, o mago de sete
chifres não iria permitir. Quando Panl fez um movimento com o cajado,
o mago de olhos vermelhos cortou os dois braços dela, que caíram no
chão.
Panl deu um grito horrível e ajoelhou–se no chão, agonizando em dor.
Seu castor veio ao seu encontro para tentar curá–la, emanando uma
grande energia. Mesmo que fosse possível curá–la não havia tempo. Os
magos negros não iriam esperar.
Panl podia mandar o castor ir embora, mas se ela morresse o castor
também morreria. Era um caminho sem volta.
Naquele momento eu entendi os sentimentos da minha irmã: ela
aceitaria não ser mais papisa, alta sacerdotisa ou ter qualquer outro poder
contanto que seu castor pudesse permanecer vivo. Mas a vida do castor
já estava condenada. Então ela desejava pelo menos poder morrer
primeiro que ele.
Mas isso não ocorreu. O impiedoso mago de olhos vermelhos mutilou
completamente o castor e arrancou–lhe os órgãos internos diante dela.
O animal agonizou antes de morrer.
Panl deu um grito ainda mais alto de desespero. Começou a falar um
monte de coisas naquela língua estranha, gritando, sofrendo.
Panl ainda olhou para mim antes de morrer. Eu nunca vou esquecer o
olhar que ela me lançou.
O mago de sete chifres cortou Panl ao meio; a cintura se separou do
resto do corpo e ela parou de respirar.

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Juliana Duarte

Eu e Grina estávamos num canto tremendo de medo, abraçadas aos


nossos animais de poder.
O mago de terno ordenou alguma coisa. O mago de sete chifres
decapitou o bebê foca. Mas foi o próprio mago de terno que esmagou
meu esquilo com o pé. Em seu lugar restou apenas algo disforme e uma
poça de sangue.
Meu esquilinho. Meu animal de poder que sofri tanto para conquistar...
Senti um aperto horrível no coração. Era uma sensação maldita, senti
vontade de morrer. O impacto psicológico gerado pela perda do animal
totem era o mais horrível de todos. Eu só podia imaginar o grande
choque que seria perder um bichinho que foi o companheiro de magia
durante anos, ou mesmo durante uma vida no caso da minha irmã.
Grina estava sofrendo um grande choque emocional. Gritava e chorava,
balbuciando palavras ininteligíveis.
O mago deu outra ordem. Nesse instante, o mago de sete chifres
aproximou–se de nós. Eu nunca senti tanto terror na minha vida.
Bastaram golpes leves para que ficássemos quase inconscientes. Em
seguida, o mago de terno branco traçou um círculo no chão. Pronunciou
algumas palavras.
Nesse momento nós quatro desaparecemos daquele mundo.

46
Guerra das Cores Perdidas

Os Prisioneiros

Quando acordei, eu estava no interior de uma cela; estava presa.


Mas eu não estava sozinha. Ao meu lado estava Grina, num estado muito
pior que o meu. Ela estava completamente chocada com o que vira e
principalmente com a perda de seu animal totem. Ela tinha seu
companheiro há mais tempo que eu; dessa forma, a dor da separação foi
mais severa, pois a simbiose já devia ter começado a ocorrer. Então era
como se ela tivesse perdido uma parte dos órgãos e seu corpo já não
funcionava tão bem. Ela passava por um trauma físico e psicológico.
Ao nosso lado havia uma moça com os braços acorrentados. Ela tinha
cabelos castanhos claros compridos e lisos; uma franja curta. Seus olhos
eram castanhos. Usava uma túnica branca, meio suja e velha. Os pés
estavam descalços. Além da sujeira, ela parecia meio maltratada, como se
tivesse sido regularmente espancada. Aparentava ser prisioneira há um
tempo considerável. Ela era mais velha que nós, mais ou menos da idade
da minha irmã.
Mas havia algo muito especial em relação a essa moça: embora parecesse
abatida, o brilho de seus olhos era intenso e ela emanava uma aura
magnífica. Duas enormes asas brancas saíam de suas costas.
Foi então que vi o mago de terno do outro lado da grade, observando–
nos com interesse quando notou que havíamos despertado.
Eu o fitei com muito ódio e antes de eu dizer qualquer coisa, ele avisou:
– É melhor ficar quieta. Poupei a vida de vocês, mas isso pode mudar.
Sugiro que se comporte.
Sinceramente, eu já não via sentido nenhum em obedecer às ordens dele.
Minha vida já não valia nada. Eu perdera minha irmã, no fundo a pessoa
mais especial para mim, que eu mais admirava. Não valia mais a pena
viver sem ela. E com o trauma de ter visto mutilações e mortes, eu
preferia morrer a ter que guardar aquilo para sempre na memória.
Era melhor que eu descarregasse todo o meu ódio antes de morrer. No
final eles iriam nos matar de qualquer maneira. E eu preferia morrer com
valentia, como minha irmã, e não como uma covarde.
– Panl teria te matado facilmente – retruquei – você não tinha coragem

47
Juliana Duarte

ou poder para enfrentá–la diretamente e chamou outro para fazer em seu


lugar.
– Eu sou um mago goético, menina tola – respondeu o mago de terno –
minha especialidade é evocações e não o uso da força bruta. Requer
muito tempo, estudo, habilidade, coragem e sabedoria para chamar um
demônio do porte que eu evoquei. Ele é um dos demônios mais elevados
da hierarquia. Não fale do que não compreende.
Dessa vez fiquei quieta. Era melhor eu não expor minha falta de
conhecimento sobre magia assim, tão diretamente, pois era uma
vergonha eu não saber de nada.
– Devolva–me ao meu mundo – fitei–o diretamente – se for para passar
a vida presa nesse lugar horrível, prefiro morrer.
– Não poupei suas vidas por bondade. Nós, magos negros, estamos
reunindo seres de outros mundos para estudo e realização de
experiências. Mas usamos somente transgressores de leis como cobaias.
Então seríamos apenas ratos de laboratório. Era um destino ainda pior
que o cárcere.
– Por que não capturou a minha irmã em vez de mim?
– Ela seria um estorvo. Teria poder para tentar escapar ou matar alguns
de meus subordinados de confiança. Prefiro crianças, pois são mais
estúpidas e influenciáveis. A mente não está tão contaminada com os
vícios de seu mundo.
Então ele pretendia fazer algum tipo de lavagem cerebral em mim. Não
ia funcionar. Eu jamais iria perdoá–lo pelo fato de matar tantos de nosso
povo, por uma razão completamente absurda.
– Por favor, aproveite sua estadia; na verdade, sua nova morada. Mais
tarde retornarei com novidades.
Ele se retirou. Nem fiz menção de chamá–lo de volta, pois eu também
não teria nada a dizer. A situação estava clara.
Grina ainda estava ao meu lado, sofrendo. Somente quando ele foi
embora ela falou comigo, numa voz fraca:
– Eu vou morrer em algumas horas.
– Por causa da falta de seu animal totem? – perguntei, compreendendo a
situação.
Ela confirmou. Sua situação era realmente delicada. E além da falta de
seu bichinho, ela estava longe da água, seu ambiente natural. Sentia

48
Guerra das Cores Perdidas

dificuldade de respirar, de manter–se viva.


Ela estava agonizando. Segurei na mão dela. Ela ainda suportou por
longas horas.
– Estou com medo... – a sua voz quase sumia no momento em que ela
disse isso.
Até que ocorreu sua última inspiração e ela morreu nos meus braços.
Eu não chorei. Já havia me preparado para aquele momento nas últimas
horas. Prometi a mim mesma que não iria fraquejar nunca mais. Afinal,
eu precisaria ser muito forte para sobreviver na vida que me aguardava.
Talvez Grina tivesse sido minha melhor amiga até então e minha
primeira mestra, mesmo que por um curto período. Afinal, eu e ela
tínhamos nos encontrado apenas em três ocasiões: no dia da cerimônia
dos anéis, no dia fatídico do acidente e no dia de sua morte.
O mago de terno retornou apenas bem tarde. Percebeu o que ocorreu.
– Eu ia matar uma de vocês de qualquer maneira – disse ele – somente
um de seu povo é suficiente para estudo. Vou mandar realizarem uma
autópsia e depois incinerar o cadáver.
Quando tiraram Grina de lá, senti–me muito solitária.
O mago de terno passou por ali novamente. Se ele era realmente o
governante do mundo deles, eu me perguntava que tipo de interesse ele
teria em seres de outro mundo. Já devia ter capturado outros de nós
antes, a não ser que aquela experiência fosse muito importante.
– Estou com fome – tive que dizer, sentindo–me humilhada – você tem
planos de me matar de fome? É essa sua experiência? Testar até que
ponto aguento?
Mas ele não zombou de mim dessa vez. Saiu de lá e retornou com dois
pratos de comida. Jogou–os de qualquer jeito onde estávamos e foi
embora.
Aquela comida cheirava mal. Eu não sabia o que tinha naquele prato,
parecia uma carne de um bicho estranho e um tipo de vegetal velho. Mas
eu estava com tanta fome que tapei o nariz e comi tudo. Devorei a
comida como um bicho, em poucos segundos, e lambi o prato no final.
Quase vomitei depois, mas aguentei firme.
A moça de asas estava com dificuldade para comer, pois com as mãos
presas ela mal alcançava o prato. Resolvi ajudá–la, mas ela negou a ajuda
e, depois de muito esforço, levou quase meia hora para conseguir

49
Juliana Duarte

alcançar toda a comida do prato. No final ela desistiu e deixou um resto


de comida, que eu tive vontade de comer, mas me contive.
– Por que prenderam seus braços? – eu perguntei a ela.
Ela não respondeu. Não entendeu o que eu disse, então concluí que ela
não falava minha língua.
Foi só naquele momento que notei que eu conversara com o mago de
terno sem auxílio de tradutor. Ele sabia falar minha língua, embora
tivesse bastante sotaque para ela e pronunciasse alguns termos errados.
Eu estava com sono, embora não fizesse ideia da hora. Deitei–me no
chão duro e sujo para dormir. Agora o solo das florestas já me parecia
bem confortável.
Senti pena pela garota de cabelos castanhos, que teria que dormir em pé,
com as mãos acorrentadas. Mas eu não podia fazer nada a respeito. Era
possível que ela soubesse mexer com magia, razão por terem amarrado
suas mãos. No meu caso, eu não era uma ameaça.
Acordei com o sujeito de terno me chamando, pois ele teria algumas
perguntas a fazer.
Eu não tinha descansado nada. Dormi muito pouco, continuava com
sono, exausta, com dor nas costas e dor de cabeça. Ainda sentia fome,
pois aquela refeição foi pouca. Eu também tinha espasmos de frio e calor
frequentemente.
Não adiantaria nada eu reclamar; eu só estaria demonstrando fraqueza,
pois era muito claro que o fato de me fazer sofrer era intencional. Ele
queria me colocar no limite para que eu cooperasse.
– O teste começa agora? – perguntei, de má vontade.
– Se seu estado já está assim tendo passado apenas dois dias, você não
vai durar nem uma semana – constatou ele – mas enquanto conseguir
falar, terá que responder às minhas perguntas. Para começar, conte–me
suas experiências e conhecimento de magia.
– Nada. Panl nunca me contou coisa alguma. Obtive meu animal de
poder recentemente. Não cheguei nem mesmo a ingressar na ordem
monástica. Você estragou meu futuro promissor.
– Vocês mesmos se condenaram a morte com essa evocação tola. Você
chama aprender aquela magia fraca de futuro promissor? Ainda bem que
não sabe nada, pois assim não preciso dizer para que esqueça tudo o que
aprendeu. É melhor começar do zero.

50
Guerra das Cores Perdidas

– Começar o quê?
– Você será iniciada na magia negra.
Aquilo me soou extremamente absurdo. Fitei–o incrédula.
– Prefiro morrer – eu disse a ele, determinada.
– Você vê aquela senhorita logo ali? – perguntou ele – Mesmo sendo
habitante do Mundo Branco, começou a mexer com goécia. Aqui em
nosso mundo não trabalhamos com invocação de elementais, anjos,
deuses ou quaisquer outras potências que não sejam os seres demoníacos
e espíritos errantes de nossos mortos. Então por que raios os habitantes
dos outros mundos insistem em mexer onde não devem? Pagarão o
preço.
– Achei que demônios gostassem de ser evocados – comentei – para
tentar barganhar com o operador e enganá–lo, fazendo–o vender sua
alma em troca de quinquilharias.
– Você está completamente enganada. Vejo que nada conhece sobre
magia negra se pensa que gostamos de zombar dos fracos ou obter
ganhos mundanos. Nossa busca é muito mais séria e profunda. Vou te
mostrar.
Ele jogou um manto branco para dentro da cela.
– Tome um banho e troque–se. Retornarei em breve.
Não era possível que ele iria me soltar. Ele estava tramando algo.
Fiz como ele ordenou. Tomei um banho rápido no chuveiro velho do
canto da cela. Vesti o manto branco, que ficou um pouco grande para
mim. Tive que dobrar as mangas e a bainha.
Logo ele já estava de volta. Ele colocou uma argola de ferro no meu
pulso e prendeu–me ao pulso dele através de uma corrente.
Ele abriu a cela e saímos da prisão. Será que ele iria me levar para um
tour pela cidade? Pouco provável. Ele mandou que eu cobrisse o rosto
com o capuz. Caminhamos pela cidade. Lá fora o mundo era bem
diferente.
Havia casas e prédios, a maioria em tons de cinza escuro. Mais rochas e
montanhas compunham a paisagem do que árvores. As poucas árvores
eram de folhagem verde escura e galhos retorcidos. O céu era de um tom
roxo e a lua era negra.
Apesar de ser noite, as ruas estavam bem movimentadas. Percebi que
havia diferentes raças, variados formatos de chifres e cores de pele.

51
Juliana Duarte

Alguns possuíam chifres grandes como os de alce, retorcidos como os de


touro ou de bode, dentre muitos outros.
Entramos numa rua estreita. Nela havia uma porta, que levava a um
longo corredor e a uma escada. Lá em cima tinha outra porta decorada
com inscrições arcanas. Quando adentramos, fiquei deslumbrada.
Era uma espécie de loja especializada em utensílios mágicos. Lá havia
velas negras acesas, de todos os tamanhos e formatos. Caveiras,
pentagramas, bastões, cajados cravejados de cristais, mantos, vestes
ritualísticas elaboradas, chapéus, bolas de cristal, cartas, cálices de prata,
caldeirões de ferro, centenas de livros.
Logo surgiu o dono da loja: um senhor soturno de olhos amarelos e
chifres enrolados de carneiro. Ele saudou o mago de terno
respeitosamente. Os dois trocaram algumas palavras por um tempo, mas
eu não entendi nada. Aproveitei para examinar os utensílios mais
próximos.
Toquei num dos objetos. Não fui repreendida. Senti–me encorajada para
continuar.
Abri alguns livros, todos escritos em linguagens e códigos esquisitos. Mas
alguns continham figuras interessantes, a maioria mostrando evocações
de demônios: desenhos em que o operador agonizava no chão,
realizando oferendas de sangue e o demônio mostrava–se numa forma
bestial.
Aquilo me fez recordar do demônio de sete chifres derramando o
próprio sangue para criar aqueles sigilos mortais. Fechei o livro na
mesma hora, pois me senti mal.
Eu nunca tinha visto os utensílios mágicos de meu mundo, fora aqueles
usados pelos sacerdotes no dia derradeiro. Até então eu só vira os
mantos coloridos do Mundo Verde, os cajados dos elementos. Eu sabia
que lá tudo tinha uma relação muito forte com a natureza, com o
equilíbrio: árvores, elementais, estações, animais mágicos, ervas...
No Mundo Negro a maioria das coisas possuía uma tonalidade cinzenta,
roxa, vermelha, meio macabro. Ainda assim era incrível. Dava um pouco
de medo, mas era tentador.
O mago de terno sussurrou:
– Disse ao dono da loja que você é minha aprendiz e precisa de alguns
materiais básicos. Ele irá guiá–la e lhe dará o que necessita. Não precisa

52
Guerra das Cores Perdidas

responder, pois eu disse que você é muda. Não tire o capuz.


Eu obedeci e acompanhei o dono, que começou a colocar algumas coisas
na minha mão.
Primeiro ele me deu um caderno de capa negra com folhas em branco.
Presumi que eu deveria escrever alguma coisa nele, pois ele também me
alcançou uma pena e um tinteiro.
Deu–me um livro numa língua que obviamente eu não entendia, que
deveria conter as diretrizes da magia negra básica. Além desse, ele me
passou um grimório antigo de folhas amareladas que já parecia um
pouco mais avançado. Os dois livros tinham algumas figuras, o que
julguei positivo. Pelo menos eu poderia tentar adivinhar alguma coisa
sobre o conteúdo com as imagens.
Ele mediu meu braço com uma régua e selecionou um bastão desse
tamanho, feito de madeira rústica. Alcançou–me um punhal retorcido,
um pequeno cálice, um saco com pedras de ônix negro e um conjunto de
velas negras e óleos essenciais de origem animal.
Colocou nas minhas mãos um baralho; uma espécie de tarot macabro.
Depois disso, ele começou a selecionar pequenos objetos e livrinhos
complementares, mas o mago de terno fez um gesto, como se indicasse
que era o bastante. Ele queria apenas o essencial.
O mago negro pagou o “kit de magia negra para iniciantes” com
dinheiro vivo. Eu não sabia quanto valia a moeda lá, mas como ele
retirou várias notas da carteira concluí que deveria ser caro.
Levei minhas novas aquisições numa sacola de pano, na qual estavam
pintados os símbolos arcanos daquela loja esotérica.
Logo que saímos da loja, eu disse ao mago negro:
– Obrigada.
Ele olhou para mim completamente indiferente:
– Se você morrer, passo para outro. Não costumo desperdiçar dinheiro.
Preferi pensar que aquelas palavras significavam “de nada” ou qualquer
coisa do tipo. Preferi deixar para lá.
Voltamos direto para a prisão. Ele retirou a corrente que nos prendia e
me trancou de volta na cela com a menina zumbi.
– Caso se comporte bem e estude com disciplina, da próxima vez você
irá conhecer um bar de ocultismo em que se reúnem alguns renomados
teóricos. Um estabelecimento do submundo.

53
Juliana Duarte

– Não há estudantes de magia da minha idade? – perguntei.


– Qual a sua idade, afinal? Dez? Onze?
– Quase treze.
– É raro crianças por aqui. Eu não vou te levar a um passeio de
entretenimento para você brincar. É melhor se dedicar a sério ou irei me
livrar de você na primeira oportunidade.
Aquelas ameaças já não pareciam tão assustadoras. Por outro lado, ele
não pensaria duas vezes se resolvesse seriamente me matar. Ele tinha
matado aqueles sacerdotes num piscar de olhos. Era melhor eu ser
obediente.
Então eu seria uma escrava? O fantoche do cara que assassinou minha
irmã? Que vida desgraçada eu escolhera. Se é que eu realmente tinha
escolha: era aquilo ou a morte. Minha irmã escolheu a morte, mas talvez
eu não fosse forte o suficiente para uma escolha como essa.
Ele já ia embora quando eu disse:
– Espere. Não sei ler essas línguas.
– Azar o seu.
Com tais palavras, o mago de terno se retirou. Senti um pouco de raiva
com a resposta, mas tive que me conformar.
Pelo menos dali em diante eu teria alguma distração naquela cela fria,
escura e fedorenta. Era mágico possuir meus próprios utensílios. Aquele
punhal era lindo, embora meio assustador. Apalpei cuidadosamente cada
objeto. E me perguntei se eu não me sentiria mais feliz se estivesse
recebendo meus primeiros utensílios mágicos para praticar magia verde
em vez de magia negra...
Abri um dos livros no meu colo. Analisei apenas as figuras, que
mostravam utensílios e diretrizes para consagração. Também havia
imagens de pessoas meditando, saindo do corpo, realizando operações
de necromancia e goécia. Aquele era realmente um livro para iniciantes.
Que raios seria “goécia básica”? Só podia ser brincadeira...
O outro grimório já continha algumas imagens mais violentas: instruções
para sacrifícios ritualísticos de animais, bebês e crianças. A não ser que o
texto dissesse algo completamente diverso do que mostravam as figuras,
eu não estava simpatizando muito com as operações.
Como eu não sabia o que deveria treinar, alcancei o livro em branco para
escrever algumas coisas. Na minha língua materna, é claro.

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Guerra das Cores Perdidas

“Aqui estou eu, prisioneira de meu próprio destino. Se não fosse a ideia de espionagem
de Grina, isso não teria acontecido. Se não fosse a teimosia e orgulho da minha irmã,
ninguém teria morrido tampouco. Pelo menos não agora. Seja como for, me considero
parcialmente responsável pelo acontecido pelo mero fato de ter presenciado tudo e ter
sido a única a escapar com vida. Talvez eu seja a maior desgraçada e traidora da
minha raça, por não ter coragem de me matar. Estou me submetendo aos caprichos de
um mago negro arrogante que faz questão de ser meu mestre de magia negra e induzir
uma lavagem cerebral violenta em mim.
Enquanto ainda conservo a minha sanidade, faço questão de informar aqui as
minhas concepções sobre o mundo: não quero me envolver em assassinatos de pessoas e
animais, em torturas, em magias negras que gerem sofrimento e desgraça. Isso porque
eu sentiria um desagradável peso na consciência se fizesse essas coisas. Também tenho
medo de ter que pagar na mesma moeda: ser condenada a uma vida de sofrimento
eterno pelos meus atos.
É possível mexer com magia e obter poder de uma forma pacífica e divertida. Sendo
assim, por que escolher o caminho do sofrimento, horror e morte por vontade própria?
Isso irá apenas me perturbar e preciso de uma mente sã para realizar operações
mágicas. Não quero transformar minha vida num inferno, num mar de sangue.
Não desejo me tornar uma pessoa indiferente, séria, sem emoções e de coração gelado
como o misterioso mago de terno. Ele não deve ser feliz. Apenas aparenta estar
confiante por fora, mas ninguém que pratica o mal deve ter uma paz real. É tudo
mentira. Os magos negros são uns desgraçados, odeiam a si mesmos e ao mundo
inteiro. Para descontar suas infelicidades, matam os inocentes.
Odeio aquele cara, repudio o meu estado atual. Não quero me tornar como ele.
Socorro! Espero que no final desse treinamento insano que mal começou, reste uma
parte em mim que ainda seja humana.”

Senti–me cansada de escrever. Eu estava com fome, mas simplesmente


deitei–me no chão. Afinal, eu devia ter dormido só umas duas horas da
vez anterior e precisava de um descanso de verdade.
Enquanto isso, a menina zumbi estava definhando ao meu lado: cada vez
mais magra, mais pálida, doente; quase morta. Somente os olhos ainda
viviam.

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Juliana Duarte

O Treinamento

Acordei com um balde de água gelada em cima de mim. Levei um


grande susto.
– Bom dia, menina das roupas esfarrapadas. É melhor começar a ter
disciplina e acordar cedo para seu treinamento. Não quero desperdiçar
tempo e dinheiro com uma preguiçosa cabeça–dura fadada ao fracasso.
Era o mago negro de sempre. O “ditador vitalício”. Ele não tinha mais
nada para fazer? Papéis para assinar como governante?
– Por que fez isso? Tentei ler os livros, mas não entendo a língua!
– Baixe a voz e me obedeça.
Que escolha eu tinha? Fiquei quieta. Ele queria que eu decodificasse os
hieróglifos da língua dele?
Ele abaixou–se e segurou o meu livro de anotações.
– Não estou usando terno hoje. Como pretende me chamar agora?
“Mago de sobretudo”?
Pelo jeito ele havia lido meu grimório pessoal enquanto eu dormia.
– Você nunca me disse seu nome – argumentei – aposto que nem
mesmo sabe o meu.
– Não sei e não me interessa – retrucou ele – é impressionante como
alguém pode escrever tanta besteira em apenas cinco parágrafos. Sua
visão a meu respeito não faz a menor diferença para mim, mas é
lamentável que você tenha essa visão distorcida sobre magia negra. Por
acaso você viu alguém cometendo assassinatos na rua?
– Magia parece ser algo marginal até mesmo no seu mundo. Na rua
vimos pessoas comuns realizando seus afazeres. Mas os magos negros,
como consta no grimório que me deu, fazem essas coisas aqui.
Mostrei a ele as imagens de sacrifícios animais e humanos nos rituais que
constavam no livro.
– Percebo que é urgente que você aprenda nossa língua – observou o
mago negro – antes de tirar conclusões precipitadas. A magia negra
engloba tudo: o bem e o mal. A finalidade depende da vontade do
magista e não da magia em si.
– Preciso de um animal de poder. Desejo me sentir completa como

56
Guerra das Cores Perdidas

antes.
– Você viu o que ocorreu à sua amiga que se apegou demais: seu destino
foi a morte. Concentre–se nas diretrizes da magia negra agora e um dia
se sentirá completa através de outros meios.
– Melhor morrer com um amigo fiel do que morrer sozinha –
argumentei.
– É melhor não morrer. Você também pensa assim ou não estaria mais
viva. Teria morrido com seu esquilo ou com a menina azul.
“Você pisoteou meu esquilo; você assassinou a foca de Grina”. Mas nem
adiantava argumentar. Talvez sua vontade fosse me libertar de meu
animal de poder da forma mais horrível.
– Magos negros não possuem animais de poder?
– Eles possuem auxiliares mágicos; é diferente. Os animais vivem na
natureza e fornecem suas energias temporariamente. Não há um tipo de
contrato ou obrigações. Conjurações são feitas somente em relação a
demônios.
– Você e o demônio de sete chifres parecem ter uma ligação muito forte
– observei.
– Você terá o seu momento.
Com o passar dos dias, ele me ensinou o básico sobre a língua deles e leu
para mim algumas frases do grimório. Eu ia anotando embaixo das frases
a tradução para poder estudar sozinha depois. Na maior parte do tempo
eu estudava só, já que ele dizia ser muito ocupado.
Aprendi a consagrar os utensílios mágicos e a mexer com energia. Eu já
conseguia sentir a energia de seres vivos e minerais. Na cela eu treinava
com pedras e ervas. Energizava meus utensílios mágicos para realizar
algumas operações simples.
Na magia negra não se focava em operações com elementos e
elementais. Ia–se diretamente ao quinto elemento: o poder do operante
que contata potências superiores como espíritos e seres demoníacos.
Mas antes de estudar invocações, comecei de forma mais leve, com
divinações e sigilos. Eu passava muito tempo estudando o tarot e seus
significados, tentando realizar interpretações. Eu desejava descobrir a
potência mágica de cada um dos objetos que eu possuía.
Em meu grimório pessoal, eu reproduzia alguns símbolos arcanos e
quadrados mágicos. Era extraordinário que uma mera folha de papel

57
Juliana Duarte

possuísse tanto poder. Bastava energizar uma daquelas folhas e era


possível decapitar uma pessoa. E sempre que eu pensava nisso voltava à
minha mente o poderoso demônio de sete chifres, lançando trinta sigilos
simultaneamente para realizar sua carnificina.
Necromancia chamou muito minha atenção. Treinei o método dos
espelhos, tentando enxergar a face de minha irmã e me comunicar com
ela, mas nada funcionava. Afinal, não havia garantias de que ela ainda
estava em estado incorpóreo. Era possível que já tivesse reencarnado em
outra forma de vida.
Alguns meses depois, o mago negro me chamou para comprarmos mais
livros, pois eu já havia relido muitas vezes aqueles dois grimórios. E
como eu não tinha nada mais para fazer naquela cela, o meu livro de
anotações também estava quase completamente preenchido.
Vesti o manto branco com capuz. Ele me acorrentou e fomos até a
mesma loja da vez anterior.
Dessa vez ganhei uns dez livros e mais um caderno de anotação, o que
me deixou muito feliz. Um dos livros era tão antigo que, além de as
páginas estarem quase se desmanchando, foi escrito com linguagem
arcaica. E o outro era em código mágico. Eu teria bastante trabalho para
decifrar, mas de certa forma era uma atividade estimulante.
Ganhei mais velas, ervas e óleos, pois meu estoque estava quase
acabando. Além disso, uma surpresa: uma linda espada de bronze,
própria para invocações de demônios.
– Em breve você estará preparada para utilizá–la. Portanto, concentre–se
em energizá–la nos próximos meses.
Dessa vez a quantia paga foi altíssima. Ao que parecia, o livro arcaico era
um exemplar de colecionador. E a espada de bronze também era bem
cara.
Como compramos uma grande quantidade de mercadorias, o dono da
loja me deu de brinde um saquinho com dados, que poderia ser usado
para divinação.
Quando saímos da loja, eu não tinha palavras para agradecer ao meu
tutor. Embora me mantivesse acorrentada sempre que saíamos, eu
continuasse a ser uma prisioneira e ele me tratasse mal, de forma rígida,
tinha gastado comigo uma enorme quantia. Ou talvez para ele não fosse
nada, já que devia ser rico como ditador vitalício.

58
Guerra das Cores Perdidas

– Obrigada, mestre – eu disse a ele – foi muito gentil de sua parte.


– Espero que você me retribua de acordo.
– Retribuir...? Não tenho dinheiro.
– Basta continuar a ser extremamente aplicada ao seu estudo e prática de
magia. E obedecer tudo o que eu disser.
Realmente, eu era o fantoche dele. Ele estava me comprando com livros
de capa bonita, espadas douradas... era tudo muito fascinante para uma
menina simples como eu, que veio de um mundo de pouco luxo, apenas
com o acalento da natureza.
Mas era mais que isso. Eu queria aprender, ter acesso ao conhecimento.
E aqueles utensílios fantásticos tornavam tudo mais mágico.
Ele propôs que fôssemos ao bar, mas eu disse que não.
– Estou ansiosa para chegar em casa e ler meus livros! Vamos ao bar
somente quando eu terminar minhas leituras.
Ele pareceu meio surpreso com o que eu tinha dito. Primeiro, eu chamei
aquela cela suja de “casa”. E eu estava ansiosa para ser presa novamente,
para ter um espaço de leitura.
Sendo assim, voltamos para lá. Imediatamente mergulhei na leitura
daqueles livros grossos e fantásticos. E todo dia eu namorava minha
linda espada e a energizava, ansiosa pelo dia em que eu a usaria pela
primeira vez.
Eu apenas lia na maior parte do dia. No resto do tempo, eu energizava a
minha espada e realizava pequenas operações como quadrados mágicos e
visualizações, para treinar. Traçava muitos círculos de proteção no chão
para decorar o simbolismo dos sigilos arcanos.
Para memorizar algumas recitações em línguas antigas, eu as pronunciava
em voz alta frequentemente. Um dia mostrei ao meu tutor, muito
orgulhosa, que havia decorado todas elas. Em vez de me elogiar, ele me
disse que a pronúncia estava toda errada, me ensinou a pronúncia certa e
me mandou decorar tudo de novo.
Quando terminei a leitura dos dez livros, eu já estava começando a ler
novamente meus capítulos preferidos quando me recordei sobre a
promessa da ida ao bar de magia. Quando o meu mestre apareceu
naquela noite, eu o relembrei sobre a promessa. Ele permitiu que
fôssemos, com a condição de que eu respondesse corretamente as
perguntas que ele iria me fazer. Um tipo de teste oral.

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Juliana Duarte

– Primeira pergunta – começou ele – no que consiste a magia negra?


– A magia negra é uma linha sublime, séria e respeitável que trabalha
com a tênue linha entre o medo e a coragem; uma loucura desejável. É
mexer com potências perigosas, é ousar desafiar o proibido em busca do
poder advindo do despertar de nossas energias ocultas.
– A sua resposta foi péssima. Parece que você engoliu um livro. Você
falou muito, mas não disse nada.
– É o melhor que posso fazer, senhor – argumentei.
– Tenho certeza de que pode fazer melhor que isso. Tente usar suas
próprias palavras. Até agora, o que você sentiu que realmente é o
Caminho da Mão Esquerda?
– As pessoas dizem que devemos fazer o bem e evitar o mal. Mas em
geral isso é dito por medo do castigo. Elas fazem o bem porque desejam
que coisas boas aconteçam na sua vida e têm medo das sensações
diferentes e estranhas que assumem nosso corpo quando lidamos com a
desgraça.
– É um começo. Continue.
– No entanto, não devemos temer o mal e nem buscar nos vangloriar do
bem. Ambos podem ser úteis em diferentes ocasiões. O mago negro é
capaz de obter poder de qualquer fonte: da saúde e da doença, da alegria
e da tristeza, do medo e da coragem. Em especial, no momento de uma
evocação demoníaca sensações de medo e coragem se confundem e
ambas são necessárias para fazer o coração acelerar e alterar o estado de
consciência até que as coisas aconteçam.
– Sua explicação ainda está muito confusa – comentou ele – você parece
confusa. Tente ser mais clara, exponha sua opinião e não diferentes
abordagens sobre o tema. Concentre–se na minha pergunta.
Ele era muito exigente, mas eu gostava que fosse assim, pois isso fazia
com que eu tentasse dar o melhor de mim. Obviamente ele não ficaria
satisfeito com uma resposta medíocre.
Tentei ser objetiva:
– A magia negra busca o poder. Trabalha–se com a transmutação de
emoções. Enfrentam–se os demônios interiores. Bem e mal são
ressaltados como força. Ambos existem na vida e a existência não deve
ser negada e sim vivenciada, experimentando–se diferentes sensações do
corpo e da mente. Nós somos nosso próprio Deus com a capacidade e

60
Guerra das Cores Perdidas

sabedoria de julgar o bem e o mal.


Ele largou aquele monte de grimórios pesados em cima de mim. Eu me
protegi com os braços.
– Você realmente leu esses livros? – perguntou ele, seriamente – Ou
passou as últimas semanas dormindo?
– Desculpe, fiz o melhor que pude – defendi–me – li todos eles, até
decorei os trechos inspiradores e reli os capítulos mais importantes. Mas
ainda não compreendo completamente sua língua. E muito menos esse
idioma esquisito do livro de códigos. Não entendi quase nada desse aqui.
Indiquei a ele o exemplar raro de colecionador. Ele segurou o livro e
folheou–o.
– Faz muito tempo que o li – confessou ele – hoje à noite irei relê–lo e
amanhã lhe explicarei os ensinamentos contidos nele.
– E a ida ao bar de ocultismo? – perguntei, meio desapontada.
– Iremos amanhã. Até amanhã à noite tente encontrar uma boa resposta
para a minha pergunta. Suas respostas foram apenas satisfatórias e
poderiam convencer outros mestres, mas não a mim.
– Eu disse alguma coisa errada?
– Não, mas você disse somente o óbvio: o que qualquer bêbado
analfabeto da esquina saberia informar. Há muitas informações
importantes e profundas contidas nesses livros. Tente captar a essência
do que é dito. Não leve ao pé da letra. E mais importante: é através da
prática que se obtém as verdadeiras respostas. Tente sentir a energia e as
sensações do seu corpo em suas operações e você saberá a resposta.
– O que posso fazer? – me queixei – Além do obstáculo do idioma, você
é um mestre muito ausente. Tenho diversas dúvidas que surgem com as
leituras. Sempre anoto, mas você não tem tempo de responder todas.
– Tente ser mais independente. E não me venha com desculpas. Só falta
você me dizer que essa cela fria e escura também é um obstáculo ao seu
aprendizado e que você progrediria mais numa cama de cetim.
– Não direi isso – falei – certas asceses e mortificações, como jejuns,
desconforto do corpo e pressão psicológica podem gerar força para o
aprendizado.
– Sinto informar que essa é a posição da magia vermelha e não da magia
negra. Você é um fracasso completo. É melhor eu queimá–la viva
juntamente com seus livros para me poupar o trabalho de perder tempo

61
Juliana Duarte

vindo aqui todo dia. Você não teve progresso nem mesmo com a sua
magia verde feliz estúpida, o que prova que sua chance de evoluir na
magia negra é zero.
Ao ouvir isso, senti uma sensação muito ruim. Fiquei desapontada
comigo mesma, me achei um lixo.
Fitei–o de forma séria:
– Não precisa ocupar–se disso. Eu mesma me matarei nessa noite.
– Você já possui os materiais necessários. Sendo assim, tenha uma
excelente noite.
E ele se retirou. Que desgraçado!
Ou talvez a desgraçada fosse eu. Fitei a minha adaga retorcida e a espada
magnífica e brilhante que jazia no chão. Que eu deveria fazer com elas?
Foi só nesse momento que parei para pensar: o que significa a morte?
No ocultismo possui um significado bem mais profundo. Morrer
significa dizer adeus ao seu passado e à sua velha vida. É renascer para a
nova vida que se inicia.
Nesse instante descobri que já era hora de realizar uma cerimônia de
auto–iniciação solitária.
Tirei as minhas roupas esfarrapadas e tomei um banho. Vesti o meu
manto branco cerimonial. Com os pés descalços fui até a área ritual, levei
balde e esfregão e lavei o chão para purificar o local de trabalho. Aspergi
óleo essencial nos pulsos, no chão e nas velas. O ambiente ficou
preenchido por um aroma forte.
A moça zumbi pareceu meio incomodada com o cheiro, mas ela apenas
se mexeu por um momento e voltou ao seu estado semimorto.
Tracei o círculo de poder no chão e o triângulo fora dele, com a varinha
de madeira. Depois tracei–o fisicamente com o giz. Acendi dezenas de
velas negras para delinear o círculo e o triângulo. Repousei uma caixa de
madeira com terra no interior do triângulo.
Coloquei água dentro do cálice e acendi um defumador, queimando
algumas ervas com carvão num recipiente de metal. Espalhei as pedras
semipreciosas, formando com elas símbolos arcanos. Posicionei ao redor
todas as cartas de baralho. Dei um jeito de utilizar praticamente todos os
utensílios que eu possuía. Trouxe a espada e meu grimório para o interior
do círculo.
Iniciei com uma breve meditação e visualização, para concentração. Logo

62
Guerra das Cores Perdidas

após, inspirei–me com a atmosfera ritualística e levantei–me. Consagrei a


espada com os demais utensílios e apontei–a na direção do triângulo.
Na mão direita eu erguia a espada. Na esquerda, o grimório com a
fórmula da invocação. Depois de alguns minutos de repetição eu a
decorei e o grimório já não era necessário por enquanto.
Por quase uma hora permaneci repetindo a fórmula da invocação. Meu
coração batia cada vez mais forte e o êxtase gerado era incrível.
Finalmente senti uma energia nova no interior do triângulo. Era uma
espécie de sombra. O ar tornou–se turvo; os cheiros do ambiente se
alteraram.
– Apareça sem deformidade ou tortuosidade!
Mas eu havia me esquecido de um detalhe crucial: eu seria capaz de
sentir a presença do demônio, mas a aparição física exigia um sacrifício.
Uma barata correu para o interior do círculo e eu esmaguei–a. Reiniciei
as invocações me perguntando se aquele sacrifício contaria ou não.
Minha dúvida arruinou o sucesso da operação. Da próxima vez eu me
certificaria de encontrar um rato. Eles tinham aparecido tantas vezes e
justo na hora que eu precisava não havia nenhum.
Tentei invocar um rato, tentando contar com meu passado de magia da
natureza. Mas não funcionou. Desapontada, guardei todos os utensílios,
limpei a área ritual e fui dormir.
Eu não havia me iniciado: não havia morrido e nascido de novo. Vi
somente a sombra de um demônio que eu nem sabia qual era.
Mas antes de dormir, ao observar novamente a caixa de areia notei
algumas formas desenhadas nela. Não pude identificar. Cobri a caixa
com um pano para perguntar sobre aquilo ao mago negro na próxima
noite.

63
Juliana Duarte

O Trem

– E então? Dê–me a resposta da minha pergunta.


– Antes, dê uma olhada nisso e me diga do que se trata.
Alcancei a ele a caixa de areia. Ele ficou meio surpreso quando viu o que
havia ali.
– Parece real. Não foi escrito por você. Você não conhece essa língua.
“Bom observador”, pensei. Mas decidi não expressar meus pensamentos
para não aborrecê–lo. Queria que ele estivesse de muito bom humor
naquele dia ou acabaria adiando nossa ida ao bar novamente.
– Que está escrito, afinal? – perguntei, curiosa.
– Fiska.
– Que significa...?
– É o nome de um demônio de baixa hierarquia. Mesmo assim, já foi um
grande feito para você invocá–lo. Conseguiu aparição material ou carnal?
– Negativo. Apenas matei uma barata.
– Algumas vezes a ciência precisa sacrificar pequenos animais em
experimentos, o que no futuro pode trazer novas descobertas médicas e
maior qualidade de vida. De forma análoga, algumas vezes precisamos
realizar esses sacrifícios para aprender mais sobre o mundo dos espíritos
e outras potências, o que nos trará mais do que um conforto físico: uma
descoberta espiritual e evolução da alma.
– Esse é seu discurso que justifica sacrifícios humanos e animais? –
perguntei.
– É uma escolha. O mago negro pode escolher não realizar sacrifícios
físicos, mas, para substituir essa falta, ele deverá oferecer o próprio
sangue e dedicar muito mais tempo em estudo, preparação e alteração
psicológica. Contanto que tenha boas razões para não realizar o
sacrifício.
– Respeito pela vida não basta?
– Você pode ter respeito pela vida contanto que construa uma filosofia
elaborada nesse sentido, que não seja contaminada por baboseiras da
magia branca.
Quando ele mencionou a magia branca, não pude deixar de voltar meus

64
Guerra das Cores Perdidas

olhos para a moça presa à parede. Se ela amava Deus e os anjos, por que
havia evocado um demônio? Eu não conseguia entender, até porque eu
não sabia nada sobre magia branca. Eu não conhecia a fundo nem
mesmo a magia de meu próprio povo, mas era melhor deixar para lá por
enquanto. Se eu não me concentrasse na magia negra, minha vida estaria
por um fio.
– Por que você não está ensinando magia negra para a maga branca? –
resolvi perguntar.
– Ela é teimosa e se nega a aprender. Ela acha que irá se profanar caso
mexa com isso. Prefere uma vida de sofrimento no cárcere a envolver–se
com nossa magia. Se ela conhecesse a magia negra real e deixasse os
preconceitos de lado, certamente mudaria de ideia.
“Preconceitos? Olha quem fala... acabou de afirmar que magia branca é
uma baboseira”
– Por que ela evocou um demônio se odeia magia negra?
– Ela odeia a magia negra e não a goécia – explicou ele – existe uma
magia branca avançada que envolve a invocação do anjo guardião e
posterior invocação dos príncipes demoníacos. É uma magia perigosa e
quem a realiza sem o devido preparo se dá muito mal.
– Vocês a torturaram? – resolvi perguntar – A aparência dela está
péssima. Dá para afirmar que está viva somente porque ela respira. Ela
mal come. De resto, parece estar morta.
– Pare de falar nela. Não quero saber de uma pessoa sem o menor
interesse nos conhecimentos sublimes. Deixe de enrolar e responda à
minha pergunta de ontem: no que consiste a magia negra?
Eu estava um pouco nervosa no momento de responder. Eu teria que
adivinhar qual resposta iria deixá–lo satisfeito.
– Basta dizer que não existe magia negra para fracos, covardes ou
iniciantes – resolvi responder – ou você é um mago negro competente e
poderoso, capaz de evocar potências de alto grau e príncipes
demoníacos, ou você é um charlatão repleto de vícios e de desejos
frívolos. É tudo ou nada. Ou você se dedica seriamente nesse caminho
até alcançar o poder e a sabedoria necessários ou o abandona e escolhe
um caminho da magia adequado à sua mediocridade.
Havia duas opções possíveis: ou ele iria elogiar o meu discurso ou iria
cuspir em mim. Literalmente, era tudo ou nada, pois dessa vez fui longe

65
Juliana Duarte

demais nas palavras.


Ele apenas me fitou por um momento sem dizer nada. E agora?
– Muito bom – ele disse – baseado no seu discurso, você seria a charlatã
medíocre repleta de vícios e desejos frívolos. Estou certo? Afinal, você é
fraca, covarde e iniciante, incapaz de invocar potências de alto nível.
Encaixa–se perfeitamente em sua descrição.
“E o feitiço se volta contra o feiticeiro” Eu e minha boca.
– Sim, eu sou – resolvi dizer – ao menos assumo minhas limitações. Fiz
um discurso arrogante, mas no final reconheço que não correspondo aos
requisitos mínimos necessários. No entanto, já avancei
consideravelmente, sou séria e esforçada. Um dia a fraqueza torna–se
força, a covardia converte–se em coragem e o iniciante torna–se
experiente com tempo e aprendizado.
– O que deseja conquistar com a magia negra?
– Poder – respondi, apenas.
– Sua resposta foi previsível. Por que poder?
– Porque ele me tenta, me fascina. Sinto sensações extraordinárias com o
êxtase espiritual.
– Com o tempo é possível controlar a duração e intensidade desse
êxtase, o que transforma o processo em algo comum e entediante. Nesse
momento, o que você buscará?
– Deus?
Ele bateu com o livro na minha cabeça.
– Morra.
– Eu estava brincando – falei; e era verdade, óbvio.
– Odeio brincadeiras estúpidas.
“Sem senso de humor”.
– Nesse momento, irei buscar um discípulo para passar meu
conhecimento adiante – respondi – até que o discípulo adquira maestria
em todas as áreas, fique entediado, busque um discípulo e assim por
diante, numa propagação infinita de poder e tédio.
– Exatamente o que estou fazendo.
– Por que não buscou um discípulo no seu mundo? – perguntei.
– Porque não seria um desafio real. Vamos logo para o bar. Lá você
poderá aborrecer os outros estudiosos com suas perguntas em vez de me
monopolizar com suas observações duvidosas.

66
Guerra das Cores Perdidas

Oba! Eu conseguira!
– Vá tomar um banho e se trocar. Sairemos em dez minutos.
E ele se retirou.
Eu estava muito feliz. Curiosa, no mínimo. Mesmo que ele me levasse
para um lugar chato, poder sair daquela cela era positivo. Afinal, eu já
tinha lido todos os livros que ele me deu e me julgava com um
conhecimento básico para participar dos debates. Isso se o meu mestre
fizesse a gentileza de traduzir o que eu dizia, pois eu estava longe de ter
fluência naquela língua.
Vesti o manto branco e coloquei o capuz. Ele acorrentou meu pulso ao
dele e abriu a cela. Trancou–a logo em seguida.
Era uma noite linda. Estava fresco lá fora, um vento leve. Que
maravilhoso!
– Iremos de trem. O local é meio distante.
Ele pagou as nossas passagens e nos acomodamos no assento do trem.
Concluí que ele devia estar bastante entediado para aceitar alguém como
eu como discípula. Não por falta de capacidade, pois sempre achei que
eu possuía um promissor futuro espiritual, principalmente por possuir o
mesmo sangue de Panl. Mas eu era de outra raça. Não poderia correr o
risco de ser descoberta nas ruas. E tive que aprender toda a magia negra
do zero. Ao menos seres daquele mundo teriam alguma base, sem contar
o conhecimento da língua. Mencionei isso para ele.
– A base do povão é ridícula – foi a resposta dele – eu realmente prefiro
alguém sem base nenhuma. Assim me poupa o trabalho de destruir suas
concepções erradas. E como você também não sabe nada de magia
cinza, por mim está perfeito. Um cérebro vazio é ideal para o ensino da
magia. Assim o espaço dentro dele será ocupado somente por coisas
nobres.
Aquele cara era arrogante ao extremo. Certamente se considerava o dono
absoluto da razão. Devia pensar que somente a magia negra estava certa
e todas as outras cores estavam erradas. Aliás, somente a ideia dele sobre
magia negra seria a correta. Tudo o que os outros dissessem seriam
falácias. Admirava–me que ele me desse livros de outros autores de
magia que não fosse ele.
– Por que não me indica algum grimório escrito por você? – resolvi
perguntar.

67
Juliana Duarte

– Porque eu só publico livros de teoria da magia muito avançada. Você


não entenderia uma só palavra. Terá que ler uns mil livros medíocres
primeiro para entender 1% do que escrevo.
Eu segurei o riso.
– Sim, mestre. O senhor é muito sábio.
Ele me olhou de canto.
– Estou falando sério – reforcei.
– Você irá segurar a língua quando lê–los. Jamais terá o privilégio de ler
algo superior. Pelo pouco de minhas habilidades que você já viu, deve
saber que, para possuir tal poder, eu tenho não somente primor
empírico, mas uma base teórica fortíssima.
“Pelo pouco de minhas habilidades que você já viu”. OK, matar dezenas
de sacerdotes poderosos em dois segundos era pouca habilidade. Eu
estava realmente curiosa para vê–lo realizar operações de magia de
grande porte, mas também tinha um pouco de medo.
Mas alguma coisa estava errada. Ou ele era o mago mais poderoso
daquele mundo ou a magia verde era definitivamente fraca. Seria uma
grande decepção se aquilo fosse verdade. Eu preferia acreditar que ele
era forte demais e que minha irmã teria derrotado outros magos negros
que aparecessem.
– Por que você chama a nossa magia de cinza?
– Porque eu mato facilmente todos de seu povo e logo eles se reduzem a
cinzas, a nada.
Pensei em argumentar alguma coisa, mas deixei para lá. Não adiantava
discutir com um sujeito como ele. Seria como falar para as paredes. E
mesmo que eu tivesse razão, bastava ele usar de sua autoridade para me
fazer calar a boca.
– Você tem interesse em outros tipos de magia? – perguntei.
– Já estudei muitas delas e constatei que são inferiores. Não me interesso.
Mas tenho conhecimento suficiente sobre elas para um debate. Eu
poderia te dar uma aula de magia cinza se desejasse, mas não quero
preencher o resto do espaço do seu cérebro com isso.
Então tá.
– E sobre as pessoas que iremos encontrar? São seus amigos?
– Amigos? Eu não tenho amigos. São meus rivais. Eles falam muita
besteira e acham que entendem de magia negra. Divergimos em muitos

68
Guerra das Cores Perdidas

pontos.
– Então por que quer me levar para lá?
– Ver outras visões sobre o tema pode deixar sua mente mais aberta.
Há! Até parece que era esse o motivo. Ele, querendo me deixar ver
outras visões sobre o tema? Aquilo estava muito suspeito. Ele me
mantinha trancafiada numa cela, não permitia que eu tivesse contato com
outras pessoas e eu só era permitida a ler o que ele autorizasse.
Provavelmente ele iria me levar para que ele se exibisse, derrotando os
companheiros com argumentos lógicos. Nem iria adiantar, pois eu não
entenderia metade do que eles diriam.
– Você começou a reler o grimório antigo ontem à noite? – lembrei de
perguntar.
– Reli–o na íntegra – ele informou – é inútil para você esse tipo de
leitura no momento. Contém apenas diretrizes cerimoniais para
realização de magia ritual. Informações a respeito da simbologia, todo
tipo de operação avançada e alfabetos mágicos. Só irei devolver o livro
quando você estiver preparada para lê–lo.
– Mas...! Eu gostei do pouco que entendi. As figuras coloridas são lindas,
inspiradoras! Eu gostaria de tê–lo comigo para estudar os alfabetos
mágicos aos pouquinhos...
– Não.
Aquilo encerrou a discussão. Que droga! Se eu argumentasse mais um
pouco, era capaz de ele dizer: “Insista mais e eu te mato”. Eu estava
estudando sob pressão. Não tinha mais vontade própria ou escolhas.
Depois disso, ficamos quietos por uma boa parte da viagem. Ao
perceber que eu não iria perturbá–lo mais, ele tirou um livro de bolso e
começou a ler. Eu também queria ganhar um livro de bolso para
ocasiões como essa.
Mas não adiantava muito eu pedir a ele que me desse um livro de bolso
ou perguntasse que livro ele estava lendo. Ele não era meu pai, para
atender a todos os meus caprichos, embora ele me presenteasse demais
para uma mera prisioneira. E, evidentemente, ele não iria revelar que
livro era aquele, pois deveria se tratar de um exemplar de magia
avançadíssima de centésimo grau, cuja introdução eu só seria capaz de
compreender dali a cem anos ou na próxima encarnação.
Fiz questão de permanecer de cara emburrada pelo resto da viagem, mas

69
Juliana Duarte

ele nem olhou na minha direção.


Discretamente, tentei espiar o título do livro, mas ele estava com a mão
em cima. Virei ligeiramente o pescoço, mas não vi nada. Será que eu teria
coragem de puxar o livro da mão dele? Era um preço muito alto a pagar
por mera curiosidade. Mas eu queria saber o título do maldito livro!
Ele virou uma das páginas. Ele lia muito rápido. A velocidade da leitura e
capacidade de concentração dele eram impressionantes. O trem estava
deserto àquela hora, mas concluí que mesmo estando cheio, barulhento e
movimentado, ele leria com a mesma diligência.
Eu estava ficando entediada naquela viagem longa. Se eu puxasse o livro
da mão dele, iria ao mesmo tempo descobrir o título e iniciar uma nova
conversa.
Num súbito momento de coragem, ou loucura, fiz um movimento
rápido para puxar o livro da mão dele. Mas eu mal toquei no livro. O que
aconteceu em seguida foi muito rápido para que eu pudesse
compreender.
Quando dei por mim, eu estava jogada no chão, sangrando muito.
Tentei estancar o sangue da ferida no braço. Senti medo, comecei a
tremer. Aquilo tinha acontecido num milésimo de segundo. Nem percebi
a passagem do tempo. Eu apenas sentia a dor.
Ele estava de pé, com um punhal na mão. Ele me olhava com muita,
muita raiva. Na verdade ele estava sério, mas aquela seriedade escondia
uma fúria contida. Ele me fitava com uma intensidade terrível.
– Eu quase confiei em você. Fui um idiota infeliz. Eu sempre soube que
não posso confiar em ninguém e continuo cometendo os mesmos erros
estúpidos.
– Eu só queria olhar o título do livro! – argumentei – Por favor, me
desculpe! Não fiz por mal...
– Por que não simplesmente me perguntou?
– Porque você não ia dizer.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos.
– Pensei que você ia me atacar e tentar fugir.
– Eu, te atacar?! – levantei a voz diante do absurdo da hipótese – Só
pode estar brincando! Eu nem sonharia em tentar isso! Quase me matou
só porque toquei em você!
– Cale–se. Não acredito em uma palavra do que diz. Você perdeu

70
Guerra das Cores Perdidas

completamente minha confiança. Eu te dei liberdade até demais. Cheguei


a pensar em permitir que você se soltasse da corrente por alguns
momentos da próxima vez em que saíssemos, mas mudei completamente
de ideia. Você permanecerá como prisioneira até o dia de sua morte. Vai
definhar e morrer na cela. Irei queimar todo o seu material de magia e
prender seus braços como fiz com a maga branca. Definhem
eternamente numa vida infeliz ou se matem. Esses serão seus únicos
destinos.
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Ele estava falando sério.
Eu não era apenas uma prisioneira; era a discípula dele. Mas por causa de
um segundo da minha estupidez, tudo aquilo tinha terminado. Perdi
tudo.
Eu havia traído a confiança dele. Jamais desconfiei que ele estivesse
começando a confiar em mim. Se eu ao menos soubesse! Mas ele apenas
me xingava e me maltratava. Como eu saberia? Talvez eu devesse ter
desconfiado que o fato de ele me presentear e me levar para passeios era
algo incrível. Eu apenas olhava para a atitude indiferente dele e não notei
essas pequenas coisas.
Senti lágrimas caindo dos meus olhos, mas ele não se comoveu. Fitava–
me como se eu fosse um verme desprezível.
– Tudo o que eu te ensinei sobre magia nesses últimos meses não
significou nada – prosseguiu ele – é assim que você me retribui.
– Eu juro que queria apenas olhar o título do livro! – tentei, já sem
esperanças – Não estou mentindo! Sei que não acredita, então o que
posso fazer para você acreditar?
– Diga–me o título. Você conseguiu ver naquele momento, não é?
– Não. Eu estou sentindo muita dor! Você praticamente perfurou meu
braço...!
– Pois eu devia ter perfurado seu coração. Devia ter enfiado o punhal na
sua boca para atravessar seu cérebro.
Eu estava sangrando muito. Sentia–me tonta, prestes a desmaiar. Mas ele
não ia me ajudar, é claro. Queria ver–me agonizando; queria me ver
morta.
– Trace um círculo no chão e se cure sozinha – mandou ele.
– Mas estou sem utensílios!
– Você é realmente tola. Quem disse que falta de utensílios impede o

71
Juliana Duarte

mago de realizar uma operação? Eles são apenas canalizadores de


energia. Cure–se agora! Trace o círculo e faça.
Eu estava muito fraca para fazer algo assim. Tentei traçar o círculo, mas
eu estava completamente sem energia. Não ia conseguir.
Ele percebeu isso. Notou como eu era fraca, falsa, mentirosa; um caso
perdido. Talvez eu realmente merecesse morrer.
– Me mate – pedi – eu mereço. Você também quer.
– Não vou te matar. Pelo menos não agora. Vou te levar de volta para a
cela. Você ficará confinada lá por alguns meses e depois decido se a mato
ou não.
– Por favor, me dê mais uma chance. Eu faço qualquer coisa! Quero
muito estudar magia negra.
– Você só finge interesse em magia negra porque sabe que eu a levo para
passeios por causa disso e essa é uma oportunidade para você escapar.
– Por favor, me perdoe. Eu estou implorando! Quero muito ir nesse bar
que você falou.
– Vamos fazer um acordo então – propôs ele – a partir de agora você
terá que me obedecer fielmente em todos os pontos. Fará cada coisa que
eu mandar sem questionar. Se ousar me desobedecer a ponto de minha
confiança ser quebrada novamente, você não irá somente voltar à cela.
Será horrivelmente torturada. Uma tortura envolvendo magia fará você
sentir uma dor tão miserável que você irá me implorar para que eu
estraçalhe seu corpo de uma vez e te livre desse sofrimento.
Meu corpo gelou. Ele estava falando sério. Aquele cara era insano.
Eu não podia esquecer que ele era o assassino da minha irmã e de muitos
sacerdotes de meu povo. O assassino de Grina e Zermer. Um cara tão
frio que não poupava nem os animais.
Como eu pude me esquecer disso? Por um momento eu o vi como meu
mestre, quase como um pai...! Como eu pude ser tão ingênua?
– Eu aceito – falei, por fim – mas saiba que minha confiança em você
também foi quebrada hoje. Você jamais se importou comigo de verdade.
É capaz de me matar e de me torturar sem sentir nenhum
arrependimento.
– Você é minha prisioneira. Por que eu me importaria?
– Os magos negros podem fazer tanto o bem quanto o mal. Mas você é
diferente. É a encarnação do próprio diabo.

72
Guerra das Cores Perdidas

– Fico lisonjeado – caçoou ele – chegamos ao nosso destino. Viemos


muito longe para voltar. Vamos descer do trem e comprar uma roupa
limpa para você. Não permitirei que vá ao bar com essas vestes brancas
empapadas de sangue para me envergonhar.
– Não pense que pode me comprar – avisei – não quero roupas. Não
quero mais nenhum presente vindo de você.
– Você que sabe, isso não é problema meu. Saia logo do trem antes que a
porta feche.
Saímos do trem e alcançamos a rua.

73
Juliana Duarte

O Bar

No final, entramos numa loja de roupas, mas apenas para comprar uma
capa branca. Coloquei–a por cima do manto para esconder o sangue.
Passamos na farmácia também para que colocassem uma atadura na
ferida. Apesar de ter muito sangue, a ferida não foi assim tão grave; foi
só o susto.
Ele podia ter realizado uma magia de cura, mas não tive coragem de
pedir aquilo depois do que aconteceu. Obviamente ele não estaria muito
a fim.
Percorremos as ruas em silêncio. O bar ficava num local bem escondido.
Era um lugar exótico, cheio de luzes neon. Aquele espetáculo de cores
era lindo.
O bar era completamente escuro. O formato das mesas e cadeiras só era
visível devido ao neon, que dava forma às sombras na escuridão.
Ele não demorou muito a encontrar o local em que se reuniam seus
conhecidos. Muitas pessoas o cumprimentaram formalmente, o que ele
retribuiu com um aceno de cabeça. Ele devia ser muito conhecido e
respeitado.
Em uma das mesas havia três pessoas que o saudaram de maneira mais
informal. Era ali que iríamos nos sentar.
– Mustse, não tem vindo muito aqui ultimamente. Ocupado com seus
negócios?
– Bastante.
– Negócios políticos ou ocultos?
– Ambos.
Finalmente descobri o nome dele. Já era hora. Fazia uns nove meses que
eu estava naquele mundo, afinal.
Quem se dirigiu a ele foi um sujeito gordo com dois chifres de touro. Ele
nos convidou a sentar e assim fizemos.
– Poderia nos apresentar a sua acompanhante? – perguntou uma mulher
de vestido vermelho e cabelos longos encaracolados. Ela tinha três
chifres.
– Wain – resolvi que era melhor eu mesma introduzir–me, já que ele não

74
Guerra das Cores Perdidas

devia recordar meu nome.


– Ela sofreu um terrível acidente recentemente – explicou Mustse –
bateu a cabeça, até quebrou os chifres. Esqueceu como se fala nossa
língua e está aprendendo tudo de novo. Então não reparem os erros. Isso
afetou sua memória também e possivelmente seu conhecimento de
magia.
“Não precisa justificar tanto!” pensei, aborrecida. Tudo bem ele dizer
isso em relação aos meus tropeços na língua, mas eu tinha um capuz
cobrindo minha cabeça e certamente já conhecia o básico de magia negra
para que ele não precisasse arrumar uma desculpa para o meu
conhecimento limitado.
– Ela é tão pequena – comentou a mulher – é uma criança ou...
– Isso também ocorreu devido ao acidente – explicou Mustse – estamos
aguardando que ela recupere o problema do retardo mental antes de
tentarmos uma cirurgia.
Se não fosse o nosso recente desentendimento, eu teria boas respostas
para embaraçá–lo na frente dos amigos. Mas eu não queria ser confinada
ou torturada. Era melhor eu me comportar.
Embora mantivesse o tom sério, ele parecia estar se divertindo muito
com a situação. Talvez fosse seu modo particular de vingança. Ele até
mesmo explicou o fato de estarmos acorrentados: devido ao acidente, eu
tinha dificuldades para caminhar e ele não podia me perder de vista.
Quando perguntaram quem eu era, a resposta dele foi breve:
– Minha escrava.
– Se ela está tão imprestável, por que não se livra dela e arruma uma
melhor? – perguntou a mulher de vermelho, enquanto se servia de uma
taça de vinho.
– Ela tem me servido admiravelmente há anos – explicou ele – tenho fé
em sua recuperação rápida. Seria uma grande incomodação treinar uma
nova escrava pessoal depois de tanto tempo de um serviço de qualidade
que ela tem prestado.
– Sei como é – falou o homem gordo – Bordj está comigo há décadas.
Não sei o que faria sem ele. Algumas pessoas são insubstituíveis ou até
mesmo escravos! Que ironia. Eles aprendem os nossos pequenos
caprichos. Bordj conhece exatamente a quantidade de leite e açúcar no
meu café.

75
Juliana Duarte

Na mesa também havia um sujeito misterioso que nos observava


furtivamente. Não parecia ser de falar muito. Degustava um cálice de
licor. Tinha apenas um chifre no meio da testa, rosto comprido e cabelo
ralo.
– Não irá fazer o seu pedido, Mu? – perguntou a mulher, com um
sorriso.
– Certamente, senhorita Eideikel – respondeu Mustse – garçom, o menu,
por gentileza.
O garçom trouxe o cardápio. Ele solicitou um drinque. Depois disso,
fiquei surpresa quando ele passou o menu para mim.
Os amigos dele não estranharam. Todos pareciam ser muito ricos. Não
devia ser estranho convidar escravos pessoais para o bar, pagar–lhes
bebida ou mesmo ensinar–lhes um pouco de magia...
– Não entendo nada que está escrito – sussurrei para ele – só entendo
“água”.
– Permita–me escolher para você, então – ofereceu Mustse.
O garçom me trouxe uma bebida estranha e colorida. Quando provei
percebi que era alcoólico e extremamente forte. Era a primeira vez que
eu bebia algo com álcool. Mas resolvi não reclamar para não aborrecer
Mustse.
Logo a conversa se desviou. Pararam de falar sobre mim para falar sobre
magia. Aparentemente, todos naquela mesa eram políticos importantes
que se dedicavam ao ocultismo nas horas vagas. Eles provavelmente
deixavam os assuntos sobre política para o trabalho, já que talvez não
pudessem comentar sobre magia abertamente. O ambiente do bar era
uma ocasião única.
– Não compareceu à sessão de autógrafos do meu livro, Mustse –
comentou o sujeito reservado de um chifre; sua voz era arrastada –
Eideikel e Soiym estavam presentes. Sei que seus grimórios são
magníficos, mas prometo que encontrará algo de valor nos meus escritos.
Evidentemente o sujeito estava zombando. Ainda assim, Mustse foi
surpreendentemente educado:
– Sinto muito, Kfazur. Naquela ocasião eu estava com serviços até o
pescoço. Tenho certeza de que o senhor possui um exemplar extra na
sua maleta para me autografar.
– Hoje você está com sorte.

76
Guerra das Cores Perdidas

Kfazur, o mago negro de um chifre, retirou um grimório grosso de


dentro da maleta. Pegou uma caneta tinteiro e autografou o exemplar.
Mustse pagou pelo livro e agradeceu. Ele leu a dedicatória em voz alta.
– “Ao meu ídolo Mustse. Espero um dia chegar aos seus pés, mestre” –
leu Mustse – Muito espirituoso...
– Não me leve a mal, Mustse – falou Kfazur – seus livros são
inspiradores, mas seu ego esbofeteia o leitor a cada página.
– Por isso são divertidos – comentou Eideikel – rio muito lendo seus
grimórios. Reconheço que é literatura séria, já os li diversas vezes. Sou
sua fã, Mu. Mas certos trechos do seu recente grimório são hilários!
– Fico lisonjeado que eu seja capaz de prender os leitores e entretê–los –
comentou Mustse – obviamente jamais tive intenção lúdica, mas acredito
que seja melhor provocar o riso do que o sono.
– Tem razão, eu dormi lendo sua introdução interminável, Kfazur –
comentou Eideikel.
Eideikel deu uma grande risada. Como viu que seu livro seria criticado,
Kfazur resolveu mudar de assunto:
– Como sabem, meu irmão leciona na Academia Negra, ordem de
ocultismo não oficial, e um dos estudantes começou a ter interesse por
magia branca. Imaginem a desgraça, tanto para o aluno como para os
demais estudantes.
– Pobre infeliz – comentou Mustse – que aconteceu ao carneiro perdido?
Foi assassinado?
– Sofreu muito preconceito da parte dos outros estudantes – explicou
Kfazur – Mas quando começou a tentar catequizar os outros falando de
Deus e distribuindo panfletos com suas ideias heterodoxas, foi expulso.
– Foi pouco – disse Mustse – merecia ter sido queimado em praça
pública. Se me fornecer o nome completo da criatura, posso
providenciar esse espetáculo. Não posso permitir que ele contamine a
mente de nossa belíssima sociedade.
– Eu tinha o pressentimento de que não deveria lhe contar, Mustse –
falou Kfazur – sabia que diria algo assim. Você é muito radical. OK,
“ortodoxo”, como você costuma dizer.
– Exatamente. Por que pretende defender a magia branca?
– Também não entendo, Kfazur – comentou Eideikel – Mu está certo,
esse sujeito mal deve conhecer a fundo magia branca e sai por aí se

77
Juliana Duarte

denominando “mago branco”. Isso é inapropriado. Deviam mandá–lo


para terapia.
– Terapia? O inferno seria mais apropriado – comentou Mustse –
veremos se ele tem coragem de rezar para Deus na frente do diabo.
A posição de Mustse parecia meio absurda até mesmo entre os presentes
naquela mesa, que apenas se entreolharam. Aparentemente, a ideia de
sair matando todo mundo era um princípio de Mustse e não dos magos
negros em geral.
– Mas veja bem, a magia branca tem seus pontos positivos – comentou
Mustse – pelo menos eles trabalham com potências poderosas como os
anjos, ao contrário dos magos cinzas, que apenas brincam de invocar
elementais: espíritos tão fracos que eles precisam de um animal guardião
para complementar; algo inútil que drena completamente suas energias.
Era óbvio que ele tinha dito aquilo somente para me incitar a falar. E ele
me provocou o suficiente para que eu participasse da discussão.
– Essa visão é um erro comum daqueles que não conhecem a magia
verde a fundo – eu disse – os magos verdes acompanham o ciclo da
natureza para utilizar seus poderes. Na maior parte do tempo passam por
um período de regeneração e fortalecimento de energias. Em ocasiões
específicas e especiais, eles liberam todos os seus poderes; algo mais
forte que a explosão de muitas bombas. Depois disso, voltam ao estado
de regeneração.
– Portanto, uma magia para fracos – prosseguiu Mustse – não há
utilidade em possuir uma força tremenda se você não pode utilizá–la
conforme a vontade. É mais conveniente dominar um poder moderado
que possa ser usado quando se quer, sem precisar dar satisfações a
deuses, anjos ou árvores.
– Por que ela chama a magia cinza de magia verde? – perguntou a mulher
de vermelho, intrigada.
– Como eu disse, ela bateu a cabeça – explicou Mustse – não liguem para
o que ela fala.
– Ela disse que você não conhece a magia verde a fundo e que cometeu
um erro comum – sorriu Kfazur – se eu o conheço bem, Mustse, um
escravo seu que fosse petulante a esse ponto já estaria morto agora. Você
já matou um apenas por derrubar chá na sua camisa.
“Típico”, pensei, aborrecida. Matar um escravo por um motivo trivial

78
Guerra das Cores Perdidas

como esse era bem a cara dele.


– Ela está com um problema mental grave, então estou tentando ser
tolerante – justificou–se Mustse – mas se ela continuar a me ofender
gratuitamente, posso me esquecer desse detalhe.
Aquilo era uma ameaça. Mustse me provocava, estava praticamente
pedindo para ser insultado. E quando tinha o que queria, ele não gostava.
Percebi que tocava uma música instrumental suave no fundo. Tentei
prestar atenção nela para me acalmar e fazer força para não retrucar a
próxima cartada de Mustse.
– Já que mencionou a fraqueza dos espíritos dos elementos, vale lembrar
uma potência ainda mais fraca que eles: servidores – comentou o sujeito
gordo – os magos octarinos os idolatram. Sigilos e servidores, não
conseguem viver sem eles. Desenvolveram enormemente a tecnologia e
se esqueceram de sair da área básica da magia. Lamentável.
– Mas quanta ingenuidade sua, Soiym – comentou Kfazur – embora
sejam completamente inúteis nas mãos de praticantes fracos, são
ferramentas poderosas sob o controle dos fortes. Melhor que os magos
vermelhos arrogantes que não invocam nada; alegam “não precisar de
nada”, pois obtém tudo através do próprio poder.
– E há alguma verdade – concordou Soiym – viagens astrais e
meditações são meios eficazes para aqueles que são um fracasso na área
invocatória. Acredito fortemente que as potências não vão com a cara de
certos praticantes. Resta–lhes o caminho da meditação. Fácil para uns e
uma pedra no sapato para outros. Cada um recebe aquilo que merece.
Eu já estava bocejando com aquela conversa. Eu não sabia nada sobre as
outras cores da magia. Queria falar sobre magia negra, para poder treinar.
Mustse também não parecia estar gostando muito do assunto, mas a
culpa foi dele que começou a falar de magia verde só para me perturbar.
– Tenho um conhecido idiota que mexe com essa magia octarina ridícula.
Eideikel o conhece – comentou Mustse – trata–se realmente de um
caminho estúpido. Quanto à magia vermelha, não é muito emocionante,
embora seja incrivelmente útil para acessar certas áreas do cérebro.
– Aquele seu amigo é... intrigante – Eideikel sorriu – quando fiz uma
certa pergunta, ele me respondeu de maneira misteriosa: “É necessário
esforçar–se para descobrir”.
– Ele estava bêbado – falou Mustse – embora ele aparente estar bêbado

79
Juliana Duarte

frequentemente pelas coisas que diz.


Provei mais um gole daquele drinque. Era difícil tomá–lo rápido. Mas se
eu deixasse muita bebida no copo, Mustse poderia se irritar.
– A propósito, como vai Lamue? – perguntou ela, mudando o tema da
conversa.
– Mais poderoso do que nunca, obrigado – respondeu Mustse.
A resposta foi breve. Mustse não parecia muito a fim de se alongar
naquele assunto.
– Imagino que o preço para dominar aquela fera tenha sido alto –
observou ela, com um sorriso enigmático.
– Por favor, Eideikel – falou Mustse – isso é pessoal.
– Conheço algumas das suas características pessoais mais marcantes –
observou Eideikel – por exemplo, sua marca favorita de cigarro é
SixiPorj.
– Parei de fumar há um bom tempo.
– Não entendo suas razões – comentou Eideikel – o caminho da magia
negra não nega os prazeres. A não ser que o fumo tenha sido o preço
por Lamue. Uma barganha, se me permite dizer.
– Não há relação entre os eventos citados – Mustse fez questão de deixar
claro – chega de adivinhações.
Eu não aguentava mais beber aquela coisa com álcool. Estava ficando
meio enjoada.
– Preciso ir ao banheiro – sussurrei para Mustse.
– Se quiser prendo você a Eideikel e ela te leva até lá.
– Não quero.
– Então segure até que volte para a sua cela – respondeu Mustse, dando
o assunto por encerrado.
Não queria que aquela mulher me levasse. Ela era assustadora. Aquele
sorriso misterioso era meio suspeito.
Mas o que eu estava pensando? Estar com qualquer outra pessoa era
mais seguro do que ter meu pulso preso àquele lunático. Eu o respeitava
por todos os ensinamentos que me dera e admitia que ele era poderoso e
sábio, mas isso não era motivo para eu simpatizar com ele. Sinceramente,
eu não gostava dele nem um pouco.
Nem escutei as conversas sobre magia negra que ocorreram depois disso,
pois eu só conseguia pensar no banheiro. Eu perguntava de cinco em

80
Guerra das Cores Perdidas

cinco minutos para Mustse quando poderíamos ir embora, até que ele
encheu o saco e se despediu de todo mundo para sairmos de lá de uma
vez.
Tive que escutar um sermão no trem depois disso:
– Nunca mais te trago ao bar novamente. Eu teria ficado lá conversando
até o amanhecer. Você mal prestou atenção no que dizíamos. Nem
reparou que num momento mencionei um tópico polêmico sobre magia
avançada. Você é uma privilegiada e jogou essa oportunidade única no
lixo. Depois das cinco da manhã, quando metade dos presentes está
dormindo e a outra metade já se embriagou o suficiente, ocorrem duelos
de magia fantásticos. Você perdeu o espetáculo.
Eu não soube o que dizer. Aprendi um pouco com as conversas, mas
acabei não falando quase nada, por insegurança. Claro que eu queria ter
participado, ouvido mais e principalmente presenciado mestres de magia
a realizar evocações. Mas a culpa foi dele que me deu aquela taça enorme
de álcool.
– Lamue é o demônio de sete chifres? – perguntei.
– Sim.
– Aquele que matou minha irmã – acrescentei – ou eu deveria dizer: ele a
matou a seu mando. Você é o verdadeiro assassino, assim como aquele
que segura a faca é também aquele que mata; não a própria faca.
– Correto – concordou Mustse – demônios e facas são instrumentos.
Lamue não está vivo da forma que definimos vida. Ele é energia, não
matéria.
– Ele é seu? Sua posse? Seu... escravo?
– Todos esses termos são inapropriados para definir o que realmente se
passa – respondeu Mustse – estamos unidos por uma conjuração. Isso é
tudo.
Novamente, ele deu a conversa por encerrada, então eu não insisti.
Recostei–me no assento do trem. Eu estava com muito sono.
– Sinto falta dos meus pais – falei, baixinho – quando poderei voltar para
meu mundo e vê–los de novo?
– Voltar para seu mundo? Você tem sorte por estar viva.
– O Mundo Negro e a magia negra são extraordinários e tentadores –
admiti – mas nada que você me ensine ou me mostre me fará esquecer o
fato de que eu tenho pais e uma vida esperando por mim em outro

81
Juliana Duarte

mundo. E não quero perder isso por nada.


– Seus sonhos são muito pequenos – observou Mustse – eu matei meus
pais. Eles eram muito ruins para mim, me castigavam e me proibiam de
fazer tudo. Eram mais úteis mortos do que vivos. Caso seus pais estejam
atrapalhando seu progresso espiritual, mate–os.
Fiquei meio surpresa ao ouvi–lo tocar no assunto. Por alguma razão eu já
desconfiava que algo assim tinha acontecido.
– Eles não estão atrapalhando nada. Nem estão perto de mim.
– Mas sua saudade e vontade de vê–los atrapalha – explicou Mustse – se
eles não existissem mais você se concentraria em seu treinamento.
– Ainda assim, eu sentiria vontade de voltar para meu povo; para minha
terra natal.
– Caso seu povo fosse completamente exterminado, o que você faria?
– Nesse caso, eu não teria escolha além de iniciar uma nova vida noutro
lugar – confessei – por que a pergunta? Está pensando em destruir meu
mundo só para que eu o esqueça?
– Não tinha pensado nisso. Se eu tiver um tempo livre no fim de semana,
posso providenciar.
Preferi não comentar. Em vez disso, eu disse:
– É proibido para um mago negro ter pessoas especiais em sua vida?
Pessoas que ele não queira matar, por exemplo – resolvi explicar nos
termos dele.
– Está insinuando que saio matando pessoas por aí? Que absurdo. Eu
não mato aqueles que não me incomodam.
– Você se refere às pessoas que não se aproximam de você e que nem
sabe que existem?
– Não venha com sarcasmo para cima de mim – ele alertou – não te dei
essa permissão.
– Vou ser direta: existe alguma pessoa com quem você realmente se
importe?
– No momento não. Espero que ninguém assim venha a existir, pois
seria um peso desnecessário. Gosto de fazer as coisas do meu jeito,
levando os meus interesses em conta. Compartilhar o ar que respiro com
um suposto amigo exigiria certos sacrifícios de minhas vontades.
– Então tente me explicar uma possível relação de sua personalidade
instável com os princípios da magia negra – propus.

82
Guerra das Cores Perdidas

– Pelo contrário, sou bastante estável.


– Tem razão. Você é bem constante: apenas matar, matar... não varia
muito.
Nesse momento ele me fitou com muita seriedade.
– Você está morta? Eu matei alguém naquele bar hoje?
– Não... – falei, com cautela.
– Então sugiro que fique quieta.
Eu sempre sentia um frio na espinha quando ele se dirigia a mim daquele
jeito. Eu falava besteiras demais para alguém que possuía minha vida na
palma da mão. E eu já estava no limite: ele tinha me dado uma chance.
Não haveria uma segunda vez.
– Você sabe a resposta para a sua pergunta – ele disse – as pessoas
possuem diferentes personalidades e isso também ocorre em relação aos
magos negros. Cada um possui a liberdade de focar no aspecto que mais
lhe atrai, dentro dos limites das regras da magia.
– Em geral, religiões e sistemas de magia defendem que as pessoas não
matem umas às outras – observei – tanto para o progresso espiritual da
alma, como também para que certa ordem social seja mantida. Uma
pessoa precisa do corpo para trabalhar com a alma. Portanto, ela precisa
estar viva.
– Pessoas medíocres e inferiores não merecem um corpo e muito menos
uma alma.
– Se você pensa dessa forma, não há nem como iniciar um diálogo sobre
esse assunto – eu disse – então eu deveria estar morta.
– Caso esse seja seu destino, assim será. Providenciarei, se eu confirmar
sua situação de incapacidade de evoluir espiritualmente. Seu corpo não
teria utilidade. Estaria melhor adubando a terra.
– Pelo menos meu cadáver terá alguma utilidade – observei – mas a
noção de mediocridade é relativa. Se cada mago negro resolver matar
quem considera inferior, vai haver um genocídio e o caos se instalará.
Por que você não explodiu o shopping ainda?
– A morte não é um castigo nesse caso. Eu estarei fazendo um favor aos
medíocres: permitindo que reencarnem em outro corpo e tentem evoluir
espiritualmente nessa nova forma de existência. Caso falhem, devem
morrer de novo até resolverem se dedicar ao que realmente interessa.
– Mas e o shopping? – perguntei.

83
Juliana Duarte

– O que tem o maldito shopping? Do que você está falando? –


perguntou ele, sem paciência.
– Nada. Esqueci que você precisa dele para comprar seus ternos.
– O mínimo que os inferiores podem fazer é servir às formas de vida
superiores. Esse ato em si já justificaria suas existências. Precisamos de
criaturas para lidar com as questões técnicas enquanto estudamos os
assuntos nobres.
Uma parte de mim concordava com aquelas palavras quando eu me
lembrava das minhas velhas amigas que apenas me criticavam e me
invejavam por eu me interessar pelo caminho espiritual. Será que essas
pessoas não deviam mesmo morrer para reencarnar em outro mundo e,
com o outro corpo, tentar uma vida mais útil?
Eu não podia acreditar que ele estava começando a me contaminar com
suas ideias insanas. Era melhor eu voltar a escrever no meu livro de
anotações para me lembrar constantemente de que eu deveria seguir um
caminho de respeito ao próximo e à vida.
Mas afinal... por que eu precisaria seguir um caminho como esse? Porque
eu acreditava nele. Algo mais forte me dizia que matar alguém era errado,
mesmo que houvesse um motivo filosófico convincente. Não era a lógica
que decidia uma questão como essa.
Tentei explicar para Mustse meu ponto de vista.
– Você acha que matar alguém é errado porque não quer ser morta –
explicou ele – mas não se preocupe. Com grandes poderes você jamais
será morta e poderá matar quem quiser.
– Não é só isso. Eu me sentiria mal fazendo algo assim. Ver sangue,
tripas e cadáveres.
– Com o tempo você se acostuma e se torna indiferente. Você não se
sente mal ao sentir o cheiro de um presunto. Na verdade até gosta. Será a
mesma coisa.
– Mas... – eu precisava argumentar – não é só o nojo. É o choque, o
horror de matar alguém. De tirar uma vida, fazê–la desaparecer. Até
mesmo ver outra pessoa matar alguém ou olhar para um corpo já morto
é chocante.
– Essas não são apenas as únicas sensações em jogo. Além do
nervosismo você sente adrenalina, sente–se poderoso. É uma experiência
emocionante. É o misto do medo e da coragem que gera esse êxtase. O

84
Guerra das Cores Perdidas

mesmo ocorre numa evocação. O medo e o horror somente tornam


tudo mais emocionante. Um dia você entenderá como essa sensação
pode ser agradável. Isso porque bem e mal, alegria e tristeza, medo e
coragem, horror e êxtase, todos são necessários; e quando você junta
todos eles entende o que é o ser humano e sente–se completo.
Eu não tinha mais argumentos. O desgraçado estava falando a verdade.
Se eu adquirisse o poder para jamais ser morta, não haveria motivos para
não matar.
Senti um pouco de medo ao pensar nisso. Eu não queria me tornar uma
pessoa fria.
– Matar por diversão não é meio fútil? – perguntei.
– Matar raramente é fútil; a morte é o momento de desprender–se do
corpo e tornar–se espírito. Esse é um processo sublime, mesmo que
forçado. Mas magos negros sérios não costumam matar por diversão.
Não negamos a diversão, ela faz parte do processo, mas juntamente com
muitas outras emoções e objetivos.
Eu precisava dar um fim àquela conversa antes que ele me convencesse
de alguma coisa absurda. Felizmente o trem já tinha chegado.
Caminhamos no resto do caminho. Eu sentia sono, estava meio tonta
com o álcool e a vontade de ir ao banheiro era quase insuportável.
Quando ele soltou a corrente e trancou–me novamente na cela, para
mim foi um momento muito esperado. Finalmente pude ir ao banheiro,
se é que era possível chamar aquele local apertado de banheiro.
Basicamente havia um vaso sanitário sem tampa e um chuveirinho num
canto da cela.
Quem sofria mais era a maga branca, que raramente recebia permissão
para ir ao banheiro ou tomar banho. Pelo menos eu estava aprendendo
magia, o que era um estímulo a mais para aguentar viver trancafiada. Ela
estava em condição muito pior que a minha e não tinha nada. Mas pelo
visto ela não sacrificaria suas convicções por mero conforto.
Se bem que não era apenas questão de conforto. Ela estava magra como
um palito, desidratada. Se continuasse assim por mais tempo, ela iria
morrer. Quando eu a vi pela primeira vez achei–a bonitinha. Mas a
aparência dela tornou–se horrível; irreconhecível. Ela cheirava mal, os
ossos saltavam do corpo, os cabelos pareciam espigas de milho.
Mas por que o brilho dos olhos dela jamais se apagava?

85
Juliana Duarte

Aniversário

Mais três meses se passaram. Eu apenas relia os grimórios, escrevia


minhas anotações, realizava minhas operações diárias de magia e
mantinha tudo o mais limpo e lustroso possível, com água e óleos
essenciais. Algumas vezes eu evitava queimar o defumador, pois o cheiro
da erva misturado com o odor de urina da prisão era meio desagradável.
Eu provavelmente não receberia novos presentes tão cedo. Mustse
também havia aparecido pouco ultimamente e eu tinha certeza de que
não era por ele estar ocupado. Ele ainda devia estar irritado pelo
incidente do livro.
Dada a gravidade da situação e da fúria que ele expressou na ocasião, até
que aquela punição era bem leve. No verão eu sentia sede extrema, mas
como era inverno eu sentia mais falta daquela comida nojenta e horrível:
a carne do bicho estranho e os vegetais velhos de sempre. Todo dia a
mesma coisa. Como eu ainda mostrava sinais de saúde, talvez aquela
refeição miserável tivesse os nutrientes necessários, mas como
ultimamente estávamos recebendo apenas metade dela, eu sentia dores
de cabeça constantes, febre, enjoos e resfriados.
Eu e a boneca branca estávamos ficando muito doentes. Mas foi
somente depois de uma das piores noites da minha vida que tomei uma
decisão.
Estava nevando lá fora. Temperatura possivelmente negativa. Eu tremia.
Passei a noite toda sem dormir, morrendo de fome e gelando de frio. Eu
já não tomava banho todo dia, pois eu não tinha planos de pegar uma
pneumonia e morrer.
Quando Mustse foi visitar a prisão na manhã seguinte, diferente das
outras ocasiões em que eu aguardava ansiosamente o ensinamento sobre
magia negra do dia, eu tinha outras reclamações de natureza mais
mundana, porém mais urgentes:
– Eu estou morrendo de fome. Você reduziu nossas refeições pela
metade. O frio está insuportável, mesmo usando todas as roupas que eu
tenho ao mesmo tempo, estou congelando. Você vai nos matar de fome

86
Guerra das Cores Perdidas

e de frio!
Mustse olhou para mim. Depois disso, voltou os olhos para a maga
branca antes de fitar–me de novo.
– Você emprestou para a maga branca a capa de seda que te dei –
observou ele – em vez de emprestar, arranque as roupas dela e se cubra.
O problema do frio estará resolvido. Roube a comida dela também e não
morrerá de fome.
– Se eu fizer isso, ela morrerá. Na verdade, mesmo que eu não faça isso
ela morrerá da mesma forma. E se ela morrer, não terei mais refeições
duplas, senhor lógico.
– Essa foi uma das poucas vezes em que você falou algo que faz sentido
– comentou ele.
– Obrigada? Eu tenho uma ideia melhor: que tal você voltar a nos dar a
quantidade regular de refeições e nos trazer dois cobertores?
– Eu posso acrescentar também duas xícaras de chocolate quente com
chantilly, luvas, cachecóis e travesseiros. Chamamos isso de kit de
inverno para prisioneiros e todos os nossos serial killers recebem um
antes de atravessarem o corredor da morte.
– Há... há... há... muito engraçado – comentei, num tom
desagradavelmente sério – eu não estou pedindo conforto. Apenas o
mínimo para não morrermos.
– Pensei que as acomodações estivessem de seu agrado. Até agora a
maga branca não teve nenhuma reclamação. Gostaria de solicitar alguma
coisa, seu anjo esquelético e sujo?
– Ela não entende sua língua.
– Entende sim. Ela está me ignorando por arrogância e já decidiu
morrer. O ambiente é ideal para que o desejo dela seja atendido.
– Então pelo menos traga comida e cobertor para mim – tentei.
– Somente se você recitar os versos clássicos da magia negra sem errar.
Eu até tentei. Mas fiquei meio nervosa e errei tudo. Eu não tinha
treinado o suficiente.
– Você terá o dia inteiro para treinar. Retornarei em vinte e quatro horas.
Eu nunca estudei algo com tanto fervor. Afinal, minha vida estava em
jogo. Passei minha segunda noite seguida sem dormir, tremendo e
relendo centenas de vezes as páginas que continham os versos.
Assim que Mustse chegou no dia seguinte, realizei uma admirável

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Juliana Duarte

recitação sem nenhum erro.


– Sua pronúncia é horrível – foi o comentário dele.
– Não importa. Fiz o que me ordenou. Onde está minha comida e meu
cobertor?
– Não se dirija a mim dessa maneira insolente. Ajoelhe–se. Toque a testa
no chão e implore humildemente.
Ainda pensei duas vezes antes de fazer isso, mas procedi como ele me
ordenou. Que escolha eu tinha?
E naquele momento veio à minha mente mais uma vez a imagem da
minha irmã, que morreu com honra e coragem. Ao contrário de mim
que vergonhosamente implorava por minha vida para seu assassino.
– Muito bem – disse ele – eu honro minhas promessas.
Ele jogou em cima de mim um cobertor velho, com cheiro ruim. Mas era
um cobertor pesado e aparentava ser quente. Logo após, ele ordenou ao
guarda da cela que me servisse uma refeição e que voltasse a me dar a
porção completa dos pratos, como antigamente.
Eu me senti incrivelmente feliz. Quase senti lágrimas nos olhos, satisfeita
pelo meu sucesso, resultado do meu esforço e perseverança.
– Obrigada... – falei, de cabeça baixa, enrolada no cobertor.
– Não se acostume com regalias.
E, ao pronunciar isso, ele se retirou.
Quando a refeição chegou, eu comi desesperadamente. A partir daquele
dia a quantidade de nossas rações voltou ao normal, tanto para mim
como para a maga branca. Fiquei feliz de poder fazer algo por ela.
De noite eu dividia com ela meu cobertor, já que ele só tinha me dado
um. Ela nunca falava nada, mas eu sabia que ela tinha fome e frio. Por
isso eu emprestava a ela minha capa e dormíamos sentadas uma ao lado
da outra, cobertas. Era difícil suportar o cheiro dela estando tão próxima,
mas eu decidi aguentar.
Ela estava tão fraca e doente que mal conseguia comer. Por isso eu
acabava dando a ela a comida, pois ela não tinha mais como me impedir
de fazer isso, mesmo que quisesse.
De certa forma eu estava começando a me apegar àquela menina
silenciosa e apática. É fácil se apegar a uma criaturinha fraca e indefesa
que você alimenta e cuida, como um cachorrinho. O problema dos seres
humanos é quando eles abrem a boca.

88
Guerra das Cores Perdidas

Mas mesmo sabendo disso, eu queria ouvi–la falar alguma coisa um dia.
Mustse disse que ela entendia a língua do Mundo Negro. Mesmo sem
saber se isso era verdade ou não, passei a ler meus livros em voz alta. Se
ela realmente odiasse magia negra devia ser um tormento ouvir aquilo,
mas ela já não tinha como reclamar.
Alguns dias depois, quando Mustse voltou, perguntei que dia era.
Quando ele me respondeu, lembrei–me de um fato estranho.
– Amanhã é meu aniversário – eu disse – completarei 14 anos.
Eu já estava ali há pouco mais de um ano. A maga branca devia estar há
mais tempo, pois quando cheguei ela já estava lá. Quantos anos ela teria?
Mas a pergunta que Mustse fez a seguir interrompeu minha linha de
pensamento:
– O que você vai querer de presente?
Meu queixo caiu. Ele ia me dar um presente? Resolvi me acalmar. Devia
ser sarcasmo. Só podia.
– Um passeio pelo shopping, um banho de mar, um jantar num
restaurante chique à luz de velas, um vestido de baile... – comecei,
contando nos dedos – calma que ainda tem mais.
– Que desejos fúteis – ele comentou – escolha uma coisa só. E que seja
digna.
Ele estava mesmo falando sério!
– Você vai realmente me dar qualquer presente que eu pedir? –
perguntei, para me certificar.
– Contanto que não envolva a minha morte, a sua libertação ou qualquer
outro desejo que eu julgar absurdo. Irei analisar o que você pedir e dar
meu veredicto.
– Nesse caso, desejo que você solte as mãos da maga branca – falei,
decidida.
– Você não pode estar falando sério. Vai desperdiçar seu presente com
isso? Pense bem: você pode pedir praticamente qualquer coisa. Dinheiro
não é uma limitação. A limitação aqui é vida e liberdade.
– Já decidi. Não vou voltar atrás.
Ele me fitou firmemente. Por fim, constatou que eu falava sério.
– Muito bem. Ela será desacorrentada pela manhã. Obviamente
continuará a dividir a cela com você como prisioneira.
– Muito obrigada. Você é misericordioso.

89
Juliana Duarte

Ele não gostou da minha observação.


– Não repita uma besteira dessas – ele disse.
Ele costumava cumprir o que prometia. Dito e feito. Quando acordei, as
mãos da maga branca estavam livres. Ela tinha marcas profundas das
correntes nos pulsos; uns hematomas bem desagradáveis.
Ela apenas se encolheu num canto e ficou quietinha lá. Já era alguma
coisa. Ela devia estar mais confortável.
Quando o guarda da cela viu que eu acordei, jogou uma bala para dentro,
onde eu estava.
– Pelo aniversário – explicou ele.
– Nossa, obrigada – sorri para ele.
Surpreendentemente ele sorriu de volta para mim. Desenrolei a balinha
do papel e dividi com a maga branca. Essa havia sido a refeição mais
deliciosa do último ano. A bala era docinha, de morango. Um verdadeiro
manjar dos deuses.
No entanto, Mustse descobriu o papel de bala quando foi nos visitar
naquele dia. Ele levou o guarda da cela para outro local e ouvimos gritos
horríveis. Obviamente o guarda estava sendo espancado. Ele foi
demitido de sua função. Mustse designou um guarda sério e carrancudo
para tomar conta das coisas a partir dali.
– Isso foi injusto – reclamei com Mustse, embora estivesse com medo de
ser espancada também, pelo meu atrevimento – ele só me deu uma bala
porque era meu aniversário. Ele nunca desobedeceu às suas ordens antes.
– Fique quieta – retrucou ele – eu sei como devo tratar meus
subordinados. Não se meta.
– Hoje é meu aniversário – argumentei – exijo uma compensação por
essa sua atitude horrível. Pelo menos admita que estava errado.
– Seu presente será ser perdoada por sua insolência – disse Mustse – se
continuar a usar esse tom de voz a partir de amanhã, as coisas serão
diferentes.
Considerando as circunstâncias, ele havia sido tolerante. Dera–me o que
eu pedi. As mãos da maga branca estavam livres. Que mais eu queria?
– Sou a sua discípula ou sou o seu brinquedo? – perguntei, em voz baixa.
– Não existe algo como um brinquedo para um mago negro – respondeu
Mustse – nós, assim como todos os praticantes de magia deveriam ser,
somos sérios. Muito do que fazemos consiste em experiências que

90
Guerra das Cores Perdidas

podem nos trazer resultados. Caso o efeito seja insatisfatório,


descartamos a cobaia.
– Não haverá resultado algum se me mantiver presa aqui para sempre.
Você não deseja que eu tenha contato com outros, que eu leia grimórios
que você não autoriza ou que aprenda magia sob outras visões de
mundo. Isso é lavagem cerebral e não evolução da alma.
– Não entendo porque você reclama tanto. Você já teve liberdade demais
para uma mera prisioneira.
– Você me mantém presa para me fazer sofrer ou para que eu aprenda
magia negra? – perguntei – Você quer que a maga branca sofra porque
ela te evocou. Mas eu não o fiz; foi a minha irmã e ela já foi punida. Você
está em dívida comigo por todas as coisas horríveis que fez.
– O que mais você quer além de tudo que já te dei? – perguntou ele, de
má vontade – Seja rápida. Não tenho o dia todo para perder meu tempo
com você.
– Mostre–me a magia negra lá fora – pedi – até agora você somente me
levou para uma loja e para um bar.
– E já foi muito. Não irei permitir que aqueles que não merecem
testemunhem grandes segredos. Você desperdiçou a sua oportunidade
no bar. Acabou.
– Pelo menos me leve à loja novamente para que eu escolha algum
grimório ou utensílio. Até agora você escolheu tudo por mim.
– Você está me irritando com essa sua insistência e essa sua voz
esganiçada. Apronte–se em cinco minutos e te levarei a algum lugar
vagabundo de quinta categoria.
Ele saiu. Não dava para acreditar. O que se passava na cabeça dele,
afinal?
Foi com o maior sacrifício do mundo que tomei um banho rápido, pois
eu não tomava banho há dias por causa do frio. Vesti minha túnica
branca e minha capa. Ele abriu a cela e prendeu meu pulso ao dele com
correntes.
No entanto, quando saímos eu quase me arrependi. Estava um frio
desgraçado e nevava. Nem mesmo nas noites mais frias na cela eu tremi
tanto.
– Já sei para onde quero ir – falei, com urgência – Loja de roupas. É
urgente! Por favor!

91
Juliana Duarte

– Ao que parece você está colocando o seu conforto acima de suas


ambições mágicas – ele observou.
– Você diz isso porque está vestindo um monte de casacos! – eu tive a
ousadia de retrucar. Mas essa merecia.
– Não ouse me criticar. Vou te emprestar um dos meus casacos para que
você cale a boca e não percamos tempo numa loja de roupas inútil. Não
ouse sujar ou vai se arrepender de ter nascido.
Ele tirou um dos casacos e o jogou de qualquer jeito nos meus ombros.
Era um casaco enorme e pesado, feito da pele de algum animal. Tive que
dobrá–lo para que não arrastasse no chão enquanto eu caminhava.
Minha tarefa daquela noite seria conservar a imponência daquele casaco
o tanto quanto eu pudesse, ou eu certamente seria severamente
castigada. Preferi não imaginar como.
Talvez fosse melhor passar frio do que correr aquele risco, mas agora eu
não ia voltar atrás para aborrecê–lo ainda mais.
– Obrigada – resolvi dizer – é um casaco bem quente e bonito.
– É um de meus tesouros. Custou uma fortuna. Mas esse que estou
vestindo custou muito mais, pois foi feito com a pele de um animal em
extinção.
E depois eu que era fútil? Ele gastava uma fortuna para pagar por algo
tão horrível que resultou no assassinato de uma espécie rara de animal?
Quando eu comecei a comentar isso, ele me interrompeu e retrucou:
– Por que um animal em extinção é superior ao rato que você planeja
assassinar na sua próxima invocação? Segundo seu pensamento, todas as
vidas não deveriam ser iguais?
Não adiantava o que eu dissesse; ele sempre teria uma resposta. E isso
era o que eu mais odiava nele.
Adentramos numa rua diferente das outras vezes. Também parecia ser
um local escondido. Lá dentro havia uma enorme biblioteca. As estantes
e prateleiras pareciam infinitas, de tantos livros que tinha. E havia outros
andares naquela construção, apenas com livros.
– É parte de minha biblioteca pessoal – ele explicou – somente
grimórios com os princípios de magia. Vulgo, magia básica. A minha
coleção de magia sublime encontra–se na minha casa e você jamais terá
acesso a ela. Contente–se com isso. Escolha alguns e vamos embora.
Era fantástico. Então aquela biblioteca era apenas uma pequena parcela

92
Guerra das Cores Perdidas

inferior dos grimórios que ele possuía? Eram centenas de livros. Talvez
milhares.
– Você já leu tudo isso? – perguntei só por perguntar.
– Sim.
– Mas...! – aquilo não fazia sentido – Eu sei que você lê numa velocidade
anormal e sua concentração é incrível. Mas mesmo que você tivesse se
mantido trancado aqui lendo desde que nasceu e jamais fizesse outra
coisa, não creio que seria tempo suficiente para ler tudo!
– Novamente, você está raciocinando como um mortal de seu mundo.
Ele aparentava ter uns trinta e poucos anos. Só então que me dei conta.
– Quantos anos você tem na verdade? – perguntei, com cautela.
– Não é da sua conta. Mas é muito mais do que você imagina.
– Você é imortal...?
– Não pergunte o que não deve. Concentre–se na escolha de seus livros
em silêncio. Seja rápida.
Será que o povo do Mundo Negro vivia algumas centenas de anos? Mas
eu já tinha visto alguns velhos nas ruas. Talvez somente os magos mais
poderosos tivessem o poder de prolongar a vida.
Ele era extremamente poderoso, consideravelmente famoso,
incrivelmente rico e provavelmente possuía vida e juventude eterna. O
que mais alguém desejaria?
Foi só então que percebi que eu também poderia ter todas aquelas coisas.
Que adiantava reencarnar se eu esquecia minhas memórias, minhas
experiências passadas? Seria muito mais interessante ser imortal e ter a
posse de um poder tremendo. Com muita dedicação à magia negra eu
poderia conquistar essas coisas. E eu tinha um mestre que poderia me
ensinar.
Mustse adivinhou o que eu devia estar pensando.
– Você praticará magia por objetivos mundanos ou para aperfeiçoar a sua
alma? – ele perguntou.
– Acredito que ser imortal seja útil para que eu tenha mais tempo de
seguir objetivos nobres. Na verdade ser rico e influente também pode ser
útil nesse sentido, pois seria muito mais fácil ter acesso a grimórios raros
e a informações secretas.
– Vivendo num mundo superficial, devemos nos adequar a ele – ele
acrescentou – ainda assim, jamais devemos nos esquecer de nossas

93
Juliana Duarte

principais razões. Os outros fatores são meras ferramentas.


– Por que o casaco de um animal em extinção ajudará no seu progresso
espiritual? – resolvi perguntar.
– Porque eu mesmo sacrifiquei o animal num dos rituais de goécia mais
importantes da minha vida.
– O despertar de Lamue – arrisquei.
Ele apenas olhou para mim, mas não respondeu. Eu devia desistir de
criticá–lo. Fato: ele sempre teria justificativas para tudo o que fazia, para
cada passo que dava. E justificativas muito boas.
Eu já tinha escolhido alguns grimórios. Ele interrompeu a minha busca,
porque disse que já era o bastante. Ele queria ver os livros que escolhi,
mas eu não deixei.
– Você não deixa? – perguntou ele em tom de desafio.
Ele me empurrou e eu caí no chão. Dessa forma ele pode analisar
facilmente quais foram os exemplares escolhidos. Ele não disse nada
sobre isso. Levantei–me e recolhi os livros em silêncio.
No dia em que tentei tirar o livro de bolso da mão dele, ele me fez um
monte de ameaças. E naquela ocasião ele apenas me empurrava e olhava
os títulos de todos os livros como se não fosse nada...
Tudo bem, os grimórios eram dele, ele era o mestre, eu era uma mera
prisioneira. E ainda assim aqueles motivos não me satisfaziam para
justificar aquele tipo de tratamento.
– Muito bem. Hora de voltar – ele informou – Você terá distração
suficiente em sua cela pelos próximos meses com essas leituras.
– Em algumas semanas eu termino. Não terei mais nada para fazer na
cela, afinal.
– Errado. Você também deverá reler os livros, estudar os capítulos
principais, decorar trechos chave e realizar anotações em seus grimórios
pessoais. Sem contar as suas operações de magia. A prática é o principal.
Livros somente te guiam para a prática. Leituras sem o aspecto empírico
são vazias.
– Sei de tudo isso – falei – você já repetiu um monte de vezes. Por que
você sempre repete as mesmas coisas?
– Se eu repetisse coisas diferentes não seria uma repetição.
– Nossa, você é hilário – caçoei.
– Repito para me certificar de que as regras mais importantes penetrem

94
Guerra das Cores Perdidas

de uma vez na sua cabeça–dura. Seu cérebro não possui uma capacidade
de memorização como o meu. Dessa forma, você precisa de muito mais
treino para aprender o básico.
– Deixando isso de lado, nosso passeio não durou nem quinze minutos.
– Isso não foi um passeio. Eu te dei uma permissão especial de visitar
uma de minhas bibliotecas. Você deveria me agradecer de joelhos.
– Obrigada pelos livros, senhor Mustse. Irão me ajudar muito.
Ele foi na minha direção em passos rápidos, com um olhar aterrorizante.
Eu recuei até encostar numa parede. Ele me olhou firmemente.
– Jamais me chame pelo nome de novo. Isso é uma ordem. Está claro?
– Sim, eu sinto muito – apressei–me em dizer – Como devo chamá–lo?
– Prefiro que nunca me chame. Odeio ser perturbado. Mas quando for
extremamente necessário, dirija–se a mim como “mestre”.
– Entendi, mestre. Obrigada pelo esclarecimento, mestre...
– Não fique repetindo isso. É irritante. Eu disse somente quando
necessário. Você é surda ou retardada?
Resolvi ficar quieta. Caminhamos pelos corredores da biblioteca em
silêncio. Ele anotou num computador de lá quais livros tinham sido
retirados. Trancou a porta que dava acesso ao local com uma chave.
Depois disso, guardou o chaveiro no bolso do casaco. Havia dezenas de
chaves nele: douradas e prateadas, de vários tamanhos e formas.
Lá fora ainda nevava; o vento estava gelado. Coloquei as mãos dentro
dos bolsos do casaco para me aquecer e encolhi o pescoço dentro dele.
Era difícil dizer se eu preferia voltar para a cela fria e ficar sem o casaco
ou passear por mais tempo ao ar livre, numa temperatura ainda mais
rigorosa, mas como o casaco. Embora meus pés estivessem gelados
dentro daqueles sapatos finos e eu carregasse grimórios pesados, ainda
assim eu preferia a oportunidade única de ver o céu estrelado, olhar a lua
negra e observar os pequenos flocos de neve cristalinos.
Eu precisava dar algum bom argumento que o convencesse a ficarmos
mais tempo lá fora antes de retornarmos.
– Como eu dizia... – comecei, com cautela – permanecemos apenas
quinze ou vinte minutos aqui fora. Ainda faltam duas horas para a meia–
noite, o que significa que tecnicamente ainda é meu aniversário.
– Vá direto ao ponto – ele disse, enquanto seguíamos pelo caminho que
nos levaria de volta à prisão.

95
Juliana Duarte

– Você ainda não me deu um presente – tentei – isto é, um presente


físico, algo que eu possa conservar comigo na cela. Você apenas me
emprestou um casaco, que eu terei que devolver assim que retornarmos.
E permitiu que eu alugasse alguns grimórios de sua biblioteca, que
dentro de algumas semanas eu também terei que devolver. Está
economizando? Você costuma gostar de gastar.
– Muitas pessoas já tentaram me usar e se aproveitar do meu dinheiro. Se
continuar a agir como um daqueles desgraçados anônimos, terá o mesmo
destino que eles: a morte sob tortura.
Dessa vez eu precisava admitir que ele estava certo: eu estava agindo
como uma idiota pedindo presentes.
– Esqueça o que eu disse. Eu apenas gostaria de ver uma prática de
magia ao vivo. Leve–me para um lugar assim.
– Magia não existe para shows ou exibicionismos – ele explicou – parece
que tudo que te ensinei até hoje foi em vão. Estou extremamente
decepcionado. Cada coisa que me diz me faz odiá–la mais. Você pede
presentes, pede para assistir a shows... quem é você? Você não merece
ser chamada de minha aprendiz. Eu me envergonho de você.
Por que eu estava fazendo aquilo? Eu deveria voltar para a cela como ele
me ordenou. Eu precisava entender que eu não estava naquele lugar para
turismo. Eu estava ali para estudar magia; mesmo forçada, eu tinha o
desejo sincero de aprender.
No entanto, para a minha surpresa, ele soltou a corrente que nos
prendia.
– Eis o seu presente de aniversário – ele disse – você está livre. Era isso
que queria, certo? Nunca mais apareça na minha frente. Se eu a vir de
novo, vou matá–la.
E ele simplesmente virou as costas para mim. Eu chamei–o de volta.
– Não era essa a liberdade que eu queria. Devolva–me ao meu mundo.
– Estude magia e descubra sozinha uma maneira de voltar – retrucou ele.
– Não vou conseguir. Preciso de seus ensinamentos para isso.
– Deixe–me ver se entendi bem – ele voltou–se para mim novamente –
em primeiro lugar, você precisa do meu dinheiro, pois não irá sobreviver
uma semana sem comida ou aquecimento no meio da neve. Perto desse
destino, a prisão já parece uma residência de luxo.
Eu fiquei quieta.

96
Guerra das Cores Perdidas

– Sem contar que quando descobrirem que você não é desse mundo irão
matá–la. O povo do Mundo Negro é extremamente xenófobo. Com seu
pouco conhecimento de nossa língua e sua aparência maltrapilha não
conseguirá nenhum emprego, deverá viver como mendiga, se arrastando
pelas ruas até que morra ou seja assassinada. Obviamente não terá o
menor acesso a nenhum conhecimento de magia. Mesmo que encontre
os locais para os quais lhe levei anteriormente, não permitirão que entre
se não estiver acompanhada por mim. Não espere caridade dos
habitantes desse mundo.
Senti lágrimas nos olhos. Ele estava sempre certo. Sempre.
– Seus planos já estão bem definidos – prosseguiu ele – você continuará
a fingir interesse em magia negra e, dessa forma, conquistar em mim
certo apreço, o que fará com que eu lhe dê conforto e presentes com o
tempo. Até que você adquira conhecimentos suficientes sobre magia
para retornar ao seu mundo. Caso não seja acomodada, incitará uma
guerra para destruir meu povo e principalmente a mim, já que você
conhecerá nossos pontos fracos. Diga–me se estou mentindo. Perto de
seu verdadeiro eu, até mesmo a maga branca me parece mais agradável.
Pelo menos ela foi sincera desde o começo e negou–se a seguir minhas
ordens. Sofreu por tal escolha, mas jamais demonstrou falsidade como
você.
Aquelas palavras eram como facadas. Eu sempre o considerei uma
pessoa terrível e cruel, mas ao colocar as coisas nesses termos, eu já não
o achava tão terrível assim. Talvez eu fosse pior que ele.
E não adiantava eu dizer que não tinha escolha. No fundo eu sempre tive
escolha. Todas as pessoas têm a capacidade de escolher, não importa em
que situação se encontrem, mesmo que se restrinja apenas a dois
caminhos: a vida ou a morte.
– Serei sincera – resolvi dizer – se eu fosse capaz de sobreviver sem o
seu auxílio, eu já teria tentado fugir há muito tempo. Mas, ao mesmo
tempo, não quero meramente sobreviver num mundo estranho, sem
objetivos espirituais e longe de minha terra natal. Preciso de você, tanto
para manter meu corpo vivo como para evoluir minha alma. Você tem
me usado para suas experiências. Por que não posso usá–lo para retornar
ao meu mundo? Se não fosse você, eu nunca teria saído de lá e nada
disso teria acontecido.

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Juliana Duarte

– Se não fosse a sua irmã e os outros sacerdotes estúpidos de seu


mundo, você quer dizer – corrigiu ele – foram eles que me
incomodaram. E não venha me dizer que você estava no lugar errado e
na hora errada. Você não é nenhuma vítima das circunstâncias. Assuma
suas responsabilidades como ser humano.
Aquilo tudo era absurdo. Mesmo que no fundo eu soubesse que ele
devia estar errado, ele sempre me convencia de que o certo era ele.
– Entendi... vamos voltar para a cela agora?
– Não – ele disse – experimente ficar alguns dias aí fora para ver o que
acha. Daqui uma semana, se ainda estiver viva, você poderá retornar até a
prisão e pensarei no seu caso. Devolva–me o casaco e os grimórios.
Eu comecei a chorar. As lágrimas corriam como água. Não havia mais
como disfarçar.
– Você não é mais uma criança – ele me olhava com severidade – não
faça algo tão infantil como chorar. Não vou ter pena de sua
demonstração humilhante de fraqueza. Esse é um motivo a mais para eu
abandoná–la. Magia negra é somente para os fortes, capazes de adquirir
maestria sobre suas emoções.
– Todos os tipos de emoções podem ser transformados em força –
retruquei – incluindo a fraqueza e o medo. Vou te mostrar como posso
tornar tudo o que me faz humana numa fonte de poder.
– Eu teria vontade de ver isso se fosse verdade. Suas palavras são vazias.
Sua confiança está perdida.
– Por favor, me deixe voltar! Eu não quero morrer.
– Por que você não quer morrer? Siga o exemplo da sua irmã.
– Não posso morrer porque ainda não progredi espiritualmente...
– Mentira! Você não quer morrer porque tem medo.
– Sim – confessei – nosso instinto animal de sobrevivência nos faz
tremer diante da morte.
– E nosso cérebro humano nos conferiu a sabedoria de ser capaz de
superar tais medos.
Desisti de discutir. Numa competição de lógica eu estaria fadada ao
fracasso. Tudo o que me restava era o apelo emocional, que com ele teria
um efeito quase nulo.
– Sei qual será o meu presente – decidi – permita–me voltar e dê–me
uma escova de dentes... por favor.

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Guerra das Cores Perdidas

Finalmente ele cedeu, talvez por simpatia ao meu pedido miserável. Ele
prendeu novamente as correntes no meu pulso e senti–me feliz quando
ele fez isso.
Voltamos para a prisão. Devolvi–lhe o casaco. Ele colocou–me de volta
na cela. Comecei a ler um dos grimórios até adormecer.
Quando acordei, havia uma escova de dentes ao meu lado.

99
Juliana Duarte

A Maga Branca

Ao saber que ele estava fazendo–me um favor ao me manter prisioneira,


pude suportar com mais força os meses que se seguiram.
Li todos os grimórios novos, sempre em voz alta para que a maga branca
pudesse escutar. Admito que as leituras não foram tão interessantes
como os grimórios que Mustse me deu antes e nem senti vontade de
relê–los. Preferi voltar a estudar meus velhos livros. Eu ia me lembrar
disso no futuro e aceitar somente os grimórios que ele me sugerisse ler.
Eu precisava admitir: ele sabia escolher muito bem. Claro que eu tinha
ainda mais curiosidade de ler um livro escrito por ele, mas eu duvidava
muito que um dia eu teria acesso a um deles.
Resolvi devolver os novos grimórios a Mustse. Ele comentou que os
livros selecionados por mim eram úteis, mas tinham características mais
cerimoniais do que filosóficas. E para a etapa em que eu me encontrava
era importante focar–me em filosofia da magia.
Esse foi um período em que me foquei mais nas práticas do que nas
leituras, já que eu fiquei um bom tempo sem ter acesso a livros novos.
Numa ocasião comentei com Mustse que eu tinha dificuldade em realizar
invocações porque nos grimórios que eu tinha eles davam somente
exemplos de operações avançadas. No dia seguinte ele me emprestou um
exemplar de demonologia simples, o que provou ser uma leitura
extremamente útil. Gostei tanto do livro que pedi para ficar com ele por
tempo indeterminado. Ele disse que ia pensar, já que era um exemplar
importante da biblioteca. Mas como ele tinha centenas de livros lá, essa
permissão não custaria a ele praticamente nada. Se ele não permitisse
seria somente por chatice e por nenhum outro motivo.
E esse foi o único livro novo que ganhei nos três meses seguintes. Eu o
achava um pouco egoísta nesse sentido. Ora, eu tinha todo o tempo do
mundo para estudar e tinha muita vontade de ler coisas novas. Mas ele
tinha uma biblioteca enorme e não me emprestava nada! Os livros só
iam acumular poeira. Quando requisitei acesso irrestrito aos livros, ele
não deixou, dizendo que não desejava que eu me tornasse um rato de
biblioteca e sim uma maga prática. Sendo assim, valia mais a pena ler

100
Guerra das Cores Perdidas

poucos livros, mas altamente selecionados. Estudar e reler exemplares


específicos, escolhendo as melhores operações e reservando o resto do
tempo para a prática.
– Não é a quantidade de leituras que importa – explicou ele – e sim a
qualidade dos livros. Basta debruçar–se sobre os melhores deles e
dominar todas as operações ensinadas. Se você sair lendo tudo o que vê
pela frente, não restará quase nenhum tempo para a prática, seu cérebro
irá se sobrecarregar pela quantidade de informação e você não lembrará
mais em quais livros leu certas coisas.
– Eu sei, essa é outra coisa que você repete o tempo todo. Mas se pensa
assim, porque você já leu milhares de livros?
– Tive que ler milhares até me dar conta disso. É positivo buscar novas
leituras. Mas apenas ler desesperadamente tudo o que surge diante de
você é inútil. Por isso hoje em dia eu me concentro em escrever meus
próprios grimórios e ocasionalmente ler um exemplar novo ou reler um
dos meus favoritos quando arranjo tempo.
Então eu poderia dizer que em relação a leituras eu já tinha uma boa
base, sendo que os livros me foram indicados por um mago experiente.
Em relação à prática, eu também já dominara os exercícios fundamentais,
mas tinha muito que melhorar em matéria de invocações.
Eu já tinha invocado mais duas vezes o demônio Fiska, mas ainda não
obtivera uma aparição física. Preparei tudo para que acontecesse naquela
madrugada.
Limpei a área ritual, organizei os utensílios, montei o altar e o círculo
mágico. Ergui minha espada e pronunciei as invocações por meia hora.
Eu já estava me tornando muito boa nisso, estava mais confiante e
corajosa.
Naquele dia levei um rato para o círculo e sacrifiquei–o, exigindo em
troca a aparição física da entidade. Senti–me muito estranha ao matar
aquele rato. Senti pena e nojo, mas a sensação mais forte foi a adrenalina,
quando meu coração disparou. Foi então que eu compreendi para que
serviam os sacrifícios rituais: para fazer seu coração disparar, alterar seu
estado de consciência e você ser transportada para outro plano de
existência.
Pela primeira vez presenciei a aparição física da entidade: era um ser
feminino. Um demônio com dois grandes chifres retorcidos, cabelos

101
Juliana Duarte

longos e negros, lábios grossos. A pele era escamosa e alaranjada. Os


olhos eram castanhos intensos.
– Fiska – comecei – te evoquei para que me sirva. Minha vontade torna–
se tua vontade. Domino o espaço do triângulo e tu, criatura abissal, não
o ultrapassará até que jure sob o meu bastão ou sucumba sob o peso da
minha espada.
– Eu te ouço e te renego – foi a resposta.
Senti um frio na espinha ao escutar aquela resposta fria. Pelo visto ela
podia sentir meu medo. Eu estava com o coração aberto: ela lia meus
pensamentos e conhecia minha insegurança. Eu precisava ser forte.
Apontei a espada diante dela, violentamente.
– Ajoelha–te! Clama pela tua sanidade! – mandei.
– Clama pela tua, humana fraca. Eis que te revelo minha verdadeira
forma.
Dessa vez eu gelei. Eu não podia permitir que ela me mostrasse a
verdadeira forma dela, pois dizem que a mera visão da forma cheia de
deformidades pode levar à loucura.
Ela começou a se transformar, mas eu agitava a espada no ar e gritava:
– Para agora, demônio! Ou sentirás a minha fúria!
Ela me ignorava completamente. Ordenei que ela jurasse sob o bastão,
mas eu já não estava mais com o controle da situação. Quem me
ameaçou foi ela. Em troca de ela não mostrar sua face, ela exigia um
pagamento.
Eu neguei. Ela tentou sair do triângulo de proteção, que eu fiz questão
de guardar com todas as forças. Eu suava, nervosa, tremendo de medo.
Estava no meu limite.
– Socorro!! Mestre! Mestre! Me salve!
Obviamente ele não estava ali e nem daria tempo para que chegasse.
A maga branca acordou com meus gritos. Quando viu o que se passava,
ela levantou–se imediatamente. Seguiram–se uma série de eventos
extraordinários.
Ela traçou um círculo no chão com os dedos. A energia materializou–se;
uma luz branca brilhante. Ela ajoelhou–se e começou a rezar numa
língua rápida e leve que eu nunca ouvira na vida. Em seguida, surgiu o
ser mais imponente que eu jamais poderia imaginar que existisse.
Era uma moça feita de luz dourada. Seus cabelos eram longos, cacheados

102
Guerra das Cores Perdidas

e dourados. Ela usava um manto branco, seu brilho ofuscava os olhos.


As asas daquele ser celestial eram muito maiores e mais majestosas do
que as singelas asas da maga branca.
A maga branca pronunciou mais palavras, numa língua diferente e ainda
mais esquisita.
A mera visão do ser de luz já deixou o demônio atordoado, que se
encolheu e se contorceu. Bastou o anjo aproximar–se do triângulo que o
demônio retirou–se o mais rápido que pode e desvaneceu–se, deixando
por trás de si um rastro de fumaça negra.
Quando tudo já estava sob controle, o anjo desapareceu. Tudo voltou ao
normal. Mas o medo, o nervosismo e a adrenalina ainda me invadiam de
forma inexplicável. Caí no chão, de tão exausta que eu estava, por usar
tanta energia e desprender uma carga emocional tremenda.
Eu ainda não tinha forças para suportar algo assim. Prometi a mim
mesma que já era hora de deixar as leituras para segundo plano e dedicar
o maior tempo do dia ao treinamento empírico do meu corpo, mente,
emoções, sentidos espirituais e tudo o mais que eu fosse capaz de
realizar.
A maga branca aproximou–se de mim e segurou na minha mão. Ao
captar a energia emanada de sua palma, senti–me mais renovada. A
presença dela estava envolta em luz e energia. Mesmo assim eu ainda
sentia um cansaço inexplicável. Uma repentina pressão na testa me
invadiu. Aquilo era demais para meu corpo suportar.
– Você está bem?
Era a primeira vez que eu ouvia a voz dela. Ela me perguntou isso na
língua do Mundo Negro.
– Sim – respondi, quando consegui emitir as primeiras palavras –
obrigada por me salvar.
– Era o mínimo que eu podia fazer por você, depois de tudo o que fez
por mim.
Ela era uma moça muito gentil. Devia ser também uma maga poderosa.
Eu tinha vontade de fazer muitas perguntas a ela, mas algo me dizia que
ela não responderia nenhuma delas.
– Então... a magia branca é mais poderosa que a magia negra? – foi a
primeira pergunta que me ocorreu ao ver o demônio correr de medo
diante do anjo guardião dela.

103
Juliana Duarte

Eu tinha certeza de que ela iria responder afirmativamente, mas ela não
fez isso.
– Essa é uma conclusão precipitada – explicou ela – não existe uma cor
de magia mais poderosa. Isso depende exclusivamente do praticante que
a opera. Cada pessoa possui afinidade com uma cor específica. O
caminho é descobrir qual o seu potencial: qual das cores combina mais
com aquilo que você acredita. Se suas intenções estiverem de acordo
com a cor, será nela que sua magia mostrará o maior poder.
– Cada ser nasce num mundo e é educado sob uma cor. Não temos
escolha.
– Sim, nós temos. Se realmente desejamos seguir um caminho que não
exista em nosso mundo, resta–nos dominar a magia de nossa terra natal
até adquirir o poder de invocar seres de outras dimensões ou viajar para
o universo que ambicionamos.
De certa forma, era esse meu objetivo. Embora eu me interessasse por
magia negra e ela possuísse muitos atrativos que a magia verde não tinha,
eu desejava retornar para meu lar e fazer parte da ordem monástica da
minha terra, para seguir o caminho de Panl e de todos os grandes
mestres do meu povo.
– Mas você está presa aqui – lembrei – isso significa que Lamue é mais
poderoso que seu anjo?
– Infelizmente sim – respondeu a maga – escolhi abrir os portais do
Mundo Negro para dar prosseguimento a uma prática avançada de magia
branca que envolve a evocação de demônios. No entanto, eu não fui
forte o suficiente para isso. Mustse roubou meus quadrados mágicos,
fontes de meu maior poder, e passou a utilizá–los com Lamue. Isso lhe
conferiu um poder inimaginável. Não há meios de eu derrotá–lo
enquanto ele tiver a posse dos quadrados.
– Podemos tentar recuperar os quadrados – sugeri.
– Não adianta. Agora ele já conhece a fórmula para confeccioná–los. É
um caminho sem volta.
– Então você o odeia. E também odeia a magia negra.
– Eu não diria que odeio magia negra, pois podem existir praticantes
bons até mesmo nessa linha da magia – ela respondeu – mas, sim, odeio
Mustse mortalmente. E não aceitarei estudar magia negra somente para
me submeter aos caprichos dele.

104
Guerra das Cores Perdidas

– Nem mesmo para tentar voltar ao seu mundo?


– Não. Morrerei aqui se necessário.
– Tentarei obter poder para voltar – falei.
– Isso leva anos ou décadas – falou a maga branca – você só obterá algo
nesse sentido se fizer algum acordo com ele. Mas você terá que dar algo
de muito valor para que ele aceite.
– A minha alma, por exemplo?
Se fosse assim, não valeria a pena o sacrifício. Por que eu estava fazendo
tudo aquilo? Por que ainda estava viva? Talvez eu devesse esquecer o
meu passado e tentar concentrar–me para me tornar uma maga negra.
Mas isso não seria trair minha irmã?
“Panl morreu. Tente esquecê–la, assim como aos seus desejos
impossíveis. Viva nesse mundo e tente ser feliz”.
Senti uma sensação ruim depois daquela conversa. Eu estava sem
esperanças.
Quando Mustse soube do que aconteceu, ficou furioso. Ou melhor, ele
expressou a fúria à sua maneira: fitando–me profundamente naquele tom
sério e assustador.
Antes disso, quando contei a ele sobre a aparição física de Fiska, ele
ficou bastante interessado. Ao revelar–lhe minha inabilidade de controlá–
la ele disse que aquilo já era esperado, dada a minha pouca experiência,
mas que eu poderia fazer melhor.
– Uma aparição visual já é um grande feito – ele disse – mas você
evocou um demônio menor e ainda assim teve medo; quase deixou que
ela a enganasse. Achei que ao menos no nível filosófico você estivesse
mais preparada. Sua flutuação de emoções quase foi a causa de sua ruína.
– E teria sido, se a maga branca não tivesse me salvado – acrescentei –
ela evocou um anjo lindo, que fez Fiska desaparecer em segundos!
Mustse não gostou de ver o meu entusiasmo em relação a uma operação
de magia branca.
– Isso não é motivo para felicidade. Você deveria odiá–la agora.
– Mas... ela me salvou! – argumentei.
– Ela zombou de você e de seu poder. Não permita ser humilhada dessa
forma novamente. Vou separar vocês duas para que ela não a perturbe
mais. Ela irá para outra cela.
– Não! Deixe–a comigo. Ela é minha amiga...

105
Juliana Duarte

Eu disse a coisa errada. Claro que Mustse não queria que ela me
“contaminasse” com conhecimentos sobre magia branca. E muito
menos permitiria que eu fosse amiga de uma maga de uma linha tão
perigosa.
Ele disse que me daria cinco horas para puni–la. Se eu não fizesse isso,
nós duas seríamos separadas.
Quando ele foi embora, resolvi conversar com a maga branca.
– Não dê ouvidos a ele – ela me aconselhou – ele quer que você o tema.
Você não deve ter medo dele ou obedecer todas as suas vontades.
– Não sou tão forte como você – eu disse – tanto em termos de poder
mágico como emocionalmente. Você foi capaz de aguentar a fome, o
tédio e a dor, sempre acorrentada e jamais disse uma palavra. Eu não
seria capaz disso.
– Será quase impossível retornar ao seu mundo pelo seu próprio poder.
Se quiser estudar magia negra vá em frente, mas eu não recomendo
Mustse como mestre. Embora ele seja sábio para certas coisas, também é
muito cruel.
– Ele torturou você?
– Da pior maneira possível: usou Lamue para torturar meu anjo. Lamue
não teve poderes para destruí–lo, mas eu fiquei chocada
psicologicamente ao ver que Mustse era capaz de ferir uma forma tão
pura. Bikham é meu anjo. Ela foi muito forte e me inspirou a ter forças
para continuar.
– Qual o seu nome? – lembrei–me de perguntar.
– Clarver. E o seu?
– Wain. Há quanto tempo está aqui?
– Há três anos – ela respondeu – desde os meus 15.
– Seu povo conhece a fórmula para a imortalidade?
– Não ligo para a imortalidade do meu corpo. Minha alma é imortal. A
morte me levará para junto de Deus se eu tiver forças para manter minha
fé.
Mustse veio mais cedo que o previsto. Ele já devia adivinhar que eu não
tinha intenção nenhuma de punir Clarver e muito menos teria poder para
fazê–lo.
– Maga branca – ele disse, quando se aproximou – irei conduzi–la ao
calabouço. Você jamais verá a luz do sol de novo. Suas pernas e braços

106
Guerra das Cores Perdidas

serão acorrentados. A partir desse dia você terá apenas restos de água
suja e migalhas de pão velho. Veremos se o seu Deus te salva agora.
– Que Deus tenha piedade de sua alma e de sua ignorância – pronunciou
a maga branca.
Como ela não se moveu para acompanhá–lo por vontade própria, ele
segurou–a pelo braço, com a intenção de arrastá–la até lá à força.
Ela pronunciou algumas palavras em sua língua, traçou o circulo de
proteção no ar e evocou seu anjo guardião no instante em que a cela
estava aberta. Era impressionante vê–la fazer isso sem quaisquer
utensílios mágicos.
Mustse ficou surpreso que ela ainda tivesse força e ousadia suficiente
para esse feito. Imediatamente retirou o punhal da cintura, traçou círculo
e triângulo e invocou Lamue.
Senti uma sensação horrível ao ver novamente o demônio de sete chifres
diante de mim. Era o medo e o terror. Mal conseguia me mexer diante da
visão fenomenal daquela besta enorme; muito maior que o magnífico
anjo de Clarver.
O anjo avançou com espada em punho na direção de Lamue. O
demônio repeliu a lâmina com os dedos, emitindo alguns sons guturais.
Ele lançou o anjo contra a parede, com uma força fenomenal. Bikham
atravessou a parede, que se quebrou com um estrondo. A construção
estava começando a desmoronar. Eu corri para fora, para não ser
soterrada. Não havia perigo algum de eu fugir, pois Mustse sabia que se
eu quisesse sobreviver não poderia fazer algo assim tão estúpido.
As garras do demônio viraram lâminas enormes e feriram o corpo do
anjo, que tentava se esquivar sem sucesso. O demônio retirou pedaços de
papel de dentro do manto. Eu gelei. Com um daqueles pedaços ele era
capaz de matar um sacerdote do meu mundo instantaneamente.
Ele atirou dez pedaços de papel na direção do anjo. Surpreendentemente
ela não morreu, mas seu corpo ficou todo deformado. O cérebro tinha
afundado e ela tentava voar ou fazer qualquer coisa sem conseguir.
– Lamue, mate – mandou Mustse, tranquilamente.
O braço de Lamue atravessou a barriga do anjo. Ela ainda se mexia.
Lamue arrancou o coração. Abriu o crânio do anjo e esmigalhou o
cérebro. Por fim, ela agonizou no chão por um momento, sem coração e
sem cérebro, com as asas tentando mover–se debilmente. Até que parou

107
Juliana Duarte

de se mexer e desapareceu numa explosão de luz, plumas brancas e


sangue.
– Bravo. Isso foi lindo – comentou Mustse – as lendas dizem que os
seres da luz são fortíssimos quando operados pelos mais poderosos
mestres brancos. Esqueci que você é apenas uma criança medrosa e
fraca. Esse ser da luz não teve sorte.
Eu estava chocada; meu coração disparava. Clarver devia ser tão
poderosa como minha irmã. O problema era que aquele demônio
desgraçado devia ser a encarnação do próprio diabo. Não tinha outra
explicação para que ele derrotasse tão rapidamente magos poderosos.
Clarver estava pálida. Tremia no chão e lágrimas corriam de seus olhos
esbugalhados, diante da visão da morte horrível de seu guardião puro.
Quando Mustse aproximou–se dela, ela desviou os olhos.
– Não fique braba – falou Mustse – da primeira vez eu poupei você e o
seu anjo. Avisei que isso ocorreria caso você o invocasse novamente e
desafiasse a minha vontade. Você apenas foi tola. Agora me responda:
que eu faço com você? Sem seu anjo você tem tanto poder quanto um
verme na lama. Você se recusa a praticar magia negra e agora se tornou
inútil para a magia branca também. Deus ficará irado quando você
morrer e ele descobrir que você permitiu a morte de um de seus
mensageiros que ele gentilmente lhe enviou. O que você dirá a Deus
quando eu te matar?
Clarver ainda tremia. Ela teve medo das palavras de Mustse. Pela
primeira vez Clarver temeu morrer, pois teria receio de dar satisfações a
Deus pela morte de seu anjo.
Mustse ficou satisfeito ao fazê–la sentir medo. Antes não fazia sentido
matá–la, já que ela não temia a morte e tinha fé absoluta de que Deus a
protegeria. Mas com a morte de seu anjo ela estava incrivelmente
vulnerável.
Mustse segurou–a pelos cabelos com a mão esquerda e ergueu seu
punhal com a mão direita. Ele ia degolá–la. Uma morte rápida e limpa?
Eu duvidava que ele fosse assim tão piedoso.
Mas ele não fez isso. Ele usou o punhal para cortar as asas dela. Nesse
momento ela gritou. Ele decepou a asa direita, que tombou no chão
com uma quantidade enorme de sangue. Depois foi a vez da esquerda.
Após as duas asas terem sido arrancadas lentamente, Clarver caiu

108
Guerra das Cores Perdidas

pesadamente no chão, gritando e chorando, empapada de sangue.


Imaginei que aquilo doesse mais do que ter uma perna ou um braço
decepados. Eu já tinha lido em alguns livros que as asas de um anjo e os
chifres de um demônio eram fonte de enorme energia espiritual e eram
extremamente sensíveis. A perda deles causava dor extrema,
desequilíbrio emocional e perda considerável de poder, pois eram
importantes canalizadores de energia.
Mustse ordenou que Lamue retornasse, pois ele já sacrificara muita
energia para mantê–lo ali por tanto tempo. A partir dali, Mustse poderia
puni–la sem o auxílio dele.
– Deus te aguarda para julgá–la, maga branca – ameaçou Mustse – você
tem sido uma menina má e deverá dar satisfações ao seu Senhor.
Ele não precisava matá–la, pois com aquela perda enorme de sangue ela
iria morrer logo. Ele iria dar um fim ao sofrimento dela, iria apenas
largá–la ali para que morresse ou faria a crueldade de torturá–la ainda
mais? As três opções eram terríveis. E eu não poderia fazer nada. Um ato
simbólico de coragem para defendê–la resultaria em um ato estúpido e
nada mais. Eu me envergonhava da minha covardia. Iria deixá–la morrer
somente para não sentir dor.
Ele segurou–a pelo braço e arrastou–a pelo chão.
– Para onde vai levá–la? – perguntei, com cautela.
– Para o calabouço. Não venha.
Ele entrou com ela no calabouço e trancou a porta. Ouvi gritos horríveis
de Clarver. A cada grito meu coração dava um aperto. Eu apenas fiquei
chorando lá fora, perto da porta, pois era tudo o que eu poderia fazer.
Por fim, depois de longos minutos, os gritos pararam e Mustse saiu de lá.
– Você a matou...? – perguntei, com voz fraca.
– Ela desmaiou. Portanto, não há sentido em continuar. Isso já é o
suficiente. Depois pensarei no que fazer com ela, caso ela sobreviva
pelos próximos dias.
– O que você fez?
Tive um pouco de medo de ouvir a resposta.
– Não interessa – ele respondeu, friamente.
Mas ele estava com o punhal na mão, cheio de sangue. Era difícil
acreditar que ela ainda ficaria viva depois de tanta mutilação e perfuração.
Será que ele havia arrancado outra parte do corpo dela agora? Eu

109
Juliana Duarte

precisava saber.
– Pare com perguntas ou farei a mesma coisa a você para saciar sua
curiosidade – ameaçou ele – eu realizei uma operação de magia negra
avançada, sem evocação. Estou muito cansado. Não me aborreça.
Ele estava mentindo. Eu não conhecia nenhuma operação avançada de
magia negra que não envolvesse evocação. Mas eu só iria descobrir que
operação era essa se um dia eu tivesse acesso aos livros avançados de
magia negra; principalmente os grimórios dele.
Mas eu estava chocada demais para pensar em qualquer coisa. Eu sequer
conseguia pensar. Só era capaz de derramar lágrimas.
– Pare de chorar, eu já disse que odeio isso! – gritou ele – Odeio choro
de criança! Cale a boca antes que eu perfure sua garganta!
Era a primeira vez que eu o via gritar e se irritar daquela maneira. Eu
parei de chorar no mesmo segundo e fiquei quieta. Se ele já fazia aquelas
coisas absurdas quando estava calmo e controlado, eu não queria
presenciar o que ele faria quando estivesse realmente irritado.
– Não posso te trancar de volta na sua cela, pois ela foi completamente
destruída – prosseguiu Mustse, já um pouco mais calmo – também não
quero deixar vocês duas juntas. Vou te enviar como escrava de Eideikel
por enquanto. Se ela quiser te deixar dormir numa cama ou te chicotear
todo dia no porão, isso é problema dela.
– Não quero – falei – não gostei dela. É a mulher de vestido vermelho e
sorriso suspeito? Ela parece muito desagradável.
Havia algo naquele sorriso que me metia medo. Eu sabia que ela não
podia ser pior que Mustse. Ainda assim, eu não queria ficar com ela.
– Você não tem escolha. Ou vai para a casa dela ou vou te largar na rua.
– Deixe–me morar na biblioteca, por favor!
– Nem pensar. Você irá desorganizar todos os meus livros.
– Nesse caso, deixe–me ser sua escrava – sugeri – contanto que não me
peça para fazer coisas absurdas, eu aceito. E com a condição de você
continuar a me ensinar magia.
– Você não entendeu, menina insolente. Você não tem direito a dar
sugestões e impor condições. Meus escravos levam uma vida de luxo.
Qualquer um daria tudo para ser meu escravo. Não é algo que você
mereça.
Era melhor desistir. Pelo jeito eu seria obrigada a ser escrava da mulher

110
Guerra das Cores Perdidas

de três chifres. Talvez não fosse tão ruim. Havia a possibilidade de eu ter
refeições melhores. Mas se ela me encarregasse de serviços domésticos,
eu não teria tempo para estudar magia. Nesse caso, era melhor ficar
presa, suportando desconforto e refeições ruins do que não ter tempo
para me dedicar à evolução espiritual. Dei todos esses argumentos.
Mustse estava cansado e irritado, então acabou cedendo.
– Vamos logo pegar o maldito trem.

111
Juliana Duarte

O Castelo dos Horrores

Assim que entramos no trem, ele me avisou:


– Será uma longa viagem. Vou dormir, então não me perturbe.
Ele se encostou ao banco, colocou óculos escuros e cruzou os braços.
Eu não era louca de perturbá–lo enquanto ele dormia. Por outro lado,
ele devia confiar muito em mim para baixar a guarda na minha frente. Se
bem que, caso eu me aproximasse dele, ele parecia do tipo que
despertaria no mesmo segundo e, num reflexo involuntário, cortaria meu
pescoço. Ele era desconfiado demais e não era para pouco. Devia ter
muitos inimigos.
Ele não havia me acorrentado. Afinal, ele sabia que eu não teria para
onde fugir. No caso da maga branca era diferente. Caso surgisse a
oportunidade, ela escaparia.
Quando eu pensava nela, eu me sentia mal. Ela devia estar sofrendo,
com as costas mutiladas, pingando sangue. Será que Mustse havia feito
uma operação para encarnar um demônio no corpo dela? Uma vez li
algo sobre isso num dos grimórios que aluguei da biblioteca. Só podia
ser isso.
“Mago negro miserável!” pensei, sentindo ódio. Se eu tivesse o poder
para matá–lo, aquela seria a ocasião perfeita. Mas mesmo se eu tivesse o
poder... será que eu teria coragem?
Mas não, eu estava indo até a casa dele para servir de empregada
doméstica, como um cachorrinho. Só faltava eu abanar o rabinho para
ele me dar um osso. Se bem que era quase isso que ocorria em relação
aos presentes. Enquanto minha irmã e a maga branca resistiram
bravamente, por que eu era a única que sempre o obedecia sem
questionar?
Notei pessoas no trem naquele dia, mas não estava cheio. Apenas
algumas pessoas esparsas aqui e ali. Comecei a observá–las para me
distrair e parar de pensar em coisas ruins.
Havia um sujeito de chapéu que lia um jornal. Uma senhora carregava
uma sacola de compras na mão. Um cara de óculos conversava com uma
moça que vestia um enorme casaco felpudo. Eram pessoas quase

112
Guerra das Cores Perdidas

normais. Diferentes cores de pele, variados formatos de chifres. Ainda


assim, pareciam apenas levar uma vida comum, sem mexer com magia.
Depois de uma meia hora de viagem, Mustse acordou. Tirou os óculos
escuros e esfregou os olhos. Retirou um vidrinho de remédio de um dos
bolsos e tomou um comprimido. Pensando bem, se eu não soubesse
quem ele era, talvez eu também o tomasse por uma pessoa normal. Por
fora ele apenas parecia um político importante ou um homem de
negócios, que se vestia formalmente. Era estranho que o ditador vitalício
daquele mundo pudesse passear tranquilamente pelas ruas ou viajar num
trem, sem nenhum segurança por perto. Mas se a fama de seus poderes
era realmente lendária, acredito que seria motivo mais do que suficiente
para ninguém se aproximar. E que tipo de segurança seria mais poderoso
do que ele mesmo? Somente Lamue.
Com ele acordado, resolvi puxar assunto, mesmo sabendo que aquilo era
uma péssima ideia.
– Você tem esposa e filhos?
Eu quase ri ao ver a expressão dele quando perguntei isso. Ele franziu a
testa.
– Eu pareço o tipo de pessoa que selecionou uma fêmea com genes
quase tão superiores quanto os meus para gerar uma prole que apenas
me daria gastos e dor de cabeça?
– Tem razão – falei – não sei por que eu fiz essa pergunta. Acho que eu
estava louca.
– Sugiro que retome sua sanidade antes de fazer uma próxima pergunta.
– Você já foi casado, então?
– Já vivi o suficiente para passar por todas as experiências desse mundo e
me desapontar com todas elas.
– Isso é um sim – falei – deixe–me adivinhar: você a matou.
– Você é um gênio.
– O mestre que é muito previsível, não tenho culpa – falei – mas por que
a matou? Ah, outra pergunta tola. Você não precisa de um motivo.
Enjoou dela? Ou ela te traiu?
– Cale a boca – mandou Mustse, com uma paciência surpreendente –
você fala demais.
– Você tem irmãos?
– Já me cansei desse interrogatório – disse ele – moro sozinho com

113
Juliana Duarte

meus escravos e evito contato com as pessoas, embora eu seja obrigado a


isso no ambiente de trabalho. Quando possível, cuido da maioria das
coisas em casa para me livrar de um irritante convívio social.
“Um bom plano de vida”.
– O que acontece quando um demônio perde os chifres?
– Um habitante de nosso mundo não “perde” os chifres, a não ser que
seja muito retardado. Mas há casos em que os chifres são quebrados em
acidentes ou duelos mágicos. Para as pessoas comuns, além de gerar
muita dor, a única questão relevante será a estética.
– Então o que aconteceria a você, por exemplo, caso seus chifres fossem
quebrados? – perguntei.
Ele me fitou cautelosamente antes de responder. Eu não gostava quando
ele me olhava daquela maneira, pois havia uma pequena possibilidade de
eu ser morta, punida ou no mínimo xingada. Tudo podia acontecer.
– Por acaso você tem planos de tentar me assassinar?
– Nada do tipo para um futuro próximo – confessei – no momento só
estou curiosa.
– Obviamente eu sentiria dor extrema e perderia parte de meus poderes.
Não vou contar mais que isso.
Eu queria vê–lo sentindo dor extrema. Ele merecia. Eu esperava um dia
poder ver aquilo, mesmo que não fosse eu a causar a dor.
Era estranho, porque embora de certa forma confiássemos um no outro,
estávamos sempre cuidadosos e alertas, pois um podia trair o outro a
qualquer momento. E as coisas provavelmente seriam dessa forma para
sempre.
Finalmente descemos do trem. Caminhamos por um bom tempo até
chegarmos a casa dele. Era uma mansão enorme! O quintal era lindo,
cheio de árvores de diferentes espécies, flores coloridas e arbustos
cuidadosamente cortados. Ele devia ter um mestre jardineiro
embelezando aquele quintal 24 horas por dia.
Na verdade era uma jardineira. Nos encontramos com ela no meio do
caminho. Era uma moça sorridente de uns vinte e poucos anos, vestindo
um avental colorido e chapéu de palha. Ela regava alegremente as
plantas.
– Bom dia, senhor e sua acompanhante!
Gostei dela na mesma hora e sorri de volta. Senti que eu me daria muito

114
Guerra das Cores Perdidas

bem com aquela escrava e fiquei feliz de saber que eu teria uma amiga
para me dar forças para suportar o inferno que a minha vida
provavelmente se tornaria a partir dali.
A mansão era gigantesca. Parecia–se mais com um castelo de torres altas.
Desconfiei que eu seria a princesa trancada no topo da torre mais alta.
O castelo era negro e a decoração interior era incrível e macabra. Os
aposentos eram decorados com utensílios de magia e móveis que faziam
referência ao ocultismo. Todos provavelmente caríssimos e feitos sob
encomenda. Vi duas faxineiras espanando pó por ali. Depois apareceu
um homem vestindo um terno, provavelmente um mordomo,
perguntando se o patrão desejava comer alguma coisa. Ele respondeu
que em breve o chamaria e que no momento não queria ser incomodado.
Mustse era frio e indiferente com seus empregados, embora todos eles
fossem simpáticos e sorridentes. Eles já deviam estar acostumados com
o humor do patrão.
Mustse fez questão de me mostrar alguns aposentos reservados
exclusivamente para a prática de ocultismo. Neles era possível ajustar a
luz do ambiente e acender dezenas de velas instantaneamente. Havia
salas com variados tipos de formas geométricas mágicas traçadas no
chão, cada uma delas utilizada para diferentes tipos de evocações.
Aquilo tudo era extraordinário! Provavelmente aquele castelo era o local
mais interessante a ser visitado por um praticante de ocultismo. Mustse
me deu uma explicação breve sobre o significado dos símbolos e
utensílios encontrados em cada sala, assim como a sua correspondência
em relação à importância da operação proposta para o local.
Ele também indicou quais salas eram proibidas. Eu não deveria me
aproximar daqueles locais em hipótese alguma. De qualquer forma, todas
aquelas salas eram trancadas a chave e eu não estava muito entusiasmada
a roubar o molho de chaves dele para conferir o que havia lá dentro.
Mustse sugeriu que eu não chegasse perto de seus aposentos particulares
e de seu escritório de trabalho. Ele inclusive me entregou um mapa que
indicava todos os aposentos da casa. Ordenou que eu estudasse o mapa
com cautela, pois caso ele me flagrasse num local proibido ele não
aceitaria a desculpa de que eu havia me perdido.
Por fim, ele me mostrou o meu quarto. Como suspeitei, era um local
isolado, numa das torres altas. Eu teria uma vista fenomenal de lá. Ele

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Juliana Duarte

morava num lugar meio longe da cidade ou de outras habitações, onde


havia muito verde. A paisagem era belíssima, com altas montanhas ao
longe. Só por isso já fiquei contente, pois na prisão eu não podia ver
nada lá fora.
Comparado ao luxo do resto da casa, o meu quarto devia ser o local mais
miserável. Ainda assim, nem se comparava a uma prisão. Era
extremamente limpo e arrumado. Mas era simples, modesto. Não era
repleto de decorações majestosas, como os demais aposentos. Na
verdade não havia decoração alguma. Tinha apenas uma cama baixa, com
colchão simples, lençóis e travesseiro branco. Havia uma mesa de
cabeceira com gavetas, uma cadeira e um guarda–roupa. Mas estava tudo
vazio.
Era melhor eu não reclamar. Fazia um ano e meio que eu não dormia
numa cama, então aquela noite pretendia ser a mais confortável de
minha memória.
Ele me mostrou ao lado do quarto um banheiro pequeno e arrumado,
também completamente vazio.
– Você vai precisar de alguns artigos como cobertores e toalhas, então
basta requisitar à camareira – ele avisou – Mas peça apenas o básico.
Nada de extravagâncias.
Comecei a guardar meus poucos pertences nas prateleiras do guarda–
roupa e nas gavetas da mesa de cabeceira.
– Agradeço a gentileza e estou muito satisfeita com meu quarto e com
meu banheiro – comecei – mas percebi que há dezenas de quartos
espalhados pelo castelo que não parecem estar em uso...
– Imaginei que você fosse dizer isso. Afinal, você sempre foi mal
agradecida – observou ele – contente–se com o que tem por enquanto.
Dependendo de como se portar nos próximos meses, ou eu a expulso
daqui ou pensarei no seu caso. Há também algumas salas de tortura que,
se necessário, terei o maior prazer de mostrar–lhe.
Minha vida a partir dali teria dois caminhos possíveis. Caso eu começasse
a desobedecê–lo, tentasse espiar os quartos secretos ou mesmo usasse os
fantásticos aposentos para evocações sem a permissão dele, eu passaria a
ter a função de “limpar as latrinas” e comparecer regularmente aos
aposentos escuros para sessões de tortura regulares.
Se eu decidisse me portar como uma boa menina, talvez passasse para

116
Guerra das Cores Perdidas

um quarto melhor no futuro, fosse autorizada a usar as salas de evocação


e a ver as salas secretas... e talvez pudesse até jantar naquela mesa
enorme da sala principal! Era um sonho distante, mas já era um sonho
um pouco maior do que um cobertor ou uma escova de dentes, como
nos velhos tempos.
Mas que eu estava dizendo? Era melhor eu esquecer luxos e me
concentrar no meu treinamento de magia. Dessa vez eu não ia sofrer,
pois me foi proporcionado o básico para uma vida bem confortável.
Restava saber o tempo que eu teria disponível para me dedicar à magia.
Provavelmente os demais escravos dele não tinham interesse por
ocultismo, mas eu era diferente. Expliquei a ele o quanto era importante
que eu tivesse um tempo livre considerável para praticar as operações
dos grimórios.
– Nesse caso, você pode ajudar Betah a cuidar do jardim pela manhã e
pela tarde. Terá a noite livre para as suas práticas.
Para mim parecia perfeito. Adorei o jardim e simpatizei com Betah assim
que a vi. Concordei que faríamos dessa forma. Eu começaria meu
serviço na manhã seguinte.
Eu não era autorizada a circular livremente pela casa. Tive que passar a
maior parte daquele dia no meu quarto. Aproveite para ler meus livros
enquanto tinha tempo. Mustse me prometeu que se eu trabalhasse
direito, dali a uma semana ele me deixaria ver o aposento em que havia
uma biblioteca, para que eu escolhesse alguns livros. Eram grimórios de
magia intermediária e essa informação me deixou muito empolgada. Isso
significava que eu já estava evoluindo na minha prática.
À uma da tarde a cozinheira bateu na porta do meu quarto e me trouxe
uma bandeja com um prato de comida e um copo de suco. Pela primeira
vez eu ia experimentar uma refeição de verdade naquele mundo.
E, realmente, era um prato maravilhoso. Isso significava que eu era
autorizada a comer as mesmas coisas que Mustse provavelmente
comeria, mas eu não tinha autorização de sentar–me à mesa.
De tarde resolvi que já era hora de tentar outra evocação de magia
cerimonial. Mas que animal eu iria sacrificar dessa vez? Aquela casa era
limpíssima. Decidi que eu tentaria capturar um pequeno animalzinho no
jardim no dia seguinte. Adiei a evocação para a próxima noite.
Eu queria muito poder sair daquele quarto, mas o máximo que eu podia

117
Juliana Duarte

era ir ao banheiro ou andar de lá para cá num corredor próximo. Mas eu


sabia que eu devia ter paciência. Mustse estava testando minha
capacidade de obediência.
Por isso resolvi usar a tarde para escrever no meu caderno de anotações:

“É surpreendente a virada que ocorreu na minha vida. Antes eu era uma prisioneira,
dormindo num chão duro de uma cela fria. Agora vivo no mesmo castelo do meu
captor. Talvez um dia eu seja autorizada a jantar na mesma mesa que ele, a ter
acesso aos fantásticos aposentos de evocações e às misteriosas salas secretas. É tudo
muito mágico. Amanhã começo a exercer minha função como auxiliar da simpática
jardineira Betah.
No entanto, a série de eventos que me trouxe até aqui foram muito tristes. Mustse,
com sua fera demoníaca, Lamue, matou cruelmente o anjo guardião da maga branca
Clarver, minha companheira de cela. Depois disso, as asas dela foram cortadas e ela
foi confinada ao calabouço. Eu me pergunto se ela ainda está viva. Enquanto ela está
lá agonizando, estou deitada numa cama macia, escrevendo nessas páginas. Mas esse
foi o destino que cada uma de nós escolheu. Talvez ela sofra agora, mas todo esse
sofrimento termine em breve. Pode ser que eu tenha conforto nesse momento, mas o
verdadeiro terror me aguarde no futuro, como resultado dessas escolhas.
Eu me pergunto por que estou fazendo todas essas coisas. Fiz isso por conforto? Por
medo? Por conveniência? Ou simplesmente por uma vontade genuína de aprender a
magia negra e de retornar ao meu mundo?
Não sei mais o que penso de Mustse. Eu odeio o fato de ele matar tanto,
principalmente pessoas especiais para mim. Ainda assim, assisto a tudo sem mover
uma palha. Eu sou uma pessoa assim. O fato de eu não ter poder para impedir é
razão suficiente para eu não fazer nada? Algumas vezes vejo Mustse como um pai
indiferente, como um mestre rígido, como um magista extraordinário ou como um
assassino frio e desgraçado. Eu me pergunto se o fato de ele ter entrado na minha vida
acabou com essa vida ou salvou–a. Seja como for, acredito que eu estaria mais feliz
ingressando na ordem monástica do meu mundo, com simplicidade e graça.
Agora que parei para pensar... como Mustse e Panl são parecidos! Nenhum deles
nunca pareceu se importar comigo realmente. Mas Panl já me salvou da morte,
enquanto o meu mestre quase me deixou morrer diversas vezes. Em compensação,
Mustse já me deu valiosas lições sobre magia enquanto Panl jamais me ensinou nada.
É melhor eu parar por aqui. Sinto–me mal ao comparar minha adorada irmã com
um assassino sanguinário”.

118
Guerra das Cores Perdidas

À noite, a cozinheira bateu na minha porta novamente para me trazer o


jantar. Agradeci a ela e comi mais uma refeição divina. Mas enquanto
comia aquela carne deliciosa, lembrei que o corpo da minha irmã já
estava reduzido a um cadáver, assim como o pobre animal no meu prato.
E a maga branca talvez não tivesse resistido. Grina, Zermer, aqueles
sacerdotes que eu desconhecia, que compartilhavam o sangue do meu
povo... e que talvez pudessem ter sido meus mestres de magia. Todos
mortos.
Era para eu estar morta também. Por que eu ainda estava viva? Por quê?
Senti mais lágrimas nos meus olhos. Resolvi chamar a cozinheira de
novo. Ela achou que eu não tinha gostado da comida, mas eu disse que
não era nada disso, que a comida estava deliciosa. Eu chorava porque eu
odiava Mustse e estava vivendo sob o mesmo teto que ele.
A cozinheira sentou–se na cama ao meu lado e tentou me consolar.
– Não se preocupe, querida. O senhor Mustse é sério e rigoroso e
algumas vezes realiza atos que não compreendemos. Ainda assim, ele é
nosso senhor. E o aceitamos da maneira como é. E assim sempre será.
Aquelas palavras não foram um consolo. Acredito que a cozinheira não
ia dizer o que realmente pensava por medo de ser punida depois. Fiquei
pensando nas palavras dela por um bom tempo. Parecia uma concepção
meio fatalista, como se fôssemos vítimas do destino. “As coisas são dessa
forma e não podemos fazer nada”. Eu me perguntava se isso era
verdade. Eu já havia me debruçado em torno dessa questão por muito
tempo, sem resposta.
Mesmo que eu me tornasse uma grande mestra de magia negra, a
esperança de superar Mustse era uma ilusão das grandes. Algumas
décadas de experiência jamais iam se comprar às centenas de anos de
magia que ele provavelmente tinha.
Tomei um banho quente e fui me deitar. Dessa vez eu tinha cobertores
suficientes para me manter aquecida e me permiti sentir uma pequena
felicidade por esse motivo.
Mas tive que despertar cedo da cama macia. Acordei às seis da manhã
para auxiliar a jardineira. Recebi um avental e pus as mãos à obra.
Diferente do que eu imaginava, ser jardineira não era apenas saltitar pelo
jardim para cheirar e regar as flores, dançando com as abelhas e

119
Juliana Duarte

borboletas. Envolvia um trabalho braçal duro. Era preciso aparar a


grama, cortar os arbustos, cavar e arar a terra, plantar, adubar, podar e
mais um monte de coisas que eu mal tinha energia suficiente para
concluir. Tive que parar para descansar algumas vezes. Eu não sabia
como aquela moça tinha tanta energia para ficar sob o sol forte o dia
todo. Aquele dia estava estranhamente quente e eu já estava suada.
Mas Betah era muito gentil. Ela disse que já estava acostumada a lidar
sozinha com todo o trabalho do jardim e que eu poderia fazer somente
as tarefas mais fáceis. E quando eu quisesse sentar para descansar ela
podia conseguir para mim uma limonada gelada com a cozinheira, pois
as duas eram amigas.
– O nosso patrão não exige que você trabalhe de verdade, por isso lhe
deu uma função simbólica como minha auxiliar. Acho que ele nos
colocou juntas para conversarmos. Você não é serva do castelo, é uma
convidada especial – e ao dizer isso ela sorriu.
Eu duvidava muito que Mustse fosse tão generoso. Por isso, resolvi
trabalhar o tanto quanto eu pude e neguei as limonadas. Se Mustse
ficasse sabendo sobre elas, ele poderia me punir depois.
Eu e Betah trabalhamos juntas por alguns dias e até então eu não tinha
encontrado nenhum pequeno animalzinho para sacrificar na minha
evocação. Mesmo assim, eu estava feliz em poder ser útil no jardim e as
flores me traziam alguma alegria para apagar as minhas memórias ruins.
Mustse soube que eu estava trabalhando duro o dia todo e que à noite eu
permanecia sempre no meu quarto e era obediente. Por isso, como
prometido, uma semana depois da minha chegada ele me mostrou a
biblioteca com material de magia intermediária. Ele me indicou alguns
livros. Achei tudo fantástico e agradeci muito. Eu teria cinco novos livros
para ler e iniciei a leitura naquela mesma noite.
Caso eu continuasse a ser obediente pela próxima semana, eu iria ganhar
uns utensílios diferentes de magia para as novas operações.
– Será algo simples, mas irá ajudar – ele explicou – você ganhará um
novo método divinatório, velas especiais feitas de gordura humana e sua
primeira varinha de metal cravejada de cristais.
Eu não fiz nenhum comentário sobre as “velas especiais”, mas fiquei
curiosa sobre o novo método divinatório e absolutamente fascinada pela
possibilidade de possuir minha primeira varinha de metal. Certos tipos

120
Guerra das Cores Perdidas

de metais eram fantásticos canalizadores de energia e eu mal poderia


esperar para ter uma varinha assim.
Ele também prometeu que, assim que tivesse um tempo livre,
passaríamos a nos reunir na sala de estudo de magia nos fins de semana,
para ele me dar alguns ensinamentos especiais em primeira mão.
Nos próximos dias eu comecei a me perder em pensamentos quando
olhava para as flores. Na minha mente havia apenas a imagem de uma
belíssima varinha de metal. Eu também visualizava uma misteriosa sala
própria para estudos teóricos de magia que eu ainda não conhecia.
Tudo estava maravilhosamente bem, até que a jardineira teve uma ideia
maluca.
Quando cheguei para trabalhar no dia seguinte, encontrei–a em trajes
exóticos de magia: um vestido roxo todo enfeitado, um chapéu de bruxa
e uma vassoura:
– Feliz dia das bruxas! – ela disse – Hoje é o dia em que todos os criados
do castelo se fantasiam assustadoramente para celebrar a ocasião. Os
cozinheiros também irão preparar pratos exóticos como abóboras
recheadas e sucos de tomate!
Como eu não estava entendendo nada, ela me explicou do que se tratava.
Naquele mundo havia uma data oficial para celebrar o ocultismo. Não
havia nada assim no meu mundo.
– Mas mesmo quem não pratica magia, também celebra a ocasião com
festas, doces e diversões – explicou a jardineira – o importante é celebrar!
Hoje o senhor Mustse está fora de casa a negócios então faremos a ele
uma surpresa. Iremos decorar a casa com temas assustadores, como
imagens de morcegos e fantasmas. Espalharemos velas no interior de
abóboras e eu e você temos a tarefa de preparar o jardim com luzes
roxas para quando o nosso patrão chegar à noite.
Topei o desafio. A costureira preparou para mim uma simpática fantasia
de bruxinha. Eu e a Betah parecíamos um par de vasos e rimos muito
naquele dia preparando a decoração. Todos estavam muito animados.
Eu e ela terminamos os preparativos antes do anoitecer e usamos o
tempo livre para pregar peças nos outros criados. Tentamos recolher
alguns doces, mas os que não tinham doces para nos dar eram
surpreendidos com brincadeiras. As cozinheiras se salvaram, pois tinham
vários doces sobrando. Mas não comemos muito para guardar espaço

121
Juliana Duarte

para a refeição principal que seria servida à noite.


Quando Mustse chegou, todos estavam animados. Nos escondemos
dentro da casa para recepcioná–lo.
Ao passar pelo quintal, ele percebeu que havia algo diferente. Na verdade
ele pareceu meio irritado ao constatar as luzes roxas que iluminavam as
árvores e eu comecei a desconfiar que aquela surpresa não daria tão
certo quanto planejávamos.
Quando ele abriu a porta, as luzes estavam apagadas. Tudo estava muito
silencioso. Ele caminhou com cautela pelo local.
No momento em que ele tocou no interruptor, todos saímos de nossos
esconderijos e demos um susto nele.
Mustse se assustou de verdade. Quase caiu para trás e teve que se segurar
num sofá com o desequilíbrio. Depois disso todos rimos, desejamos um
feliz dia das bruxas, oferecemos a ele kits com doces e a cozinheira
anunciou sobre o prato especial da noite.
Mas ele não achou engraçado. Estava extremamente sério. Não nos
deixou terminar de falar e nos xingou.
– O que é toda essa besteira? Ficaram loucos? Eu odeio essa data ridícula
em que as pessoas medíocres zombam da nobre e pura magia negra!
Exijo que removam imediatamente toda essa decoração estúpida. Joguem
no lixo todos esses doces e esse prato especial. Quero tudo em ordem
em cinco minutos. Removam essas fantasias. Vocês serão punidos pelo
susto que me deram, pelo dinheiro que desperdiçaram nisso e por me
fazerem perder tempo! Espero que os cozinheiros preparem outro jantar
nesses cinco minutos. Se o horário da janta for atrasado devido a essa
besteira, faremos uma brincadeira divertida para honrar a data:
selecionarei aleatoriamente um de vocês para a sala de tortura. Podemos
fazer na forma de sorteio para ficar mais emocionante.
Todos ficaram desapontados, mas acho que a maioria já esperava uma
reação do tipo. Só pelo fato de termos conseguido pregar um susto em
Mustse já valeu a pena todo o esforço e talvez até mesmo uma punição
na sala de tortura fosse pouca coisa. Era sorte alguém não ter saído
morto com a brincadeira. Se Mustse desconfiasse de assalto, devido às
luzes apagadas, era possível que estivéssemos reduzidos a corpos mortos
no chão.
– Já estou acostumado com a estupidez de vocês, por isso não ataquei –

122
Guerra das Cores Perdidas

explicou Mustse, pois aquilo certamente valia uma explicação.


Mas ele não estava de muito bom humor. Removemos toda a decoração
o mais rápido que conseguimos e trocamos de roupa. Felizmente os
cozinheiros conseguiram preparar uma nova janta para o horário
previsto.
Como punição, fiquei sem janta naquela noite. E depois Mustse
encontrou–se particularmente com cada um para aplicar um castigo pelo
susto e insubordinação.
Na vez da minha “entrevista” ele disse:
– Nada de presentes, nada de varinha. E também nada de aulas
particulares de magia. A partir de agora você irá trabalhar com a faxineira
limpando a casa e lavando os pratos após as refeições.
Sem escolha, tive que obedecer. Nas semanas seguintes tive que pegar no
pesado. Foi horrível. Passei a ter menos tempo ainda para praticar magia,
mas tive que me virar. Acabei passando algumas noites em claro para
conseguir tempo para o meu treinamento.
Pelo menos os escravos do castelo eram legais. Não sei como
conseguiam manter o bom humor tendo aquele patrão carrancudo. E era
curioso que Mustse tivesse contratado pessoas assim, sorridentes e
alegres. Será que no fundo ele gostava das “besteiras” que eles
inventavam? Ele só não tinha coragem de confessar. Talvez ele
precisasse de uma dose de elementos mundanos na vida para aguentar
portar–se daquele jeito.
Ele trabalhava muito. Raramente parava em casa; apenas nos fins de
semana. Mas mesmo nessas ocasiões ele permanecia trancado no
escritório.
Eu reclamava da minha vida, mas talvez a vida dele fosse até mais dura
que a minha: apenas trabalho, o tempo todo. E quando tinha tempo livre,
ele dedicava–se integralmente ao estudo e prática séria de magia.
Realmente, diversão era algo que não existia na vida dele.
Talvez o mais próximo de uma diversão para ele nos últimos tempos
fosse me treinar como sua discípula. Acredito que eu estava
correspondendo à altura as suas expectativas, pois eu era bastante
aplicada ao treinamento.
Uma vez resolvi reclamar que eu era obrigada a limpar a casa manhã,
tarde e noite. Assim eu precisava ficar sem dormir para ter tempo de

123
Juliana Duarte

treinar. Mas na mesma hora que eu reclamei, me dei conta de que ele era
mais atarefado que eu e ainda assim conseguia tempo livre para suas
práticas de magia e para me treinar.
– Teria como você me conseguir um emprego lá fora? – propus – Não
existem escolas também? Pessoas da minha idade não estudam por aqui?
– Há poucas pessoas de sua idade e você não se interessaria pelos
estudos mundanos das escolas. Sobre o emprego, posso pensar. Semana
que vem te dou uma resposta.
Eu agradeci. Uma semana depois, ele me informou que havia me
conseguido um trabalho. Que rápido! Ele devia ser muito influente.
– Como você não possui nenhuma especialização, se tornará a secretária
na minha firma. O salário não é muito, mas pelo menos você não
precisará mais servir de faxineira em troca de cama e comida.
Para mim estava perfeito. As escravas me emprestaram algumas roupas e
compareci ao meu primeiro dia de trabalho.
Eu sempre usava um chapéu ou boina para esconder o fato de eu não ter
chifres. Eu já estava falando bem a língua local e gostei do meu trabalho.
Era algo simples: fazer anotações sobre quem chegava, marcar horários e
reuniões, servir café... bem básico, mas era suficiente.
Um mês depois, com meu primeiro salário comprei algumas roupas
novas numa loja. Afinal, lá era um local respeitável e eu precisava me
vestir de acordo.
Aos poucos minha vida começava a fazer algum sentido. Eu cumpria
minha jornada de trabalho e à noite tinha um tempo para praticar magia.
Só tinham acontecido coisas positivas desde que eu comecei a morar
naquele castelo. As coisas ruins somente começariam a aparecer mais
tarde.

124
Guerra das Cores Perdidas

A Ira de Fiska

– Peguei!
Consegui capturar um pequeno lagarto que encontrei dentre os arbustos
no final do serviço. Mustse estranhou quando eu entrei no trem com o
lagarto, embora ele não desse muita bola para o que eu fazia. Algumas
vezes voltávamos no mesmo trem para casa, quando nosso fim de
expediente coincidia.
– É para o ritual de evocação – expliquei – hoje em dia acredito ter
poder suficiente para lidar com Fiska.
– Excelente. Nesse caso, use a sala de invocação número 10. Ela é boa
para operações envolvendo demônios menores. Faz décadas que não
entro naquela sala, mas, como todo o resto da casa, ela está
perfeitamente bem conservada e servirá aos seus objetivos.
Meu queixo caiu. Ele estava permitindo que eu usasse a sala de
invocação? Não dava para acreditar.
Quando chegamos em casa, ele resolveu me presentear com a famosa
varinha de metal, que ele tinha deixado guardada para me dar somente
quando julgasse apropriado. Já havia se passado vários meses desde que
ele me falou daquela varinha e era impressionante como eu a havia
imaginado: feita sob encomenda, do tamanho exato do meu braço. Não
era leve e nem pesada. Os cristais a embelezavam magnificamente.
Meu salário ainda não era suficiente para comprar utensílios elaborados e
caros. No entanto, se eu começasse a economizar, talvez um dia eu não
dependesse mais dos presentes de Mustse para obter o que queria.
Por outro lado, se um dia eu conseguisse alugar um pequeno
apartamento e me separar dele... eu não tinha certeza de que ele iria
permitir. Ele era o dono da firma em que eu trabalhava. Se ele quisesse
me demitir seria muito fácil.
Mas após conseguir adquirir alguns bens como roupas e coisas básicas
por minha conta e aprender bem a língua local, talvez não fosse
impossível eu obter um emprego simples.
Mustse via a minha independência financeira com certa cautela. Quanto
mais independente eu me tornasse, ele tinha menos poder sobre mim;

125
Juliana Duarte

menos autoridade para fazer chantagens. Eu notei que até o tratamento


dele estava diferente. Ele já me respeitava um pouco mais. Será que ele
temia que um dia eu simplesmente desaparecesse?
Eu ainda era dependente dele em relação à magia. Por outro lado, era
possível que em poucos meses eu já me tornasse qualificada para iniciar
um treinamento de magia avançada. Se eu aprendesse tudo o que
precisava sobre magia e tivesse uma renda mensal para me manter, seria
o momento de nossa separação.
Mustse sabia disso. Por isso ele fez uma pergunta estranha quando me
deu a varinha.
– Gostou?
– Claro – falei – adorei. Muito obrigada.
Ele parecia levemente inseguro. Era estranho vê–lo assim. Ou talvez
fosse apenas impressão minha.
Mas se ele achava que os luxos oferecidos por aquela casa iriam me
prender lá, ele estava enganado. Contanto que eu conseguisse sobreviver,
eu já poderia me mudar.
Parei de pensar nisso por um momento e me concentrei no ritual. Reuni
meus utensílios e me dirigi até a sala de invocação número 10. Fui
conduzida até lá por um dos criados. Eu já era tratada por eles como
“senhorita Barzz”. Como se eu fizesse parte da família do patrão ou algo
assim.
A sala escura era iluminada belamente por dezenas de velas que
repousavam em requintados castiçais. Um enorme círculo de proteção,
com símbolos arcanos, estava desenhado no chão. E lá fora havia
também o triângulo.
Trouxe meus utensílios para o interior do círculo. Antes de iniciar o
ritual, eu havia me preparado por algumas semanas e consagrado a nova
varinha por algumas horas.
Naquela noite eu vestia um lindo manto negro. Meus pés estavam
descalços. Lavei o rosto e as mãos com a bacia de água de lua e sequei–
me levemente com a toalhinha.
Com a varinha de metal em punho, tracei o círculo de proteção
magicamente, recitando os dizeres clássicos numa língua antiga. Sobre o
triângulo repousava a caixa de areia.
Depois foi o momento da meditação. Meu coração palpitava e

126
Guerra das Cores Perdidas

visualizações fantásticas surgiram em minha mente.


Quando me levantei, ergui confiante a espada em direção aos céus. Por
muitas vezes repeti os termos mágicos. A fumaça do defumar de rosas
era embriagante. Comecei a escutar alguns sons cortarem o ar.
Finalmente ergui a faca de cabo branco para realizar o sacrifício do
lagarto. Foi rápido. Ele logo parou de se mexer.
Não demorou muito para que eu conseguisse visualizar o corpo físico do
demônio. A belíssima Fiska mostrou–se diante de mim, mais sensual e
assustadora do que nunca, com sua pele alaranjada escamada, seus lábios
grossos e escuros, seu olhar aterrador e seus cabelos longos e
esvoaçantes.
Aquela visão fenomenal embriagou–me como veneno. Eu já não sentia
medo. A emoção era muito mais intensa.
– Fiska, demônio abissal – comecei – lembra–te eternamente desse rosto,
pois não mais te deixarei em paz. A mim irás servir. Ordeno que te
ajoelhes agora ou a mais severa punição te aguarda.
Eu não conseguia dizer coisas muito assustadoras. Minha capacidade de
intimidar não era o meu forte. Se fosse Mustse, provavelmente ele seria
capaz de dominá–la apenas com o olhar. Afinal, o demônio sentia o que
se passava no coração e na mente do operante. Não havia meios de
esconder.
– Recordo–me de teu rosto – respondeu–me Fiska – és o ser estranho
semelhante a uma árvore. Muito evoluiu desde nosso último encontro,
mas ainda assim é pouco. Precisarás de mais que isso para ter a mim.
Talvez fosse necessário eu começar a sacrificar animais maiores ou
torturá–los mais no momento da morte. Seria esse o segredo do grande
poder de Mustse?
Fiska tentou sair de dentro do triângulo, mas apontei–lhe a espada. Ela
me fitou firmemente. O olhar dela me causou uma sensação
desagradável. Uma grande dor no peito.
Senti–me tonta. Caí de joelhos no meio do círculo, mas continuei a
empunhar a espada, com confiança.
– Não resiste! – gritei – Eu não temo! Aceito essa dor. Aceita então o teu
destino!
Fiska deu uma poderosa risada.
– Tu mentes! Existe medo em teu coração e eu posso vê–lo! O medo da

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Juliana Duarte

finitude da vida!! – gritou ela.


Ela envolveu–se em chamas. O metal da empunhadura da espada que eu
segurava começou a esquentar, até que eu não era mais capaz de erguê–
la.
Lancei a bacia da água de lua sobre ela. Ela fez uma careta de dor, mas
logo tornou a encher–se de fogo.
Eu não sabia o que fazer. Não era mais capaz de erguer a espada. Tentei
empunhar a varinha de metal, mas ela também estava quente como o
inferno.
Meu corpo suava. Eu não conseguiria suportar por mais tempo. Estava
prestes a desmaiar.
Por fim, Fiska libertou–se do triângulo e começou a voar pela sala,
envolta em chamas, queimando tudo. Ela derrubou as velas sobre as
cortinas, que começaram a incendiar.
Ainda assim, ela não era capaz de penetrar meu círculo mágico de
proteção. Coloquei as mãos sobre o chão para fortificá–lo, enquanto ela
tentava quebrá–lo.
Mas não adiantava. Eu iria morrer queimada. Já nem conseguia respirar
direito.
– Aceita um pacto! – propôs Fiska, com um sorriso – Irei salvar a tua
vida agora. Porém, terás que me trazer um ser humano para ser
sacrificado no altar em minha honra.
– Nunca! – gritei; eu já havia aprendido que não adiantava aceitar as
sugestões dos demônios: o operador quem devia ameaçar e não ser
ameaçado.
Eu não teria poder para controlar Fiska e estava prestes a morrer. Então
ou eu aceitava a oferta dela ou eu morria. Ou...
– Socorro!! Mestre! Socorro!
Ou eu realizava a coisa mais óbvia e covarde que poderia fazer.
Ele chegou a tempo e arrombou a porta. Mustse abriu um portal dentro
do meu círculo de proteção. Com o próprio punhal evocou um demônio
diferente de Lamue. Era uma entidade com poder médio, relacionada à
água.
Ele dominou Fiska muito facilmente. Em seguida ela havia sumido,
assim como qualquer traço de fogo no ambiente. Mas já era tarde: os
castiçais estavam caídos no chão, as velas consumidas e as cortinas

128
Guerra das Cores Perdidas

carbonizadas, assim como alguns quadros nas paredes. A beleza da sala


estava arruinada.
– Obrigada mes...
– Da próxima vez, eu deixo você morrer, ouviu?! Deixo morrer! – ele
gritou.
Ele estava irritado de verdade.
– Me desculpe pelas cortinas – eu disse, de cabeça baixa.
– Não me importa as cortinas! Você não sabe fazer nada sozinha? Nessa
etapa de seu treinamento, eu esperava que você já tivesse poder
suficiente para dominar um dos demônios mais fracos da hierarquia!
– Eu dei o meu melhor, mas comecei a me sentir mal...
– Os demônios brincam com nosso psicológico, o que provoca
alterações físicas. Você precisa controlar as suas emoções para evitar
coisas do tipo. Não vou mais autorizar que use minhas salas. Elas não
são dignas de alguém que não domina nem mesmo magia básica. Acho
que fui um pouco precipitado ao te emprestar livros de magia
intermediária para ler.
Eu me sentia humilhada. Era um fracasso completo e merecia aquele
sermão.
Por esse motivo, me esforcei muito nos dias seguintes. Todo dia eu trazia
um inseto diferente para casa. Eu o sacrificava no meu quarto para tentar
lidar com Fiska e passei por vários momentos desagradáveis.
Numa ocasião fiquei de cama e não pude nem mesmo ir ao trabalho por
causa do enjoo e dor de cabeça. Sofri duas queimaduras leves e uma
queimadura de segundo grau. Teve até uma ocasião em que perdi o
controle da minha espada e cortei a mim mesma. Fiska estava tentando
controlar os meus movimentos. Mas eu jamais iria me submeter a ela.
Até que finalmente consegui dominá–la. Nesse dia sacrifiquei um
pássaro. Derramei algumas lágrimas no momento do sacrifício, mas me
mantive firme. Fiska leu meu coração e impressionou–se pela quantidade
de emoções que havia em mim devido à morte do passarinho. Ela foi
distraída pelo debate filosófico e enquanto zombava de mim aproveitei
para controlá–la.
Para isso usei uma técnica de magia do gelo que Grina me ensinou.
Treinei–a sozinha por um tempo para possuir controle sobre ela. Minha
espada tornou–se extremamente gelada. Minha mão ardia ao segurá–la,

129
Juliana Duarte

mas quando Fiska lançou–me seu ar de fogo a espada descongelou–se e


manteve uma temperatura amena.
Concentrando–me na magia do gelo pude manter a temperatura da
espada estável. Dessa forma, eu jamais a largava. E minha insistência e
vontade intimidaram Fiska pela primeira vez. Ela jamais seria capaz de
derrubar aquela espada da minha mão.
Aquilo tudo durou uma hora. Meus braços doíam, era difícil também
manter–me em pé, mas fui forte. Por fim, Fiska não mais suportava o ar
gelado da minha energia. Ela tentou ir embora do triângulo, mas eu não
permiti que ela se retirasse. Ela começou a sofrer tanto que aceitou
submeter–se a mim para livrar–se do sofrimento.
Estendi a varinha e fiz com que ela segurasse numa das pontas e jurasse.
– Tu irás me servir. Por um tempo indeterminado eu te chamarei, até que
eu te liberte ao encontrar um novo servo. Mas mesmo que mil demônios
eu chame, jamais te esquecerás desse pacto. Deverás estar pronta a
atender ao meu chamado e surgir em um segundo após minha evocação.
Eis o selo eterno que estabeleço nesse instante.
– Aceito tuas palavras; sinto tua grandeza e vontade. Mestra Wain, nosso
pacto está concluído. No entanto, para que a minha aparição se
concretize sempre irei requisitar um sacrifício animal.
– Assim será.
Concluída a conjuração, permiti que ela se fosse. Após o processo,
desmaiei. Quando acordei, eu estava deitada na minha cama, aos
cuidados da camareira. Mustse foi avisado que eu despertei e foi até lá
também.
Contei–lhe que dominei Fiska e a ordenei a jurar obediência. Mas ele
ainda teve motivos para me criticar:
– Você aceitou muito rápido a proposta dela sobre o sacrifício animal.
Você me vê sacrificar um bicho cada vez que realizo uma evocação?
– Não...
– Então você cometeu um erro. Agora estará presa a essa promessa e
limitação. Comece a sempre andar com um animal no bolso. Para quem
era contra assassinatos, você terá um grande peso para carregar,
habitante do Mundo Cinza, defensora dos animais totem...
Aquelas palavras me ofenderam profundamente. Ou eu aguentava esse
fardo ou eu libertava Fiska de seu juramento e tentava evocar outro

130
Guerra das Cores Perdidas

demônio. Mas não era assim fácil. Era complexo obter uma aparição
desse porte. E levava tempo e sacrifício até chegar a uma conjuração. Era
melhor eu deixar as coisas como estavam e somente libertar Fiska
quando eu obtivesse um demônio mais forte.
A promessa da magia intermediária era dar–me poder para eu controlar
um demônio de porte médio. A partir dali seria o momento de
concentrar–me nas leituras dos grimórios e nas novas operações.
– De qualquer forma, foi uma conquista importante – acrescentou
Mustse – e bem no dia do seu aniversário, se é que isso simboliza alguma
coisa para você.
Ele havia me elogiado ligeiramente. E também lembrava que aquele era o
dia do meu aniversário de quinze anos.
– Quer ir jantar fora para comemorar? – sugeriu Mustse – Já que você
dedicou o dia para uma atividade tão nobre, talvez queira realizar algo
inútil e mundano como um jantar. Caso a sua condição física permita...
– Claro! Eu me sinto ótima – acrescentei, embora ainda sentisse uma
leve tontura – podemos sair para jantar sim. Vou apenas tomar um
banho e me trocar.
– Encontre–me na sala principal quando estiver pronta.
Eu mal podia acreditar. Escolhi o vestido mais arrumado que eu tinha
para sair à noite. Escovei os cabelos, passei um batom e observei–me no
espelho. Eu estava bonita.
Encontrei Mustse na sala. Ele estava como sempre, afinal, ele sempre
vestia roupas elegantes não importava a ocasião: jantares, ida ao trabalho,
até mesmo em casa. Até então eu nunca o vira com roupas informais.
Até porque eu não tinha permissão para me aproximar dos aposentos
dele.
Fomos de carro. Um veículo extremamente chique. Tinha até motorista.
– Por que você vai ao trabalho de trem se possui um carro e um
motorista particular? – resolvi perguntar.
– Gosto de trens. Sempre chegam no horário. No dia que eu enjoar
deles, passarei a andar de carro.
Então ele não odiava totalmente contato com as pessoas. Era verdade
que os trens não eram lotados, mas de vez em quando se via alguns
passageiros indo para aqueles lados da cidade.
Chegamos ao restaurante. Eu não imaginava que haveria mais dois

131
Juliana Duarte

presentes à mesa...

132
Guerra das Cores Perdidas

Demônios

Era um dos estabelecimentos mais chiques da cidade: um restaurante de


frutos do mar. Havia uma mesa reservada para nós. O garçom nos deu
os cardápios.
Antes que fizéssemos os pedidos, eu disse:
– Eu gostaria de te fazer uma pergunta importante.
– Vá em frente – disse Mustse.
Tomada de coragem, perguntei:
– Clarver está viva?
Ele não entendeu.
– Quem é Clarver?
– A maga branca – respondi.
– Ah. Não costumo ter interesse em conhecer o nome dos meus
inimigos. Sei somente os nomes dos demônios que evoco, pois são meus
aliados.
– Você não respondeu a minha pergunta.
– Sim, ela ainda está viva, infelizmente. E não vou permitir que a visite.
Mais alguma pergunta?
– Por enquanto não.
Voltei meus olhos para o cardápio. Se ele pensava que poderia continuar
a me proibir as coisas, estava muito enganado.
Nós dois fizemos os pedidos. Seria a primeira vez que iríamos jantar na
mesma mesa. Com exceção daquele encontro no bar em que somente
bebemos e eu não conseguia pensar em outra coisa que não fosse o
banheiro.
– Estou pensando em ir embora em breve – resolvi dizer, para ver a
reação dele – acho que já lhe causei problemas demais.
– Ir embora? Como assim?
– Sair pela porta e dizer adeus – expliquei – estou juntando dinheiro para
alugar um apartamento. Não acho justo eu morar na sua casa, sendo que
não sou parente e nem nada. Já abusei demais de sua generosidade.
– Se é assim, não haverá mais razões para você trabalhar na minha firma.
– Eu já esperava que você dissesse isso. Uma amiga do trabalho me

133
Juliana Duarte

indicou um lugar em que estão contratando. O emprego é de


recepcionista num consultório. Vou fazer a entrevista. Mas como sou
amiga da irmã da médica, o emprego é quase garantido.
– Entendo – ele disse – bem, eu não tenho nada a ver com isso. Faça o
que quiser. Vire–se sozinha em seu estudo de magia também.
– É o que pretendo fazer. Acredito que já tenho uma boa base.
O garçom nos trouxe as bebidas. Pedi um suco de laranja e ele pediu um
vinho.
Por um momento apenas bebemos em silêncio.
– Mas por que isso de repente? – ele perguntou – Tem alguma razão? O
conforto da minha casa não é suficiente? O trabalho não lhe agrada?
Você pode se mudar para um quarto melhor. Posso te conseguir um
emprego com salário maior também. Vou começar a providenciar isso a
partir de amanhã.
Foi bem impressionante vê–lo dizer aquelas coisas. A situação tinha se
invertido. Antes era ele quem estabelecia as condições.
– Não é isso – falei – é que eu me sinto presa. Dependo de você para
quase tudo e sempre preciso pedir permissão para fazer alguma coisa.
Não me sinto confortável com isso. Quero ser independente.
– Mas você já é. Na verdade eu ia te falar sobre a mudança de quarto
hoje mesmo. Esperei a ocasião do seu aniversário para dar a notícia.
Afinal, como você disse, há muitos quartos grandes sem uso. Você
poderá escolher o que lhe agradar mais.
Opa. Qualquer um? Provavelmente eu também teria permissão para usar
aqueles banheiros luxuosos com banheiras gigantes. Seria o paraíso.
– Apesar disso, não tenho permissão de andar pela casa, nem mesmo
para pegar um copo d'água na cozinha – acrescentei – você me proibiu
de usar as salas de invocação, tem um monte de salas secretas que não sei
o que há dentro e jamais pude me aproximar dos seus aposentos ou do
seu escritório.
– Você está enganada. Eu te proibi de usar as salas de invocação
enquanto você não realizasse o pacto. Agora que o completou, terá livre
acesso a elas. Com exceção da sala de invocação 1, que é minha sala
pessoal.
A situação estava cada vez mais estranha. Ele fazia tanta questão assim
que eu permanecesse na casa? Resolvi verificar até que ponto ele cederia

134
Guerra das Cores Perdidas

para me manter lá.


– Então poderei pegar água na cozinha quando quiser sem ter que pedir
autorização para as cozinheiras? – perguntei, para me certificar.
– Claro. Poderá caminhar por todo o castelo. Quanto às salas secretas, eu
irei te mostrar quando você estiver preparada.
– Posso ver uma amanhã?
– Vou pensar nisso.
– E sobre o seu escritório e o seu quarto? – resolvi perguntar.
– Eu não gosto de ser perturbado – ele disse – somente vá lá se for
urgente. E bata na porta antes. Não se esqueça, isso é muito importante.
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Eu tinha acabado de
receber acesso quase irrestrito a todos os aposentos da casa. O dia
seguinte seria um sábado; o dia ideal para eu iniciar a minha exploração
dos aposentos. Eu iria me divertir bastante.
– Hoje à noite quando voltarmos, irei informar aos empregados sobre
sua permissão de acesso a certos aposentos. Aproveitaremos para realizar
a sua mudança de quarto.
– E sobre o novo emprego?
– Amanhã realizarei umas ligações. Acredito que até segunda estará tudo
decidido.
– Poderei jantar na mesa principal com você?
– Não vejo porque não.
Pronto. Em apenas um dia eu havia recebido tudo o que desejava. Se eu
soubesse que seria assim tão fácil, eu teria ameaçado me mudar antes. Ou
tudo aquilo era somente porque eu tinha obtido a conjuração de um
demônio?
– Eu gostaria de ver Clarver – arrisquei pedir.
– Isso não. Não posso permitir.
– Qual o motivo para isso?
– Nada de bom virá desse encontro.
Era melhor eu não insistir muito antes que ele resolvesse voltar atrás nas
outras promessas. Mais adiante eu tentaria conversar sobre isso de novo.
– Por que faz tanta questão que eu continue na sua casa? – essa era a
pergunta de um milhão de dólares.
– Já perdi muito tempo treinando você para que desista no meio do
treinamento.

135
Juliana Duarte

– Se eu morar em outro lugar, você ainda poderia ser meu mestre.


– Não seria a mesma coisa. Seria um treinamento superficial e
incompleto. Se for para fazer pela metade, prefiro não fazer.
A resposta me convenceu.
– Conte–me mais sobre Lamue – sugeri – gostaria de saber mais sobre
ele.
– Você pode conversar diretamente com ele se desejar. Agora você é
capaz.
– Não entendo.
– Basta ambos invocarmos os nossos demônios. A conversa ocorrerá
entre eles. Fiska lhe comunicará cada resposta de Lamue.
– Mas isso não consome muita energia? – perguntei – E o que irei
sacrificar?
Mustse chamou o garçom.
– O que deseja, senhor? – perguntou o garçom.
– Desejo uma lagosta viva – informou Mustse.
– Perdão?
– Basta servir–me o prato tradicional da lagosta com os vegetais frescos.
Mas eu prefiro que a traga viva.
– Claro, senhor.
Quando o garçom se retirou, Mustse me disse:
– O cliente sempre tem razão. Mais alguma coisa?
– Espere aí – falei – você quer que eu realize uma evocação aqui? No
meio do restaurante? E você pretende evocar o seu assassino comedor
de tripas para esse local cheio de “carne fresca” para a sua mascote
comer?
– Contanto que não haja praticantes sérios de ocultismo aqui nesse
restaurante, não haverá nenhum perigo.
Os nossos pedidos chegaram, assim como o prato com a lagosta viva.
– Bom apetite, senhores – falou o garçom – espero que a lagosta esteja
do seu gosto.
– Ah, com certeza está – confirmou Mustse – ela parece bem saudável.
Eu não sabia que o meu mestre era um piadista. Mas como eu ia traçar
um círculo de proteção na frente de todo mundo?
– Eles não vão estranhar se duas pessoas se materializarem na mesa? –
perguntei.

136
Guerra das Cores Perdidas

– Podemos evocá–los embaixo da mesa ou no banheiro.


Optei pelo banheiro, pois seria mais discreto. Só foi estranho eu levar o
prato de lagosta até lá.
Entrei no banheiro feminino, tracei o círculo de proteção e dei início à
evocação. Após o sacrifício da lagosta, Fiska surgiu como prometido.
Pedi para que ela cobrisse o rosto com o capuz e voltamos à mesa.
Quando voltamos, lá estavam Mustse e Lamue. Somente fitar a face de
Lamue e principalmente aqueles olhos ameaçadores já me fez sentir um
arrepio.
Mustse começou a se servir. Resolvi imitá–lo e provei a comida. Os dois
demônios apenas continuavam sentados ao nosso lado, em silêncio. Eu
não estava exatamente à vontade com aquela fera bestial sentada à minha
mesa.
– Você pode fazer alguma pergunta a Lamue – informou Mustse –
quando desejar.
– Gostaria de saber se ele está satisfeito em ter você como mestre – eu
disse.
– Uma pergunta perigosa, mas vá em frente.
Fiska e Lamue se comunicaram mentalmente. Mustse também se
concentrou para captar a resposta.
– Ele disse que está satisfeito – respondeu Mustse – simplesmente
porque se o operador mostra–se digo de dominá–lo, então também
provou ser digno de ser um mestre.
– Existe um demônio mais poderoso que Lamue?
Novamente, Mustse concentrou–se para escutar a resposta.
– Ele disse que houve no passado, mas devido às grandes guerras a
maioria deles exterminou uns aos outros. Pode haver algum ser de outra
ordem de maior poder, mas não um demônio.
Aquilo era bem impressionante. Finalmente eu entendia o interesse de
Mustse nas outras raças. Ele já era possivelmente o mago mais poderoso
de seu mundo, ou ao menos aquele que possuía o controle do demônio
mais forte. Ele buscava um adversário à altura em outros universos.
– Qual o pacto que prende Lamue ao seu senhor?
– Não vou permitir que você pergunte isso – falou Mustse – isso é entre
mim e ele.
Eu já esperava essa resposta. Lamue também se recusaria a responder

137
Juliana Duarte

uma pergunta não autorizada por seu mestre.


– Minha vez – falou Mustse – Fiska, qual a maior fraqueza de sua
mestra?
– Isso não é justo – falei – você jogou sujo. Vou devolver essa pergunta
depois.
Prestei atenção para receber a resposta de Fiska.
– Ela disse que minha maior fraqueza é meu respeito aos animais; que,
curiosamente, também é minha maior força.
– Eu sei o que ela quer dizer – falou Mustse – você está presa a isso
devido ao passado de seu povo. Os sacrifícios animais que a magia negra
te exige são exatamente o contrário do que lhe foi ensinado. É esse
choque de ideais que te impede de realizar uma evocação maior. E tal
conflito psicológico pode vir a gerar um poder psíquico tremendo.
– Agora Lamue deve dizer qual sua maior fraqueza. E não aceitarei
“chifres” como resposta. Quero algo mais específico. Uma fraqueza
psicológica.
Lamue deu a resposta. Mustse interpretou.
– Ele disse que minha maior fraqueza é a confiança nas outras pessoas.
Só podia ser brincadeira. Eu nunca tinha visto alguém mais desconfiado
que ele. Ele evitava se aproximar dos outros somente para não ser traído
depois.
– Lamue uma vez profetizou que a minha confiança em você será a
causa da minha ruína.
Levei um grande susto ao ouvir isso.
– Isso é absurdo – falei – eu nunca serei mais poderosa que você. E você
sabe disso. Somente se eu adquirir vida eterna e você parar de praticar
magia. Você controla o demônio mais poderoso! Que chance eu tenho?
– Poderá vir a usar outro sistema. Com a magia negra talvez não tenha
chance. E obviamente com aquela sua magia inútil dos animais, menos
ainda. Você não tem contato com outros tipos de magia, mas...
– A maga branca – lembrei – é por isso que você me proíbe de vê–la.
Por esse motivo você matou o anjo dela.
– Acredito que matar a maga branca não neutralizará a profecia.
– Então pergunte para Lamue se existe um meio de neutralizá–la.
Lamue deu sua resposta.
– Ele disse que sim – falou Mustse – e isso dependerá exclusivamente de

138
Guerra das Cores Perdidas

você. A escolha será sua.


– Você quer dizer que tenho sua vida em minhas mãos?
– Ao que parece.
– Por que não me mata? Por que não me deixou ir embora para viver
uma vida medíocre no seu mundo? Óbvio que não terei contato com
outras magias vivendo dessa forma.
– Essas profecias costumam ser fatalistas – explicou ele – mesmo que
você seja capaz de matar todo mundo envolvido, ela acaba ocorrendo
devido a algum acontecimento absurdo.
– Mas ao tomarmos conhecimento da causa, o destino não se altera? Se
não há como interferir, qual o sentido em saber o dia de sua morte?
– Se eu soubesse que isso aconteceria, eu teria te matado naquele dia no
seu mundo, junto com sua irmã – falou Mustse.
– Então me mate agora! – exclamei – Não vai aparecer nenhum deus
para segurar a sua mão se você fizer. Lamue já está aí ao seu lado. Basta
ele jogar um daqueles papéis em mim que eu morro instantaneamente. E
assim a profecia não se realizará.
– Você não teme a morte?
– Sim, eu temo – confessei – mas eu não quero te matar. Eu me sentiria
uma traidora depois de tudo o que você me ensinou. Admito que meu
povo fez muito por mim, meus pais me proporcionaram a sobrevivência
de meu corpo e me deram amor, mas você me levou à evolução da alma.
Sei bem onde deve estar a minha lealdade. Embora você tenha matado
pessoas especiais para mim, nenhuma delas me deu um treinamento
espiritual tão bom quanto o seu.
– Aparentemente, sua opinião mudará no futuro – ele disse.
Mustse sentia–se inseguro e isso era incrível. Mesmo com aquela besta
de sete chifres ao seu lado. Por que ele não me matava, afinal?
– Não pense que vou deixar de matá–la por compaixão – disse Mustse –
estou ansioso para ver o seu desenvolvimento espiritual de perto. Por
mais estranho que pareça, eu prefiro uma vida curta de acontecimentos
extraordinários do que uma vida eterna de tédio. Tenho procurado por
alguém poderoso há décadas. Já está na hora de alguma coisa acontecer.
– Essa não sou eu, tenho certeza disso – falei – ele disse que sua
confiança em mim será a causa da sua ruína. Isso não significa que eu
serei mais poderosa que você. Pode significar muitas coisas.

139
Juliana Duarte

– Seu desenvolvimento é promissor. Lamue me contou que ele sente


energias poderosas nos outros mundos. Nesse momento há alguns
indivíduos extraordinários em todos os mundos existentes. Gostaria de
conhecê–los. De matá–los ou de ser morto por eles. Sua irmã teve um
fim digno. Ser morto por um ser superior é uma honra.
– Só você acha isso. Porque você é louco. Vai deixar de me matar só por
curiosidade de ver o que acontece...
Comecei a sentir um pouco de dor. Mesmo que Fiska não estivesse
usando poderes, a mera presença dela já consumia muita energia. Avisei
Mustse que eu estava me sentindo mal.
– Então vamos permitir que partam por enquanto. Também me sinto
um pouco cansado.
Voltei ao banheiro e realizei o ritual para que Fiska se retirasse. Quando
retornei, claro que Mustse já estava na mesa me esperando. Ele
conseguia fazer aquelas coisas num piscar de olhos, mesmo envolvendo
demônios de alto grau.
– Você não quer me falar sobre o pacto por medo que eu use isso contra
você um dia? – perguntei, astutamente.
– Não revelo simplesmente porque não é da sua conta.
– Então, onde está o meu presente? – perguntei.
– Estou pagando o seu jantar nesse restaurante burguês. Esse é o
presente. Sem contar as concessões referentes ao seu acesso aos
aposentos, seu novo quarto e tudo o mais.
– Quando é seu aniversário?
– Eu não sou louco de dizer. Odeio pessoas me perturbando nesse dia.
Se os criados já fizeram aquele palhaçada no dia das bruxas, prefiro não
imaginar o que fariam no aniversário se soubessem a data.
– Se Lamue ainda estivesse aí eu perguntaria para ele.
– Eu não iria permitir a pergunta.
– Vou perguntar para seus pais. Onde eles moram?
– Eu já disse que os matei. Não acredito que esqueceu. E mesmo que
não tivesse matado, eles não estariam mais vivos agora de qualquer
forma.
– Ah, que pena...
– Ainda tenho uma carta na manga para você me obedecer. Ainda posso
matar seus pais.

140
Guerra das Cores Perdidas

Preferi não comentar. As conversas que ocorriam entre nós sempre eram
meio insanas. Bem, alguém que levava um prato de salada com uma
lagosta viva para um banheiro de restaurante com a intenção de evocar
um demônio não poderia ser levado a sério. Pelo menos não foi ideia
minha.

141
Juliana Duarte

As Salas Secretas

Acordar numa enorme cama macia com lençóis de cetim e travesseiro de


plumas tinha sido a melhor coisa que me acontecera nos últimos tempos.
Com exceção de minha conquista da conjuração, que superava qualquer
outra vitória mundana.
Na noite anterior, quando retornamos, passei as coisas do meu quarto
antigo para meu novo quarto de princesa. Era perfeito, repleto de
diferentes tonalidades azuis. Era como o aposento de um anjo.
Eu vestia uma camisola azul e pantufas que achei no guarda–roupa.
Assim que acordei, saí para explorar a casa pela primeira vez, mesmo
morando lá há quase um ano.
Minha primeira parada foi na cozinha. Peguei algumas frutas da fruteira
para que fossem meu café da manhã. Olhei no relógio: eram seis da
manhã, mas eu estava tão ansiosa que não queria perder nem um
segundo do dia.
Assim que terminei de comer, fui analisar todas as salas de invocação.
Elas eram primorosas! Pensei em espiar a sala 1, mas não tive coragem.
Decidi que faria isso outro dia. De qualquer forma, ela devia estar
trancada à chave. Eu não queria arrumar problemas por enquanto e fazer
Mustse mudar de ideia sobre a minha nova liberdade.
Eu não precisava de mapa para me guiar, pois eu havia sido obrigada a
decorá–lo desde o primeiro dia em que pisei naquela casa.
Visitei as salas e quartos. Eu nunca tinha visto tanta beleza e riqueza
numa casa. E todos os aposentos eram belamente decorados por
símbolos, utensílios, móveis e imagens de ocultismo. Um dia eu pediria
para que Mustse me explicasse com mais detalhes o significado de tudo
quando fizéssemos um tour pela casa toda, pois o nosso primeiro tour
foi bem curto. Não tive acesso nem a metade do castelo na ocasião.
Mas o local que eu mais queria ver eram as salas secretas. Eram dez ao
todo, mesmo número dos aposentos de invocação. Eu sabia que uma
delas era a sala de tortura, mas sobre o resto eu não fazia ideia. E algo
me dizia que devia haver mais locais escondidos que não constavam no
mapa. Talvez eu pudesse tentar encontrá–los.

142
Guerra das Cores Perdidas

Com o coração acelerado, fui até a parte do castelo em que se


localizavam as salas secretas. Elas possuíam portões enormes com
trancas douradas. Deviam ter o teto muito alto, eram diferentes dos
outros aposentos. Aquela área era mais fria que o resto do castelo. Tive
um pouco de medo ao sentir aquele ar gelado; uma sensação ruim. Será
que as salas escondiam cadáveres ou pessoas semimortas ali dentro?
Vindo de Mustse, eu já não duvidava de nada.
Como eu não poderia entrar, não haveria mais nada a fazer ali.
Resolvi ir até a torre pessoal de Mustse. Era melhor ter cuidado
redobrado. Andei em passos lentos, atenta ao menor movimento.
Cheguei até o escritório de trabalho. Bati na porta e aguardei. Como não
houve resposta, entrei.
Era uma sala impressionante, repleta de estantes com livros. Num canto
havia uma escrivaninha e uma cadeira de estofado macio.
Primeiro analisei os títulos dos livros, mas todos pareciam muito chatos.
Tinham temas políticos e econômicos, ou seja lá o que Mustse fazia. Um
ditador vitalício devia ter que lidar com todos os tipos de assuntos
relacionados àquele mundo.
Sentei–me na cadeira confortável e analisei o monte de papéis em cima
da escrivaninha. Não entendi quase nada do que estava escrito e eu
também não me interessava.
Havia alguns quadros intrigantes nas paredes, meio macabros. Fora eles,
não havia nada de muito empolgante no escritório, então resolvi sair.
Encontrei também um banheiro. Devia ser o maior da casa. Estava vazio
e perfeitamente limpo. Olhei da porta, porque eu não tinha o hábito de
investigar banheiros. Não tinha nada interessante lá, tudo muito comum,
arrumado. Não encontrei nenhuma toalha colorida ou patinho de
borracha.
Por fim, havia o único aposento da casa que eu não investigara de fato,
com exceção da sala de invocação 1 e das dez salas secretas: o quarto de
Mustse.
Será que eu devia entrar lá? E se ele estivesse dormindo? Eu não sabia se
ele estava em casa. Torcia para que não estivesse, para eu poder observar
tudo com mais calma.
Resolvi bater na porta, como ele me ordenou. Como não houve
resposta, entrei.

143
Juliana Duarte

Era um aposento majestoso. Como o quarto de um rei. Mas do rei da


morte, pois tudo lá dentro era na cor negra e vermelho–sangue. Não
duvidei que as decorações elaboradas fossem de ouro puro.
Comecei a investigar e meu coração deu um salto quando percebi que
Mustse estava dormindo na cama, embaixo dos lençóis. Ele não escutou
minha batida.
“Saia agora!” pensei, com urgência. Talvez ele não fosse me matar se me
flagrasse, mas ele tinha dito que naquele dia me mostraria uma das salas
secretas e eu torcia para que não fosse a sala de tortura.
Mas minha curiosidade foi maior e continuei analisando o quarto.
Bastava fazer silêncio que eu conseguiria sair dali sem ser descoberta.
Havia um enorme quadro de um horrível demônio, provavelmente em
sua forma verdadeira “cheio de deformidades e tortuosidades”. O
quadro estava na parede logo acima da cama. Cortinas vermelhas e
negras cobriam as janelas.
Abri as gavetas do criado mudo em busca de alguma coisa interessante.
Mas havia apenas livros e papéis. Em cima de tudo repousava um
despertador que tocaria às sete horas. Ainda faltavam vinte minutos,
então eu teria tempo.
Os livros da cabeceira eram de ocultismo. Em especial, encontrei um
grimório publicado e escrito pelo próprio Mustse. Descobri o nome
verdadeiro dele: Jodu Feybar Mustse. Então Mustse era um sobrenome...
Eu me perguntava também se aquele era o nome verdadeiro dele ou o
nome mágico. Quem mexe com ocultismo geralmente usa dois nomes e
um deles fica secreto. Quem o descobre, ganha poder sobre o mago. Eu
duvidava muito que ele fosse publicar seu nome mágico no livro. Aquele
devia ser o nome de batismo.
Folheei as páginas do livro. Era magia avançada, obviamente. Eu jamais
tocara em um exemplar de magia avançada antes. Quase tive medo. Vi
apenas algumas figuras: uma mais horrível que a outra, envolvendo
mutilação, morte, tortura... resolvi fechar o livro, pois era forte demais.
Até os termos usados eram de arrancar os olhos. Deixaria qualquer um
louco. Realmente, era preciso ter muita sanidade e controle psicológico
para mexer com aquele tipo de coisa.
Encontrei também um tipo de diário. Eu não podia acreditar que Mustse
era o tipo de pessoa que escrevia diários.

144
Guerra das Cores Perdidas

“É um diário de magia, idiota”. Quase me esqueci desse detalhe. Todo


mago deve manter em dia suas anotações sobre o progresso mágico.
Tentei procurar se havia alguma anotação envolvendo o meu nome, mas
a letra dele era quase impossível de decifrar. Até me perguntei se estava
escrito em outra língua ou outro alfabeto, mas logo vi que não era o caso.
Encontrei uma anotação misteriosa envolvendo a maga branca. Não
entendi direito, mas ele mencionou algo sobre estar preocupado com ela.
E se perguntava se havia alguma coisa errada, pois ela ainda não
mostrara os sinais. Aquilo era muito suspeito.
Achei meu nome, finalmente. Ele expressava muitas dúvidas ao meu
respeito. Se eu era realmente uma discípula confiável, se eu não o estava
usando para obter ganhos materiais. Se um dia eu iria enganá–lo.
Ler aquilo me deu certo alívio, pois eu tive quase certeza de que eu pelo
menos não estava sendo enganada. Ele parecia sincero naquele livrinho.
Resolvi analisar o guarda–roupa, mas não havia nada surpreendente lá:
somente um monte de ternos, calças, casacos, sapatos... ou melhor, havia
uma quantidade impressionante de todas essas coisas, mas nada além
disso.
Foi em outro guarda–roupa atrás da porta que encontrei o vestuário que
me chamou a atenção: os trajes cerimoniais, utilizados exclusivamente
em rituais. Havia mantos brancos, negros, vermelhos, dourados, todos
muito elaborados, com inscrições arcanas.
O que eu queria mesmo era encontrar os utensílios mágicos dele.
Imaginei que haveria uma coleção enorme de utensílios raros
selecionados ao longo das décadas em uma das salas secretas.
Em mais dez minutos o despertador ia tocar. Percebi que já era hora de
sair de lá.
No entanto, o que vi a seguir me fez dar um grito tão alto que eu devia
ter acordado o castelo inteiro.
Era uma cobra. Uma cobra embaixo dos lençóis!
Eu tapei a boca com as mãos, mas já era tarde demais. Nem deu tempo
de correr.
Mustse acordou, é óbvio. Ele levantou–se no mesmo instante. Pela
primeira vez eu o via com uma roupa diferente: um pijama de mangas
longas e calças. Até o pijama dele era de tecido fino e caro.
Mas eu não reparei muito no pijama, pois havia uma situação mais grave

145
Juliana Duarte

acontecendo.
Ele segurou no meu braço tão fortemente que doeu. Fitou–me
diretamente.
– O que... está... fazendo... aqui? – perguntou ele, parecendo somente
meio acordado, com os olhos entreabertos e cabelos despenteados.
– Tem uma cobra na sua cama! – apontei.
– Eu sei que tem uma cobra na minha cama – grunhiu ele.
– Ah... ela é seu bichinho de estimação? – perguntei, com cautela.
– Não desvie o assunto e arrume uma desculpa melhor para vir ao meu
quarto antes que meu despertador tocasse. Eu mandei bater na porta
antes de entrar!
– Mas eu bati na porta – justifiquei – você não respondeu.
– Claro que não. Eu estava dormindo. Da próxima vez, dê murros na
porta dez vezes antes de entrar e espere pela minha resposta. E jamais
bata antes das sete da manhã, entendeu?
– Entendi. Desculpe.
– O que queria aqui, afinal? Mandei você vir somente se fosse urgente.
Alguém morreu? Você está morrendo?
– Não... mas acho que estarei morrendo em breve – observei – você
prometeu me mostrar uma das salas secretas hoje, então pensei em te
chamar para irmos lá.
– Foi para isso que veio, então?
– Sim. Aceito ver qualquer sala, menos aquela dos aparelhos de tortura.
– Você realmente fala demais – falou Mustse – tem sorte de eu não estar
irritado esta manhã. Estou com dor de cabeça por causa do vinho forte
de ontem. Então suma daqui antes que eu volte ao normal. Ainda não
acordei completamente.
– Ah, claro. Nesse caso, vou indo. Não se esqueça de alimentar sua
cobra.
– Eu sei com que eu vou alimentá–la.
– Depois que você acordar, pode me mostrar uma das salas?
Quando perguntei isso, ele me arrastou para fora do quarto e fechou a
porta na minha cara. Até que demorou para acontecer.
Quanto mais liberdade ele me dava, mais eu abusava. Era melhor eu me
controlar. Mustse era imprevisível. Achei que ele iria me bater quando
me visse no quarto.

146
Guerra das Cores Perdidas

Resolvi encostar–me na parede do corredor e esperá–lo. Fiquei na frente


da porta do quarto. Eu estava brincando com fogo, mas era uma forma
de pressão.
Cinco minutos depois, tocou o despertador. Passados mais cinco
minutos, a porta do quarto se abriu. Ele vestia um roupão por cima do
pijama.
– O que você quer agora? – ele perguntou, aborrecido – pare de me
encher o saco ou irei trancá–la no seu quarto pelo resto do dia.
– Estava esperando você acordar para vermos as salas secretas. Podemos
ir agora?
– Eu falei que veremos apenas uma das salas. Não me diga que entrou
secretamente no meu quarto para roubar as chaves?
– Nem pensei nisso – confessei – mas você me mataria se eu fizesse,
então ainda bem que não fiz.
Ele me ignorou.
– Podemos ir agora? – repeti, que nem criança.
– Não! – gritou ele – Saia daqui!
– Ainda vai fazer alguma coisa antes de irmos? – insisti – Podemos fazer
o tour pelo castelo? Para você me explicar o significado dos símbolos
arcanos de cada aposento.
– Outro dia. Hoje veremos somente a sala.
– Então vamos lá?
– Não, desgraça! Ainda tenho negócios a tratar antes de me ocupar de
você!
– Vai trabalhar no fim de semana de novo?
– Não, eu vou tomar banho, escovar os dentes e tomar café da manhã!
Depois disso, irei sacrificar um bode! Vá me esperar na frente das salas e
não me aborreça mais! Às oito horas eu te mostro o local.
– Você vai levar oito horas para fazer tudo isso? – perguntei,
desapontada.
– Vou levar uma hora! – gritou Mustse – Oito menos sete dá um! Vá
estudar matemática enquanto me aguarda! Isso servirá para você contar
quantos membros ainda restam no seu corpo depois que eu arrancá–los.
Ele entrou no quarto e pegou uma calculadora. Lançou–a no chão ao
meu lado. Depois disso, ele entrou no banheiro e trancou a porta.
Mustse estava muito engraçado naquela manhã, apesar do mau humor.

147
Juliana Duarte

Mas em vez de ir até as salas, fui mexer na calculadora na cozinha.


Alguns minutos depois, Mustse apareceu na cozinha com outra roupa e
com os cabelos molhados.
– O que está fazendo aqui? – ele perguntou – Eu mandei você esperar na
torre das salas.
– Lá é muito frio e assustador – justifiquei.
Mustse desistiu. A dor de cabeça dele devia estar piorando.
– Bom dia, senhor – cumprimentou a cozinheira, sorridente – seu café
está pronto. Pode se sentar.
– Obrigado.
A cozinheira serviu na mesa uma xícara de café com leite e uma torrada.
Enquanto ele comia a torrada com garfo e faca, procurei por mais algum
lanche. Afinal, eu só tinha comido uma maçã e uma banana.
– Tem bolo? – perguntei para a cozinheira.
– Sim, temos o resto do bolo de chocolate de ontem.
– Oba! – comemorei.
Servi um enorme pedaço de bolo de chocolate e sentei–me na mesa para
comer, me lambuzando toda. Mustse olhou para mim de relance e não
fez nenhum comentário.
Assim que ele terminou de comer, eu perguntei:
– Podemos ir agora? Já sacrificou o bode?
– Vamos de uma vez. Sacrifico você no lugar do bode. Assim que eu te
mostrar o que há dentro daquelas salas, você vai parar com gracinhas...
vai chorar em vez de rir e irá calar a boca.
Depois de ouvir isso, eu o segui em silêncio. Tentaria me comportar o
máximo possível, pois eu sabia que devia ser algo sério.
Ele retirou o molho de chaves do bolso e abriu a sala secreta número 10.
Quando entramos, eu não poderia ter ficado mais maravilhada. Eu havia
acertado o conteúdo de uma das salas.
Lá dentro havia centenas de utensílios raros de magia. Era uma
verdadeira coleção sem fim. Numa prateleira repousavam as espadas
rituais feitas de metais nobres. Logo ao lado estavam as varinhas de
madeira e metal, de todos os tipos e tamanhos. Vi dezenas de bolas de
cristal, desde as maiores às minúsculas, de diferentes cores. Havia
punhais e adagas cravejados de cristais. Diversos tipos de baralhos de
tarot belíssimos. Também contemplei uma coleção de sinos e tantas

148
Guerra das Cores Perdidas

outras coisas.
Não sabia qual parte eu olharia primeiro. Tinha coisas suficientes para
que eu permanecesse o dia inteiro analisando. No entanto, ele disse que
ficaríamos apenas uma hora na sala e depois ele a trancaria de novo.
Ele me explicou a história de cada um dos utensílios: ano de fabricação,
material, local de compra ou momento de confecção, características
particulares, em qual operação ele utilizara, etc.
Eu estava maravilhada e ouvia tudo com atenção. Havia uma seção
coberta por vidro, em que eram conservados grimórios tão antigos que
as folhas estavam marrons e se despedaçando.
– Eu digitalizei o conteúdo de todos esses grimórios para não precisar
manipulá–los mais quando preciso ter acesso a eles.
Ficamos cerca de uma hora e meia lá, até que ele se deu conta que o
tempo limite já havia passado. Depois disso, ele trancou a sala. Eu ainda
não conseguia acreditar no que vi.
Quando pude sair do transe, pedi para ver outra sala.
– Melhor não – ele recomendou – vai estragar seu dia.
Quando ele colocava dessa forma, eu realmente sentia medo de
descobrir o que havia. Algumas vezes eu tinha vontade de dizer que eu
jamais desejaria descobrir o que havia dentro delas.
– Vou abrir a sala número 9 – ele decidiu.
Senti um arrepio. Tentei reunir coragem e segui–o.
Era uma sala escura. Parecia não haver nada lá dentro. Ele acendeu uma
vela.
Talvez fosse a sala de tortura. Mas logo eu descobri que não. Era a sala
de sacrifício.
Os aparelhos de lá eram próprios para causar morte instantânea. Mas
eram usados somente para matar animais.
Ele explicou, tranquilamente, como funcionava cada um dos aparelhos:
de que forma o animal morria e para qual animal cada método era mais
recomendável.
Eu não fiz nenhum comentário. A atmosfera daquela sala era péssima,
terrível. Queria sair de lá. Assim que ele terminou a explicação, que
durou quinze minutos, saímos.
Antes que eu pudesse respirar, ele abriu a sala número 8.
Era parecida com a anterior, mas com algumas diferenças. Essa era

149
Juliana Duarte

projetada somente para assassinar humanos. Ele me explicou como


funcionava cada uma das máquinas. Dessa vez a explicação durou
somente dez minutos, mas pareceu interminável.
Quando ele abriu a sala número 7, imediatamente percebi que aquela sim
era uma genuína sala de tortura. Essa servia para torturar animais. Como
torturas eram mais engenhosas e demoradas, a explicação durou meia
hora. Eu não aguentava mais. Estava me sentindo mal.
A sala 6, como esperado, era utilizada para torturar humanos. Eu
esperava jamais ter que entrar naquela sala. Ele esclareceu com detalhes e
com a maior frieza do mundo para que servia cada equipamento, que
tipo de dor causava e a intensidade e duração da dor. Aquela era uma das
salas mais geladas e horripilantes. Dessa vez a explicação durou mais de
meia hora.
Entramos na sala 5. Eu não sabia o que iríamos encontrar dali em diante.
Essa era a sala de assassinato envolvendo métodos mágicos. Havia vários
utensílios rituais separados para essa utilização exclusiva. Eram os
materiais mais macabros que eu já vira na vida. O círculo de proteção do
chão era desenhado com sangue. Essa sala poderia ser usada tanto para
assassinar humanos como para animais. Ou os dois juntos, o que era
uma prática comum.
Dessa vez a explicação durou uma hora, já que envolvia métodos
avançados complexos.
A sala 4 era a sala de tortura por métodos mágicos. Houve mais de uma
hora de explicação. Obviamente era uma sala bem mais perigosa do que
as de tortura por métodos comuns.
Entramos na sala 3. Essa era a sala das possessões demoníacas para a
qual eram levados os corpos humanos ou animais possuídos pelo
espírito de um demônio. Lá havia alguns métodos divinatórios de
necromancia e outros utensílios de magia esquisitos que eu nunca tinha
visto.
Por incrível que pareça, a coisa mais aterrorizante das salas era o fato de
estarem vazias. Como se restasse somente o espírito das vítimas em
agonia.
Dessa vez houve meia hora de explicações sobre a ocorrência de
possessões. Elas poderiam provocar ferimentos ou até mesmo a morte
dos possuídos. Mustse explicou como exorcizá–los ou como obter a

150
Guerra das Cores Perdidas

comunicação e o controle do possuído. Através daquele método você


poderia controlar os corpos a realizar qualquer coisa que você desejasse.
Entramos na sala número 2. Dessa vez tive que tapar o nariz.
Era uma sala enorme com centenas de cadáveres de humanos e animais,
uns jogados por cima dos outros; completamente deformados,
mutilados, esquartejados. Ele começou a explicar quais eram os
exemplares mais raros daquela coleção, mas eu não consegui escutar. O
fedor e o terror que eu sentia eram insuportáveis. Saí de lá.
Sentei–me no corredor e encostei–me na parede. Ele trancou a porta.
– Não quer ver quais são os exemplares mais raros da minha coleção?
– Não – falei.
Senti lágrimas nos olhos. Eu estava tremendo.
– Ainda falta a sala número um – ele lembrou – deseja olhar o que há lá
dentro?
– Não.
– Já é quase noite. Perdemos o almoço. Me empolguei demais nas
explicações. Quer comer alguma coisa?
– Estou sem fome.
Cobri o rosto.
– Você é muito sensível – observou ele – não serve para a magia negra.
Você acabou de contemplar a verdade por trás desse caminho. Será capaz
de fazer essas coisas?
– Não preciso fazer. Até mesmo na magia negra há alternativas. Há
praticantes que jamais realizam sacrifício algum.
– Se deseja seguir esse caminho, você começou da maneira errada
realizando uma conjuração cujo preço é o sacrifício.
– Mas eu nunca matei um ser humano.
– Quando você começar a matar, não vai conseguir mais parar. Logo os
humanos não serão muito diferentes da lagosta, do lagarto, do rato... ou
mesmo da barata.
– Estou enjoada. Vou vomitar.
– Você sabe que não tolero piadas – observou Mustse – agora que
conhece minhas salas, pensará duas vezes antes de fazê–las.
– Estou falando sério. Me sinto mal.
– Refiro–me às piadas de hoje de manhã. O fato de você ter entrado no
meu quarto sem autorização e mexido nas minhas coisas, por exemplo.

151
Juliana Duarte

– Me desculpe – falei, com urgência – prometo que nunca mais irá


acontecer.
– Você só diz isso por medo de ser torturada.
– Sim, eu tenho medo!
– Os magos negros são os mestres de qualquer estado da mente. Se não
consegue tolerar mortes ou torturas, você sempre possuirá limitações
nesse caminho.
– E enquanto você odiar piadas, também será limitado – retruquei – Que
droga! A vida não é somente dor! Também há alegrias, momentos
felizes! Tente não ser tão sério uma vez na vida.
Ele não fez nenhum comentário. Resolvi não dizer nada também e saí de
lá. Fui até o banheiro vomitar. Depois disso, deitei na minha cama e não
saí de lá até a hora da janta.
Jantamos em silêncio. Quase tive nojo de comer a carne. Na verdade,
deixei um pouco de carne no prato. Depois de ver tantos cadáveres,
talvez eu ficasse alguns dias sem comer aquilo, até me recuperar do
choque.
Mustse pegou pesado. Mostrou–me quase todas as salas de uma vez só.
Aquilo foi cruel. Não sei se foi pior ver o que havia lá ou ouvir as
explicações.
Sendo assim, havia somente dois aposentos que eu não vira: a sala
secreta 1 e a sala de invocações 1. Na sala de invocações não devia haver
nada de especial, mas Mustse não queria me deixar entrar para não ser
incomodado, já que ele ia lá frequentemente. E quanto à sala secreta 1,
eu já nem estava curiosa para ver.
Eu estava muito pensativa enquanto estudava os grimórios de magia
intermediária. Até que ponto eu queria ir naquele tipo de magia? Eu não
aguentava mais aquele horror. Queria voltar para o meu mundo. Mesmo
que lá não fosse muito emocionante, tinha meus pais e meu povo e isso
já era suficiente.
Mas enquanto eu vivia no Mundo Negro, precisava me adaptar. Era
melhor me acostumar e aceitar do que ser eternamente infeliz e negar
tudo. Afinal, eu estava viva. E o preço por continuar viva poderia ser
muito alto.

152
Guerra das Cores Perdidas

Magia Avançada

Segunda–feira comecei a trabalhar em meu novo emprego, no qual eu


ganharia o triplo do meu salário anterior. Curiosamente nesse cargo eu
precisava fazer menos coisas. Em compensação, eu teria que estudar
mais tempo para fazer direito as poucas coisas que eu precisaria fazer.
Nas primeiras semanas passei mais tempo estudando minha função do
que trabalhando de fato. Quando aprendi as principais tarefas, eu sempre
tinha um tempinho durante o expediente para ficar de pernas para o ar.
Eu usava esse tempo para ler os grimórios. Isso me fez economizar um
tempo precioso, pois em casa eu me dedicaria somente à prática.
Minha vida nos meses seguintes foi muito diferente. Passei a ter mais do
que apenas conforto. Meu novo ambiente de trabalho era mais espaçoso,
eu tinha uma mesa larga, um computador, uma poltrona macia e ar
condicionado. No corredor logo ao lado havia uma máquina com
diferentes comidas e bebidas. Bastava colocar algumas moedas bônus
que recebíamos e tínhamos acesso a cafés, sucos, biscoitos, etc.
Era maravilhoso ficar naquela sala fresca, na poltrona reclinável,
tomando suco de laranja e comendo bolachas de morango enquanto eu
lia as informações emocionantes dos grimórios. Eu já tinha livre acesso à
biblioteca do castelo; com exceção dos livros de magia avançada, mas eu
não reclamava, pois ainda não estava preparada para eles.
Quando eu chegava em casa, tinha permissão de caminhar pelo quintal
ou passear pelos cômodos. Mas eu geralmente ia direto para o meu
quarto ou para as salas de invocação, para praticar magia. De noite eu
comia o delicioso jantar na mesa da sala e tinha uma noite maravilhosa
naquela cama enorme e macia.
E o fim de semana era fantástico, pois eu poderia fazer qualquer coisa
que eu quisesse. No começo eu apenas me trancava nas salas de prática
de magia intermediária, para testar uns novos métodos. Mas logo eu
percebi que, com o tempo livre que eu tinha, além de me dedicar à magia
eu podia fazer outras coisas sem interferir no meu treinamento.
O melhor de tudo foi quando recebi meu novo salário. Eu nem sabia o
que comprar primeiro, tinha vontade de gastar tudo. Mas eu já tinha

153
Juliana Duarte

roupas suficientes para usar no trabalho ou mesmo vestidos elegantes


para sair à noite. Eu não tinha intenção de ter uma coleção de roupas
como Mustse, que, como não tinha mais onde enfiar dinheiro, fazia
coleção de tudo. Mesmo assim eu não gostava de ficar dependendo dele
pra ter coisas, por isso era bom ter o meu próprio salário.
Comprar livros de magia também não valia a pena, tendo uma biblioteca
daquele tamanho ao meu dispor. E eu já tinha utensílios de magia
suficientes. E quanto aos utensílios esgotáveis como velas, óleos e
defumadores, Mustse sempre tinha um estoque dessas coisas e permitia
que eu pegasse quando precisasse. E, para ser sincera, eu tinha certo
apego aos meus utensílios antigos e não queria substituir por outros tão
cedo.
No dia em que recebi meu salário, fui ao shopping e aos centros
comerciais próximos, procurando desesperadamente algum lugar para
gastar. Encontrei algumas coisas legais, mas eu sempre pensava: “Já
tenho um parecido” ou “Isso não é urgente” ou “Já tem um desses no
castelo”. Encontrei algumas lojas de esoterismo e comprei apenas
pequenas coisinhas baratas que achei bonitinhas. Ainda assim, eu estava
com 99% do meu salário na minha mão sem saber o que fazer com ele.
Guardar seria chato.
E com a prática de magia acabei perdendo interesse em certas diversões
mundanas, pois meu maior vício era ficar mais poderosa. Sendo assim,
resolvi voltar para casa e gastar o dinheiro outro dia quando eu tivesse
alguma boa ideia.
Mustse devia estar no estado em que eu me encontrava há uns cem anos.
Eu me perguntava por que ele ainda trabalhava. Ele devia ter dinheiro
sobrando para ficar sem trabalhar por pelo menos algumas décadas. E se
a tal “profecia” era verdade, ele não precisaria se preocupar com o
futuro.
Mas claro que eu não sabia em que gastar somente porque eu morava
num castelo em que eu já tinha tudo. Se eu morasse sozinha num
emprego simples, eu estaria passando por dificuldades financeiras. O
plano de Mustse era me dar cada vez mais conforto para que eu me
acostumasse ao luxo. Uma vez acostumada, eu não iria trocar uma vida
de princesa somente para ser independente e ter liberdade.
Talvez eu devesse escapar disso enquanto era tempo. Fugir ou

154
Guerra das Cores Perdidas

simplesmente anunciar para Mustse que resolvi morar sozinha e que eu


ia me virar por mim mesma a partir dali.
Mas a cama macia, o ar condicionado no trabalho, as bolachinhas da
máquina, o jantar chique, meu exclusivo acesso irrestrito a grimórios e
salas de prática de magia... só se eu fosse louca para trocar tudo aquilo
por uma vida incerta, cheia de dificuldades.
Como Mustse percebeu que eu estava com muito tempo livre, ele
começou a me propor tarefas de magia. Ele requisitou que eu estudasse
temas específicos de ocultismo para resolver uma prova que ele aplicaria
no próximo fim de semana.
A partir de então, todo fim de semana eu tinha provas e trabalhos para
entregar, parecia uma escola. Ele me dava aula de magia todos os
sábados, ensinando os conteúdos das provas. Era rigoroso na correção e
costumava me dar nota baixa mesmo quando eu me saía bem. Uma vez
ele rasgou um dos meus trabalhos na minha frente após ler as primeiras
linhas e me mandou refazer. Fiquei muito irritada nesse dia, mas obedeci,
é claro.
O mais desafiador foi quando se iniciaram os testes empíricos. Eu devia
fazer certas práticas e rituais na frente dele, para que me avaliasse. Eu
ficava muito nervosa nessas ocasiões, mas isso me fez crescer muito, pois
ele me explicava exatamente os pontos em que eu precisava melhorar.
Nem sempre ele fazia isso gentilmente, mas mesmo assim ajudava.
Devido a esse treinamento de primeira linha, consegui minha primeira
evocação e aparição física de um demônio de poder médio. Pude
dominá–lo e realizar uma conjuração muito depressa.
Mesmo assim, eu não libertei Fiska. Resolvi deixá–la de reserva, pois eu
já havia realizado com ela muitas operações memoráveis e não queria que
nos separássemos.
Meu novo demônio era Meidel, uma mulher de pele vermelha e quatro
chifres. Ela tinha maior poder que Fiska e uma personalidade não tão
explosiva. Era muito mais tranquilo trabalhar com ela. Algumas vezes eu
utilizava as duas juntas. E logo consegui evocar o meu segundo demônio
de poder intermediário.
Eu estava extremamente empolgada. Viciei–me em práticas de evocação.
Mustse percebeu que eu estava muito aplicada e disse que logo me daria
permissão para iniciarmos o treino de magia avançada.

155
Juliana Duarte

Meu treinamento de magia avançada começou três meses após meu


aniversário de 16 anos. Dessa vez Mustse avisou que ia pegar pesado e
que seria melhor eu me preparar.
Logo de saída ele me mandou ler uns grimórios espetaculares cujo
conteúdo era terrivelmente macabro e revelador. Eu mergulhei nas
leituras. Nos primeiros meses eu apenas lia e imaginava. Queria devorar
todo o tipo de grimório possível envolvendo aquela área. Fiquei várias
noites sem dormir, era como desvendar um universo de maravilhas.
Acho que eu estava começando a adquirir a capacidade de leitura
dinâmica de Mustse, pois eu lia grimórios enormes em poucas horas.
Alguns eu gostei tanto que, assim que terminava, eu o abria de novo na
primeira página para reiniciar a leitura, sem nem fazer uma interrupção.
Eu já tinha dezenas de cadernos de anotação, em que eu construía
minhas próprias teorias, sistemas e rituais de magia negra, pegando
elementos da literatura clássica. Eu me sentia uma cientista maluca
viciada nas experiências de laboratório, que não interrompe seus
experimentos nem para comer ou dormir.
Quando Mustse percebeu que eu não dormia há dois dias e que não
comi nada o dia inteiro, ele me ordenou interromper a leitura
imediatamente.
– Mas...! – eu argumentei – Bem na parte do ritual de evocação das
quatro potências! O cara evoca quatro demônios maiores ao mesmo
tempo e depois...
– E depois ele sacrifica os quatro, eu sei – falou Mustse – também houve
uma época em que me viciei nesse livro, mas agora eu sugiro que você vá
tomar um banho, comer alguma coisa e dormir. Quando acordar,
tranque–se na sala de invocação número 2 e fique lá o tanto quanto
desejar.
– Vou poder realizar uma operação maior? – perguntei, impressionada.
– Sim, agora faça o que eu mandei.
Eu o obedeci imediatamente. Embora estivesse amando as leituras, a
minha vontade maior era realizar as operações dos livros que tanto me
encantavam.
No dia seguinte, que era um sábado, acordei às cinco da manhã e entrei
na sala de invocação número 2. Só saí de lá no domingo de madrugada,
totalmente exausta, com fome, com sede, com sono, sentindo meu corpo

156
Guerra das Cores Perdidas

inteiro tremer. Naquelas 48 horas ininterruptas tive meus primeiros


contatos com as potências maiores. Eu tinha conseguido evocar algumas,
mas não obtive uma aparição física.
A “menina dos meus olhos” era um demônio avançado chamada
Garfdie. Fiz contato com ela três vezes. Mas o bicho era violentíssimo.
Se eu obtivesse uma aparição física, minha vida estaria em jogo.
Mesmo sabendo que Mustse poderia me ajudar a laçar a fera, eu não
queria ajuda. Eu tinha que provar a ele e a mim mesa que era capaz de
fazer aquilo sozinha.
Essa foi minha época de maior vício em magia negra avançada, pois eu
estava determinada a capturar aquela potência. Meses se passaram, mas
eu não desistia.
– Você pode tentar chamar outra – sugeriu Mustse – você escolheu uma
das piores.
– Eu não escolhi – argumentei – ela veio a mim. Isso significa que
minhas potencialidades latentes possuem uma correspondência regular
com a referida potência.
Eu já me encontrava num nível que permitia certo diálogo à altura com
Mustse, na medida do possível. Dali em diante podíamos falar de
praticamente qualquer assunto referente à magia, fora algumas práticas
pessoais e secretas dele, que ele se negava a mencionar.
– Você conhece a chave para realizar a conexão – disse Mustse – procure
um animal grande e leve para a sala de tortura. Chame Garfdie lá, pois
ela se sentirá tentada pelo seu ato e seu êxtase estará num estado “ultra
alfa”.
– Não me tente com essa proposta, senão acabarei fazendo.
– O que te impede? Sua pena pelo animal é mais importante do que a
evolução da sua alma? Se quer saber, a alma do animal irá reencarnar
numa forma superior de vida por ter sido parte de uma operação tão
suprema.
“Você está certo de novo. Maldito seja”.
Decidi fazer aquilo. Levei um porco para a sala de invocação número 2.
Conservei comigo uma faca de cabo branco. Depois de toda a
parafernália para o ritual estar devidamente posicionada, dei início à
minha tarefa.
Mas quando eu dei as primeiras facadas, o porco começou a grunhir

157
Juliana Duarte

como louco. Ele corria pela sala, pingando sangue e eu corria atrás dele –
até saí do círculo de proteção.
Ele corria desesperadamente por sua vida e não importava quantas
facadas eu desse; o bicho continuava correndo e... gritando! Era quase
um grito humano, de tão alto e desesperado. Tive que bater com uma
estátua pesada na cabeça dele e arrancar os órgãos para que ele parasse.
Continuei dando facadas, cada vez com mais força. Havia um mar de
sangue ao meu redor, no meu rosto, nas minhas mãos, no meu manto.
Estranhamente, me lembrei de mim mesma, comendo bolo naquele dia,
lambuzando a boca como uma criança. Era quase isso: eu não sabia
matar e sujava tudo para realizar uma operação simples.
Eu estava exausta, suada. O suor escorria de meu rosto, tanto pelo
nervosismo como pelo esforço descomunal que tive que realizar para
aquele sacrifício. E, em meio a isso, talvez houvesse lágrimas. Ao mesmo
tempo, eu estava séria. Aguardava com confiança que aquele demônio
maldito mostrasse a face.
“Sou uma maga negra. Essa foi a provação invencível”, constatei, fitando
o sangue em minhas mãos trêmulas, com o coração palpitante num
êxtase indescritível.
Foi uma aparição incrível. Garfdie estava irada e atacou para matar.
Ameacei fazer a ela o mesmo que fiz ao porco. Ela me disse que assim o
desejava.
Aquela tentativa de dominação levou horas. Mais um pouco e eu
desabaria. Suor, lágrimas, sangue, terra, ar, fogo, água; eu não conseguiria
lidar com isso por mim mesma.
Evoquei Meidel com as últimas forças que me restavam. Garfdie a
estraçalhou impiedosamente. Eu não era burra de invocar Fiska, um
demônio menor. Além de não ter outro animal de sacrifício, ela iria
certamente morrer mais rápido do que Meidel.
Garfdie começou a falar sobre pactos e eu fingia que não estava ouvindo.
Mas ela insistiu tanto que eu ordenei que ela se calasse e se ajoelhasse
imediatamente diante de mim.
Eu ia morrer. Senti isso na mesma hora. Não tive outra escolha senão
mandá–la embora.
Desmaiei e fui parar no hospital depois dessa. Nas semanas seguintes
trabalhei com a dominação de dois demônios de poder médio para me

158
Guerra das Cores Perdidas

auxiliarem na captura de Garfdie.


Um mês depois, acompanhada dos dois demônios, sacrifiquei um coelho
na sala 2 e finalmente consegui dominar a fera. Mas mesmo derrotada,
ela exigiu um preço para me servir.
Todos os dias, até o momento da minha morte, eu teria que encher uma
porção de uma garrafinha com meu próprio sangue. Todo sábado,
quando a garrafa estivesse cheia, eu teria que ir até um cemitério, abrir os
caixões e pingar uma gota na boca de cada cadáver. Pelo menos cem,
enquanto eu recitaria o mantra mágico que ela me ensinou.
Tive que aceitar. Depois de quase um ano de esforço contínuo, eu não
poderia fraquejar no instante derradeiro.
Finalmente eu tinha um demônio maior; eu havia realizado a operação
máxima de magia negra. Teria que me submeter ao tal ritual maldito até
morrer.
Garfdie exigia fidelidade. Eu deveria usar somente ela e tive que
sacrificar meu novo demônio intermediário que restou vivo e também
Fiska. Entreguei as duas para a morte, somente para ter a honra de
trabalhar com Garfdie.
Se em alguma semana eu falhasse no ritual, ela me mataria. E eu não teria
como me defender, pois estava proibida de evocar outros demônios
enquanto ela vivesse. Esse ritual semanal do sangue daria a ela poder
para me impedir de evocar outros demônios para todo o sempre.
Acabei contando para Mustse todas as condições que Garfdie tinha feito
e como eu havia aceitado todas elas sem questionar. Mas em vez de me
criticar, ele disse que agi certo, pois se eu procedesse corretamente, eu
não precisaria mais de outros demônios.
– A servidão de um demônio avançado não tem preço – falou Mustse –
se você não gostasse das condições poderia tentar evocar outro e gastar
mais um ano nisso. Em compensação, o demônio que você incomodou e
não conseguiu domar iria te atacar pelo resto da vida, até que outro
mago o domasse.
– O que farei a partir de agora? Não realizei todas as operações
possíveis? Já cumpri os objetivos máximos como maga negra.
– Você está enganada. Obter uma conjuração de um demônio maior é
apenas o primeiro passo. É como se você estivesse penetrando no
mundo da magia negra somente agora. Você irá dedicar as próximas

159
Juliana Duarte

décadas a aprender tudo sobre sua potência e sobre você mesma.


Quanto mais vocês evoluírem juntas, mais poder terá.
Comecei a evocar Garfdie quase todo dia. Quando Mustse descobriu, ele
me disse para não fazer isso, pois encurtaria minha vida. Isso porque o
demônio drena a energia vital do operante. Usa a energia dele para
existir. Portanto, eu só podia evocá–la em ocasiões muito especiais.
Chamá–la uma vez por semana para um treinamento de uma hora era
suficiente. Mais que isso era loucura. Fora essas ocasiões, contatá–la
somente em caso de perigo mortal.
– Se você for batalhar com um mago negro de pouco poder seria
recomendável chamar um demônio menor, mas sua potência proibiu–a
de fazer isso. Sendo assim, para lidar com iniciantes não evoque nada.
Use magia braçal: seu próprio poder. Chame–a apenas se fundamental.
No seu caso então, em vez de reunir um exército de demônios menores e
demônios médios para servi–la como muitos magos negros fazem,
concentre–se somente em treinar Garfdie e no resto do tempo estude
magia não evocatória. Até mesmo as besteiras de seu mundo como
magia do fogo e magia do gelo podem ser úteis.
– Não são besteiras – argumentei – usei a magia do gelo para obter a
conjuração de Fiska. – Vou te indicar alguns grimórios que ensinam
certas magias negras avançadas não evocatórias. É uma linha heterodoxa,
pouco utilizada, mas para o seu caso cairá como uma luva.
– Essa proibição de Garfdie não inclui anjos, espíritos, elementais,
servidores e outras potências – observei – apenas não posso evocar
nenhum tipo de demônio. Sendo assim, por que não me foco nessas
outras áreas?
– Porque isso não é magia negra – respondeu Mustse.
Mas essa resposta não me convenceu.
– Não posso praticar “magia colorida” e evocar um pouco de cada
quando necessário?
– Eu vou fingir que não ouvi isso – falou Mustse – em primeiro lugar, a
“magia colorida” existe e é chamada tecnicamente de magia octarina.
Mas mesmo os magos octarinos não saem evocando tudo o que veem
pela frente, pois todo mago com o mínimo de conhecimento sabe que
deve escolher uma área e se focar nela. Ele precisaria de muitas vidas
para dominar as potências mais poderosas de cada linha da magia.

160
Guerra das Cores Perdidas

Dominar somente o básico da cada cor o tornará um mago medíocre.


– Você teria o tempo para aprender todas as linhas – observei – você já
dominou magia negra avançada há muito tempo, então agora poderia
obter maestria das magias avançadas branca, verde, vermelha e octarina.
E com o conhecimento que tem, não precisa começar desde o princípio.
Você pode aplicar aquilo que sabe para um desenvolvimento mais rápido.
Em algumas décadas, ou bem menos que isso, você dominaria todas.
– Você não poderia estar mais errada – falou Mustse – se você pensa que
“dominou” magia negra só porque obteve uma conjuração e obediência
de um demônio maior, está terrivelmente enganada. Levará muitos anos
até que se estabeleça uma relação de confiança entre vocês duas. Depois
desse período, terá que dedicar mais um longo tempo para desvendar
todos os tipos de combinações de poderes possíveis. É como se você
tivesse ganhado uma máquina complexa capaz de fazer muitas coisas. A
partir de agora você passará por um árduo período de estudo e
investigação para aprender a operá–la. Depois disso terá que desmontar
a máquina peça por peça e montá–la de novo, acrescentando coisas
novas que a torna melhor. E por fim terá que conectar o seu cérebro à
máquina para operá–la somente com o auxílio da mente. Faz ideia de
quanto tempo isso leva?
– Uma vida – falei – uns 100 anos pelo menos.
– Correto. Mas se um mago trabalha com sua potência por 200 anos, terá
descoberto mais coisas, que o fará ainda mais poderoso. Não tem limites
para o poder. Mas partindo do pressuposto de que cada linha de magia
leve pelo menos 100 anos para que uma pessoa se torne um dos mais
brilhantes magistas da linha, levaria 500 anos para esse mago combinar
cada uma delas. Se o referido mago duelar com outro que dedicou esses
500 anos para aperfeiçoar uma linha só, qual terá o maior poder?
– Não sei – falei – o mago que estudou uma linha só por 500 anos será
um gênio de sua via. Em compensação, o mago eclético terá mais
possibilidades de escolha num duelo. Se uma cor da magia não funcionar,
ele pode tentar outra.
– Caso não tenha reparado, duelos de magos avançados são de vida ou
morte – observou Mustse – podem durar poucos segundos. Não há
tempo de pensar, respirar ou escolher. O mais rápido e poderoso vence.
Mas também há outro fator ainda mais importante a levar em

161
Juliana Duarte

consideração: o sucesso de um caminho reside em trabalhar o seu estado


psicológico durante uma vida. Um mago negro aprende a dominar
diferentes emoções e usa tanto as positivas como negativas para gerar
força. Já um mago branco deve crer indubitavelmente em Deus e realizar
o bem. Então me diga como um mago poderá manter as duas
concepções de mundo ao mesmo tempo? E não é apenas “achar”; trata–
se de realizar uma lavagem cerebral profunda auto–induzida e
convencer–se sobre um caminho. A não ser que o magista em questão
tenha cinco diferentes personalidades, seria humanamente impossível.
– Entendi. Cada cor da magia propõe uma busca diferente: amor, poder,
sabedoria, equilíbrio, experimentação... e para ser um grande mestre de
um caminho devemos escolher somente um. Também entendo que não
há um caminho superior a outro, pois isso depende da personalidade do
magista. Um mago que crê no poder do amor despertará maior poder na
magia branca do que em outras linhas. E assim por diante.
– O que você disse está errado – observou Mustse – duvido que tenha
lido isso num grimório de magia negra. Para nós, esse é o melhor
sistema. Quem te disse isso?
– A maga branca.
– Bastaram alguns minutos para que ela enchesse seu cérebro de coisas
que não prestam. Vou te explicar a verdade. Na sala secreta número 4
trabalha–se com torturas por métodos mágicos. São os piores tipos de
tortura, pois não envolve somente o corpo físico, mas também a mente e
o espírito. É uma tortura em todos os níveis. Basta eu trancar uma
pessoa por poucas horas naquela sala e consigo transformar o maior
cético num temente a Deus por toda a vida. O inverso também é
verdadeiro. Sendo assim, não há tal coisa como personalidade que
direcione a um caminho. Opiniões podem ser facilmente modificadas.
– Ei, espere um momento – falei – isso é lavagem cerebral severa. Numa
tortura você fica com traumas devido à dor física que afeta o psicológico.
Mas isso não irá transformar necessariamente suas concepções de
mundo mais profundas que você formou ao longo de uma vida.
– Você não escutou o que eu disse. Eu não usaria a sala de tortura por
métodos físicos e sim envolvendo magia. No momento que eu perfuro a
mente e a alma da pessoa, ela realizará o que desejo. Algo mais forte que
isso, somente por possessão demoníaca. Um convite à sala 3, nesse caso.

162
Guerra das Cores Perdidas

– Então se alguém torturasse você naquela sala iria quebrar todas as suas
concepções de mundo que formou por séculos? Depois de algumas
horas você sairia de lá praticando magia branca?
– Não, minha pequena desmiolada – comentou Mustse – pessoas que
possuem poder mágico fraco que são atingidas por essa tortura. Se eu a
torturasse lá, por exemplo, eu poderia fazê–la seguir qualquer linha da
magia.
– Eu não tenho poder mágico fraco – argumentei.
– Comparado a mim você tem. Ou seja, você poderia realizar o processo
em alguém de menor poder que você. No meu caso, somente um
magista de maior poder que eu me provocaria alguma alteração.
– Legal... e qual o sentido em fazer uma pessoa perder a capacidade de
escolha? – perguntei.
– Você disse que todas as magias são igualmente poderosas e o resultado
final depende do operante e de suas convicções de mundo, mas isso é
falso. Existem os operantes fortes e os fracos. Os fortes sempre irão se
destacar na linha da magia que escolham. E os fracos sempre serão
fracos, mesmo que escolham a linha com que “mais se identifiquem”.
– Mas mesmo que isso esteja correto, não exclui a afirmação inicial;
somente a última parte – observei – “todas as magias são igualmente
poderosas e o resultado final depende do operante”. Não depende das
convicções de mundo da pessoa, mas somente em seu potencial para o
poder. Se alguém tem uma vontade genuína de praticar magia, assim
como a disciplina necessária para realizar o treinamento completo, isso o
torna um praticante forte. No caso de o praticante possuir objetivos
múltiplos e não conseguir a disciplina para seguir o que realmente
importa, será um praticante fraco.
– Isso está parcialmente correto – observou Mustse – também existem
os naturalmente inteligentes e os naturalmente burros. Uma pessoa
inteligente, mesmo que divida seu tempo em outras coisas, devido a uma
concepção lógica forte será um praticante superior a um estúpido que se
dedica em tempo integral, mas que nada penetra em sua cabeça–dura,
pois sua linha de pensamento e prática são naturalmente pobres. Mesmo
assim, existem linhas da magia mais poderosas que outras por si mesmas.
– Então você acha que a magia negra é superior a todas as outras? –
perguntei.

163
Juliana Duarte

– Isso só pode ser provado em duelo. Sou um dos magistas mais


poderosos do Mundo Negro. Se eu for derrotado por um mago de outra
linha que não seja o mais poderoso do seu mundo, observarei essa cor da
magia com atenção, pois é possível que seja mais poderosa que a negra.
Caso eu seja derrotado pelo operante mais forte de outra cor da magia,
isso pode indicar que tanto a negra quanto a outra linha em questão são
igualmente poderosas. Mas para uma conclusão definitiva, somente se
houvesse uma grande guerra entre todas as cores, cada uma por si. Dessa
forma o vencedor provaria a superioridade da cor, já que envolveu uma
quantidade considerável de magos poderosos para o teste.
– Uma “guerra teste”? Que abominável! – comentei – Qual a utilidade de
exterminar os maiores mestres de cada linha? Para unificar toda a magia
numa cor só, que provou ser a mais poderosa? Isso destrói a diversidade.
– Isso destrói a fraqueza – falou Mustse – caso o Mundo Negro fosse
derrotado, eu iria seguir a cor campeã sem reclamar, já que provou ser de
maior poder.
– Você não seguiria. Pois você estaria morto.
– Os fracos merecem a morte – afirmou Mustse.
– Ouvi falar que houve grandes guerras entre os mundos no passado.
Não se descobriu a cor suprema?
– Essa foi uma guerra antiga. Ocorreu há milênios. A maior parte da
população de todos os mundos foi dizimada e passou–se por um longo
processo de reconstrução. Os vencedores da guerra foram os magos
octarinos.
– A–há! Os magos piadistas – falei – está na hora de você treinar
algumas piadas para obter o poder supremo, não acha, senhor sério?
– Quanta ignorância. Dizer que os magos octarinos são piadistas é a
mesma coisa que dizer que os magos negros são assassinos. Alguns
magos octarinos lidam com a piada como instrumento de poder, assim
como certos magos negros trabalham com sacrifícios, mas isso não é
essencial. O foco do mago negro é a busca de poder, geralmente
realizada através da evocação de demônios, que não ocorre por
sacrifícios em todas as vezes. Por sua vez, o mago octarino escolhe um
caminho e o trilha escolhendo as ferramentas que funcionam em seu
cérebro. Foi constatado que o sacrifício é uma boa ferramenta para
provocar certas sensações no cérebro nos momentos da evocação. O

164
Guerra das Cores Perdidas

mago octarino não se foca nas ferramentas e sim na própria magia. Por
isso também é chamada de magia pura. Basta que a magia aconteça.
– Então a sua dúvida já foi respondida há milênios – falei – largue a
magia negra e torne–se um mago octarino.
– Sinto informar que eles ganharam a guerra devido à tecnologia
avançada e não à magia em si. Claro, foi uma combinação de magia e
tecnologia. Mas caso os outros mundos possuíssem tecnologia
semelhante, o resultado da guerra poderia ser outro, o que não prova
nada.
– Então vão ter que destruir os mundos tudo de novo para descobrir –
falei – por que somente os magistas não se matam e deixam os cidadãos
em paz?
– Pessoas medíocres vivas ou mortas não fazem a menor diferença.
– Mas não existe somente magia no mundo. Existem alfaiates,
carpinteiros, pintores, engenheiros, médicos, cozinheiros, que, se não
existissem, você não possuiria aquelas espadas belíssimas, varinhas
cravejadas de cristais, mantos elaborados e toda a parafernália de um
mago.
– Existem tipos de magias capazes de produzir todas essas coisas: magias
de cura, alquimia, materialização de objetos.
– Se todos os animais e pessoas forem exterminados você terá que
sacrificar vegetais para evocar um demônio de novo – argumentei.
Era difícil ter algum diálogo com ele. Eu duvidava muito que mesmo
aquela sala de tortura mágica dirigida por um operante poderoso fosse
capaz de fazer Mustse mudar de ideia sobre a divisão entre “pessoas
inferiores mundanas” e “pessoas superiores mestres de magia avançada”.
Mais alguns meses se passaram, em que fortifiquei meu contato com
meu demônio e descobri alguns de seus poderes. Li mais grimórios de
magia avançada e aumentei meu conhecimento sobre certas magias
antigas não cerimoniais. Até que, no meu aniversário de 17 anos, Mustse
me presenteou com um grimório escrito por ele.

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Juliana Duarte

O Anjo Imortal

Eu não podia acreditar que já estava vivendo há mais de quatro anos


naquele mundo. Minha vida tinha virado de cabeça para baixo desde a
cerimônia em que minha irmã tornou–se papisa. Quem seria o novo
papa?
Mustse criticava tanto a magia do meu povo que acabei acreditando que
éramos realmente fracos. Por outro lado, valia a pena possuir aquela
enorme quantidade de poder submetendo–se às vontades de demônios?
Mustse via de outra maneira, já que os demônios que nos serviam. No
entanto, eles exigiam um preço.
Eu não achava tão difícil ter que guardar numa garrafa uma pequena
quantidade do meu sangue diariamente. Era um ritual diário como tomar
banho e escovar os dentes. Ir a um cemitério aos sábados e derramar
gotas do sangue da garrafa também não seria nada demais, não fosse a
exigência de abrir os caixões para pingar o sangue nos lábios dos mortos.
Por acaso Garfdie planejava reunir um exército de mortos–vivos para
uma operação de necromancia? O coveiro já estava de olho em mim e eu
precisava de cada vez mais cautela.
Uma vez escutei que necromancia era uma área forte no Mundo Negro.
Mas Mustse era tão envolvido com goécia e mexia tão bem com isso que
deixava a necromancia um pouco de lado. Mas como eu só podia
trabalhar com Garfdie desde a conjuração, resolvi reservar parte do
tempo para aprender algumas operações envolvendo espíritos dos
mortos.
Mustse me explicou que a necromancia poderia ser quase tão poderosa
quanto a goécia, caso se invocasse um espírito de algum mago
poderosíssimo do passado. Ele disse que a magia negra praticamente se
dividia entre essas duas linhas: goécia e necromancia.
– Por que você não me disse isso desde o começo? – perguntei – Assim
eu teria possibilidade de escolher.
– Porque, como seu mestre, você teria que seguir a minha linha. Eu não a
guiaria tão bem em necromancia quanto a guio em goécia. Teve uma
época da minha vida em que me envolvi fortemente com necromancia,

166
Guerra das Cores Perdidas

mas a goécia provou ser mais eficaz para mim. Por isso centrei–me nela.
– Claro, você conseguiu o demônio mais poderoso. Mesmo invocando o
espírito do mago morto mais forte seria complicada uma equivalência.
Até porque almas avançadas tendem a reencarnar logo para continuar a
evoluir, em vez de servir de lacaio para outros.
– Um mago realmente poderoso não morre. Portanto, ser poderoso com
necromancia é uma falácia.
Como sempre, Mustse tinha muita facilidade em criticar um sistema que
ele não seguia.
Magia negra era lidar com coisas perigosas, polêmicas e assustadoras
para despertar em nós o medo que sentíamos de todas essas coisas e,
com essa sensação, gerar euforia, êxtase, adrenalina. Nesse estado
psicológico era possível libertar uma carga de poder tremenda.
Lidar com espíritos, fantasmas, mortos–vivos, demônios, morte, tortura,
sacrifícios, eram meios eficazes para gerar a emoção que leva ao poder.
Mas Mustse já havia neutralizado o seu medo em relação a certas coisas,
o que o fazia ficar entediado e procurar novas experiências. Uma vez
perguntei por que ele não trabalhava com maldições e ele simplesmente
respondeu que algumas vezes até matar alguém já não surtia o efeito que
ele buscava. Maldições só seriam eficazes se fossem muito criativas.
Escolhi comer um bolo de milho no desjejum. Servi também leite com
chocolate. Mustse geralmente acordava mais cedo que eu, mas naquela
ocasião tomávamos café na mesma hora. Então me lembrei de
perguntar:
– Como vai sua cobra? Ela tem um nome?
– Sacrifiquei–a num ritual – respondeu ele – por que ela teria um nome?
– Porque você disse que sabe o nome de seus aliados de magia.
– Conheço o nome quando eles já possuem um. Não dou nomes. Eu me
referia a demônios.
– Por que você sacrifica seus bichinhos de estimação? – perguntei,
sentindo pena pela cobra – Ela já devia estar se apegando a você.
– Suas observações são absurdas. De qualquer forma, tenho uma aranha
agora.
– A sua próxima vítima?
– Possivelmente.
– No seu grimório você recomenda que o praticante conviva com o

167
Juliana Duarte

animal de sacrifício por alguns dias ou semanas antes da ocasião do ritual


– falei – isso é para gerar em si mesmo um choque pela morte ou para
energizá–lo nesse período?
– Ambos.
– Nesse caso, eu sou seu animal de sacrifício – concluí – está convivendo
comigo para me preparar magicamente e tentar gerar em você algum
sentimento pela minha morte, já que não tem mais efeito com animais.
– Você está começando a ficar inteligente.
Aquelas palavras vindas de Mustse eram um elogio. Só não agradeci
porque estava mastigando o bolo. E ele apenas continuava a beber sua
xícara de café com leite para iniciar mais um dia como todos os outros.
De noite quando retornei do serviço, depois de um dia delicioso cheio de
sucos, biscoitos e ar geladinho do ar condicionado, fiz um pedido antigo
a Mustse: visitarmos a sala secreta número 1. Lembrei que não a
tínhamos visitado ainda, porque passei mal quando vi a sala 2.
Escolhi aquele dia para o pedido, pois lembrei que era uma data
importante no meu mundo: o dia do ano em que eram realizadas as
cerimônias mais importantes da ordem monástica, como coroação de
novos papas, coroação de altos sacerdotes ou celebrações
comemorativas. Também queria estar fazendo algo importante nesse
momento, mesmo que eu estivesse em outra dimensão.
Mustse uma vez havia mencionado que todos os mundos conhecidos
existiam no “mesmo lugar”, mas em realidades paralelas diversas. Ou
seja, era o mesmo planeta, com mesma duração do ano, dias e noites,
tudo igual. Mas fora essa semelhança, todo o resto era diferente, com
exceção de certas influências herdadas de outros mundos devido ao
contato no passado, com as guerras.
Ele sabia dessas coisas porque conhecia algo sobre viagens entre
mundos. Claro que ele não queria me dar detalhes sobre isso para que eu
não descobrisse sozinha como voltar ao meu mundo.
– Depois de irmos à sala, vamos ao cinema? – propus.
– O que uma coisa tem a ver com a outra? – ele perguntou – Quem está
te fazendo um favor sou eu. Você que devia me dar algo em troca por eu
te mostrar a sala.
– Essas visitas às salas secretas costumam fazer com que eu me sinta mal
– justifiquei – então para compensar precisarei de um pouco de

168
Guerra das Cores Perdidas

animação depois. Podemos passear pelo shopping, olhar as vitrines de


roupas, comer pipoca no cinema e depois ir ao fliperama.
– Você realmente acha que eu desejo fazer qualquer uma dessas coisas?
Faz cem anos que não vou ao cinema e que não piso no shopping.
Minhas roupas eu encomendo pela internet. Odeio jogos e pipoca.
– Seu estraga–prazeres. OK, vamos para a sala 1 e depois vou ao
banheiro vomitar. Parecem bons planos para a noite.
– Depois de visitarmos essa sala, você terá um dos seus acessos de
idiotice, vai começar a chorar, me chamar de cruel e sádico e fazer um
discurso de filosofia barata sobre a vida e a morte. Prometa que irá
poupar–me disso e mostrarei a sala.
– Sim, mestre. Vou me comportar.
Eu sorri ao dizer isso. Ele ficou mais desconfiado ainda.
Caminhamos em silêncio até a torre gelada. Aquela parte do castelo era
tão deserta que os sons de nossos passos ecoavam pelos corredores
vazios.
Por fim, ele abriu a porta da sala 1.
Baseado no conteúdo das outras salas, pensei que fosse encontrar
instrumentos de tortura ou assassinato, utensílios de magia ou cadáveres.
Eu não esperava ver uma pessoa viva.
Mustse entrou primeiro que eu. No momento em que ele entrou, ouvi
gritos e choro vindo de dentro da sala. Mas quando eu passei pela porta,
a moça lá dentro silenciou na mesma hora e fitou–me com espanto.
– Wain... é você?
Eu levei um susto. Era Clarver, a maga branca. Só podia ser ela.
– Você está muito diferente, Wain – comentou a maga branca – está
crescida e bonita... onde esteve por tanto tempo? Você está vivendo com
esse monstro...?
Clarver também estava diferente. Na prisão ela tinha uma expressão
abatida, estava magra, suja e doente. Espantei–me ao descobrir que ela
estava ainda pior.
A sala 1 era como uma cela, embora fosse mais limpa e espaçosa. Clarver
parecia bem alimentada e não estava suja. Estava sem as asas, que foram
cortadas naquela ocasião. No entanto, seu estado psicológico parecia
horrível. Embora fisicamente estivesse melhor, psicologicamente ela
estava infinitamente pior.

169
Juliana Duarte

Aproximei–me para abraçá–la. Os cabelos dela estavam macios e


cheirosos. Bem diferentes daqueles cabelos maltratados e sujos de
antigamente. O banheiro daquela cela era bem mais limpo.
Contudo, o vestido branco que ela usava estava todo rasgado. Na
verdade ela estava parcialmente nua.
Os olhos dela estavam muito vermelhos, de tanto chorar. Ela estava com
olheiras e a sua expressão era triste e sem esperança. Desesperada, vazia.
Era o rosto de quem tinha perdido a vontade de viver.
– Ela estava aqui o tempo todo – falei a Mustse – e você não me disse.
– Se você soubesse, iria desviar a atenção de seu treinamento –
respondeu Mustse – você se encontrava numa etapa importante e não
podia se distrair.
– Por que você me trata tão bem e a trata tão mal? Foi assim desde o
começo. Eu e ela não somos diferentes. Somos prisioneiras vindas de
outros mundos.
– A diferença está nas escolhas que vocês fizeram – respondeu Mustse –
você aceitou abandonar a magia de seu mundo para estudar a magia
negra. A maga branca negou–se. Sendo assim, cada uma é tratada da
forma que merece. E ela não pode reclamar. Sempre dou a ela as sobras
de todas as refeições do castelo. É comida de qualidade. E aqui ela tem
muito mais conforto e higiene do que na cela ou no calabouço. Ela tem
até um sabonete para tomar banho e uma escova de dentes.
Eu me lembrava do tempo em que uma escova de dentes era um luxo
para mim. Ainda assim, ele não me convenceu. A expressão horrível e
assustada de Clarver denunciava tudo. Ela não tinha um rosto assim na
prisão.
– Ela gritou e chorou quando te viu entrar – falei – você a tem torturado.
É mais um de seus experimentos? Você matou o anjo guardião dela,
cortou–lhe as asas. O que mais você quer dela? Tem a ver com a magia
branca?
Eu não conseguia entender. Mustse odiava magia branca. Então por que
ele deixava a maga branca viva? Ele matou todos os sacerdotes de meu
mundo quando percebeu que eram fracos. Ele já tinha constatado que
Clarver era fraca e poderia tê–la matado mil vezes.
– Você não entende – falou Mustse – o anjo dessa desgraçada ainda está
vivo.

170
Guerra das Cores Perdidas

Eu levei um susto quando ouvi isso.


– A magia branca é muito mais poderosa do que pensei; ou talvez a maga
branca o seja. Ou ambos. Essa foi a primeira vez que falhei em assassinar
uma potência com Lamue.
– Você está errado – falou a maga branca, com voz fraca – você matou
Bikham. Mas Deus falou comigo em meus sonhos e disse que me daria
uma segunda chance. Afinal, Deus perdoa, principalmente às almas
sinceras e de bom coração. A alma de Bikham retornou a Deus e Ele
devolveu–a para mim uma vez mais. Deus sabia que eu ainda precisava
dela. Ele tudo sabe.
– Isso é o que você diz – falou Mustse – não acredito em Deus. Se algo
assim existisse, eu, que já assassinei milhares de pessoas e animais de
diferentes raças e mundos, não teria uma vida de luxo, não seria
milionário, governante supremo do meu mundo, repleto de poder
político e espiritual, tendo uma vida com a qual a maior parcela da
população jamais sonhou. Enquanto você, que crê em Deus, está tendo
uma vida miserável, trancafiada e sofrendo. Por que Deus não te liberta e
não pune a mim? Ou ele vai esperar morrermos para aplicar a punição?
Se for assim, será inútil, pois já terei recebido tudo do bom e do melhor
em vida. Tenho experiência em suportar a dor e a morte pelas minhas
operações, então qualquer castigo que ele me der não será suficiente.
– Deus não espera a morte para punir – falou Clarver – Ele não pune.
Cada um recebe o fruto dos seus atos aqui mesmo. Ele auxilia aqueles
que chamam por Ele. Os que não O chamam, o Senhor não perturba.
Através da vida que leva, você, Mustse, experimenta o tédio e o vazio da
existência. Embora tenha poder, fama e riqueza, você é infeliz e
eternamente insatisfeito. Enquanto eu tenho a Deus e para mim é o
suficiente. Tenho tudo enquanto você não tem nada.
– Se você é feliz tendo seu Deus, por que você chora? – perguntou
Mustse.
– Choro por você – falou Clarver – que não acredita em valores como
amor, amizade e confiança. Acha que uma vida é somente objeto de
estudo e um instrumento de sacrifício para que realize suas experiências
mágicas. É esse o seu erro. Eu tenho pena de você.
Mustse deu um tapa na cara de Clarver. Ela caiu no chão, com os lábios
sangrando.

171
Juliana Duarte

– Cale–se, sua ovelha miserável! – gritou Mustse – Eu não preciso da sua


piedade! Você que precisa da minha. Sua vida está em minhas mãos.
Ainda jogada no chão, ela olhou na minha direção:
– Wain, você vai se tornar como ele?
– Ela está a caminho – informou Mustse – já realizou uma conjuração
com um demônio maior e diversos sacrifícios animais.
– Você sempre pode voltar – falou a maga branca – ainda é tempo. Deus
perdoa a todos que realmente se arrependem.
Mustse chutou o rosto dela.
– Pare com isso! – falei, com urgência.
– Ela é apenas um coelho covarde cuja única esperança é um Deus
inventado – falou Mustse – por que eu deveria parar se ela não para de
falar nesse Deus nojento? Está tentando me catequizar? Quanta
ingenuidade. Eu admito que a figura de um Deus possa ser usada como
o arquétipo de um ser de bondade e sabedoria infinitas para o qual os
magos brancos realizam uma oração científica e simbólica. Os anjos
existem de fato, mas falar de Deus da maneira que você coloca é
desagradável. Um verdadeiro mago branco usa Deus somente como
ferramenta e não como objeto de adoração.
– Você diz isso porque não conhece magia branca a fundo – falou a
maga branca – mas eu não vou discutir isso com você. Não vale a pena
qualquer diálogo nesse sentido. A única coisa que você entende é poder.
Só se algum mago branco assassinar Lamue você terá interesse nessa
linha da magia e em Deus.
– Eu realmente desejo encontrar um mago com maior poder que eu, mas
esse alguém não é você – falou Mustse – portanto, se não quer aprender
magia negra você é dispensável. Fiquei um pouco surpreso quando
soube que seu anjo ainda estava vivo, mas basta matá–lo do jeito certo
dessa vez. E se o que você diz é verdade, se “Deus” reviveu seu anjo,
você é mais fraca do que eu imaginava e até a minha discípula vai
conseguir matar sua potência.
Eu duvidava muito que eu conseguisse. Clarver era muito mais poderosa
do que eu. De qualquer forma, eu a considerava uma amiga. Não ia
duelar com ela.
– Farei uma proposta – prosseguiu Mustse – aquela que matar a potência
da outra terá permissão para retornar ao seu mundo de origem. Não

172
Guerra das Cores Perdidas

estou nem mesmo pedindo para se matarem. Basta destruir a potência.


Estou sendo convincente. Assim que esse duelo terminar, abro um
portal e levo a vencedora de volta ao seu mundo. Têm a minha palavra.
Eu honro minhas promessas. Podem começar.
Aquilo foi inesperado. Nós duas levamos um grande susto e nos fitamos.
Será que era assim tão fácil? Se Mustse soubesse ir para outros mundos
assim, a qualquer hora, ele já teria conhecido os mestres das outras linhas
da magia, com os quais ele tanto queria duelar. Ele precisava ser evocado
para ser levado a outro mundo ou evocar um ser de outra dimensão para
que aparecesse diante dele.
– Não vou aceitar isso – falou Clarver.
Eu também me neguei.
– Você está desobedecendo às minhas ordens? – Mustse me perguntou –
Estou ordenando que você evoque Garfdie e ataque a maga branca. Ela
não terá escolha senão chamar seu anjo guardião para defendê–la.
– O que acontece se eu me negar a obedecer? – perguntei, com um
pouco de medo da resposta.
– Irei levá–la para a sala 6. Por cinco horas.
Eu seria torturada. Pelo menos não seria a sala 4, que envolvia tortura
por métodos mágicos, portanto, muito mais grave. Ainda assim, sofrer
uma tortura física já seria um trauma bem grande. Até então, Mustse
nunca havia me torturado diretamente. Eu esperava que essa não fosse a
primeira vez.
Lá estava eu: com um vestido roxo bonito, sapatinhos e meias, brincos,
tiara no cabelo, colar, pulseiras e anéis. Usando um perfume caro, com
um brilho nos lábios.
E, diante de mim, estava meu oposto: uma menina aprisionada, com
roupas rasgadas, alimentando–se de restos, resistindo bravamente para
conseguir sobreviver.
Eu não queria ser ameaçada até o dia de minha morte e obedecer a
ordens absurdas somente para continuar a ter uma vida de luxo e
aprender uma magia que envolvia sacrifícios. No futuro Mustse ia me
mandar matar seres humanos. Se eu ganhasse aquele duelo e ele me
levasse de volta ao meu mundo, claro que ele não ia me largar lá. Ele ia
ameaçar matar meus pais ou até mesmo me ordenar a matá–los. Ia fazer
chantagem para não me perder.

173
Juliana Duarte

Por que ele não queria me perder? Talvez porque, no meio de uma vida
de tédio e riqueza vazia, eu fosse a única coisa que fizesse sentido.
Quando escutei sobre a ameaça de tortura, eu quase me vi pronunciando
as palavras “Desculpe, Clarver”, puxando meu bastão mágico e atacando
a maga branca. Afinal, eu não teria escolha. Se eu o obedecesse não seria
torturada. Se destruísse o anjo, talvez eu fosse elogiada por Mustse e
receberia o prêmio de voltar ao meu mundo.
Mas aquilo não seria um prêmio. Mustse não tinha o direito de fazer
aquilo comigo. Ele havia me arrancado do meu mundo e tinha a
obrigação de me devolver a ele. Não importava que ele tivesse me
ensinado magia e me dado presentes. Ele havia me raptado e destruído
minha liberdade. Eu não devia nada a ele. Ele que estava em dívida
comigo por toda a vida pelo assassinato da minha irmã, dos sacerdotes
do meu povo e por ter me feito sofrer tanto.
Como Clarver falou, tudo aquilo que Mustse tinha – e,
consequentemente, tudo aquilo que eu tinha – era vazio. Não tinha mais
significado viver daquela maneira. Era o momento de dizer adeus.
Se eu simplesmente dissesse que iria embora, Mustse iria me impedir e
me atacar. Por isso, eu precisava utilizar alguma chantagem emocional.
– Mestre – eu falei, finalmente – por que as roupas de Clarver estão
rasgadas?
– Não é você quem faz as perguntas aqui – retrucou Mustse – Eu te
mandei evocar Garfdie e matar o anjo da maga branca. Você vai me
obedecer, ou por acaso seu maldito respeito pela vida está te
contaminando? Se for assim, algumas horas na sala de tortura irão fazê–
la se curar dessa sua doença.
– Mestre – eu repeti, ignorando o que ele disse – eu tolero, com muito
sacrifício, a sua prática de matar e torturar para que seja criada a
atmosfera ritual. No entanto, o que você fez à Clarver não pode ser
perdoado.
– De que está me acusando? – perguntou Mustse – O que fiz envolve
tortura. Ela precisava ser punida.
Meu coração acelerou. Então era verdade.
Senti lágrimas nos meus olhos. Fitei Mustse com nojo e ódio.
– Eu te odeio. Você não é mais meu mestre.
– Do que está falando? – perguntou Mustse – Está louca? Está pedindo

174
Guerra das Cores Perdidas

para ser morta.


– Eu estava louca durante esses quatro anos. Mas agora finalmente
acordei. Não quero mais viver aqui. Não quero te ver nunca mais. Você
vai me impedir de partir?
– Tente escapar se quiser. Não importa onde se esconda, eu irei
encontrá–la e matá–la.
Fui para o lado da maga branca.
– Tente me matar – ameacei.
Alcancei meu bastão, tracei o círculo de poder e o selo. Pronunciei as
palavras mágicas na língua antiga e evoquei Garfdie.
Mustse evocou Lamue. Fitou–me desapontado.
– Eu já sabia que um dia isso aconteceria, mas achei que você seria mais
inteligente de me desafiar somente quando estivesse mais forte – falou
Mustse – poderia ter aguardado eu te passar mais ensinamentos secretos
para usá–los contra mim. Você se precipitou.
A maga branca também se levantou. Traçou seu círculo e evocou, numa
língua linda, seu anjo guardião; brilhante e sublime.
Claro que aquilo não adiantaria nada. Lamue havia assassinado trinta
sacerdotes do meu mundo sem a menor dificuldade, além dos altos
sacerdotes e da própria papisa. Eu e Clarver, mesmo juntas, não
tínhamos a menor chance. Lamue mataria Garfdie, mataria novamente
Bikham e nós duas seríamos punidas de uma maneira horrível.
Mesmo assim, eu entendi que qualquer coisa que acontecesse comigo era
melhor do que ser um mero fantoche nas mãos dele.
– Você é mentiroso – falei – não sabe como ir para os outros mundos.
Só conheceu o Mundo Verde porque foi evocado por sacerdotes do meu
povo. Só conheceu o Mundo Branco porque foi evocado por Clarver.
Tudo o que você sabe é retornar ao seu mundo, caso consiga quebrar o
selo de proteção do magista que te evocou. E por todos esses anos
acreditei em suas mentiras e fiz o que você me ordenava, com a
esperança de voltar ao meu mundo.
– Se eu sou mentiroso, você é uma falsa desgraçada – retrucou Mustse –
você amou a prática de magia negra e o poder que te dei. Amou o luxo, o
conforto e os presentes que te ofereci. Eu sabia desde o começo que não
podia confiar em você. Que um dia você se voltaria contra mim por
algum motivo estúpido. Eu não te devolvi ao seu mundo porque eu não

175
Juliana Duarte

podia. Quem me evocou de volta ao Mundo Negro nas ocasiões em que


fui levado a outros planos foi Betah. Numa evocação desse tipo todos os
seres vivos maiores que estão próximos também são evocados. Eu não te
trouxe aqui porque quis. Também não trouxe a maga branca porque eu
quis. Eu que fui levado a outros mundos contra minha vontade.
Aquele discurso não me convenceu. Ele queria se fazer de vítima? E eu
nem sabia que a simpática jardineira do castelo mexia com magia.
– Vocês que me perturbaram – prosseguiu Mustse – vocês que me
raptaram. Eu apenas puni meus captores, da mesma forma que vocês
agora querem me punir por um rapto que nunca ocorreu. Eu poderia
simplesmente ter largado vocês duas na rua para que morressem, mas eu
não fiz isso.
– Mustse – resolvi chamá–lo pelo nome – se acontecesse o mesmo
comigo e eu fosse evocada por acidente por seres de outro mundo,
mesmo que eu tivesse o poder não tentaria matar meus captores. Eu iria
tentar me comunicar com os seres do outro mundo, ensinaria a eles o
que eu pudesse sobre o lugar em que vivo, aprenderia com eles também
e juntos tentaríamos encontrar uma solução para me enviar de volta. Se
isso não fosse possível, tentaria viver entre eles pacificamente.
– Os sacerdotes de seu mundo não me evocaram por acidente – falou
Mustse – o papa anterior do Mundo Cinza era estúpido. Ele tentou
evocar um ser do meu mundo somente para ver como era. Ele me tratou
como um demônio, tentando me forçar a obedecê–lo, ordenando que eu
me ajoelhasse, me atacando. Ele fez comigo o mesmo que fazemos aos
demônios aqui. No entanto, numa operação de goécia os demônios
existem para servir, para pagar uma dívida. Eles encarnam como
demônios para, através do processo de servidão advindo do sistema,
destruírem o karma ruim da vida anterior. Os habitantes do Mundo
Negro são seres humanos e ele me tratou como se eu fosse uma besta,
sem o menor respeito, tentando me dominar ou me matar. Eu apenas me
defendi. Quando a papisa me evocou também queria me matar.
Novamente, apenas dei o troco.
O que ele dizia fazia sentido. Ele matou somente os sacerdotes que
tinham a intenção de assassiná–lo. Grina e eu não o atacamos. Ele
assassinou nossos animais totem por receio que, através deles,
tivéssemos algum poder para feri–lo. Sem eles, ficávamos vulneráveis.

176
Guerra das Cores Perdidas

– A maga branca me evocou com a mesma intenção – explicou Mustse –


com o auxílio do anjo queria me ordenar a ser seu escravo. Isso acontece
porque os seres de outros mundos não entendem nada de magia negra e
acabam confundindo os habitantes daqui com nossos demônios. Por
exemplo, se um habitante daqui tentasse evocar um anjo, talvez acabasse
evocando um mago branco. Se tentássemos evocar um elemental,
poderíamos evocar um habitante do Mundo Cinza. Na tentativa de criar
um servidor, poderíamos acabar evocando um habitante do Mundo
Octarino, o que já ocorreu uma vez, numa ocasião em que outro
sacerdote estúpido do Mundo Cinza resolveu mexer com servidores. Só
os magos vermelhos estão a salvo, já que não mexem com evocações.
Por isso não sabemos quase nada sobre eles. Dizem que são os únicos
com conhecimento de viajar para outros mundos por vontade própria
sem o auxílio de evocação. Mas a maioria deles é tão focado no próprio
treinamento que não tem interesse nisso.
Ou seja: tudo aquilo era um grande mal entendido. A falta de
conhecimento sobre os outros tipos de magia pelos habitantes de cada
mundo gerava desentendimentos tão grandes que no passado geraram
guerras. E o motivo da guerra era um só: a curiosidade. As pessoas
desejavam saber um pouco mais sobre os outros mundos, sobre os
demais tipos de magia. A falta de contato acabava gerando uma grande
xenofobia e preconceito.
Mas nada daquilo excluía o fato de que Mustse havia nos tratado de
forma desumana. Não importava o que ele argumentasse: eu sabia que
no fundo ele estava errado e nenhuma lógica iria me convencer do
contrário.
– Você diz que os habitantes dos outros mundos têm preconceito contra
os magos negros – falei – mas eles estão certos. Embora haja exceções, a
prática de magia negra muitas vezes torna a pessoa ruim, perversa,
propensa a atos absurdos em troca de poder.
– O poder não é tudo, mesmo na magia – falou Clarver – se um dia você
conhecer outros sistemas mais a fundo entenderá que o objetivo dos
magos não é duelar uns com os outros, se matarem ou tentar achar
alguém mais forte. É viver com harmonia, paz, adquirir conhecimento,
sabedoria. Todos podemos evoluir juntos, aprendendo as magias uns dos
outros. Ou pelo menos evoluir na nossa linha respeitando os outros

177
Juliana Duarte

sistemas e os outros habitantes.


– Você não quis aprender magia negra – falou Mustse – então foi
preconceituosa, achando que meu sistema era inferior sem nem
conhecê–lo.
– Não quis ser forçada a aprender porque já encontrei o caminho da
magia que amo e com o qual me identifico – falou Clarver – e você devia
ter respeitado minha escolha. Você foi intolerante.
– Eu respeitei sua escolha. Não te forcei a aprender. Se eu realmente
quisesse isso, teria conseguido.
– Vocês vão ficar conversando ou vamos lutar? – resolvi perguntar –
Preciso gastar uma quantidade de energia enorme somente para manter
Garfdie materializada. Estou exausta.
– Você mal consegue mantê–la materializada e acha que pode desafiar
Lamue? – perguntou Mustse – A pergunta não é se vamos lutar. Se
estiver com vontade de morrer mais rápido, eu realizo seu desejo.
– As cores da magia e os outros mundos não têm nada a ver com a nossa
situação presente – resolvi dizer – eu e Clarver estamos nos opondo à
forma que você nos tratou desde que pisamos no seu mundo. O resto
não tem nada a ver. E não venha argumentar que você me deu presentes
e me ensinou magia. Você não fez isso para me ajudar. Fez somente
porque estava entediado e queria brincar comigo. Brincar de marionete.
Mustse não gostou do que ouviu. Sussurrou alguns dizeres mágicos a
Lamue, que, com a velocidade de um raio, avançou na direção de Garfdie
e Bikham. Bastou um movimento de Lamue para que Garfdie e Bikham
estivessem sangrando no chão. Elas não tiveram nem chance.
– E agora, o que eu faço com vocês? – perguntou Mustse – Tenho me
perguntando isso desde o princípio. Já fiz várias coisas, mas agora
acredito que eu deveria ter matado as duas desde o primeiro dia para não
ter que escutar acusações infundadas. Se estivessem mortas não seriam
tão má agradecidas. Principalmente você, Wain. Não venha me dizer que
você e a maga branca são iguais. Ela me evocou; você não. Portanto, ela
merecia punição maior.
Era a primeira vez que Mustse me chamava pelo nome. Eu confesso que
me senti muito estranha quando ouvi isso. De certa forma eu tinha me
apegado um pouco a ele, como se Mustse fosse meu pai; mesmo que um
pai muito cruel. Ele havia sido meu primeiro mestre no sentido real da

178
Guerra das Cores Perdidas

palavra. Até aquele dia eu só havia recebido algumas frases inspiradoras


de minha irmã, de Grina e de Clarver. A única lição real e completa que
recebi de magia foi através dele.
Mas eu precisava parar de pensar nisso! Ele era um monstro. Eu não
podia continuar vivendo com ele ignorando tudo o que já havia
acontecido.
– Uma vez você perguntou por que eu não fazia maldições – Mustse
dirigiu–se a mim – o motivo é que até hoje eu nunca havia me deparado
com uma situação em que eu não tivesse a intenção de matar meu
adversário. Mas a situação acaba de surgir. Outra opção seria levá–las
para uma das salas de tortura, mas para que caminhar se eu posso testar
uma ou duas maldições?
Senti um pouco de medo. Talvez eu preferisse ser torturada a ser cobaia
de métodos desconhecidos.
– O que desejam? A infelicidade eterna? Uma doença grave? Ou talvez
eu possa tentar uma tortura leve que exija poucos métodos.
Ele aproximou–se de nós duas, segurando–nos pelos cabelos. Arrancou
alguns fios. Depois disso, tirou dois pequenos bonecos de pano de um
dos bolsos. Enfiou os cabelos neles. Pegou uma agulha e começou a
espetar os bonequinhos.
Comecei a sentir sensações desagradáveis. Quanto mais fundo ele fincava
a agulha, mais eu sangrava. Clarver também estava sofrendo ao meu lado.
Ele amarrou uma fita no pescoço dos bonecos. Eu comecei a sufocar.
Não conseguia respirar! Depois disso, ele começou a atirar os bonecos
no ar.
Eu e Clarver começamos a levitar. Em seguida, fomos jogadas no chão.
Mustse lançou os bonecos na parede. Fomos arremessadas de encontro à
parede. Quase desmaiei com a dor. Depois disso ele fez algo pior: jogou
os bonecos no chão e pisou em cima.
Se ele tivesse pisado com vontade, como fez com meu esquilo, teria nos
matado instantaneamente. Mas ele não pisou para matar; só para causar
dor. Ainda assim, foi uma dor muito violenta.
Clarver aguentava firme. Ela já devia estar acostumada com as torturas
dele. Eu, por outro lado, que nunca sofrera tortura na vida, fora fome e
frio intenso, estava no meu limite. Eu não ia suportar.
– Pare! Chega! – gritei – Não aguento mais!

179
Juliana Duarte

Eu estava chorando e sangrando. Tive que fazer Garfdie desaparecer,


pois eu estava totalmente sem forças.
– O que acha de me obedecer a partir de agora? – propôs Mustse – Se
você prometer ser boazinha, irei apenas trancá–la no seu quarto. Pela
manhã irei destrancá–la e esqueceremos tudo o que aconteceu hoje. A
sua única punição será perder o jantar. Chamarei a camareira para tratar
dos seus ferimentos e amanhã tudo volta a ser como era antes.
Eu não ia cair nessa. Não queria mais saber de nada daquilo.
– E Clarver? – resolvi perguntar – Só aceito isso se você libertá–la.
– O que quer dizer com libertar? – perguntou Mustse – Se eu largá–la na
rua sem nada ela viverá como uma mendiga.
– Prefiro ser uma mendiga a ser uma prisioneira – falou a maga branca,
ainda no chão.
– Vamos fazer o seguinte, então – falou Mustse – a maga branca
receberá um dos quartos da casa. Ela terá o direito de visitar os
aposentos, com exceção das salas secretas, salas de evocação e minha
torre pessoal. Poderá até mesmo passear pelo jardim, mas será proibida
de sair das dependências do castelo. Nas ocasiões em que sair para
passeios, será somente acorrentada a mim, pois ela irá tentar fugir na
primeira oportunidade. Não conseguirá, pois será atentamente vigiada
pelos mordomos. O seu anjo não irá ajudá–la nessa empreitada quando
eu estiver fora de casa, pois Betah possui mais poder que você.
A proposta era impressionante, mas teria maior efeito se ele tivesse dito
aquilo no primeiro dia em que viemos para aquele mundo. Ou pelo
menos alguns anos antes.
– Não vou aceitar qualquer proposta que você fizer – falou a maga
branca, com convicção – prefiro morrer a viver sob o mesmo teto que
você.
Como eu queria ter forças para dizer aquelas palavras.
– Nesse caso, eu não tenho escolha a não ser mantê–la aqui trancada –
falou Mustse – você ficará trancada aqui no castelo de qualquer maneira.
Tem certeza de que não quer um quarto melhor?
– Se for para ouvir suas chantagens, prefiro continuar onde estou – falou
Clarver.
– Não quer nada mesmo? – insistiu Mustse – Nem mesmo uma faca
para se matar? Ah, esqueci que seu Deus não gosta dos suicidas. Nesse

180
Guerra das Cores Perdidas

caso, eu posso te matar para poupá–la do trabalho.


Eu já não tinha certeza de que a morte era a pior punição. Na situação
em que nos encontrávamos, talvez fosse melhor a morte. Viver como
uma prisioneira ou como um fantoche sem vontade própria era uma
desgraça.
Clarver já tinha feito o anjo retornar. Lamue também não estava mais lá.
Éramos somente nós. Por algum motivo, Mustse não estava a fim de nos
matar. Provavelmente se fizesse isso ele ficaria entediado de novo. Acho
que a única coisa que o impulsionava a continuar vivo era investigar mais
sobre os outros mundos, a magia das outras cores e os habitantes que lá
havia.
Mas ele não conseguia nos tratar bem. Ele tinha a necessidade constante
de afirmar sua superioridade sobre nós; queria nos ter somente como
escravas, prisioneiras; jamais como amigas.
– Eu não aguento mais – confessou a maga branca – não vou mais me
submeter a isso. Se quiser continuar a me torturar, mude o método. Use
seus bonecos de pano se preferir.
– Se eu usá–los com frequência você acabará morrendo – falou Mustse.
– Você tem dinheiro! Contrate uma prostituta! Me deixe em paz! – gritou
a maga branca.
Escutar aquela acusação tão direta foi meio chocante. Achei que Mustse
daria um murro nela pelo atrevimento, mas ele não fez isso.
Ele ficou em silêncio. Sentou–se no chão, encostando–se a uma das
paredes. Apoiou a testa com as mãos. Estava pensativo. Era a primeira
vez que eu o via daquele jeito.
– Mustse – resolvi falar – Está arrependido?
– Nunca me arrependo das coisas que faço – respondeu Mustse – isso é
somente um efeito colateral do meu pacto com Lamue. Foi a primeira
vez que se manifestou.
– Você nunca me contou qual foi o preço da sua conjuração – falei – por
favor, conte–me.
A princípio ele ficou quieto. Por fim, ele falou:
– O preço para que Lamue me servisse por toda a vida foi, nos meus
últimos anos, arrancar de mim o maior triunfo de um mago negro: o
controle absoluto sobre as emoções.
Para alguém como Mustse aquele devia ser o pior preço possível.

181
Juliana Duarte

– Lamue sabe exatamente quando e como irei morrer – explicou Mustse


– não falta muito. Eu não me importo com a proximidade da morte;
comecei a lidar com a ideia da morte desde o dia em que decidi tornar–
me um mago. Especialmente no caso de um mago negro clássico, que
precisa tirar vidas, é necessário preparar–se para a morte a cada segundo.
O problema não é a morte e sim o pacto.
Eu conhecia bem Mustse para afirmar que ele era uma pessoa que
aceitaria morrer numa boa. Até porque ele andava entediado, já tinha
vivido por centenas de anos.
– Não ter controle sobre as emoções significa simplesmente que a partir
de agora começarei a sentir as sensações estúpidas que muita gente sente
quando mata e tortura. Se eu vivesse como uma pessoa normal a partir
de agora, eu continuaria a ser quem sou. Mas se eu continuar a mexer
com magia, realizando evocações, sacrifícios e todos os fatores que
envolvem a magia avançada, posso começar a me sentir mal por matar.
Aquilo era surpreendente.
– Não tenho intenção de parar de praticar magia. Sendo assim, a melhor
escolha seria o suicídio, enquanto ainda sou eu mesmo. Ou isso ou mudo
minha linha da magia.
– Por que você não encerra o pacto que fez com Lamue? – perguntei.
– Eu perderia muito poder. Toda a minha base de magia está centrada
em Lamue. Eu odiaria ver outro praticante de magia negra com mais
poder que eu, controlando o meu demônio. Prefiro não estar vivo para
testemunhar isso.
– Quando e como você irá morrer?
– Não sei – confessou Mustse – Lamue não quer me contar.
Acho que era a primeira vez que Mustse dizia que não sabia alguma
coisa.
Mustse levantou–se.
– Muito bem. Já voltei ao normal. E agora, o que faço com vocês?
– Espere, eu não entendi – falou a maga branca – você só tem alguns
meses de vida?
– Possivelmente alguns meses ou até semanas. Não sei dizer ao certo.
Espero que sejam apenas mais alguns dias, pois não suportarei esse
estado por muito tempo. Vai destruir completamente tudo o que eu
acredito e o que sou.

182
Guerra das Cores Perdidas

– Então não faz muita diferença o que você vai fazer conosco – falou a
maga branca – apenas me libere da minha tortura nos próximos dias.
Talvez Deus tenha alguma piedade de você por esse último ato de
bondade.
– Não tenho intenção de ser bondoso e não reconheço seu Deus –
retrucou Mustse – sua tortura vai continuar. Exatamente a que você mais
odeia.
– O feitiço se voltará contra o feiticeiro – ameaçou Clarver – lembre–se
do seu pacto. Você vai se sentir mal e se humilhar na minha frente se
fizer isso.
Mustse pensou melhor.
– Maldita seja. Está liberada de sua tortura.
Senti–me aliviada. Clarver não fez nenhum comentário. Acho que ela
queria ter ouvido aquilo há muito tempo.
– Não quero mais saber – prosseguiu Mustse – se querem tanto assim se
livrar de mim, sumam. Vocês estão livres. Deem o fora daqui. Vou querer
vocês bem longe quando iniciar as minhas flutuações de emoções.
Nunca mais voltem aqui.
Aquilo foi inesperado. Ele estava falando sério. Era melhor sairmos logo
antes que ele mudasse de ideia.
– Não se preocupe, pois só levarei comigo os pertences que comprei
com meu salário – avisei – e vou arrumar outro emprego.
– Pode levar os presentes que te dei também – falou Mustse – não ligo.
Apenas seja rápida em arrumar suas malas. Peça para a camareira ajudá–
la.
– Preciso de uma roupa – falou a maga branca – não posso andar assim.
– Eu te dou uma, Clarver – falei.
Então era assim que terminava. Nunca mais iríamos vê–lo de novo. E eu
provavelmente jamais saberia como ele teria morrido.
No entanto, uma coisa completamente surreal aconteceu: um enorme
círculo de luz verde apareceu no chão, envolvendo a nós três.
Assim que enxerguei o círculo entendi tudo: aquela era a noite de
celebração dos sacerdotes de meu povo. E, depois de quatro anos, eles
finalmente tinham conseguido realizar outra evocação entre mundos: ou
para tentar me levar de volta ou para tentar punir Mustse. Seja qual
tivesse sido a escolha, eles teriam a nós dois ao mesmo tempo, além de

183
Juliana Duarte

uma convidada especial.

184
Guerra das Cores Perdidas

A Fúria da Natureza

Em poucos segundos, nós três surgimos dentro de um triângulo traçado


no chão; exatamente no local que ocorreu a evocação de Panl, há quatro
anos. Era surreal demais para ser verdade.
Eu estava de volta à minha terra natal. Finalmente.
O mestre do ritual era o novo papa ou ao menos se vestia como um.
Tratava–se da criatura mais estranha que eu já vira na vida. Cada
membro do corpo dele tinha uma cor de pele diferente: o braço direito
era amarelo; o esquerdo era azul; a perna direita era verde e a perna
esquerda era vermelha. O rosto, por sua vez, era completamente branco.
O olho direito era roxo; o esquerdo rosa. A metade direita do cabelo era
negra; a metade esquerda era laranja.
Ele segurava um cajado enorme. O chapéu era grande e extravagante.
Vestia o manto papal e sapatos de bico fino.
Ele abriu um largo sorriso quando nos viu. Depois bateu palmas.
– Jodu! Há quanto tempo! Se não é o meu grande amigo Mu!
Quando Mustse olhou para ele, a sua expressão era de alguém que
preferia estar em qualquer outro lugar do universo que não fosse diante
daquela criatura que batia palmas alegremente.
– Eu já te matei mil vezes em suas vidas passadas e você sempre volta
para me atormentar – comentou Mustse, de má vontade.
– Matou nada! Foi só uma coceira – o papa riu – que saudades, velho
amigo!
E o papa simplesmente entrou no triângulo e abraçou Mustse!
Surpreendentemente, Mustse não fez o menor movimento. Apenas
mantinha a expressão de irritação e aguardou que o papa o soltasse.
Depois do abraço, o mago esquisito retornou ao círculo de proteção,
dançando e pulando.
– Estava com medo de te pegar dormindo tão tarde da noite –
acrescentou o papa – um dia irei conseguir evocá–lo de pijamas.
– Com licença – observou um dos presentes, vestido com o manto de
alto sacerdote do fogo e carregando um imponente cajado com um sol –
não evocamos o demônio para matá–lo?

185
Juliana Duarte

– Acho que sim – respondeu o papa – mas há duas servas dele no


triângulo. Iremos matá–las também?
Aquele salão estava repleto de sacerdotes e monges. Até mesmo mais do
que na ocasião em que Panl realizou a evocação. Pelo jeito, eles não
temiam a morte.
– Não somos as servas dele – explicou a maga branca – somos
prisioneiras.
– Nesse caso, parabéns, vocês estão livres! – anunciou o papa – Podem
sair do triângulo e assistir ao espetáculo.
O papa abriu um portal para que apenas nós duas saíssemos do
triângulo. Mas ele não permitiu que Mustse saísse.
– Espere! – falou o alto sacerdote do fogo – Elas podem estar mentindo.
Podem ser poderosos demônios disfarçados.
– Sério? – riu o papa – Não sinto tanto poder vindo delas. As duas
possuem uma quantidade moderada de magia. E nenhuma delas é nativa
do Mundo Negro. Se não me estou equivocado, uma delas é do Mundo
Branco. A outra é do Mundo Verde, vinda do povo do norte.
Possivelmente a irmã desaparecida da papisa Panl.
Aquele cara sabia coisas demais. E de onde ele conhecia Mustse, afinal?
Ele definitivamente não era de nosso mundo e tampouco viera do
Mundo Negro. Possivelmente também não tinha vindo do Mundo
Branco, caso todos os habitantes de lá tivessem asas como Clarver.
Sendo assim, a minha possibilidade de adivinhação havia terminado por
aí. A não ser que ele fosse um mestiço. Era possível. Filho de pais vindos
de diferentes mundos. Mestiços eram uma raridade. A maioria havia sido
exterminada no passado.
– Quem é você? – resolvi perguntar.
– Sou o novo papa. Fui coroado nessa noite. Chapéu bonito, não acham?
– Mustse, quem é esse cara? – perguntei, ignorando a resposta do papa.
– Boofeng, do Mundo Octarino – respondeu Mustse – a última pessoa
que eu gostaria que me visse sob os efeitos do pacto.
– Sei do que está falando, Mu – sorriu o papa – Boof sabe de tudo. Sou
onipotente, onipresente e... ops! Mentira. Sei fazer ovos mexidos.
– Ele não sabe do que estou falando – explicou Mustse – mate–me logo,
Boofeng. Poupe–me das suas idiotices. Eu odiaria que sua voz fosse a
última coisa que eu ouvisse, mas parece que não tenho escolha.

186
Guerra das Cores Perdidas

– Ele tem poder para te matar? – perguntei, estranhando.


– Não sei, vamos ver – falou Mustse – Aceita um duelo?
– O prazer é meu – Boofeng fez uma reverência.
Mustse traçou um círculo no interior do triângulo e evocou Lamue. O
papa evocou os quatro príncipes elementais ao mesmo tempo: Gob,
Paralda, Djin e Nicksa.
– Você está brincando – comentou Mustse – pretende me enfrentar com
esses quatro lixos? Chame aquele seu servidor idiota.
– Quero seguir os costumes da casa – explicou Boofeng – estou no
Mundo Verde, então vou usar magia verde, oras! Depois te convido para
um chá no meu mundo e podemos fazer um novo duelo com servidores.
Boofeng cravou seu cajado no chão e evocou... um pato! Provavelmente
seu animal totem.
– Conheça Boofito – apresentou Boofeng – meu bichinho fofo.
– Adorável. Você vai morrer se não levar isso a sério – observou Mustse.
– Você está engraçado como sempre, Mu – comentou Boofeng – e
Lamue está saudável como nos velhos tempos. Só espero que suas
habilidades não tenham enferrujado.
Aquele Boofeng falava demais. Ele devia ter o hábito de bater papo no
meio de duelos de vida ou morte. Talvez essa tenha sido a razão de
Mustse já tê–lo matado mil vezes, como ele dizia.
Mas meu queixo caiu quando eu vi o poder daquele pato.
Surpreendentemente, o pato juntamente com os quatro príncipes
elementais eram adversários à altura de Lamue.
Lamue lançou os seus quadrados mágicos: aqueles pedaços de papel que
tinham decapitado os sacerdotes há quatro anos. Mas eles não tiveram o
menor efeito no pato ou nos príncipes elementais.
Lamue materializou uma foice de lâmina fina. Com ela, decapitou o pato.
No entanto, Boofeng riu quando viu isso.
– Não era o pato verdadeiro. Era um holograma. Ataque de Boofitos!
Dezenas de imagens de patos grasnando surgiram pelo ar. Era difícil
identificar o verdadeiro. Lamue atacou todos eles. Ele logo identificou
aquele que não teve o pescoço cortado.
Lamue soltou um tipo de gás roxo extremamente fedorento e tóxico.
Alguns monges na sala desmaiaram. Cobri o nariz e a boca com as mãos.
O pato ficou meio tonto. Os quatro príncipes elementais atacaram

187
Juliana Duarte

Lamue ao mesmo tempo, que foi lançado na parede.


Era a primeira vez na vida que eu via Lamue sofrer um golpe. Tanto eu
quanto Clarver ficamos impressionadas.
“Magia verde é fraca, Mustse?” pensei, triunfante. Ou seria o fato de ser
operada por um mago octarino? Ainda assim, ele estava usando a magia
de nosso mundo.
Mustse recitou dizeres mágicos que eu nunca tinha ouvido na vida.
Lamue transformou–se num enorme dragão! Obviamente, quebrou o
teto.
Para provocá–lo, Boofeng pronunciou os mesmos dizeres. O pato
transformou–se num cisne gigante e completamente branco. O dragão
deu uma dentada violenta no corpo do cisne, que começou a sangrar
horrivelmente.
No entanto, o duelo foi interrompido.
Os três altos sacerdotes e mais cinco magos rodeavam o triângulo em
que estava Mustse. Eles apontavam os seus cajados diante dele. De cada
cajado emanava um tipo de energia.
Lamue voltou à sua forma original de demônio. Mustse parecia meio
tonto. Os magos verdes estavam drenando sua energia. De onde eles
tiraram tanto poder? Por que não tinham feito isso na noite em que Panl
o evocou? Eu não entendia.
– Vocês interromperam na melhor parte – reclamou Boofeng – e o
atacaram enquanto ele estava distraído. Isso foi jogo sujo.
– Jogo sujo ou não, prometemos matar o demônio que assassinou
membros de nossa preciosa ordem – falou o alto sacerdote do fogo.
– Não o matem ainda – recomendou Boofeng – somente o lacrem. Não
permitam que ele seja evocado por alguém do Mundo Negro. Ainda
tenho algumas perguntas a fazer a ele.
A energia que os sacerdotes drenaram de Mustse foi tremenda. Ele mal
conseguia se manter em pé. Não teve energias para manter Lamue
materializado, que desapareceu por aquele momento.
Mustse estava restrito ao espaço do triângulo e não haveria meios de sair
de lá. Prenderam as mãos e pés dele com lacres mágicos e correntes
físicas.
Foi só então que entendi o que estava acontecendo. Havia uma época
rara em que os sacerdotes do meu mundo poderiam liberar todos os seus

188
Guerra das Cores Perdidas

poderes de uma vez só. Aquela era uma das ocasiões. A habilidade seria
mantida por no máximo alguns dias. Portanto, era melhor que
decidissem o que fariam com Mustse antes disso.
Meu povo não era assassino, mas era justo. Mustse havia matado muitos
sacerdotes de formas horríveis. Eu não duvidava que o matassem.
– Seu povo é muito poderoso – comentou Clarver – impressionante.
Enquanto Mustse estava preso ao lacre do triângulo, sem energias, os
sacerdotes debatiam sobre o que fariam com ele.
– Ele será morto, isso é fato – falou o alto sacerdote do fogo – mas antes
disso, sugiro que ele seja torturado. Todos os que ele matou revelaram
traços de morte sob tortura. Ele não poupou nem os animais. Realizou
mutilações e extração de órgãos com os bichos vivos. Esse monstro
merece a pior punição. Sugestões?
Na verdade houve muitas sugestões de diferentes tipos de tortura. Mas,
embora fossem torturas horríveis, o que Mustse costumava fazer era
muito pior.
Outros sacerdotes, por sua vez, mantinham silêncio. Alguns eram a favor
de uma morte limpa e rápida.
– Nosso povo não é violento – comentou um deles – não permitam que
esse mago negro contamine a pureza de seus corações. A alma dele irá
reencarnar num novo corpo após a morte e será nesse novo corpo que
ele limpará seu karma. Não sujem suas mãos de sangue.
– A natureza mata os seres vivos de seu meio de tempos em tempos.
Somos os representantes da natureza e iremos honrá–la. Com a morte
dessa criatura, o equilíbrio estará restabelecido.
Enquanto os sacerdotes debatiam, eu e Clarver fomos para perto de
Mustse e nos sentamos.
– Lamue é um excelente profeta – comentou Clarver – parece que eles
vão te matar amanhã. Você teve sorte. Afinal, era isso que você queria.
– Que ironia – comentou Mustse, quase sem forças; ele olhou para mim
– serei destruído pelo povo mais fraco. Em vez de te fazer aprender a
magia negra, eu devia ter te perguntado algo sobre magia verde. Se bem
que você não sabia de quase nada.
O papa resolveu se aproximar de nós. Sentou–se no chão ao nosso lado,
bem informalmente, com um sorriso estampado no rosto.
– Deixem esse sujeito carrancudo de lado – sugeriu Boofeng – falem–me

189
Juliana Duarte

sobre vocês. A irmã de Panl, hã? Estudou magia negra, ao que parece.
– Como sabe? – perguntei, interessada.
– Posso sentir a sua aura – explicou Boofeng – você realizou uma
conjuração com um demônio maior. Foi um grande feito. Você também
tem grande potencial para a magia verde. Mas isso depende do que
deseja. Poderia receber um novo animal totem e retomar o estudo de
magia verde de onde parou. Mas se quiser prosseguir no seu estudo de
magia negra também é possível.
– Vou pensar nisso – falei – ainda não decidi.
– Boofeng, você tem contatos em todos os mundos – falou Mustse – se
ela quiser seguir no estudo de magia negra ou iniciar–se em outra linha
de magia pode levá–la às outras dimensões?
– Claro – falou Boofeng – pode contar comigo, Mustse. Sua discípula
está em boas mãos. E o que faço em relação à maga branca?
– Acredito que ela deseje retornar ao seu próprio mundo – respondeu
Mustse – então leve–a de volta.
– Por que está tão bonzinho? – riu Boofeng – Virou um santo no
momento da morte? Se o conheço bem, você deve ter torturado essas
duas até o limiar da morte. Teve que fazer alguma cirurgia dessa vez?
Transplante de órgãos?
– Não as torturei tanto assim – falou Mustse – pelo menos não como eu
fazia com meus prisioneiros nos velhos tempos.
Boofeng ficou sério quando prestou atenção em Clarver.
– A maga branca precisa de um manto – constatou Boofeng – você fez o
que não devia com ela, não é?
– Não vou responder – falou Mustse – você que é o adivinho.
– Mu, você pode até torturar e matar, mas... isso não se faz. Não é digno
de um cavalheiro.
– Não me venha com sermões – retrucou Mustse – seu passado também
não é exemplar.
– Não me diga que você é aquele mago de outro mundo que tirou 99 no
teste para papa? – perguntei, impressionada.
– Dessa vez eu não escrevi o teste teórico de trás para frente e não
evoquei os príncipes debaixo da cadeira do aplicador – explicou Boofeng
– portanto, agora tirei 100.
– Eles vão realmente te deixar como papa? – perguntei, desconfiada –

190
Guerra das Cores Perdidas

Você não parece muito... formal para o cargo.


– É provisório – explicou Boofeng – fui chamado hoje para auxiliar na
captura de Mustse, pois eles sabiam que se alguém no universo era capaz
disso, seria eu. Mas os magos verdes estão em sua época de maior poder.
Creio que o teriam capturado mesmo sem a minha ajuda. O alto
sacerdote do fogo ficará como novo papa. Ele tirou segundo lugar com
95 pontos.
Se Panl tivesse evocado Mustse na época de poder máximo do Mundo
Verde, ela o teria dominado. Talvez a magia verde fosse realmente fraca
na maior parte do tempo, já que dependia mais da vontade da natureza
do que do operador. No entanto, naqueles momentos únicos em que a
natureza expressava sua fúria, os magos do meu mundo poderiam ser os
mais poderosos.
Quando os sacerdotes terminaram a reunião, o alto sacerdote do fogo
dirigiu–se a Mustse para informar o veredicto:
– Você morrerá em exatamente uma semana, ao nascer da primeira
estrela da manhã.
Ao dizer isso, o mago do fogo fez um movimento brusco com o cajado
que atingiu o rosto de Mustse. Um filete de sangue escorreu dos lábios
dele.
Era a primeira vez que eu via o sangue dele. Era de uma tonalidade
vermelha escura, quase negra.
Sinceramente, nunca vi uma cor de sangue tão linda. Talvez eu quisesse
ver uma maior quantidade daquele sangue, para distinguir a cor com mais
clareza.
Eu não tinha certeza se desejava ver Mustse sofrer. Ele merecia, isso era
uma verdade absoluta. Mas nenhum castigo seria suficiente.
Antes de tudo, ele era meu mestre. Vê–lo em um momento de fraqueza,
completamente dominado, era estranho.
– Irmã de Panl, revele–me o ponto fraco dos demônios – ordenou o alto
sacerdote do fogo.
Hesitei por um momento antes de responder.
Eu poderia mentir, mas por que eu mentiria? Mustse havia assassinado
meu povo e maltratado a mim e a Clarver. Por que eu teria piedade?
Olhei para Mustse antes de responder. Mas ele apenas fitava o chão,
indiferente.

191
Juliana Duarte

Era a hora de minha traição. Fitei o alto sacerdote do fogo e revelei, com
confiança:
– Os chifres.
O alto sacerdote do fogo segurou o seu cajado e invocou uma navalha
em chamas que decepou um dos chifres de Mustse. No local ficou uma
ferida aberta que jorrou muito sangue.
Mustse caiu no chão. Respirava rápido e estava sentindo muita dor.
Depois que ele sofreu por um momento, o alto sacerdote arrancou outro
chifre. Assim ele procedeu, com intervalos regulares, até que os quatro
chifres fossem quebrados.
Mustse gritou quando o último de seus chifres foi quebrado. Ele estava
perdendo muito sangue e suava. A respiração estava descompassada. Sua
energia havia sido completamente drenada e ele não seria capaz de
realizar uma magia de cura naquela situação.
– Essa dor não é nada comparada ao que você fez aos nossos irmãos
sacerdotes e animais de poder – falou o alto sacerdote do fogo, em tom
sério – você permanecerá acorrentado. Não terá comida ou água por
uma semana, até o momento de sua execução. O papa irá vigiá–lo
durante a semana. Ele não poderá dar qualquer conforto ou realizar
algum tipo de tortura em você sem a autorização prévia da ordem.
O alto sacerdote agia como se já fosse a maior autoridade ali presente.
Acho que a própria presença de Boofeng já seria uma tortura para
Mustse. Mas nem mesmo ele havia sido tão cruel comigo e com Clarver
em relação à comida e água. Ele já havia diminuído a quantidade, mas eu
não me lembrava de já ter ficado um dia inteiro sem comer ou beber
nada por punição. Ele ficaria sete.
– Você, irmã de Panl, e também você, maga branca – falou o sacerdote
do fogo – ambas foram maltratadas por ele. Sendo assim, vocês têm o
direito de aplicar uma punição ao seu captor. Se desejarem, o momento é
agora.
– Que Deus dê a ele o Seu julgamento sagrado – foi a resposta de
Clarver – eu não puno. Minha magia é para a defesa. Eu somente
perdoo. No entanto, dessa vez eu deverei pedir perdão aos céus, pois,
por Deus, ele será a única pessoa em toda a minha existência que jamais
poderei perdoar.
Era a minha vez de pronunciar–me. Eu queria poder fazer algo para

192
Guerra das Cores Perdidas

vingar minha irmã. Qualquer coisa, para puni–lo em nome dela. Mas não
consegui pensar em nada.
– Apenas um ato simbólico de despedida – falou a maga branca.
Clarver entrou no triângulo e deu um tapa na cara de Mustse. Ele não
expressou a menor reação. Estava apenas sentado no chão, sangrando,
devido aos chifres arrancados.
Encorajada pelo ato de Clarver, entrei no triângulo depois dela. Dei
alguns socos no rosto e no peito dele, mas não consegui continuar, pois
lágrimas caíram dos meus olhos.
– Eu te perdoo pelo que fez a mim – resolvi dizer – mas não te perdoo
pelo que fez à Clarver, à minha irmã e ao meu povo.
Depois da “punição” minha e de Clarver, que não foi praticamente nada,
os sacerdotes se retiraram. Somente Boofeng permaneceu no grande
salão.
Eu e Clarver não tínhamos nada a fazer lá. Saímos.
Convidei Clarver a se hospedar na casa dos meus pais durante a semana,
até que tudo estivesse terminado e ela decidisse o que queria fazer.
Foi maravilhoso poder rever meus pais. Nós três choramos, nos
abraçamos. Foi um dos momentos de maior emoção da minha vida. Eles
receberam Clarver com alegria. Por enquanto ela ficaria no antigo quarto
da minha irmã.
Nós duas estávamos com fome, então meus pais serviram uma refeição
para nós. Eu já estava com muitas saudades da comida de casa. Não
lembrava que era tão delicioso. O gosto de uma comida natural, do suco
feito com a laranja da minha terra; o sabor era insubstituível.
Enquanto comíamos, conversávamos sobre o passado. Evitávamos tocar
no nome de Panl, pois uma atmosfera de tristeza preenchia o ambiente
quando isso acontecia. Meus pais estavam impressionados ao ver o
quanto eu crescera nos últimos anos.
– Você se tornou uma moça linda, Wain – falou minha mãe, com um
sorriso – estamos felizes que tenha suportado tudo bravamente e voltado
com vida. Eu sempre acreditei que um dia eu iria te ver de novo.
Depois da refeição, levei Clarver para meu quarto e procurei uma roupa
para emprestar a ela. No entanto, todas eram muito pequenas, pois eram
minhas vestes de quando eu tinha 12 ou 13 anos. Minha mãe emprestou
um vestido para Clarver e, depois disso, nós duas saímos, pois eu

193
Juliana Duarte

desejava que ela sentisse um pouco da natureza do nosso mundo.


Sentamos próximas a um lago. Molhamos os pés, enquanto víamos os
peixes a nadar nas águas cristalinas. Clarver estava maravilhada com as
cores e formas de nossos peixes; com os tons estonteantes e espécies
exóticas de nossas árvores. Para ela era tudo novo.
Fiquei muito contente em vê–la sorrir assim. Clarver ficava linda quando
sorria; quando observava com deslumbre o voo de um pássaro. Ela riu
quando o passarinho pousou sobre a terra e deu pequenos pulinhos,
aproximando–se de nós com curiosidade e cautela.
Mas Mustse havia arrancado tudo aquilo dela. Tinha transformado a vida
dela num inferno por muitos anos. Meu destino também não foi um mar
de rosas. Por trás de uma falsa sensação de felicidade, tive que suportar
tudo sem dizer uma palavra; sentindo culpa por estar viva e ter conforto
enquanto os outros estavam mortos ou sofrendo.
Aquilo era o que chamavam de liberdade. Finalmente eu podia sentir na
minha boca o gosto de ser livre.
– A natureza é sábia – falei, olhando para o céu – ela esteve o tempo
todo esperando para que eu voltasse a ela. Posso sentir as árvores me
saudando pelo meu retorno. Venho nesse lago com Panl desde pequena.
É mágico estar aqui de novo.
– Então bem–vinda de volta! – falou Clarver – Te desejo muitos
momentos de felicidade a partir de agora.
– Igualmente – eu disse a ela – espero que você também encontre seu
caminho. Se decidir continuar em nosso mundo, você será mais do que
bem–vinda para morar conosco.
– Você é muito gentil. E uma excelente anfitriã. Muito diferente de
Mustse, que não sabe como tratar convidados. Mas eu realmente devo
voltar ao meu mundo. Sinto falta de pessoas especiais que deixei lá. Elas
aguardam meu retorno.
– Tudo bem. Mas saiba que se um dia desejar visitar novamente o
Mundo Verde, será recebida com alegria.
À noite voltamos para casa. Eu e meus pais organizamos tudo para que
Clarver ficasse confortável no quarto. Os quartos de nossa casa não
eram nem de longe tão grandes quanto os aposentos magníficos de
Mustse. Mas eram ambientes aconchegantes e o lugar ao qual eu
pertencia.

194
Guerra das Cores Perdidas

Antes de nos deitarmos, nós duas ficamos no meu quarto conversando.


Mostrei a ela alguns de meus pertences especiais, incluindo presentes
dados pela minha irmã.
– Panl era uma irmã ausente, sempre focada em sua própria evolução
espiritual – contei – mas olhando para trás agora, percebo que ela no
fundo se importava comigo, mas de sua própria maneira.
Quando eu disse isso, pensei em Mustse. Ele era um fanático violento;
um assassino brutal. Eu não queria compará–lo a minha irmã. Mas ele
também possuía sua maneira particular de se relacionar com as pessoas
ao seu redor.
– Você vai ficar triste quando Mustse morrer? – Clarver me perguntou
de repente – Você sabe que eu o odeio, mas a convivência de vocês dois
foi diferente. Afinal, ele foi seu mestre de magia. Algumas vezes mestres
são rígidos e não demonstram se importar com os discípulos; parece que
querem vê–los sofrer, mas no fundo isso faz parte do treinamento. Até
mesmo no meu mundo, terra da paz e do amor, me deparei com mestres
assim. Minha mestra é extremamente rigorosa, mas ela é uma das
pessoas mais importantes na minha vida e ensinou–me a maior parte das
coisas que sei hoje sobre magia. Serei eternamente grata a ela. Graças aos
seus ensinamentos, tive forças para ficar viva naquele mundo horrível.
Não respondi imediatamente. Eu estava pensativa.
– Vou sentir saudades dele – confessei – mas não farei nada para tentar
impedir que ele morra.
Deitada na minha cama, olhei para o céu estrelado da janela do meu
quarto. Ao sentir aquela brisa fria recordei–me da vista fenomenal que eu
tinha no meu antigo quarto de lençóis brancos no alto da torre do
castelo.
Quando se vive em dois mundos diferentes, você se divide em dois. Seu
coração jamais ficará tranquilo de novo, pois enquanto vive em um dos
mundos sentirá saudades do outro e assim sempre será. Eis o preço das
novas experiências e o preço de estar viva, crescer e evoluir como ser
humano.

195
Juliana Duarte

A Execução

Seis dias se passaram. No dia seguinte, antes do nascer do sol, Mustse


seria executado.
Enquanto eu tomava café da manhã, deliciando–me com o leite com
chocolate e o bolo de morango, lembrei–me dele. Mustse estava há seis
dias sem comida e sem água.
Tomei uma decisão: mesmo proibida de fazer isso, eu iria visitá–lo.
Coloquei um pouco de café com leite numa pequena garrafa térmica e
enrolei uma fatia de bolo de morango num guardanapo. Fui com Clarver
até o santuário escondido no meio da floresta.
Boofeng nos recebeu com alegria e abriu a porta para nós. Por alguma
razão, desconfiei que ele fosse fazer isso.
– Mustse, pela primeira vez você tem visitas – anunciou Boofeng.
Eu e Clarver fomos até lá. O estado dele era péssimo. Bastou alguns dias
sem comer e ele já havia emagrecido um pouco. Ele estava com uma
barba rala e devia ter ficado todos esses dias sem tomar banho.
– Ele não comeu ou bebeu por todos esses dias? – perguntei a Boofeng.
– Nem uma gota d'água – informou Boofeng – ele também não pediu,
porque sabe que está proibido. Se ele tivesse pedido talvez eu desse, mas
ele é orgulhoso demais.
– Trouxe café e bolo – eu mostrei – posso dar a ele?
– Claro. Os sacerdotes não precisam ficar sabendo. Vá em frente.
Mustse estava encostado na parede, de olhos fechados. Ou ele estava
dormindo ou estava fraco demais para se mexer ou abrir os olhos.
– Ei – chamei – Mustse.
Ele abriu os olhos.
– O que você quer? – perguntou ele, de má vontade – não me aborreça.
Já basta esse palhaço tagarelando todo dia.
– Trouxe café e bolo para você.
– Quero apenas água – falou Mustse – pode levar embora o resto.
– Desculpe, não tenho água. Então tome pelo menos o café. É café com
leite, como você gosta.
Ele resolveu aceitar. Como suas mãos estavam atadas, tive que dar para

196
Guerra das Cores Perdidas

ele. Foi uma das coisas mais estranhas que eu me lembrava de ter feito.
– Está frio – observou Mustse, após provar – e tem mais leite do que
café. Gosto do contrário. Logiza sabe exatamente a mistura certa.
Logiza era a cozinheira.
– Na situação que você está não devia ser tão exigente – observei.
– Mas você é tão idiota que é capaz de voltar para a sua casa e tentar
acertar a mistura dessa vez – respondeu Mustse.
– Sim, eu sou idiota a esse ponto. Se me mandar fazer isso, eu faço.
Afinal, você é meu mestre. Você manda, eu obedeço.
– Esqueça – ele disse – dê–me logo o bolo. Eu não aguentaria esperar
mais alguns minutos até você retornar.
Após experimentar o bolo, ele disse que estava horrível. Ainda assim,
comeu todo.
– Desculpe, não tinha torrada – falei – você precisa de mais alguma
coisa? Quer que eu solte seus braços e te liberte?
– Não vou te dar o gostinho de me salvar – retrucou Mustse – prefiro
que você seja a culpada pela minha morte do que minha salvadora.
A roupa dele ainda estava cheia de sangue por causa da perda dos chifres.
Também havia uma mancha de café e farelos de bolo na camisa. Eu
esperava que os sacerdotes não notassem.
– Agora saia daqui – falou Mustse – já cumpriu sua função. Não tem
sentido ficar mais só para assistir ao meu sofrimento.
– Essa é a maneira de Mustse pedir para que vocês fiquem mais um
pouco – riu Boofeng – eu conheço bem esse patife.
Quando eu ouvi Boofeng dizer isso, senti uma sensação estranha. Será
que Mustse já tinha me dito várias coisas que significavam o contrário?
Eu nunca tinha pensado nisso. Mesmo depois de conviver com ele por
quatro anos, eu o conhecia tão pouco...
Eu e Clarver nos sentamos ao lado dele. Num primeiro momento, não
dissemos nada.
– O que está fazendo aqui, maga branca? – perguntou Mustse – Eu não
permiti que você viesse. Está gostando do espetáculo de me ver passar
pelo que eu te fiz passar no passado?
– Estou – respondeu Clarver, com frieza.
– Fico satisfeito por ter destruído sua bondade – comentou Mustse –
acabei com a pureza do seu coração. Basta um único desvio no caminho

197
Juliana Duarte

da bondade e os magos brancos perdem seus poderes. É uma magia


fraca.
– Em nenhum momento perdi meus poderes por odiá–lo – informou a
maga branca – Deus e os anjos conhecem a verdade e sabem que dei o
melhor de mim no meu caminho considerando as circunstâncias. Eu não
sou perfeita. Não sou Deus. Mas eu acredito naquilo que sou e no que
me tornei.
– Tirem essa mulher daqui antes que ela prossiga com seu sermão –
falou Mustse – isso não é uma igreja de sua linha da magia.
– Na verdade tenho algo para discutir com você em particular – falou a
maga branca.
– Se você conhece alguma magia que pode me fazer morrer sem dor, não
perca seu tempo. Eu quero a dor.
Fui conversar com o papa enquanto isso.
– Ele parece estar aguentando tudo muito bem – comentei com ele.
– Para a vida que levou, acredito que ele tenha se preparado para isso
desde o começo – comentou Boofeng – Poderia ter sido muito pior.
– Ele teve sorte em ser julgado por nosso povo.
– Já que você conviveu com ele por um tempo, vou fazer uma pergunta
– falou Boofeng – você acha que ele merece continuar vivo? Se disser
que sim, tenho meios de soltá–lo.
– Ele não quer mais viver.
– Vou mudar minha pergunta, então. Você estaria disposta a salvar a vida
dele, mesmo contra a vontade de Mustse?
– Não. Quero ser livre.
– Está certo – falou Boofeng – mas se ele quisesse realmente morrer, já
teria dado termo à própria vida.
– Você é amigo dele e o conhece há muito mais tempo que eu – lembrei.
– Eu diria que ele é o desgraçado que mais merece morrer – ele riu –
mas ele é muito engraçado. Eu o salvaria, mas só se alguém que o
considera especial pedisse.
Não fiz nenhum comentário. Se Boofeng soltasse Mustse, ele seria capaz
de matar todos os sacerdotes que o tinham capturado. Afinal, eu
desconfiava que o período de poder maior dos magos verdes já estava se
encerrando. Somente dali a muitos meses ou anos a época da fúria da
natureza surgiria de novo.

198
Guerra das Cores Perdidas

Não consegui dormir naquela noite. Às quatro da manhã eu e Clarver


nos levantamos para comparecer ao local da execução.
Clarver estava estranhamente calma. Seu semblante era sério e reservado.
Mas eu estava nervosa.
Havia vários sacerdotes e monges presentes para assistir ao espetáculo.
No início de tudo, o alto sacerdote do fogo foi lá para frente dar um
discurso. Leu a lista dos nomes de todos os membros da ordem que
Mustse havia assassinado, assim como a lista dos animais totem. Quando
ele pronunciou o nome completo da minha irmã, senti–me estranha. Eu
e Clarver também estávamos na lista como vítimas de rapto, tortura,
aprisionamento e servidão forçada.
Foi anunciado também que ele seria morto sob o selo dos quatro
elementos. O alto sacerdote de cada elemento aplicaria a ele seu selo.
Boofeng aproximou–se de Mustse e perguntou:
– Gostaria de dizer suas últimas palavras?
Mesmo com as mãos presas, Mustse deu um soco na cara de Boofeng. O
papa deu uns passos para trás e tocou a própria face, que sangrava. Riu
muito ao receber o soco.
– Acho que algumas ações dizem mais do que palavras – observou
Boofeng – Agora será a nossa resposta. Que se inicie.
O alto sacerdote do ar foi o primeiro a ir a frente. Traçou um círculo de
proteção e ergueu a sua espada, evocando Paralda num dialeto antigo de
nosso povo.
Ele manipulou a espada no ar de onde estava. A pressão do vento gerou
cortes enormes e profundos em Mustse, que se protegeu com os braços.
Os cortes mais horríveis foram nos braços.
Mustse não podia evocar Lamue ou realizar qualquer outra magia, pois
ele estava lacrado no interior do triângulo e sua energia fora
completamente drenada.
Terminava a participação do alto sacerdote do ar. O próximo a ir a frente
foi o próprio papa, representando o elemento terra.
Ele evocou Gob e também um lobo. Gob permanecia logo acima,
fortificando a energia da terra e enfraquecendo ainda mais Mustse. O
lobo ficou ao lado aguardando a ordem para atacar.
Boofeng invocou uma quantidade enorme de pequenos insetos de todos
os tipos. Ordenou que adentrassem no triângulo e seguissem o caminho

199
Juliana Duarte

do sangue.
Os insetos penetraram nas feridas abertas de Mustse, que dessa vez
mostrou sinais claros de que sofria, conforme os insetos caminhavam no
interior de seu corpo. Eu quase vomitei quando vi aquilo.
O sorridente palhaço Boofeng estava mostrando sua verdadeira face.
Em seguida, ele ordenou que o lobo atacasse. Aquela besta enorme deu
uma dentada violenta no braço esquerdo de Mustse e arrancou–o. Ele
deu um grito horrível.
A participação de Boofeng terminou. Aquele sádico maldito sabia
quando ser cruel. Pelo menos ele não riu enquanto fez aquilo.
Chegou a vez da alta sacerdotisa da água. Eu me perguntava qual seria a
próxima abominação apresentada.
Como esperado, ela realizou a evocação de Nicksa. O príncipe da água
materializou um enorme recipiente transparente em torno de Mustse,
completamente cheio d'água, em que ele foi mergulhado. O corpo dele
estava totalmente submerso. Não havia meios de sair.
Mustse não conseguiria segurar o ar por muito tempo. Ele ia morrer
afogado.
Mas antes que isso ocorresse, o alto sacerdote do fogo, que certamente
fazia questão de fazer parte do grande final, deu um passo a frente para
invocar Djin. O espírito do fogo lançou grandes labaredas, o que fez
com que a água do recipiente fervesse instantaneamente.
A pele de Mustse começou a derreter e ele se contorceu. Por fim, parou
de respirar.
Eu olhava para aquilo em choque completo. Achei que eles iriam matá–
lo sem tortura: que o enforcariam, o decapitariam ou qualquer morte
rápida. Aquilo foi doentio.
E alguns segundos após a morte de Mustse, aconteceu uma coisa que
ninguém tinha previsto. Um pequeno detalhe que seria fatal.
Com o seu mestre morto, Lamue libertou–se. Ele surgiu no grande salão,
irado, e atacou a todos de surpresa com uma rajada de quadrados
mágicos.
Ninguém teve tempo de se proteger, de tão rápido que aconteceu.
Muitos monges e sacerdotes foram decapitados, mutilados ou
estraçalhados no mesmo segundo. Os altos sacerdotes do ar, fogo e água,
que estavam muito próximos, morreram instantaneamente, com seus

200
Guerra das Cores Perdidas

ossos e órgãos voando contra a parede.


Boofeng quase morreu. Foi por pouco. Ele sofreu cortes fundos e estava
empapado de sangue. Apoiou–se no cajado para ficar em pé.
Dessa vez ele não usou magia verde. Ele fez uma coisa que eu jamais vira
na vida: evocou um servidor; um dos maiores triunfos da magia octarina.
O servidor era uma energia criada pelo próprio mago que refletia todo
seu poder. O servidor de Boofeng era gigantesco. Tinha uma forma
antropozoomórfica.
O servidor atacou Lamue e os dois começaram a travar uma batalha
violenta. Se alguém ficasse perto seria arremessado longe e morreria com
o impacto.
Por isso, os monges e sacerdotes que ainda viviam evocaram seus
animais totem e elementais para proteção. Eu evoquei Garfdie e Clarver
evocou Bikham. Não havia chance de lidarmos com Lamue, mas se ele
não nos atacasse diretamente poderíamos escapar da morte. Ele era um
demônio selvagem sem mestre.
O período da fúria da natureza já estava terminando. Por essa razão, os
sacerdotes do meu mundo não tinham a posse de seu poder total e não
seriam páreos para Lamue. Principalmente com os três altos sacerdotes
mortos.
Talvez ninguém compreendesse se eu contasse o que senti naquele
momento. Achei extraordinário o fato de Lamue ter surgido para vingar
a morte de Mustse. No fim das contas, Mustse possuía um amigo
magnífico, poderoso e fiel.
Na verdade eu não tinha certeza se Lamue fez aquilo para vingar Mustse
ou apenas estava expressando sua ira e matando a todos por prazer. Mas
se um dia eu fosse assassinada, no fundo eu adoraria que Garfdie, liberta,
aparecesse para estraçalhar meus captores.
Acredito que toda a dor de ser um mago negro durante a vida fosse
compensada no momento da morte com aquele último prêmio. Naquele
instante senti um grande orgulho de ser uma maga nega, orgulho de
Mustse e de Lamue.
Sim, eu senti essa emoção em meio ao perigo, enquanto havia um monte
de cadáveres e pessoas mutiladas ao meu redor. Meu coração acelerava
de horror e fascínio porque a morte de Mustse não tinha sido em vão.
Aqueles quatro altos sacerdotes, que o torturaram antes da morte em vez

201
Juliana Duarte

de darem a ele um fim pacífico, mereceram ser punidos.


Talvez eu estivesse começando a entender a essência da magia negra. O
julgamento pessoal. A força da desgraça.
Mas naquele momento eu precisava me esforçar para me manter viva.
Bem, se Boofeng não estivesse ali provavelmente estaríamos todos
mortos. E se ele fosse derrotado isso provavelmente aconteceria.
Mas aquele mago octarino era absurdamente forte. O servidor e Lamue
estavam de igual para igual. Tudo poderia acontecer.
Fiz algo desesperado: usei Garfdie para tentar me comunicar com
Lamue. Mandei uma mensagem:

“Lamue, seu mestre está morto. Você agora se encontra no Mundo Verde. Ficará
preso aqui eternamente se nos matar. Podemos enviá–lo de volta ao Mundo Negro,
mas para isso você deve interromper essa batalha e se retirar. Será chamado quando
for a hora”.

Lamue recebeu a minha mensagem, pois sua atitude mudou. Ele lançou
um grande raio de energia roxa no servidor. Após esse ato, desapareceu
em meio à fumaça.
– Obrigado, Wain – falou Boofeng, que já devia saber o que havia
acontecido – meu cérebro já estava quase se partindo em dois para
manter esse servidor.
Os magos e sacerdotes que escaparam ilesos foram ajudar a curar os que
receberam ferimentos graves e mutilações. No entanto, a maior parte dos
presentes estava morta.
Depois que Boofeng tratou seus próprios ferimentos, ele chamou a mim
e a Clarver para uma conversa particular. Enquanto isso, os sacerdotes se
ocupavam das solenidades a fim de organizar o enterro dos que foram
assassinados por Lamue naquele dia.
– Está feito – começou Boofeng – Mustse está morto. Agora seu povo
terá paz, a não ser que inventem de caçar Lamue, o que espero que não
aconteça.
Contei a ele sobre a promessa que fiz a Lamue.
– Você não tem poderes para levar Lamue de volta ao Mundo Negro –
falou Boofeng – e você sabe disso. A não ser que se concentre nos
estudos de magia negra pelas próximas décadas. Mas enquanto isso,

202
Guerra das Cores Perdidas

Lamue ficaria confinado a esse mundo, a não ser que surja outro magista
de grande poder para tentar o feito.
– Você quer dizer que daqui a algumas décadas serei capaz de dominar
Lamue? – perguntei, impressionada.
– Não, eu disse que você poderá obter uma aparição física dele.
Conseguir uma conjuração é outra coisa totalmente diferente.
– Você não pode levar Lamue ao Mundo Negro? – perguntei a Boofeng.
Ele pensou um pouco antes de responder.
– Bem, eu teria que arriscar minha vida para fazer isso. Hoje quase
morri. Quando Mustse tinha o controle de Lamue era diferente. O
Lamue selvagem é muito mais perigoso, pois é imprevisível. Ele pode ter
poderes ocultos que não revelou a Mustse e não vai hesitar em usá–los
agora que está livre.
Boofeng fez a seguinte proposta: primeiro ele levaria a maga branca de
volta ao mundo dela. Só depois disso ele tentaria o transporte de Lamue.
Afinal, se ele morresse na tentativa, a maga branca ficaria presa ao meu
mundo.
– Não – falou a maga branca – ainda não posso voltar. Terei que ficar
aqui por mais alguns meses.
– Claro – falei – vou adorar se ficar aqui mais tempo. Mas você tem
algum motivo especial? Deseja aprender mais sobre a magia verde?
– Na verdade... preciso conversar com você sobre isso, Wain. É assunto
sério.

203
Juliana Duarte

Cores da Magia

Por fim, Clarver decidiu que Boofeng também deveria ouvir aquilo, pois
ela precisaria de conselhos.
Já era fim da tarde. Resolvemos que o melhor local de encontro seria a
casa dos meus pais. Eles ficaram chocados com a notícia das mortes, mas
aliviados em saber que o terrível mago negro, assassino de sua filha,
estivesse finalmente morto.
Meus pais ficaram honrados em receber a visita do papa. Boofeng foi
extremamente simpático e conversou informalmente com eles.
Depois de tomarmos o café, permanecemos somente nós três à mesa.
Clarver deu a notícia:
– Eu estou grávida.
Aquilo foi um choque, tanto para mim quanto para Boofeng. Nós não
soubemos o que dizer.
– Não posso voltar para meu mundo assim – explicou Clarver – se eu
estivesse grávida de um mago branco seria outra história. Mas meu povo
odeia os habitantes do Mundo Negro. Na verdade agora sei por quê.
Meu filho não tem culpa de nada, mas se eu voltar para lá serei vista
como herege e meu filho será terrivelmente discriminado. Então tenho
três alternativas: abortá–lo, criá–lo em outro mundo ou após ganhar o
bebê deixá–lo aos cuidados de outra pessoa e voltar ao Mundo Branco.
– O que você sente que deve fazer, Clarver? – perguntou Boofeng – A
decisão é sua. Somente você poderá decidir.
Clarver ficou em silêncio, apenas fitando a mesa. Por fim disse:
– Eu odeio tudo isso. Quando descobri sobre a gravidez tive vontade de
me matar.
– Escute – falou Boofeng – nós sabemos que isso não ocorreu por
vontade sua, então não se sinta culpada se quiser abortar. Você tem esse
direito e nós a apoiaremos em qualquer decisão que tomar.
– Eu a apoiarei também – falei – não foi sua culpa.
– Então eu escolho me matar – falou Clarver.
– Não, essa decisão eu não apoio – riu Boofeng – eu entendo que você
não se veja no direito de matar esse ser que não tem nada a ver com a

204
Guerra das Cores Perdidas

situação; e que ao mesmo tempo você o odeie. É uma decisão difícil.


– Eu só vou matá–lo se eu me matar também – falou Clarver – nunca
matei um ser humano antes, não importa de que raça ou mundo ele seja.
– Você contou para Mustse? – perguntei.
– Contei a ele ontem.
– Qual foi a reação dele?
– Nenhuma – respondeu Clarver – ele disse para eu fazer o que quisesse.
– Nossa, isso que é um bom pai – observei, ironicamente – pelo menos
ele não a forçou a tomar uma decisão que você não quisesse.
– Que adianta? Agora estou perdida. Mas só em saber que ele possui os
genes de Mustse, seria uma decisão sábia matá–lo antes que ele nos mate.
– Ele também tem os seus genes – lembrou Boofeng – portanto, tudo
pode acontecer. Ele tem o potencial para tornar–se qualquer tipo de ser
humano.
– Mas só em lembrar que uma parte de Mustse está em mim já sinto
nojo – confessou Clarver – cada vez que olho para minha barriga sinto
vontade de serrá–la.
– Não diga isso – falei – ou se realmente se sente assim... acho que a
única opção será o aborto.
– Não sei, estou confusa!
– Pense bem sobre isso nos próximos dias – falou Boofeng – e depois
nos comunique sua decisão.
Alguns dias se passaram. Clarver ainda não tinha a resposta. Três
semanas depois, ela começou a ficar nervosa.
– Se vou abortá–lo, tem que ser agora – ela disse – se eu deixar passar
mais tempo, não terei coragem. Será muita crueldade.
– Então você já decidiu? – perguntei.
Ela não respondeu. Clarver andava muito séria. Sentava–se sozinha num
canto e fitava o horizonte. Ela carregava um peso maior do que podia
suportar. A decisão dela poderia ser responsável pelo futuro de muita
gente. Afinal, algo muito forte nos dizia que o filho deles seria mais
inclinado ao caminho negro do que ao branco.
Boofeng tinha algum conhecimento sobre a área de divinações, então
pedimos que ele nos desse suas impressões sobre a situação.
– Não vou mentir – falou Boofeng – seu filho será como Mustse ou pior.
– Pior? – perguntou Clarver, sem acreditar – Como isso é possível?

205
Juliana Duarte

– Espero que eu esteja errado. Já errei outras vezes antes.


Por fim, mesmo sob essa perspectiva terrível, Clarver confessou que não
teria coragem de fazer o aborto. Mas ela ainda não sabia se iria criar o
filho ou deixá–lo aos cuidados de outra pessoa.
– Sei que é minha responsabilidade como mãe criá–lo – explicou ela –
mas eu não queria ficar longe do meu povo: da minha família, dos meus
mestres de magia, dos meus amigos. Por isso, estou mais inclinada a dá–
lo para adoção. Mas quem vai querer um mestiço?
Clarver decidiu que iria pensar nessa questão só quando estivesse mais
perto de ganhar o bebê. Por enquanto ela queria ficar tranquila e em paz,
para ter uma gravidez sem riscos.
Já que teríamos que esperar vários meses, Boofeng decidiu ir para o
Mundo Negro tentar levar Lamue de volta.
Ele retornou ao Mundo Verde três meses depois, dizendo que fracassou.
Mesmo com muita preparação e tentativas, Lamue era indomável. Não
permitia nem mesmo uma aparição visível.
– Sacrifiquei até uma cabra e ele recusou–se a aparecer – contou
Boofeng – magia negra não é o meu forte. Mustse é um gênio maldito
por ter conseguido domar essa fera.
Matamos um gênio, mas em troca salvamos muitas vidas humanas e
animais. Provavelmente valeu a pena. Só restava saber se o Mustse júnior
não causaria mais problemas que o pai.
Durante aquele período, resolvi retomar meus estudos de magia verde.
Ao mesmo tempo eu continuava a alimentar o pacto que fiz com
Garfdie, pois não queria perdê–la tão facilmente depois de sacrificar–me
tanto para obter aquela conjuração.
Boofeng me conseguiu alguns grimórios de magia verde. Ele ainda era o
papa de nosso mundo, pois já tinham exterminado tantos sacerdotes que
no momento não havia ninguém qualificado para assumir o cargo.
Ele tinha acesso a todos os nossos livros e conhecia bem a proibição de
emprestá–los para pessoas fora da ordem. Até parece que Boofeng ligava
para isso. Ele me emprestou todos os livros que eu queria, até os de
magia avançada. Contei a ele como Mustse me proibia de ler os livros
mais complexos enquanto eu não avançasse na parte empírica.
– Mas são apenas livros! – riu Boofeng – Você não vai queimar no
inferno se ler um exemplar de magia avançada antes de ser um mago

206
Guerra das Cores Perdidas

avançado. É até bom ler para que o praticante fique morrendo de


vontade de evoluir logo e fazer as coisas que o grimório revela.
Ele seguia um método de estudo de magia meio heterodoxo. Claro, ele
era um mago octarino, afinal. Mas dizem que as pessoas que se dão bem
nessa área da magia já passaram pelo método ortodoxo antes.
– No começo, as escolas de magia de nosso mundo são muito rígidas –
comentou Boofeng – as crianças sofrem. E depois, conforme se avança
no treinamento, os professores se tornam cada vez mais liberais. Essa
desconstrução faz parte do processo.
Resolvi praticar magia verde sozinha por enquanto, em vez de entrar
numa ordem. Antigamente o que eu mais queria na vida era entrar na
ordem monástica do meu mundo, mas ainda não podia. E agora que eu
já tinha um conhecimento considerável de magia e possivelmente fosse
qualificada, eu ficava com um pé atrás.
Isso porque eu já não tinha certeza sobre qual caminho seguiria. Eu
ainda respeitava e admirava a magia de meu mundo. No entanto, nos
últimos anos eu havia adquirido uma base muito forte em magia negra,
que não poderia ser destruída facilmente. Eu tinha um pouco de receio
de abandonar tudo o que aprendi para seguir um caminho que eu não
sabia se era para mim.
Se eu jamais tivesse conhecido Mustse, isso não teria acontecido. Eu teria
permanecido no meu mundo, me iniciado na ordem monástica e obtido
um conhecimento profundo sobre a doutrina da natureza. Se um dia eu
fosse para o Mundo Negro, eu provavelmente não iria ficar tão envolvida
no caminho da mão esquerda; principalmente porque eu jamais teria um
mestre tão poderoso. Talvez eu chegasse a ler uns grimórios e aprender
algumas coisas. Mas não seria o mesmo; afinal, eu questionaria esse
caminho com base no que aprendi em meu mundo.
O problema é que cheguei ao Mundo Negro como uma concha vazia.
Eu tinha doze anos e meio e estava recém estabelecendo o contato com
meu primeiro animal totem. Foi muito fácil para Mustse apagar o meu
passado. Bastou esmagar meu esquilo com o pé e me dizer que magia
verde era um lixo. E a prova estava diante de meus olhos: Mustse,
munido da magia negra, matou nossos sacerdotes como mosquitos. Por
que eu iria questioná–lo?
Ele fez uma lavagem cerebral em mim à vontade. Ele não conseguiu

207
Juliana Duarte

fazer o mesmo com Clarver, pois ela já tinha uma base muito forte de
magia branca para abandoná–la facilmente.
Tanto Panl como Clarver tinham 17 anos naquela época. Agora eu
também estava com 17 anos. Se Mustse tivesse me capturado com essa
idade e eu tivesse estudado magia verde durante esses quatro anos e
meio... eu me pergunto o que eu teria feito. Teria lutado até a morte e
resistido, como Panl? Caso fosse capturada, eu iria me negar a estudar
magia negra para manter minhas convicções sobre o mundo, como
Clarver?
Ora, já não adiantava falar sobre o passado. O estrago estava feito, se é
que foi realmente um estrago. Ao menos eu tinha consciência da minha
situação. Ainda era tempo de consertar.
Mas consertar o quê? Tive um dos maiores mestres de magia negra
como instrutor e já havia conseguido uma conjuração de um demônio
maior. Eu poderia deixar tudo aquilo para trás para retomar o meu
contato com a natureza. Mas em troca de quê? De um poder que só se
manifestava em sua forma máxima nos períodos de fúria da natureza?
Novamente, eu estava raciocinando como Mustse: medindo as
qualidades das magias com base no poder que davam ao operante. A
magia verde era poderosíssima, à sua maneira. Nas épocas de fúria eles
provavelmente se tornavam os maiores mestres do mundo. Mas no dia a
dia tinham um poder regular e controlado.
E por que o poder era tão importante? Talvez houvesse conquistas
muito mais especiais numa prática de magia.
Naqueles primeiros meses após meu retorno ao meu mundo, li muitos
grimórios de magia verde e realizei pequenas práticas de magia básica
para experimentar. Só que eu não estava dando tudo de mim por causa
da minha dúvida.
Eu não queria assumir responsabilidades como entrar para uma ordem
ou realizar uma conexão com um novo animal totem. Aquilo não era
brincadeira. Se eu resolvesse entrar para a ordem e depois saísse, além de
ser um grande desrespeito, eu não seria admitida facilmente na ordem de
novo se um dia eu decidisse praticar a sério.
Quanto ao animal de poder, talvez fosse ainda mais grave. Aquela era
uma conexão para toda a vida. Você não pode simplesmente abandonar
seu animal depois que o momento da conexão de almas é selado. Os dois

208
Guerra das Cores Perdidas

começam o processo de se tornar um, ele começa a fazer parte de você.


Os dois compartilham poderes.
Se eu adquirisse um animal guardião e, do nada, decidisse que devia
seguir a linha da magia negra, a minha única escolha seria matar meu
animal num sacrifício para evocar um demônio. E eu lembrava bem da
sensação horrível que era perder o animal que fazia parte de você; era
como se sua alma se rasgasse.
Resolvi compartilhar com Clarver as minhas dúvidas.
– Na magia branca basta crer em Deus e amá–lo – explicou Clarver – se
você realiza apenas isso durante sua vida, todo o resto lhe será
acrescentado.
– Então você não realizou nenhum sacrifício para obter essa quantidade
enorme de poder que tem? – perguntei, impressionada.
– Apenas orei a Deus e dei o melhor de mim para ensinar aos outros o
caminho do bem. Orei todo dia para que Deus gentilmente me
presenteasse com a presença de meu anjo guardião. E Ele atendeu ao
meu pedido, pois sentiu que minha alma era pura e meu coração era
sincero.
– Tão fácil assim? – perguntei, pensando em tudo o que eu tinha sofrido
até chegar à conjuração de Garfdie; ainda assim, o anjo dela devia ser
mais poderoso que meu demônio.
– Não é fácil – explicou Clarver – tive que passar por um longo processo
de purificação. Estudei muito e pratiquei com fervor para limpar a minha
alma. É nisso que se baseiam os grimórios da magia branca: técnicas
cada vez mais complexas e mais sublimes para a purificação.
Parecia uma linha de magia linda e nobre. Então me questionei: será que
no fundo eu estava em dúvida porque nem a magia negra e nem a verde
serviam para mim? Existiam mais três linhas da magia. Ou pelo menos
eram dessas cinco que mais falavam, pois eram as mais populares.
– Então por que você evocou um demônio? – lembrei de perguntar.
– Há uma etapa mais avançada da magia branca em que você deve, com
o auxílio do anjo guardião, obter a conjuração de alguns demônios. Se o
anjo está ao seu lado não é difícil obter o pacto. A maioria dos anjos são
mais poderosos que os demônios.
– Então você quer dizer que deu azar – sugeri – que seu anjo não era
muito poderoso e o demônio que você evocou era dos mais poderosos.

209
Juliana Duarte

– Na verdade eu não evoquei um demônio e sim um habitante do


Mundo Negro. Porém, se eu realizasse essa evocação hoje com meu anjo,
tentando trazer Lamue... não tenho certeza se eu conseguiria, por várias
razões. Nesses últimos anos eu sofri um terrível abalo na minha
confiança no amor, o que enfraqueceu o poder do meu anjo. Se eu
estivesse no meu mundo nesse período, fortificando o contato com meu
anjo, talvez as coisas fossem diferentes.
Mustse teve centenas de anos para evoluir no caminho da magia.
Enquanto isso, nós tivemos apenas cerca de duas décadas. Obviamente
Mustse seria mais poderoso e não seria possível afirmar uma suposta
superioridade da magia negra tendo isso como base. Mas quando dei esse
argumento, Clarver negou.
– O tempo conta, mas não é o fator essencial – ela disse – um mago que
praticou magia por cinco anos pode ter maior poder do que um magista
com cem anos de experiência. É improvável, mas possível. Não existem
regras absolutas na magia. Pode ser que nasça um mago com incrível
potencial e já tenha poderes absurdamente impressionantes mesmo
como bebê. Isso já aconteceu. Em geral isso ocorre quando os pais são
poderosos, ou algum antepassado da família.
– Clarver, não se esqueça de adquirir um cercadinho para o berço do seu
filho – avisei – para que ele não nos estrangule enquanto dorme.
Aquilo que Clarver tinha me dito quebrava totalmente a teoria de
Mustse! Eu me lembrava da ocasião em que ele fez uns cálculos,
explicando porque um magista devia seguir a mesma linha a vida inteira;
procurar outras linhas gerava distração, então ou você se tornava um
mago eclético medíocre em todas as linhas ou um magista poderoso de
uma linha só.
Seria difícil tirar da cabeça todas as afirmações que Mustse me enfiou
pela garganta. Isso se eu realmente decidisse seguir outra linha da magia
que não fosse a negra.
– A magia do seu povo parece ser maravilhosa – comentou Clarver –
acho que você devia tentar estudá–la mais a fundo antes de abandoná–la.
Expliquei a ela todas as implicações envolvidas no processo.
Principalmente a responsabilidade com o animal guardião.
– Então acredito que você deverá tomar uma decisão – disse Clarver –
assim como eu. No dia do nascimento do meu filho, eu e você daremos a

210
Guerra das Cores Perdidas

resposta final.
Eu concordei. Nesse dia nós duas decidiríamos nossos caminhos.
Para tirar as dúvidas da minha cabeça de uma vez por todas, pedi para
que Boofeng me conseguisse livros sobre todas as linhas da magia. Claro
que não era a mesma coisa conhecer uma linha apenas superficialmente
pela leituras de poucos livros. Eu sabia disso, pois mesmo depois de
quatro anos de leitura e prática intensa da linha negra, eu ainda não sabia
de muitas coisas. Eu não me consideraria qualificada para ensinar essa
linha para alguém, por exemplo. Eu saberia responder às perguntas
básicas de um leigo, mas não ensinar todos os passos para um praticante
interessado.
Já o meu conhecimento de magia verde era meio diferente. Baseava–se
mais na intuição do que no conhecimento de fato. Eu podia sentir a
proposta da magia de meu mundo pelas experiências que tive por toda
vida: pela educação dada por meus pais, pelas aspirações de minha irmã,
pela visão dos poderosos sacerdotes. E talvez eu pudesse dizer que sabia
o básico de teoria e prática, mas nada além disso. Eu não saberia
trabalhar com elementais, por exemplo. E tive uma experiência curta
com o animal de poder.
Na magia negra eu conhecia até a magia avançada, mas somente de uma
subdivisão. Eu não sabia muito de outras áreas como maldições,
necromancia, possessões, entre outras. Foquei–me numa área muito
específica.
Como eu havia passado quatro anos lendo livros de magia negra e os
últimos três meses lendo sobre magia verde, pedi para que Boofeng me
conseguisse livros de magia branca, vermelha e octarina.
Meu exemplo de magia branca era Clarver, que já havia me dado algumas
pinceladas sobre o caminho da mão direita, conselhos baseados nessa
linha e também me proporcionado a visão de seu magnífico anjo
guardião.
O pouco que eu sabia sobre magia octarina era somente o que Boofeng
me mostrou; basicamente a visão de seu servidor naquele dia. Eu sabia
também que tinha a ver com tecnologia e técnicas heterodoxas.
E sobre magia vermelha eu só sabia que eles não realizavam evocações,
mas seguiam o caminho da meditação.
Boofeng concordou em me conseguir alguns livros. Mas havia um

211
Juliana Duarte

problema:
– Você sabe a língua do Mundo Branco, do Mundo Vermelho e do
Mundo Octarino?
– Não, mas Clarver pode ler os livros de magia branca para mim –
decidi, sem nem consultá–la – e você poderia fazer a gentileza de ler os
de magia octarina. Quanto à magia vermelha, vou assumir que você é
poliglota e pode ler esses livros para mim também.
– Na verdade eu sou, mas já que não poderá ler os livros por si mesma,
não acha mais interessante simplesmente conversarmos sobre as linhas
da magia? Posso ensinar os aspectos principais e estarei aberto a
perguntas.
– Você quer dizer que conhece a fundo todas as linhas da magia? –
perguntei, impressionada.
– Passei pelo treinamento completo de sacerdócio do seu mundo duas
vezes – riu Boofeng – cada uma delas foi memorável.
– E nas duas vezes você tirou a nota máxima e tornou–se papa – falei –
está certo, esqueci que estou falando com um superdotado. Perguntei
sem pensar.
– Não sou superdotado. Da primeira vez tirei 99! Eu falhei! – Boofeng
riu ainda mais ao dizer isso – eu realmente adoro a magia verde, ela é
incrivelmente linda. Se eu tivesse o privilégio de ter nascido nessa terra,
como você, eu teria muito orgulho da minha raça.
– Então você é um mago octarino inclinado à magia verde? Assim como
sou uma maga verde inclinada à magia negra... ou melhor, acho que
nunca soube o suficiente para me considerar uma maga verde.
– Não exatamente – observou Boofeng – também passei pelo
treinamento completo de magia octarina no meu mundo. Eu a dominei
como nenhuma outra e até hoje a considero a cor da magia mais
suprema. É somente nela que atinjo meu poder máximo.
– Então por que veio estudar magia no Mundo Verde? – perguntei,
curiosa.
– Pelo mesmo motivo que todos visitam outros mundos: devido a uma
evocação. Geralmente são evocações equivocadas. O pobre mago verde
que me evocou desejava chamar um servidor do Mundo Octarino e nem
mesmo sabia que servidores são criaturas criadas pelo próprio mago.
Dessa forma, não há meios de evocar o servidor de outra pessoa. A

212
Guerra das Cores Perdidas

criatura que você formou é sua para sempre. Tive a bondade de explicar
isso ao mago e ele teve a bondade de me falar um pouco mais sobre
magia verde. Fiquei interessado. Eu não consegui retornar ao meu
mundo imediatamente, então resolvi usar meu tempo aqui para estudar a
magia de vocês e gostei muito.
– Então você é um mestre dessas duas linhas – constatei – e sobre as
outras cores?
– O pouco que aprendi sobre magia negra foi Mustse quem me ensinou.
Mas sei só o básico. Apenas um pouco mais que você. Sem querer
ofender.
– Tudo bem – eu não me ofendi realmente – sei que tenho muito que
melhorar. Mas se você sabe mais que eu, o que eu não duvido, já deve ter
conjurado um demônio maior. Isso é magia avançada. Como você pode
dizer então que sabe só o básico? Eu mesma conheço minhas limitações,
mas tenho orgulho de dizer que sei mais do que o básico de magia negra.
– Mas magia negra não envolve apenas evocações, embora a maioria se
foque aí – explicou Boofeng – há uma área muito forte de necromancia.
Eu a estudei um pouco também, mas fui mais autodidata, já que Mustse
ficava de frescura para falar de necromancia.
Achei engraçado ele dizer que Mustse “ficava de frescura”. Em parte era
verdade. Toda vez que eu mencionava “necromancia” ele fazia a mesma
expressão de quando eu mencionava “magia branca”, o que era bem
impressionante.
– Como vocês dois se conheceram? – resolvi perguntar – Como ficaram
amigos?
– Na vida passada nós nascemos como irmãos no Mundo Vermelho –
respondeu Boofeng.
Fui pega de surpresa. Levei um susto!
– Vocês se lembram de suas vidas passadas?
– Esse é um poder sobrenatural – respondeu Boofeng – os magos
vermelhos são especialistas neles. Eu principalmente desenvolvi–me
muito na área de premonições com as meditações do Mundo Vermelho,
razão pela qual até hoje guardo esse poder. Quando eu era criança,
descobri em uma de minhas meditações que tanto eu quanto Mustse
morreríamos muito jovens. Não temíamos a morte, pois sabíamos que o
mundo era apenas dor, de acordo com a filosofia vermelha. Mas

213
Juliana Duarte

lamentávamos pela perda de nosso incrível potencial, pois precisávamos


de mais tempo para evoluir em nossos treinamentos. Portanto, para
provar a mim mesmo que eu tinha potencial, foquei todos os meus
próximos anos de treinamento no desenvolvimento de um poder que
daria a mim e a Mustse a lembrança de nossa vida no Mundo Vermelho
e a promessa de nos tornarmos grandes magos.
– Então vocês dois se lembram somente de suas vidas no Mundo
Vermelho – constatei – não recordam de nenhuma outra.
– Correto. Mas também tenho o conhecimento de que Mustse me matou
algumas vezes em outras vidas e por isso estávamos ligados, embora eu
não recorde exatamente como isso ocorreu. Enfim, morremos muito
cedo e não tivemos tempo de desenvolver mais nossos poderes.
Prometemos um ao outro que em nossa vida seguinte daríamos um jeito
de nos reencontrarmos, mesmo que nascêssemos em mundos diferentes.
E retornaríamos juntos ao Mundo Vermelho para finalmente dominar
essa linha da magia.
– Você renasceu no Mundo Octarino e Mustse renasceu no Mundo
Negro. Conseguiram se reencontrar. Então por que não retornaram
juntos ao Mundo Vermelho para cumprirem a promessa?
– Porque o Mundo Vermelho é o único impossível de se visitar –
respondeu Boofeng – os magos vermelhos não trabalham com
evocações, de forma que não podem levar ninguém para lá. Eles também
não podem ser evocados, já que a linha de magia deles envolve algo
completamente diferente. Sendo assim, não podemos levar mestres
vermelhos a outros mundos tampouco.
– Você disse que sabia a língua do Mundo Vermelho e tinha grimórios
ensinando a magia de lá – lembrei – Mas baseado no que você acabou de
dizer, isso seria impossível.
– Tanto eu quanto Mustse recebemos a memória de nossa última vida
passada, incluindo o conhecimento que adquirimos naquela vida.
Portanto, desde o nascimento recordávamos de nossa língua e dos
ensinamentos básicos do Mundo Vermelho. Eu mesmo, desde criança,
realizei anotações sobre tudo o que sabia. Os livros de magia vermelha
que eu pretendia te emprestar foram escritos por mim, na língua desse
mundo.
Era fantástico.

214
Guerra das Cores Perdidas

– Vocês não cogitaram a hipótese de avançar na linha vermelha


sozinhos? – perguntei – Meditando sem instrutores, baseado no básico
que já sabiam.
– Fiz isso por um tempo – confessou Boofeng – mas havia universos
inteiros e novas magias fantásticas para explorarmos. Como não havia
meios de contatar nosso povo, decidimos nos libertar do passado e viver
a vida presente. Espero que Mustse tenha reencarnado no Mundo
Vermelho de novo. Mas dessa vez ele não vai se lembrar que já foi um
mago negro e tampouco um vermelho.
– Espere, mas se ele estiver no Mundo Vermelho poderá reaprender a
habilidade de recordar das vidas passadas. Então poderá te evocar.
– Se ele for fiel às tradições, jamais mexerá com evocações. E eu o matei.
Ele não me deve nenhum favor.
– Se fosse fácil assim, vários magos vermelhos recordariam de suas
outras vidas e evocariam um monte de amigos de vidas passadas para
visitá–los.
– Geralmente é possível recordar somente lembranças esparsas e vagas
sobre a outra existência – explicou Boofeng – e não relembrar de todas
as habilidades que adquirimos. Mesmo que o mago vermelho se recorde
que foi um mago de outro mundo numa vida passada, ele não se
recordará necessariamente da habilidade evocatória que tinha. Portanto,
não será capaz de evocar.
– A tecnologia de seu povo é avançada – lembrei – então façam algo
sobre isso! Tentem implantar um chip no karma para comunicação nas
próximas vidas.
Boofeng morreu de rir quando ouviu isso. Eu também ri, mas foi mais
por embaraço da besteira que eu havia dito. Mas quando eu parei de rir,
ele continuou rindo ainda por um bom tempo e teve que beber um copo
d'água para se acalmar.
– Você acabou de inventar um tipo de piada octarina clássica – informou
Boofeng – a primeira coisa que farei quando retornar ao meu mundo
será compartilhá–la com meus amigos. Contamos sempre as mesmas
piadas por lá, elas já estão desgastadas. A propósito, Mustse odiava
mortalmente minhas piadas, mas isso não me desencorajava de contá–
las. Uma vez obtive o feito memorável de fazê–lo rir com uma delas. Só
por isso toda a minha carreira piadista já valeu a pena.

215
Juliana Duarte

– Você o fez rir?! – ver Mustse rindo seria algo surreal demais para eu
tentar imaginar – Quero ouvir essa piada!
– Ela é meio infame – avisou Boofeng – qual a diferença entre magia
negra e magia verde?
– Não sei.
– Na magia negra o mago mata o animal e na magia verde o animal mata
o mago.
Eu não achei graça.
– Para Mustse rir de uma piada, só sendo de humor negro mesmo – falei.
– Ele bateu em mim depois que eu contei – disse Boofeng – mas acho
que eu mereci.
– Qual de vocês é o mais poderoso, afinal? – perguntei – Vocês duelaram
de igual para igual naquele dia.
– Não ganha uma batalha necessariamente quem for o mais poderoso e
sim o mais sábio. Ele tinha mais poder que eu por causa de Lamue. Mas
tenho muitos truques na manga. Por conhecer várias magias, entendo os
pontos fracos e fortes de cada sistema.
– E o que sabe sobre magia branca?
– Teve um momento na minha vida em que achei todos os objetivos da
magia superficiais comparados a existência de Deus – respondeu
Boofeng – portanto, o caminho mais nobre para um ser humano seria
abandonar todas as coisas, incluindo a própria magia, somente para orar
a Deus, adorá–lo e seguir o caminho da evolução da alma por intermédio
da bondade divina. Esse foi um período em que fiquei por muitos anos
no Mundo Branco. Até que eu percebi que não era forte o suficiente para
seguir esse caminho por toda a vida.
– Pensei que o caminho da mão direita fosse relativamente fácil, já que
exige somente a purificação da alma e nenhum sacrifício.
– A purificação já é um sacrifício suficiente. Havia outras coisas no
mundo que eu amava e que não consegui abandonar por Deus. Uma
delas era o desejo por investigação, criação e descobertas do Mundo
Octarino. Na magia branca você apenas adora as criações de Deus e o
mundo é tido como perfeito da forma que foi criado por Ele. Na magia
octarina você é um criador. Você não é “Deus”, mas é criativo, ativo,
molda novos formatos nas nuvens no céu em vez de simplesmente
tentar desvendar os desenhos que as nuvens formam.

216
Guerra das Cores Perdidas

– Sei – falei – nessa magia você até mesmo cria o ser evocado. Parece
incrível. São interessantes as relações de cada magia com os poderes de
Deus. Na magia octarina você adquire o aspecto criador. Na magia negra
há o aspecto de julgamento; para julgar o bem e o mal e aplicar bênçãos
e maldições de acordo com sua vontade. Na magia branca você venera o
Deus. Na magia verde se compreende o todo, o equilíbrio da natureza,
então acaba se fundindo com certas criações de Deus e com o mundo,
como os elementais e os animais. Quero dizer... partindo do pressuposto
de que Deus existe. Mustse não acreditava.
– Eu mesmo sigo uma linha mais utilitária – explicou Boofeng – se Deus
precisa existir para que tal operação dê certo, você simplesmente se
convence de que Ele existe enquanto precisar.
– Mustse já me falou sobre isso – lembrei – é a oração científica. Mas
qual seria o aspecto divino da magia vermelha?
– Nela você se torna o próprio Deus. Para a magia vermelha “Deus”
significa um ser que atingiu a libertação pelo abandono do corpo e da
mente, por intermédio da meditação. Você se libera do ciclo de
nascimentos e mortes. Embora a existência da reencarnação seja um fato,
mesmo eu não tendo certeza se ela ocorre em todos os tipos de seres
vivos, a existência da alma, de Deus ou mesmo da libertação pode ser
questionada. Palavras muitas vezes são inapropriadas para expressar a
realidade espiritual.
– Sobre a reencarnação, seria possível a existência de uma
metempsicose? – perguntei – Humanos reencarnando em animais,
elementais, demônios, anjos, plantas...?
– Boa pergunta. Não sei – ele riu – em resumo, essas são as cores de
magia que sei mais, na ordem: octarina, verde, branca, vermelha e negra.
Sendo que creio ter dominado as duas primeiras, possuo um
desenvolvimento médio na terceira e básico nas duas últimas.
– Quanto a mim, tenho um desenvolvimento básico em magia negra e
verde. Sobre as outras três não sei quase nada – por um momento fiquei
pensativa – mas começo a sentir que a magia verde não é o meu
caminho. Então ou eu prossigo com o treino de magia negra ou busco
outra via. Se eu escolher magia octarina, você pode ser meu mestre?
– Acredito ter qualificações apenas para ensinar magia verde e octarina –
respondeu Boofeng – no caso de escolher outra linha, você terá que

217
Juliana Duarte

viajar para o outro mundo, procurar por um mestre ou entrar numa


ordem ou escola de magia de lá. Mas mesmo que eu te ensine a magia
octarina seria desejável ir para meu mundo, já que lá o ambiente é
propício para esse tipo de treinamento.
Então a minha única esperança de continuar a viver no meu mundo e
morar com meus pais seria escolher a magia verde. Mas eu não queria
fazer essa escolha somente pelo conforto de permanecer no Mundo
Verde.
Eu também sentia saudades do Mundo Negro, embora sem Mustse não
fosse a mesma coisa. Se eu visitasse um terceiro mundo, iria me dividir
em três.
– Espere – eu me dei conta de uma coisa – já que você teve contato com
todos os caminhos, isso quer dizer que você mantém ao mesmo tempo
um servidor, um elemental, um animal de poder, um anjo e um
demônio?
– Sim – sorriu Boofeng – se derrotarem um, tenho outro. Em um duelo
de vida ou morte, para me derrotarem teriam que destruir todas as
minhas potências, uma por uma.
Então ele seria um muro impenetrável. Ou talvez aquilo trouxesse
algumas fraquezas.
– Então se alguém destruir seu animal totem você não morre? –
perguntei.
– Boofito é forte e não será destruído facilmente – respondeu ele – não
sei qual seria o impacto da morte dele em mim, mas eu teria a energia de
outras linhas da magia para me dar forças. Creio fortemente que eu não
morreria.
Isso me fazia sentir um grande desejo de ser mestre de diversas linhas.
Dessa forma eu poderia ter um animal de poder. Eu não seria totalmente
dependente dele.
Por outro lado, eu tinha uma vida só. A não ser que eu me centrasse em
alquimia.
– E se eu disser que quero ser imortal para ter tempo de aprender todas
as linhas? – perguntei.
– Você não precisa ser imortal para isso – riu Boofeng – Mustse é
exagerado. Você não precisa de cem anos para dominar cada linha. Um
mago extraordinário é capaz de aprender muito em pouco tempo. Mas

218
Guerra das Cores Perdidas

sugiro que você se foque em seus objetivos. No meu caso foram


diferentes acontecimentos da minha vida que me levaram aos vários
mundos. Não decidi iniciar uma viagem para aprender todas as linhas.
Ele estava certo. Eu tinha que escolher uma cor só.
– Não posso estudar um pouco de cada e criar minha própria cor da
magia?
– Tem uma divisão da magia octarina que mexe com isso, já que os
octarinos são dados a criar tudo – respondeu Boofeng – mas se você
desejasse aprender uma língua e se deparasse com cinco línguas
diferentes, iria escolher os termos mais bonitos de cada uma e montar
sua própria língua com a qual você não poderia se comunicar com
ninguém? Não, você primeiro escolheria uma das línguas para aprender
bem. Se um dia você decidisse aprender todas as cinco línguas e as
dominasse, aí sim você teria uma base forte de linguística para criar sua
própria língua. Por essa razão a magia octarina é recomendada para quem
já tenha certa base de conhecimento de magia em outras linhas.
Aquilo tudo era muito complicado, mas fazia sentido. A magia octarina
em si parecia extremamente complexa. Eu ainda não me considerava
preparada para mexer com isso. E como era impossível ter acesso ao
Mundo Vermelho, se eu quisesse aprender algo novo a única opção seria
a magia branca.
Eu disse para Boofeng que precisava descansar um pouco. Minha cabeça
estava girando com todas aquelas cores.
Fui até o meu quarto e deitei na cama. Fechei os olhos. Como eu
enxergava cada via da magia?
A magia verde era harmônica, natural... era como deitar novamente nos
braços da mãe terra e deixar que ela nos embalasse. Mas depois de
aprender a velocidade da magia negra, aquela linha já me parecia muito
lenta. Eu não tinha paciência para esperar os tempos de fúria da
natureza; de aguardar o amadurecer de um fruto para colhê–lo. E eu era
muito medrosa para suportar novamente a dor da separação de um
animal de poder.
A magia negra era poderosa e tentadora, mas muito violenta. Mexe muito
com o psicológico, você deve realizar experiências com as suas emoções,
levando a níveis extremos. E eu não gostava da ideia de ter o peso de
muitas vidas nas mãos. Ou de correr o risco de adquirir uma

219
Juliana Duarte

personalidade cruel fruto da forte carga psicológica a que o mago negro


era submetido.
A magia branca me parecia calma, pacífica... a visão de um anjo guardião
era linda, um esplendor. Mas eu não tinha certeza de que gostaria de
trilhar o caminho da bondade. Se eu odiasse uma pessoa precisaria
perdoá–la; não poderia usar poderes se eles não correspondessem à
vontade de Deus e do meu anjo. Na magia negra você controla o
demônio; ele é seu servo. Na magia branca o anjo faz a bondade de
auxiliar o mago branco, que só pode realizar as operações que possuam
correspondência com o amor divino. Eu não queria essa limitação. Seria
como ter as mãos atadas e ser controlada por Deus; o grande
ventríloquo.
A magia vermelha era um mistério para mim, mas parecia um caminho
muito nobre. As meditações proporcionavam à mente o
desenvolvimento de poderes sobrenaturais. Se eles não mexiam com
evocações, significava que as meditações lhes proporcionavam poderes
similares ou até superiores.
A magia octarina era outra que eu não sabia quase nada. Era uma linha
completamente aberta e sem mistérios, onde tudo era permitido. E por
isso mesmo talvez eu a considerasse a mais hermética de todas.
Complexa em sua aparente simplicidade e diversidade.
Era melhor eu parar de pensar naquilo por um momento ou ficaria
louca. Era uma quantidade absurda de informações. Quanto mais
grimórios eu lia, mais ficava confusa, pois às vezes eu lia coisas com as
quais ficava maravilhada e outras partes eu odiava.
Os meses se passaram. A barriga de Clarver ficava cada vez maior. Uma
vez pedi para sentir. Toquei na barriga dela e me maravilhei com a vida
que pulsava lá dentro. Os chutes eram violentos; o bebê queria sair logo
de lá para começar a matar. Ou talvez fosse apenas minha imaginação.
Alguns dias antes do nascimento, tive a oportunidade de ter uma
conversa importante com Clarver. Era a respeito de nossas decisões.
– Pensei bem sobre isso e descobri que a coisa que mais quero é retornar
ao Mundo Branco – falou Clarver – desejo fortemente prosseguir em
minha evolução mágica. Quero fortalecer o contato com meu anjo
guardião, rever a minha mestra, caminhar de pés descalços pelas ruas de
folhas, que são preenchidas de folhinhas verdes e marrons no outono.

220
Guerra das Cores Perdidas

Pisar novamente nos divinos altares de ouro. Tocar nas águas abençoadas
pelo próprio Deus. Entendo que todos os mundos são divinos e Deus
protege a todos que nele sinceramente acreditam. Mas sinto falta da
minha terra natal. A presença de todos aqueles crentes em Deus, de
todos aqueles magos que se dedicam ao amor absoluto... é incrivelmente
inspiradora. Desejo sentir uma vez mais essa atmosfera de paz e luz.
– Entendo perfeitamente – falei – você decidiu morar com seu filho no
Mundo Branco?
– Sim. Nós dois seremos fortes para suportar a discriminação. Claro que
as outras crianças irão zombar dele por ser diferente. Mas um dia irão
entender que somos iguais diante de Deus. Se ele se esforçar no estudo
do caminho branco, irá se purificar e adquirir o respeito de todos. Ele
provará que até mesmo um ser com sangue do mundo negro pode ser
bom e aceito por Deus. Talvez dessa forma nosso povo passe a ser mais
tolerante, não discrimine tanto o povo negro, já que teremos um
exemplo vivo. Não me entenda mal, não quero usar meu filho como
instrumento de disputa política. Desejo apenas que ele seja feliz ao meu
lado, num mundo que julgo lindo e que será o ideal para seu
desenvolvimento espiritual.
– Fico feliz que tenha tomado uma decisão tão sábia – eu sorri – você
deseja ganhar seu filho no seu mundo? Talvez ainda dê tempo de
Boofeng levá–la.
– Tenho medo que a evocação faça mal ao bebê – falou Clarver – não
quero que nada de mal aconteça a ele. Já esperei até agora, então vou
esperar mais um pouco. Depois que nascer e estiver saudável, viajarei o
quanto antes.
– Você já sabe o nome? – perguntei, curiosa.
– Se for menino, seu nome será Kolwnebu; o nome do meu avô,
reconhecido em nossa família como um grande pacifista. Se for menina,
será Kiwala; o nome da minha bisavó, famosa em nosso mundo como
uma das mais poderosas magas brancas da história.
– Então desde o nome até a educação que receberá e o mundo que
viverá, seu filho terá todo o potencial para tornar–se bom – falei – desejo
um excelente desenvolvimento espiritual para ele.
– Mas não vou obrigá–lo a nada – ela avisou – ele será livre para escolher
o seu caminho. E sobre a sua decisão? Qual caminho da magia você

221
Juliana Duarte

decidiu aprender?
– Estava pensando em visitar o Mundo Branco com você e Boofeng –
confessei – você fala com tanta paixão desse lugar que só posso crer que
é o mundo mais próximo do paraíso. Se me for permitido, seria uma
honra conhecer um pouco mais sobre magia branca.
Clarver ficou feliz com minha decisão. A partir daquele momento, nossas
vidas prometiam ser guiadas ao rumo da felicidade.
Eu acreditei firmemente nisso. No entanto, meus sonhos foram
quebrados no dia em que Clarver entrou em trabalho de parto. Nós a
levamos ao hospital. Coisas fora de nossos planos e além de nosso poder
aconteceram.

222
Guerra das Cores Perdidas

Entre o Negro e o Branco

Segurei a mão de Clarver desde que ela deitou–se na cama do hospital.


Ela estava sentindo muita dor; talvez mais que o normal.
Os médicos me mandaram sair. Alguma coisa grave devia estar
acontecendo. Chamaram a emergência.
Eu e Boofeng nos sentamos do lado de fora do quarto. Eu estava
nervosa e ansiosa. Torcia para que desse tudo certo. No entanto, houve
problemas na operação.
Ouvi alguém mencionar sobre morte. Ao que parecia, o filho de Clarver
tinha morrido. Talvez os genes de um mago branco e de um negro não
fossem compatíveis e gerassem um filho morto.
Imaginei que aquilo seria muito chocante para Clarver. No começo ela
odiava o filho e queria matá–lo. Mas conforme os meses se passaram, a
opinião dela mudou completamente. Teve todo o cuidado durante a
gravidez e acontecia aquela tragédia no momento mais importante.
Contudo, quando um dos médicos saiu da sala, a notícia oficial foi outra:
– Sinto muito. A mãe não sobreviveu. O filho está em estado crítico, mas
irá sobreviver.
Meu coração quase parou quando ouvi aquilo. Minha melhor amiga
estava morta.
E os sonhos dela de retornar ao Mundo Branco? Não foi por isso que
ela aguentou todos aqueles anos? Rever sua mestra, caminhar sobre as
folhas que caíam no outono. Tudo aquilo havia sido destruído com uma
única palavra: morte.
Não era justo. Ela era tão bondosa, teve uma vida de sofrimento e logo
quando coisas boas começariam a acontecer, ela morria. Ela nem mesmo
viu de novo seu próprio mundo uma última vez.
Boofeng tentou me consolar. Ele disse que Clarver viveu feliz conosco
naquele último ano e que teria um renascimento maravilhoso, pois seu
karma era bom.
Aquelas palavras me fizeram sentir muito melhor. Finalmente ela teria
paz, perto de seu Deus. Seu anjo também voltaria para as mãos de Deus
e não mais sofreria em lutas.

223
Juliana Duarte

Eu e Boofeng já íamos voltando para casa para preparar as solenidades


do enterro de Clarver, quando o médico nos lembrou sobre o bebê.
Envolvidos demais com a fatalidade que ocorreu, nós dois nos
esquecemos completamente.
Fomos visitá–lo na sala das incubadoras. O médico disse que, embora o
bebê não corresse risco de vida, precisaria permanecer sob observação
médica por alguns dias na incubadora até que seu estado normalizasse.
O que vimos foi muito impressionante.
O bebê era uma menina. Foi meio inesperado, já que sempre nos
referíamos ao bebê como “ele”. Mas esse não foi o fato mais incrível.
Ela tinha chifres na cabeça. Seis chifres. Eu já desconfiava há muito
tempo que o número de chifres de um demônio fosse sinal de poder.
Quanto mais chifres, mais poderosa a criatura. O próprio Mustse tinha
quatro chifres. Nunca vi nenhum habitante do mundo negro com mais
de três chifres, fora o próprio Mustse. A maioria tinha dois. Alguns
possuíam um e outros raros tinham três. Lamue tinha sete.
Boofeng me confirmou que o número de chifres era sim um indicativo
importante de poder, embora não fosse uma regra. Cada chifre dava
maior poder mágico; por isso a perda de um dos chifres resultava em
diminuição da força espiritual. E aquela criancinha tinha seis!
A próxima coisa que nos chamou a atenção foi as asas. Ela tinha quatro
pequenas asinhas nas costas: duas brancas e duas negras. Pedi
informações a Boofeng sobre asas, pois eu não sabia nada sobre a
relação das asas e do poder para os magos brancos. Sabia somente que
era ali que residia sua fonte mágica.
– Geralmente é a quantidade de asas, o tamanho e a cor delas que faz
diferença – explicou Boofeng – no caso dos chifres conta somente a
quantidade; cor, forma e tamanho não importam.
– E então o que essas quatro asinhas brancas e negras significam? –
perguntei, com um pouco de medo da resposta.
– Quanto maiores, mais largas e imponentes as asas, gera poder maior –
explicou ele – ela ainda tem asas pequenas porque é um bebê.
Certamente elas ainda vão crescer, embora eu não faça ideia do tamanho
que terão. Mas eu já vi alguns bebês no Mundo Branco e a maioria nasce
sem asas. Elas começam a crescer só depois, quando eles são crianças. Se
ela já nasceu com asas, talvez isso signifique alguma coisa.

224
Guerra das Cores Perdidas

– E sobre a cor?
– Existem somente três cores possíveis para asas: brancas, prateadas ou
douradas. A cor prata significa potencial para magia da lua. A cor
dourada é potencial para magia do sol. A cor branca simboliza a pureza
absoluta e potencial misterioso. É raro um ser com asas assim tão
brancas, pois mesmo os que as possuem tendem a um tom cinza claro.
– Clarver tinha asas brancas – lembrei – e o que são essas asas negras?
– Não faço ideia. Talvez a cor estranha seja pelos genes do pai. Mas
estou apenas adivinhando, pois nunca vi um mestiço de ser do Mundo
Branco e do Mundo Negro antes. E olha que já vi muita coisa. Conheci
outros mestiços, mas o Mundo Branco e o Mundo Negro são rivais. A
união dos dois seria quase impossível.
– A não ser nas circunstâncias em que ocorreu – lembrei – na verdade eu
me pergunto por que ele fez isso, já que ele sempre odiou magos brancos
e magia branca. Deve ter feito só para torturar Clarver.
Eu me sentia muito triste quando dizia o nome dela. O que aquilo tudo
significava? A criança havia matado a mãe de propósito ou foi um
acidente? Por que ela possuía no corpo tantos indicativos de poder?
Obviamente ela havia recebido aquele poder tremendo do pai. Mas
Clarver tinha mencionado sobre uma bisavó na família que havia sido
uma das maiores magas brancas da história. Clarver também possuía
genes poderosos.
– Kiwala – lembrei – Clarver me disse que, se fosse menina, se chamaria
Kiwala; o nome da bisavó dela.
– Então assim será – falou Boofeng.
Retornamos para preparar o enterro de Clarver. Meus pais ficaram muito
tristes com a notícia. Em nossa pequena cerimônia também
compareceram alguns vizinhos nossos que descreveram Clarver como
“uma moça adorável”. Foi muito especial recebermos esse apoio e
agradecemos a todos.
Alguns dias depois, o hospital nos informou que a pequena Kiwala já
estava pronta para retornar à família. Nós fomos buscá–la.
Já havíamos decorado todo o quarto de Clarver, que fora o antigo quarto
da minha irmã, com enfeites para bebês, incluindo berço, brinquedos e
roupinhas. Tivemos que mandar as roupas para a costureira, que cortou
sob medida um espaço para as asas. Acho que minha irmã jamais

225
Juliana Duarte

imaginaria que seu quarto seria dado à filha do seu assassino.


Na nossa cidade já havia alguns rumores sobre o bebê meio anjo, meio
demônio; um ser de outra raça que estava em nosso mundo. Pelo jeito,
mesmo no meu mundo ou em qualquer local que vivesse, ela sofreria
preconceitos.
Eu, meus pais e Boofeng combinamos de conversar um dia para decidir
sobre o destino da filha de Clarver.
– O desejo da mãe dela era que Kiwala fosse educada e vivesse no
Mundo Branco – eu informei – Clarver planejava viajar para lá com a
filha o quanto antes.
– Podemos enviá–la para viver com a família materna – sugeriu Boofeng
– talvez os parentes de Clarver possam criá–la.
Com o pai e a mãe mortos ficava complicado. Embora no fundo fosse
um alívio que o pai estivesse morto, pois ele seria o último a quem
confiaríamos o destino daquela criança. Eu me perguntava se Mustse iria
exigir a guarda da filha, pois estaria no seu direito.
Mas eu também sabia que ele não expressou a menor reação quando
Clarver contou sobre a gravidez e disse para ela fazer o que quisesse. Ele
não iria querer um dever chato de educar uma criança, mesmo que
deixasse sob a responsabilidade de seus servos.
Boofeng resolveu viajar sozinho para o Mundo Branco. Procuraria pelos
pais de Clarver para dar as duas notícias: a morte da Clarver e a
existência de um bebê órfão.
Um mês depois, ele retornou. As notícias não eram muito animadoras.
A família de Clarver ficou muito triste ao saber sobre a morte dela. O
choque só não foi tão grande porque todos já a davam como morta
desde o desaparecimento. Há muito tempo a família já havia realizado a
cerimônia de um enterro simbólico.
Mas quando Boofeng mencionou sobre o bebê mestiço a reação foi bem
diferente. Os pais de Clarver disseram que não queriam ouvi–lo
mencionar aquilo de novo, pois mancharia a memória de sua filha.
Acusaram–no de mentira. E afirmaram que mesmo que Boofeng
trouxesse o suposto bebê, eles não iriam acreditar que ele fosse filho de
Clarver, pois “qualquer coisa com chifres” jamais poderia possuir o
sangue daquela família.
Houve alguns parentes que se pronunciaram de outra forma e

226
Guerra das Cores Perdidas

defenderam que o bebê fosse aceito, embora não se candidatassem a


assumir a guarda da criança. Mas como os pais se posicionaram
radicalmente contra, Boofeng não teve escolha a não ser retornar.
– A solução seria eu entregar Kiwala aos cuidados da Ordem de Magia
Branca, para que estudasse essa magia, como a mãe dela desejava –
sugeriu Boofeng – mas depois de ver a reação dos pais de Clarver, tenho
dúvidas se mesmo os sacerdotes de lá não agirão de forma semelhante.
Existe possibilidade forte de discriminação e não haverá ninguém para
defendê–la. Tenho medo que os sacerdotes façam lavagem cerebral nela
e a convençam de que ela é inferior aos outros.
Portanto, decidimos que por enquanto seria melhor eu e meus pais
cuidarmos do bebê até que arranjássemos outra solução. Boofeng
informou que ainda se manteria como papa do Mundo Verde por mais
algum tempo e continuaria a viver no monastério. Se precisássemos dele,
bastava contatá–lo que ele nos ajudaria no que pudesse.
Sinceramente, a possibilidade de me tornar uma babá não me agradava,
mas que escolha eu tinha? Embora quisesse me dedicar aos meus
estudos de magia, eu não queria simplesmente largar Kiwala com meus
pais para que eles cuidassem dela sozinhos. Afinal, eles definitivamente
não tinham nada a ver com o assunto e estavam sendo muito gentis em
nos ajudar.
O culpado daquilo tudo era Mustse e ninguém mais. Que raiva! Pobre
criança, pobre Clarver e pobre de nós.
Mas e agora? Que magia eu iria estudar? Antes meu plano era ir para o
Mundo Branco junto com todos, mas já que a situação tinha mudado, eu
não poderia ir para lá nem se eu quisesse. Era melhor que Kiwala não
pisasse lá por enquanto. Somente quando tivesse idade suficiente para
escolher uma linha da magia.
Já que eu teria que ficar no Mundo Verde por mais algum tempo, o ideal
seria entrar para a ordem monástica. Mas isso exigia dedicação integral.
Era melhor eu estudar sozinha, pois assim eu poderia dividir meu tempo
entre cuidar de Kiwala e dedicar–me à prática.
Resolvi dar prosseguimento aos meus estudos de magia negra. Afinal, era
nessa linha que eu era mais avançada, então valeria a pena ir mais a fundo
nela. O único problema era que eu estava sem instrutor e teria que
desvendar os próximos passos por mim mesma. Pelo jeito o mais

227
Juliana Duarte

próximo de um mestre que eu teria seria Garfdie. E ela de fato me


ajudou muito nos anos seguintes.
Cinco anos se passaram. Eu estava com 22 anos e havia evoluído
consideravelmente. Confesso que naqueles cinco anos evoluí muito
menos que nos quatro anos em que Mustse me ensinou. Ainda assim, já
era um progresso. Meu sonho era livrar–me da responsabilidade de
cuidar de Kiwala para finalmente viajar para outro mundo. Eu já tinha
desistido de aprender magia verde, então não teria mais sentido
continuar ali, a não ser pela agradável companhia de meus pais.
Kiwala estava ficando muito bonita. Ela puxou à mãe nos traços do rosto
delicados. Os olhos castanhos também eram como os de Clarver. Ela
tinha cabelos negros como os de Mustse e a mesma pele clara
ligeiramente avermelhada. Os cabelos de Kiwala eram bem longos e
lisos.
Eu gostava de enfeitá–la com laços, fitas e tiaras. Adorava escovar e
trançar os cabelos dela. Eu colocava nela vestidinhos coloridos e
graciosos, assim como meigos sapatinhos de boneca. Meias de bichinhos,
com sapinhos, flores, tartarugas. O quarto dela era repleto de bichinhos
de pelúcia. O preferido dela era o sapo. Ela adorava sapos e minha mãe
contava a ela histórias sobre os animais totem de nosso mundo; que
talvez um dia um sapinho a escolhesse como mestra. Kiwala ficava
maravilhada.
Os seis chifres dela estavam crescendo pouco a pouco. O mais estranho
era que cada um assumia uma forma diferente. Eu nunca tinha visto isso
antes: um se parecia com um chifre de unicórnio, outro de touro, de
cabra, de ovelha... era bem impressionante.
As quatro asas também estavam maiores. A cor permanecia sempre a
mesma: um branco muito puro e um negro tão escuro como carvão.
Kiwala tinha interesse em saber mais sobre os mundos de seus pais.
Desde o começo contamos a ela que era filha de um mago negro e uma
maga branca. Ainda assim, ela parecia identificar–se com as histórias de
magia verde de nosso mundo.
Pai do Mundo Negro, mãe do Mundo Branco, nascida e criada no
Mundo Verde. Era natural e esperado que ela tivesse dúvidas.
Ela era uma menina boazinha, embora meio teimosa às vezes. Ela
gostava das visitas do “tio Boo” que de vez em quando dava a ela

228
Guerra das Cores Perdidas

presentinhos, contava histórias engraçadas e a levava na garupa para


brincar. Ela ria muito quando ele fazia caretas. Até eu ria, na verdade.
Kiwala não gostava muito dos meus pais, porque eles a proibiam de fazer
várias coisas. No meu caso, eu era meio irresponsável e não tinha muita
noção de como cuidar de criança pequena, por isso eu autorizava a
maioria das coisas e meus pais brigavam comigo depois.
Aquele fato traria consequências horríveis mais tarde.
A tragédia ocorreu no dia do aniversário de seis anos de Kiwala. Meus
pais prometeram que a levariam no parquinho de diversões. Depois
disso, faríamos uma festa com todos, com bolo, docinhos, balões e
presentes.
– Convidaremos o tio Boo e todos os seus coleguinhas! – informei a ela,
com um sorriso.
– Odeio meus colegas – ela disse – então não quero.
Ela estava com uma expressão séria e emburrada. Convidei–a para sentar
e conversarmos.
– Por que você odeia seus colegas? – perguntei.
– Eles zombam dos meus chifres – respondeu ela – mas eu acho eles
muito bonitos.
– E eles são bonitos, meu amor – eu disse a ela – não ligue para o que
eles dizem.
– Tem uma menina com asas na minha sala. Mas as asas dela são feitas
de folhas. São diferentes das minhas.
– Em nosso mundo existe uma grande diversidade de raças. Convivemos
pacificamente com todos, respeitando as diferenças.
– Mas nunca vi ninguém como eu.
Como se explica isso para uma criança? Eu não sabia o que dizer. Ao
tentar consolá–la acabei dizendo uma besteira. Contei que as asas e
chifres eram fonte de grande poder mágico. Por isso ela não devia se
sentir inferior, pois na verdade ela era mais poderosa do que todos.
Isso teve um efeito muito negativo. Ela se convenceu de que tinha
autoridade e que todos tinham o dever de respeitá–la.
Naquele dia fui à confeitaria e ao supermercado comprar as coisas da
festa. Comprei um grande bolo de morango, no qual estava escrito “Feliz
Aniversário” com glacê. Comprei seis velinhas, docinhos de coco e
chocolate, salgadinhos, sucos e refrigerantes. Achei pratos e copos de

229
Juliana Duarte

plástico com desenhos de sapinho. Com certeza Kiwala ia adorar.


Cheguei em casa mais feliz que nunca para fazer a surpresa. Além das
sacolas com as comidas da festa eu trazia nas mãos um embrulho com o
presente de Kiwala: um jogo de quebra–cabeça que formava a paisagem
de um pântano com muitos sapos. Estava ansiosa para ver a reação dela
quando abrisse o presente.
No entanto, assim que eu cheguei, senti um cheiro muito antigo,
estranhamente familiar. Eu sabia o que era: cheiro de sangue.
Larguei as sacolas no chão e corri para o interior da casa. Procurei nos
quartos para ver se encontrava alguém, até que vi os cadáveres do meu
pai e da minha mãe: os dois com uma rachadura enorme no crânio. Ao
lado dos dois corpos estava Kiwala, chorando. E flutuando acima dela
havia um demônio de um chifre.
Lágrimas caíram dos meus olhos com o choque, mas a raiva foi maior.
Segurei Kiwala pelos ombros e sacudi–a.
– O que você fez?! – gritei – Como você evocou um demônio? Você
matou meus pais!
Não tinha jeito de levá–los para o hospital. Não havia mais como salvá–
los.
– Foi sem querer – justificou–se ela, chorando – eles não queriam me
levar para o parque porque estava chovendo. Mas eu esperei muito por
esse dia, queria andar nos brinquedos mesmo com chuva...
– E só por isso você matou meus pais, sua desgraçada?! – eu gritava cada
vez mais alto.
– Eu só ia puni–los, tirar um pouco de sangue. Não matá–los. Mas eles
mereceram.
Dei um tapa na cara dela. Ela me fitou com ódio. E pronunciou as
mesmas palavras de evocação que eu usava para Garfdie. Mandou que o
demônio dela me atacasse.
Imediatamente tracei o círculo de proteção e evoquei Garfdie. Dominei
o demônio de Kiwala com a maior facilidade. Era um demônio de classe
baixa, dos mais fracos. Eu estava tão irada que despedacei o demônio
dela.
Kiwala deu um grito horrível e começou a chorar.
– Norida! Norida! Você matou a minha Norida!
– E eu vou matar você da próxima vez que matar alguém ou mexer com

230
Guerra das Cores Perdidas

magia negra sem autorização! – gritei – Você evocou um demônio sem


círculo de proteção ou treinamento algum. Apenas repetiu as palavras
que me escuta dizendo quando trabalho com Garfdie. O seu demônio
poderia ter te matado!
– Não me importo – retrucou Kiwala – todos me odeiam. Somente
Norida me entendia.
O que eu faria com aquela pequena criança demônio? Eu estava nervosa,
desesperada. Não queria fazer nenhuma besteira. Por isso chamei
Boofeng. Ele era o único que poderia me ajudar numa situação como
aquela.
Kiwala adorava o “tio Boo”. Acho que ele era a única pessoa que ela
realmente gostava. Bom, era muito mais fácil gostar de uma pessoa de
fora, que não precisava fazer o trabalho sujo de dar sermões, mandar
dormir e proibir coisas. Boofeng só aparecia para brincar com ela e dar
presentes.
Quando ele chegou, Kiwala correu até ele, chorando. Abraçou–o,
segurando nas vestes dele.
– A tia Wain está assustadora! Ela me bateu! Ela gritou comigo! Ela está
me maltratando! Odeio ela!
– Kiwala, Wain brigou com você porque você fez uma coisa horrível.
Matar pessoas por nada é um ato abominável. Eles foram seus pais de
criação, que deram a você carinho e amor.
Era a primeira vez que Kiwala o via tão sério. Ela estava tentando se
fazer de vítima, mas não ia conseguir.
– Você vai ficar de castigo e refletir sobre o que fez – ameacei – não vai
mais comer bolo ou receber os seus presentes.
– Calma, Wain – falou Boofeng – puni–la agora não vai adiantar. Ela
apenas vai interpretar esse ato com ódio e ver a todos como inimigos
que ela deve punir e matar.
– Eu nunca vou te matar, tio Boo – Kiwala continuava agarrada nas
vestes dele – porque você é o único que me compra doces de ameixa e
conta as melhores piadas do universo.
– Obrigado, Kiwala, mas não vou poder ficar do seu lado dessa vez –
avisou Boofeng – eu sei que você é pequena e há coisas que não
compreende. Mas isso não justifica o que fez.
– Por que está me chamando de Kiwala? Por que não me chama de Kiki

231
Juliana Duarte

como sempre faz? Você também está brabo comigo, tio?


– Estou muito chateado com você. Deve entender certas coisas sobre a
morte. Você não pode simplesmente matar.
– Então por que você matou meu pai? – desafiou Kiwala.
Dessa vez Boofeng ficou quieto.
– Desculpe – resolvi dizer – uma vez mencionei a ela sobre isso. Eu
realmente sinto muito.
– Tudo bem – falou Boofeng – não precisamos esconder nada dela. Mas
diante das circunstâncias é melhor tomar uma decisão séria. Talvez seja
uma boa ideia procurar a família de Mustse. A família materna não a
quer, mas a paterna talvez a aceite. Kiwala já demonstrou seu interesse
pela via negra. O Mundo Negro será o ideal para que ela se desenvolva.
Se ela continuar a avançar aqui no Mundo Verde, mais gente pode
morrer. No Mundo Negro os parentes dela poderão ensinar–lhe a prática
da magia como deve ser.
– Vocês vão me abandonar por causa do que fiz? – perguntou Kiwala,
com urgência – Vão me expulsar de casa, tirar de mim os meus ursinhos,
não vou poder mais comer pudim? Não quero ir embora, por favor!
Prometo que vou me comportar!
Kiwala voltou a chorar. Boofeng abaixou–se e sentou ao lado dela.
– Não é uma punição – explicou Boofeng – estamos pensando no que
será melhor para você. Conhecerá outro mundo e terá novas
experiências.
Sinceramente, eu não achei uma má ideia. Por todo aquele tempo eu
praticara magia negra e no fundo desejava retornar ao Mundo Negro
para poder avançar muito mais. Decidi que iria junto com eles procurar
pelos parentes de Kiwala.
Antes de partir, deixamos tudo em ordem. Realizamos o enterro dos
meus pais, no qual compareceram muitos amigos. Preparamos tudo para
fechar a casa. Informamos aos vizinhos de confiança que ficaríamos fora
por tempo indeterminado.
Não podíamos levar muitas coisas. Pegamos apenas o essencial. Boofeng
preparou um círculo de proteção e, surpreendentemente, evocou um dos
servos da casa de Mustse.
– Esse é o sinal – explicou Boofeng – Betah sabe que quando ele
desaparece deve evocá–lo de volta. E nós, que estamos próximos a ele,

232
Guerra das Cores Perdidas

iremos junto.
Pelas horas seguintes ficamos próximos ao servo, até que Betah
percebesse sua falta e nos evocasse. Para a minha surpresa, surgimos no
quintal florido do castelo de Mustse. Betah nos saudou com alegria.
Achei que o castelo estaria trancado ou que todas as coisas dentro dele
seriam dadas a parentes, com o desaparecimento de Mustse. No entanto,
Betah informou que estava tudo como sempre foi, que ela continuava
cuidando do jardim e o resto dos criados limpavam a casa. Estavam
todos aguardando pela volta do patrão. Todos sabiam que ele voltaria um
dia, como sempre fazia.
– Ele já passou anos ou até décadas fora de casa – explicou Betah – é
normal ele ter ficado seis anos fora. Mas vejo que ele não está com você.
Tive que dar a notícia sobre a morte de Mustse. Todos os servos ficaram
tristes. Organizaram tudo para preparar um enterro simbólico e um
memorial. Decidimos participar.
Eu estava participando de muitos enterros nos últimos tempos. E para
todas as centenas de corpos empilhados na sala 2 jamais teve enterro
algum. Enquanto a pessoa que os matou seria recordada com saudades e
honrarias.
Quando perguntamos a Betah sobre os parentes de Mustse, ela informou
que não havia ninguém vivo. Eu já sabia que Mustse havia matado os
pais, mas talvez houvesse um tio, irmão, primo... mas não havia ninguém.
E havia uma boa razão para isso: Mustse havia realizado uma magia para
viver centenas de anos. Portanto, não haveria mais ninguém vivo mesmo,
a não ser os descendentes; talvez os tatatataranetos de algum parente.
Mas Betah não sabia nada sobre isso.
De qualquer forma, seria estranho contatar um tataraneto de décimo
grau que nem sabia sobre a existência de Mustse e dar–lhe a guarda de
Kiwala. Até porque a maioria das pessoas comuns nem mexia com magia
e Kiwala desejava ser treinada nisso. Ela precisava ficar sob a guarda de
alguém forte, para controlá–la.
– Lembrei que Mustse alegava ser um ditador vitalício do Mundo Negro
ou algo assim – comentei – quem está no governo agora e quem assumiu
a direção da firma?
– Como sempre, o nosso patrão é prevenido – explicou Betah – nós
temos ordens para proceder da maneira correta em todas as situações.

233
Juliana Duarte

No caso de ausência prolongada, Eideikel fica encarregada de assumir


tudo, pois é sua vice. Ela está no comando do governo e na direção da
firma no momento. Com a morte do senhor Mustse confirmada, o cargo
dela será oficial.
Pelo menos foi uma pessoa de confiança que assumiu. Eu não ia muito
com a cara de Eideikel, mas como ela era uma “conhecida” de Mustse –
o que nos termos dele seria um sinônimo para amiga – então estava tudo
bem.
– Mais uma coisa – informou Betah – nosso patrão deixou um
testamento. Era uma prática constante dele atualizar o testamento
mensalmente. Na última atualização, que foi feita poucos dias antes do
desaparecimento de vocês, o senhor Mustse a nomeou como proprietária
de todos os bens dele, incluindo essa propriedade com tudo o que nela
contém, o serviço dos mordomos e também todo o dinheiro e tesouros
guardados nos bancos. Você terá acesso a todas as senhas.
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo.
– No caso de você estar morta ou negar–se a receber sua parte do
testamento, o segundo nome da lista é a senhorita Clarver. Em caso de
morte ou desistência de ambas, há alguns outros nomes. Se as duas
estiverem vivas, a posse é sua, mas a senhorita Clarver terá direito a
poupança de um dos bancos.
– Infelizmente ela não está mais viva – informei.
Betah ficou meio triste em saber, pois ela conhecia Clarver.
– Nesse caso, você aceita seu direito à herança? – perguntou Betah.
– Já que Mustse não tem parentes e não há ninguém mais para ficar com
Kiwala, acredito que eu deva aceitar, para criá–la aqui no castelo. Kiwala
se beneficiará muito com os ensinamentos dos grimórios e os
empregados já estão acostumados a lidar com todo tipo de situação, caso
Kiwala fuja do controle.
Claro que Kiwala adorou aquilo, já que teria muito mais luxo do que
estava acostumada. Ela passeou por todos os aposentos da casa, fora as
áreas secretas, que a proibi de visitar. Ela escolheu meu antigo quarto
azul para ser o seu, já que se tratava do maior quarto da casa com
exceção dos aposentos particulares de Mustse.
Eu ficaria com o quarto dele. Foi muito estranho passar a usar aquele
lugar. Todos os pertences de Mustse estavam lá ainda, organizados, e eu

234
Guerra das Cores Perdidas

passaria a ter livre acesso a tudo. Em especial, eu desejava ler todos os


diários pessoais dele, que ele escreveu ao longo das décadas.
Principalmente os diários dos quatro anos em que eu permaneci no
Mundo Negro.
No final, não tive coragem de remover as coisas de Mustse de lá. Deixei
tudo como estava. Apenas levei uns poucos pertences essenciais. O resto
das minhas coisas eu guardava em outro quarto próximo. Mas passei a
usar o quarto e a dormir na gigantesca cama com lençóis vermelhos e
negros. Acima permanecia o imponente quadro com a besta de muitos
chifres em sua forma real. Também passei a usar o banheiro ao lado, já
que se tratava do maior banheiro da casa.
Decidi deixar a maioria das coisas como estavam. Eu adorava as
decorações originais de Mustse e o tom macabro do castelo. Não tinha
intenção de alterar nada. A única coisa que mudou foi a nossa presença e
alguns poucos pertences que tínhamos. Com a enorme quantidade de
dinheiro que Mustse havia nos deixado, poderíamos manter uma vida de
luxo.
Verifiquei nos bancos e descobri que havia uma quantia absurda.
Provavelmente seria suficiente para que eu e Kiwala vivêssemos uma
vida de princesa por uns 500 anos. E ainda assim ia sobrar dinheiro. Eu
não tinha a menor ideia do que fazer com tudo aquilo. A perspectiva de
deixar aquela quantidade inacreditável de ouro trancada nos cofres para
“coleção” parecia insana. Mas, por outro lado, sair gastando em qualquer
coisa também não parecia sábio.
Eu não podia deixar de cogitar a possibilidade de eu descobrir algum
grimório secreto de alquimia revelando o segredo da imortalidade. Se eu
me tornasse imortal, eu ia querer ter uma renda fixa para não me
preocupar.
Sinceramente, eu já estava com saudades daquele meu emprego em que
havia a sala com ar condicionado e a máquina com suco e bolinhos. Eu
nem lembrava qual emprego era, mas contatei Eideikel para pedir pelo
“emprego da máquina de comida”. Ela deixou, simplesmente porque ela
não teria nenhum tipo de prejuízo me empregando. E, segundo ela,
porque foi graças a mim que Mustse morreu e ela assumiu a firma. Após
falar isso, ela disse que foi uma piada, mas eu não tinha certeza.
Boofeng ficou hospedado em nossa casa por alguns dias, mas ele logo

235
Juliana Duarte

disse que precisava retornar ao Mundo Verde, já que ele era o papa,
então não poderia se ausentar por muito tempo. Ele disse que quando
retornasse iria informar à ordem que não mais permaneceria na função
de papa. Ele tinha planos de retornar ao Mundo Octarino depois disso.
– Se precisar de mim, basta evocar–me ou a um de meus amigos magos
do meu mundo – explicou Boofeng – Betah tem a lista de nomes. Ela
também tem as listas dos meus contatos em todos os outros mundos;
com exceção do vermelho, é claro. Então qualquer questão relativa à
evocação entre mundos, basta consultá–la ou pedir para que realize. Mas
Betah está proibida de levar Kiwala sozinha a outro mundo. E somente
usem esse sistema quando essencial.
– Você está indo embora, tio Boo? – perguntou Kiwala, tristemente –
Não vá. Há espaço no castelo para todos nós. Se morar conosco
poderemos brincar juntos todos os dias!
– Sinto muito, Kiki, mas tenho negócios a resolver nos outros universos
paralelos – Boofeng sorriu – o tio Boo vai passar por um longo período
de retiro para obter a maestria de uma importante linha de magia do
Mundo Octarino. Caso não precisem de mim urgentemente, voltarei aqui
para uma visita no dia do seu aniversário de 12 anos. É uma promessa.
Nesse dia trarei a você muitos presentes bonitos com a tecnologia do
meu mundo.
– Não quero presentes. Quero você. Vai ficar fora por seis anos? É tão
longo como minha vida!
– Espero escutar muitas novidades e histórias sobre a vida da pré–
adolescente Kiwala quando eu retornar. Comporte–se, ouviu, pequenina?
Se quando eu retornar souber que você foi uma menina exemplar, irá
ganhar a torta de ameixa original, fabricada pelos confeiteiros do meu
mundo. É a mesma receita que uso para os docinhos de ameixa.
Kiwala sorriu. Boofeng abraçou–a. Depois disso, ele levantou–se e me
abraçou.
– Boa sorte com a Kiki. Sei que será uma boa mãe.
Alguns minutos depois, ele foi evocado por algum sacerdote do Mundo
Verde e partiu.
– Agora somos só nós duas, Kiwala – eu sorri para ela.
Ela sorriu de volta para mim.
– Ah... tia Wain...

236
Guerra das Cores Perdidas

– Fale, querida.
– Desculpe por matar seus pais. Também sinto saudades deles. Nunca
mais vou matar alguém com quem realmente me importo.
Já era um começo. Eu torcia para que ela mantivesse essa opinião por
muito tempo.

237
Juliana Duarte

Aquela que mexia com fogo

Decidi matricular Kiwala numa escola de magia negra. Achei que seria
melhor ela ter contato com outras crianças da idade dela, já que era raro
encontrar crianças naquele mundo. Os habitantes do Mundo Negro
costumavam ter uma vida bem longa; pelo menos mais de cem anos e a
maioria optava por não ter filhos para evitar os gastos. Devido à
longevidade, à prática de magia e aos poucos que optavam por ter filhos,
era possível manter a quantidade da população estável. Embora a magia
fosse um fator que aumentasse a expectativa de vida, devido a certos
métodos de cura incríveis que curavam doenças graves e acidentes
violentos, a magia também causava muitas mortes devido aos sacrifícios
exigidos em magia avançada. A maioria usava animais, mas de vez em
quando surgia um Mustse... não era incomum.
A ideia da escola era boa, porque eu não queria manter Kiwala apenas
trancada em casa. Eu e Betah poderíamos ser suas mestras de magia, mas
eu ainda não me considerava tão qualificada para ensinar. Por isso a
existência dos professores seria muito positiva.
– Escute Kiwala, você sempre deve respeitar seus professores e colegas –
avisei – e se algum colega seu implicar, falar mal das suas asas ou
qualquer coisa assim, não ataque. Comunique aos professores. E caso
considere muito negativo o ambiente da escola e seus colegas, me avise.
Em último caso tiro você da escola, matriculo–a em outra ou me
encarrego de sua educação.
Mas Kiwala estava muito entusiasmada e ansiosa para conhecer sua nova
escola. No Mundo Verde as escolas não ensinavam magia. Para aprender
era necessário entrar para a ordem. Por isso era algo novo e Kiwala tinha
muita vontade de ter aulas de magia negra. Segundo ela, seriam “aulas de
verdade”, já que ela considerava a magia verde muito leve...
Após o primeiro mês de aula, eu fui chamada para conversar com os
professores. A própria diretora conversou comigo. Ela me avisou que
Kiwala se portava de forma muito arrogante com os colegas. Ela estava
sempre se gabando que era muito rica e poderosa. Que era filha do
grande mago negro Mustse, um dos mais famosos da história do Mundo

238
Guerra das Cores Perdidas

Negro, e que também possuía um sangue nobre por parte de sua mãe,
que fora uma maga branca. Ela havia evocado um demônio no meio da
sala de aula, somente para mostrar que era capaz, e ameaçava a todos
com chantagens se não fizessem o que ela queria. Ela tratava alguns
colegas como escravos, ordenando–lhes a comprar lanches para ela ou
limpar sua mesa, alegando que ela possuía servos em casa que faziam
essas coisas.
Kiwala ia e vinha da escola com motorista particular, naquele carro de
luxo. Quando ela chegou em casa naquele dia dei–lhe uma bronca,
contando tudo o que a diretora tinha dito a mim.
– Mas eu não ataquei ninguém com meu demônio! Só mostrei.
– Eu a proibi de evocar outros demônios até ter dominado todos os
procedimentos de magia básica. A diretora me avisou que você não usou
círculo ou triângulo.
– Mas meus colegas que começaram – defendeu–se ela – eles caçoam de
mim porque ainda não sei falar direito o idioma desse mundo. Contei a
eles que sou estrangeira e que minha família é influente e poderosa. Tive
que provar, mostrando meu demônio. Você devia ter visto a cara deles!
Morreram de medo diante do meu poder.
– Você está proibida de evocar esse demônio de novo, de se gabar ou de
tratar seus colegas como escravos. Peça desculpas e tente fazer amizades.
Seus colegas não são inimigos. Podem ser aliados, contatos. Você precisa
de contatos no mundo da magia.
Dessa vez ela se convenceu. Bastou que eu mencionasse sobre a
possibilidade de ela ter aliados e contatos. Ela parou de evocar o
demônio por um bom tempo. Não ouvi mais nenhuma reclamação da
escola e um dia ela me contou que tinha feito uma amiga.
Ela tinha gostado da escola. Sempre me contava com entusiasmo as
coisas que estava aprendendo. Nos anos seguintes, ela evoluiu muito
rápido no caminho da magia. Ela frequentemente se trancava no próprio
quarto para realizar suas experiências, até o dia em que liberei para uso a
sala de evocação número 10. Kiwala ficou muito feliz.
Aos nove anos ela já havia dominado a língua local. Crianças aprendem
novas línguas muito rápido, mas no caso dela foi bem impressionante.
Ela tinha pouco sotaque, falava até melhor do que eu.
Ela era particularmente fascinada por línguas. Sempre mantinha um

239
Juliana Duarte

registro utilizando a língua do Mundo Verde, para não esquecer. Em casa


conversávamos no idioma de minha terra natal, pois Kiwala fazia
questão. Vivendo no Mundo Negro, ela considerava muito chique saber
falar o idioma de outro mundo. Ela disse que tinha o sonho de viajar
para todos os mundos somente para aprender todos os idiomas. Mas nas
outras magias ela não tinha tanto interesse. Ela considerava a magia
negra como suprema.
Kiwala mantinha vários diários de magia: um escrito na língua do Mundo
Verde, outro na língua do Mundo Negro e outros em diferentes alfabetos
antigos e mágicos que ela estudava. Nem mesmo eu tinha conhecimento
sobre os alfabetos e línguas mágicas; somente decorei certas fórmulas de
evocação nessas línguas, mas não sabia conversar nelas.
Ela pedia que eu a levasse para as lojas de esoterismo frequentemente.
Queria adquirir novos utensílios mágicos e grimórios em branco para
anotação. Suas compras não tinham fim; sempre que ia lá, ela comprava
um monte de coisas, muitas delas caras. Eu resolvi não colocar limites, já
que eu tinha muito dinheiro. Eu estava satisfeita que ela estivesse
gastando em coisas nobres e úteis.
Livros ela não precisava comprar, pois em casa tínhamos várias
bibliotecas. Notei que Kiwala gostava mais de escrever do que ler. Ela lia
os grimórios de leitura obrigatória no colégio e também já havia lido os
livros de magia básica que eu indiquei. Mas ela gostava mais de estudar
línguas e dedicar–se às práticas. Trancava–se na sala de evocação 10 e só
saía muitas horas depois.
O quarto azul havia se transformado. Kiwala o havia tornado ainda mais
macabro que o quarto de Mustse. Ele estava completamente decorado
nas cores preta e roxa. Havia alguns móveis novos, um monte de
utensílios mágicos e decorações que ela escolheu. Seu guarda–roupa era
repleto de vestidos, mantos e caixas de jóias. E tudo de certa forma
lembrava a magia.
Foi aos nove anos que ela começou a realizar seus primeiros sacrifícios
para evocações. No começo ela sacrificava apenas bichinhos pequenos
como insetos e lagartixas. Depois começou a experimentar coisas
diferentes.
Aos dez anos ela passou a sair com algumas colegas e também a
convidá–las para o castelo. As colegas de Kiwala ficaram maravilhadas

240
Guerra das Cores Perdidas

com a riqueza e principalmente com a decoração fantástica de magia que


tornava o castelo praticamente um local mal assombrado e misterioso.
Kiwala exibiu seu quarto e a sala de evocação número 10. Contou que
havia salas de evocação ainda mais magníficas nas outras portas e
revelou, com orgulho, sobre a torre gelada em que havia as portas
secretas trancadas que nem mesmo ela sabia o que tinha dentro. Segundo
ela, possuía uma relação muito forte com magia avançada.
Enquanto as amigas dela estavam lá, Kiwala ordenava que os criados da
casa as auxiliassem nas menores coisas, o tempo todo. E exigiu que a
cozinheira fizesse um lanche super especial para aquela tarde. Depois
disso, alugou o motorista para que ele as levasse em um monte de
lugares. Quando eu soube disso briguei com Kiwala e conversei com o
motorista. Ele estava proibido de levar Kiwala aonde quisesse, sem
minha autorização.
Quando Kiwala completou onze anos, permiti que ela visse o interior da
sala secreta número 10. Anunciei isso no aniversário dela. Kiwala ficou
completamente maravilhada com o conteúdo da sala e queria convidar as
amigas imediatamente para mostrar todos aqueles utensílios mágicos
raros, mas eu não permiti.
Naquele ano também liberei mais algumas salas de evocação para seu
uso. Eu estava liberando tantas coisas que Kiwala começou a abusar.
Convidava amigas para visitar o castelo quase toda a semana. Nos fins de
semana ela saía com as amigas e voltava bem tarde. Eu não estava
gostando daquilo.
Ela sempre mentia sobre aonde ia aos fins de semana. No começo ela
tinha dito que era um grande projeto de magia que estava realizando com
as amigas. Mas um dia ela me contou a verdade, quando a pressionei
muito e ameacei cortar a mesada se ela continuasse mentindo. Isso foi
uma ameaça real, pois a mesada dela era mais do que recebia um
trabalhador assalariado.
– Se eu contar a verdade você promete não brigar? – perguntou ela, com
receio.
– Se contar a verdade e eu não gostar, você terá uma punição menor. Se
mentir e um dia eu descobrir que você estava mentindo, ficará sem
mesada e de castigo, proibida de sair com suas amigas.
– Prometo que falarei a verdade, então – decidiu ela – nos sábados à

241
Juliana Duarte

noite, eu e minhas amigas vamos ao cemitério realizar experiências de


necromancia. Nós desenterramos os cadáveres, traçamos um círculo de
proteção e invocamos espíritos para encarnar no corpo. Ainda não
realizamos experiências de possessão com coisas vivas, mas estou ansiosa
para tentar.
Eu não soube o que dizer. Aquela prática era meio questionável, mas já
que os professores ensinavam necromancia nas escolas, eu não me via no
direito de impedir que ela “estudasse”.
– Está certo – falei – não vou proibi–la de fazer isso, mas eu gostaria que
você me mantivesse informada sobre o que anda fazendo. Quando
começar as suas experiências de possessões, eu posso liberar uma das
salas secretas para seu uso.
Eu mesma não havia estudado a área de possessões. Já que havia uma
sala só para esse fim no castelo, eu não queria privá–la disso. Se eu
amasse necromancia, também teria insistido muito com Mustse para ser
autorizada a visitar a sala.
– Sério? – perguntou ela, empolgada – Então em vez de uma punição
vou ganhar um prêmio?
– Estou apenas preocupada com a sua segurança – expliquei – então a
partir de agora leve alguns de nossos empregados com vocês para as
noites de sábado. É perigoso vocês ficarem lá sozinhas de madrugada.
Kiwala riu quando me ouviu dizer aquilo.
– Nós somos magas poderosas. Não há porque se preocupar com a
nossa segurança. Se aparecer alguém nos ameaçando, aproveitaremos
para treinar uma possessão em seres humanos, podemos mandar o
espírito dentro do cadáver atacar ou mesmo evocar um demônio. Eu já
sou capaz de evocar um demônio de poder médio. Em breve conseguirei
evocar um de classe alta. Nenhuma das minhas colegas foi tão longe. Eu
realmente nasci para isso; tenho talento.
Ela me contou que no colégio eles estavam recém começando a ensinar
magia intermediária. O treino de magia avançada só começaria quando
ela tivesse uns 14 anos. No entanto, ela calculava que até seus 12 anos ela
já teria obtido uma conjuração de um demônio avançado. Ultimamente
ela estava mergulhando na leitura dos grimórios avançados de nossas
bibliotecas, enquanto seus colegas recém começavam a estudar os livros
intermediários.

242
Guerra das Cores Perdidas

Kiwala destacava–se como a líder do seu grupo de amigas. No grupo


havia ela e mais cinco meninas. Todas a tratavam com muito respeito e às
vezes a chamavam de mestra. Além do incrível poder que possuía,
Kiwala tinha também a riqueza para impor autoridade. E, mais
importante que todas essas coisas: sua aparência era notável.
Aos onze anos e meio o rosto de Kiwala havia mudado um pouco. O seu
nariz estava se tornando semelhante ao de um falcão, como o de Mustse.
Suas sobrancelhas eram grossas e seu olhar era meio assustador e
intimidante; principalmente porque ela começara a usar bastante
maquiagem, o que dava a ela uma aparência mais velha. Ela já aparentava
ter uns 14 anos.
Quando criança os cabelos dela eram finos e escorridos, como os de
Clarver; mas estavam se tornando mais grossos e levemente ondulados,
como os de Mustse. Sua franja e a parte superior do cabelo eram lisas;
nas pontas formavam alguns cachos. Ela os mantinha soltos ou os
prendia de diversas formas. Kiwala tinha uma criada pessoal no castelo
que a embelezava todas as manhãs, para que ela fosse para a aula
belíssima. A criada fazia toda a maquiagem, arrumava o penteado e
ajudava a selecionar a roupa do dia, que estava sempre perfeitamente
limpa e bem passada.
Ela já usava roupas bem adultas, como sapato de salto alto e maquiagem
carregada. Ou algumas vezes ela se divertia experimentando outros
estilos. Às vezes ela ia à aula com um vestido rosa meigo, maquiagem
bem leve e tiara nos cabelos. Outras vezes ela usava tamancos, saias e
blusas sociais.
Embora a intensidade do olhar dela tivesse mudado, a cor dos olhos era
eternamente a mesma: o tom castanho médio dos olhos de Clarver.
Os chifres dela estavam grandes e imponentes. Alguns retorcidos, outros
retos e pontiagudos. E suas asas eram enormes; quase tão grandes
quanto as de Clarver.
– Notei que aos sábados você se veste com mantos cerimoniais –
observei – para realizar as invocações de necromancia no cemitério,
suponho. Mas aos domingos é o dia que você mais se arruma. Já te vi
usar mini saia, decote e sapato de salto fino no domingo à noite. Isso
também tem relação com magia?
– De certa forma sim – respondeu ela – saio com minhas mesmas

243
Juliana Duarte

colegas de escola. Mas aos domingos vamos a uma festa num bar de
ocultismo para jovens. Lá aparecem jovens de todas as partes da cidade,
inclusive de outras escolas de magia. Sou extremamente famosa por lá.
Compartilhamos conhecimento de ocultismo com os alunos das outras
escolas e algumas vezes até certas práticas, como magia sexual.
– Magia sexual? – perguntei, desconfiada – Você está fazendo sexo com
um monte de desconhecidos que vão a essas festas? Você tem apenas
onze anos.
– Tenho quase 12 anos e já menstruei – justificou Kiwala – quando uma
menina menstrua significa que seu corpo já está preparado para gerar um
bebê. Portanto, também significa que ela está apta para a prática sexual.
Mas não se preocupe, porque por enquanto a nossa “magia sexual”
envolve apenas beijos e toques. Tentamos drenar a energia do outro
através do beijo. Já fiz dezenas de meninos desmaiarem, porque sou
mestra nesse tipo de prática de vampirismo. Eu sou temida, desejada,
famosa. Eu sou a musa daquele lugar. Sou conhecida em todas as escolas
de magia. Alguns dariam qualquer coisa apenas pela oportunidade de
conversar comigo. A maioria não tem coragem, pois sabem que sou
perigosa.
– Não quero interferir na sua vida pessoal – resolvi deixar claro – e
parece interessante relacionar práticas mundanas com magia nobre.
Entendo que você está entrando na adolescência e deseja ter experiências
novas, diferentes, intensas, perigosas. Mas vá com calma. Tente... se fazer
de difícil para deixar seus pretendentes ainda mais loucos.
Kiwala riu.
– Faço isso o tempo todo. Na verdade o bar só permite a entrada de
maiores de 18 anos. Obviamente os donos do bar pensam que eu e
minhas amigas temos a idade mínima. A maioria dos frequentadores tem
menos que isso. E eu odeio todos os garotos; são idiotas. Ainda não
encontrei um oponente à minha altura. As melhores magas da minha
escola obviamente fazem parte do meu grupo de amigas e somos
temidas.
A vida dela parecia estar se tornando muito emocionante.
Como Kiwala previu, uma semana antes de seu aniversário de 12 anos
ela obteve uma conjuração de um demônio maior. Ela anunciou que esse
era apenas o primeiro passo de uma vida repleta de conquistas mágicas

244
Guerra das Cores Perdidas

sublimes e que ela se tornaria a mais poderosa maga negra que o mundo
já conheceu.
Kiwala já tinha acesso a todas as salas de evocação e também a sala
secreta de possessões. Ela já havia começado a sacrificar alguns animais
grandes como coelhos, gatos, galinhas e cabras. Preferi não interferir,
pois sabia que sacrifício era essencial. Mas eu a proibi de realizar
sacrifícios humanos. E eu a ameacei: se eu descobrisse que ela andava
fazendo algo do tipo, seria severamente punida.
No entanto, eu já não me via com tanta autoridade. Era verdade que eu
era a dona do dinheiro e a proprietária da casa, mas eu previa que em
poucos anos Kiwala provavelmente seria uma maga mais poderosa que
eu. Ela estava avançando muito rápido. Por frequentar a escola, ela
possuía conhecimento intermediário em todas as principais áreas da
magia negra. E em suas experiências pessoais mexia com necromancia,
goécia, maldições e até vampirismo psíquico. Ela se tornaria uma mestra
completa, com maestria em todas as áreas.
Se continuasse naquele ritmo, em algumas décadas ela superaria o
próprio Mustse. Senti um frio na espinha ao pensar nisso. Na verdade eu
tinha tanto receio que isso acontecesse que também comecei a escrever
testamentos. Escrevi que se Kiwala me assassinasse ou tivesse qualquer
envolvimento direto ou indireto na minha morte, ela não receberia nada
de herança; ficaria tudo para Boofeng, que era praticamente a única
pessoa de confiança que eu tinha em mente, embora eu soubesse que ele
não precisasse daquele dinheiro. No caso de eu morrer por outros meios,
tudo ficaria para Kiwala.
Já Mustse me permitiu ficar com tudo, mesmo sabendo que eu
possivelmente teria alguma relação com sua morte. Mas isso porque ele
sabia que havia me maltratado de várias formas. No meu caso, eu havia
criado Kiwala com amor e sempre dei a ela tudo o que queria. Ainda
assim, eu sentia que ela me via apenas como a fonte de dinheiro, que
possuía conhecimento médio de magia. As amigas de Kiwala, quando
vinham visitar o castelo, pareciam me ver como um ser exótico. E Kiwala
realmente me introduzia como sua mãe adotiva do outro mundo. Ela
tinha certo orgulho de me mostrar para as pessoas, simplesmente porque
minha aparência era diferente e aquilo era visto com curiosidade pelas
amigas dela.

245
Juliana Duarte

Kiwala não me tratava mal e nem me desrespeitava. Mas sua atitude era
meio indiferente. Ela raramente falava comigo e quando falava era para
pedir dinheiro ou pedir autorização para usar algum aposento secreto.
Dificilmente falávamos sobre magia, já que ela devia julgar que meu
conhecimento era limitado. Quando ela era menor me perguntava
algumas coisas, mas acho que hoje em dia ela pensava que eu não tinha
capacidade de responder às suas dúvidas. Ela nunca me disse isso
diretamente, mas eu desconfiava.
Um dia ela me chamou para conversar. Nos sentamos e ela começou a
falar.
– Depois de amanhã será meu aniversário de 12 anos – começou ela – e,
assim como fiz em todos os anos anteriores, quero dar uma grande festa.
Nosso castelo é grande e maravilhoso, não acharemos um local melhor
para a celebração. Então quero pedir para que os criados façam uma
decoração divina no pátio e em todos os aposentos; especialmente na
sala central. Quero uma montanha de comidas e bebidas, tudo da melhor
qualidade, servidos em taças e recipientes de cristais. Dessa vez vou
convidar muita gente. Vários colegas meus, assim como alguns
estudantes de outras escolas de magia negra que já ouviram falar do
nosso castelo lendário. Também quero pedir autorização para usarmos as
salas de evocação, porque convidarei somente magistas sérios. Será uma
festa exótica, com operações de magia. Quero me certificar que tudo seja
perfeito. A festa vai durar até o amanhecer. Também quero que os
quartos de hóspedes estejam liberados e belamente decorados para que
alguns casais os utilizem para magia sexual. Vai haver gente mais velha e
é possível que role sexo de verdade.
Eu não gostava muito da ideia de um monte de gente desconhecida no
castelo, todas aquelas exigências, o fato de durar até o amanhecer,
pessoas aleatórias entrando nas salas de evocação e era totalmente contra
transformar nosso castelo nobre numa espécie de prostíbulo, mesmo que
fosse para a prática de magia.
Já estava me preparando para me opor, ouvir diversos contra–
argumentos e iniciar uma discussão que duraria provavelmente a noite
toda. No entanto, eu tinha a cartada mágica que resolveria a situação de
uma vez por todas:
– Boofeng retornará em breve – informei – lembra dele? Há seis anos ele

246
Guerra das Cores Perdidas

prometeu que estaria presente para seu aniversário de 12 anos e que


traria vários presentes de alta tecnologia do Mundo Octarino.
Quando ouviu isso, Kiwala parou de falar. Ela me fitou completamente
surpresa, com os lábios entreabertos. Estava tão espantada que parecia
que não iria falar mais.
Finalmente conseguiu articular algumas palavras.
– O tio Boo...? – perguntou ela, sem acreditar – O tio Boo vem aqui
amanhã?
– Claro. Tenho certeza de que ele cumprirá sua promessa.
– Nossa! – ela exclamou, maravilhada – Que genial! Eu já tinha me
esquecido! Que fantástico!
Ela parecia imersa numa onda de alegria que jamais terminaria. Ela disse
que morria de saudades dele e que a lembrança daquele mago magnífico
era algo que sempre a incentivava a ir em frente nas práticas de magia.
Para ela, ele era símbolo de poder e força.
– Ele nunca me mostrou nenhuma magia, mas eu sei que ele sabe fazer
coisas incríveis – afirmou ela – dessa vez vou querer que ele me mostre
tudo. Todas as magias dos outros mundos.
– Bem, ele saiu daqui prometendo que brincaria com você e te daria bolo
de ameixa quando voltasse – eu ri – mas pelo jeito ele não irá se deparar
mais com uma criança e sim com uma mulher crescida. Você não quer
mais saber de brincar, certo?
Ela hesitou um pouco antes de responder.
– Com o tio Boo eu brinco; não me importo – ela disse – adoro ele.
Qualquer coisa que ele propor eu vou aceitar. Quero deixá–lo feliz e
orgulhoso de mim.
– Pretende cancelar a festa agora? – aproveitei para perguntar.
– Mas a festa será apenas à noite, então não precisa ser cancelada. E o tio
Boo deve ficar hospedado aqui por pelo menos alguns dias.
– Mas a festa pode incomodá–lo – observei.
– Duvido muito. Talvez ele goste. Aproveitarei para apresentá–lo aos
meus amigos.
Ela não iria desistir facilmente da festa. Preferi deixar, em vez de iniciar
uma discussão. Se Mustse estivesse vivo, ele jamais iria permitir uma
coisa dessas. E bastaria apenas um “não” dele para que Kiwala se calasse.
Eu não tinha tanta autoridade.

247
Juliana Duarte

Nos dois dias seguintes, os empregados da casa ficaram bem ocupados


com as preparações. Kiwala fazia questão de averiguar, para que tudo
saísse como ela queria. Os cozinheiros estavam preparando uma
quantidade enorme de comida para os mais de cem convidados da festa.
– Convidei mais. Os cento e vinte da lista foram apenas os que
confirmaram presença.
Eu estava com vontade de desaparecer naquela noite. Talvez fosse
melhor eu permanecer fora do início ao fim da festa; passar a noite num
bar ou qualquer coisa assim. Bem, quando Boofeng chegasse talvez eu
fosse para outro lugar com ele enquanto as crianças se divertiam.
E finalmente chegou o grande dia. Kiwala estava ansiosa desde o início
da manhã: tanto por causa da festa como pela vinda de Boofeng.
Depois do almoço ela já começou a se arrumar. A sua serva pessoal
arrumava o cabelo, enquanto outra pintava suas unhas. O cabelo foi o
mais demorado. Depois foi feita uma maquiagem muito bonita. E o
vestido da festa era belíssimo. Ela estava se parecendo com uma rainha
das trevas. Estava bem assustadora e impunha muito respeito com aquela
aparência.
A festa começaria às oito da noite. Enquanto a hora não chegava, Kiwala
caminhava de um lado a outro, olhando–se no espelho sempre que
passava em frente à penteadeira. Até que resolveu sentar, porque o
sapato de salto estava apertado.
Só às nove da noite que os convidados começaram a chegar. As
primeiras foram as cinco amigas fiéis de Kiwala, que ela recebeu com
abraços e beijos.
– Kiwala, está mais linda do que nunca!
– Parece a Senhora da Morte!
– Você está divina!
Cada uma deu a ela um pacote de presente. Kiwala disse que abriria
todos os pacotes somente quando a festa terminasse, pois assim ficaria
mais surpreendente. Por isso ela havia requisitado que todos os pacotes
viessem etiquetados com os nomes dos remetentes.
Mais convidados foram chegando. Kiwala recebia cada um deles
pessoalmente na porta de entrada. Ao receber cada pacote, levava–o ao
seu quarto e em seguida trancava o quarto a chave.
Kiwala ligou um som muito alto, que era ouvido de qualquer parte da

248
Guerra das Cores Perdidas

casa, inclusive lá fora. Ela transformou a sala principal praticamente


numa pista de dança. Conforme mais convidados chegavam, eles se
acomodavam nos sofás. Logo taças vazias de cristal, garrafas e pratos
começaram a se acumular. Imaginei que Mustse teria um ataque se visse
aquilo e expulsaria todo mundo a gritos. Não; ele simplesmente evocaria
Lamue e cortaria todos em pedaços instantaneamente.
Os convidados falavam sobre ocultismo por todos os lados. Entreouvi
algumas das conversas.
– Para a magia avançada você precisa ler os grimórios de Awx Lavure –
falou um rapaz de uns quinze anos, de cabelos castanhos escuros e olhos
amarelos, vestindo um manto cerimonial negro – o cara é um mestre.
Quando li as primeiras páginas senti calafrios. Era como evocar uma
potência de décimo grau de mãos atadas e adaga entre os dentes.
– Lavure é uma criança assustada comparado a Okxei Bernadsi –
comentou uma senhorita de uns dezesseis anos, usando um vestido roxo
decotado, de cabelos negros escorridos e chifres de gazela – li seus livros
quando estava no oitavo grau. No capítulo de necromancia ele dá uma
lista bestial de mil trezentos e dois espíritos catalogados. Com os
símbolos de lacre. Se eu visse Bernadsi em carne e osso eu diria: “Eu
serei sua ovelha de sacrifício!” e lamberia seus pés.
– Irmãos negros, essa taça de uísque me relembra da celebração do dia
das bruxas do ano passado – comentou um rapaz de terno, cabelos
negros e olhos vermelhos – bastou pronunciar o Mantra de Vernáculo e
quando olhei para o chão minha presa estava com os dois braços
decepados, chorando como um bebê, impotente, perante a fera
vermelha!
– Aleluia! Salve o uísque de nossas conquistas! – bradou outro, erguendo
a taça – E salve os vis bastardos de alma voluntariamente sugada. A
espada degenerada tinha sangue negro. Sangue negro é somente para os
nobres. Para as mais sublimes linhagens.
– Mostra a tua prova, canalha! – desafiou um, de brincadeira.
Uma adaga passou–se de mão em mão. Cada magista cortou a palma e
mostrou o sangue. Todos eles possuíam sangue vermelho. Mas o fluído
de alguns era quase da cor do vinho.
Kiwala passava por ali naquele momento. Seriamente, ela tomou a adaga
da mão de um deles e fincou no próprio pulso. Alguns filetes de sangue

249
Juliana Duarte

negro jorraram.
Todos a fitaram impressionados; tanto diante da ousadia de fincar a
adaga no pulso sem vacilar com perante a cor extremamente negra do
sangue.
– Espero que aproveitem a festa, cavalheiros – comentou Kiwala – e
lembrem–se que certos dons pertencem somente a uns poucos
merecedores.
– Certamente, senhorita Mustse – comentou o rapaz de olhos vermelhos
– eu jamais me esquecerei da cor desse sangue.
Quando ela se retirou, um olhava para o outro, impressionados.
– Você disse que se sacrificaria para Bernadsi, Meifajin? – perguntou o
mesmo rapaz – pois eu aceitaria ser sacrificado como alimento de
Xsossa; o demônio de 22º grau da Mustse.
Outros rapazes expressaram desejos semelhantes. Certamente Kiwala era
não somente respeitada e temida, mas também desejada. E especialmente
naquela noite ela estava mais linda do que nunca.
Era estranho ouvir chamarem Kiwala de Mustse. Acho que aquilo
sempre me soaria estranho.
Em certo momento da festa, Kiwala me perguntou:
– Onde está o tio Boo? São mais de onze horas. Ele disse que viria aqui
hoje, para minha festa.
– Ainda tenho esperanças de que ele chegará antes da meia–noite – eu
disse a ela – fique tranquila.
Kiwala fez questão de controlar o acesso às salas de evocação para não
virar bagunça. Ela anotava a lista de aspirantes num bloco de avisos.
Chamava cada candidato quando chegasse sua vez e destrancava a porta,
para que o ambiente de evocação fosse utilizado por um tempo
determinado.
Havia muitos convidados vestindo mantos cerimoniais, máscaras e
portando espadas rituais. Esses certamente desejavam ter acesso às salas.
Havia outros vestidos formalmente de terno, gravata e sobretudo; ou, no
caso das garotas, vestidos de gala. Também havia os de trajes
completamente extravagantes: roupas coloridas, cabelos pintados,
piercings, moicanos, cortes de cabelo exóticos. E, por fim, havia alguns
que se vestiam como se estivessem numa festa à fantasia do dia das
bruxas, com trajes macabros e criativos.

250
Guerra das Cores Perdidas

Enquanto alguns tiravam fotos, filmavam, dançavam, bebiam e riam alto,


havia outros pequenos grupos sérios de debates sobre magia que
reuniam principalmente membros estranhos vestidos de negro, com
capuzes. Alguns tinham até mesmo grimórios nas mãos e recitavam
passagens.
Quando faltavam quinze minutos para a meia–noite, um clarão surgiu
em meio ao quintal, que surpreendeu a todos que estavam sentados lá
fora. Um portal se abriu em meio ao nada. Dele surgiu o mago mais
bizarro de todos os tempos: vestia um manto colorido e brilhante, um
chapéu enorme e extravagante que mudava de cor, assim como uma capa
esvoaçante, sapatos prateados e luvas douradas. Cada parte de seu corpo
era de uma cor diferente: azul, verde, vermelho, amarelo e branco. Tinha
um olho roxo e outro rosa; metade do cabelo negro e a outra metade
laranja.
Os que estavam dentro da casa ouviram o som e sentiram o tremor da
vinda do recém–chegado. A maioria foi lá fora para ver o que tinha
acontecido.
Muitas pessoas sabiam quem ele era. Vários cochichavam enquanto
outros apontavam e diziam:
– É o mago octarino de quem a Mustse tanto fala!
– Uau!
– Sinto um poder extraordinário emanando dele.
Boofeng estava muito confuso com todas aquelas pessoas e não fazia a
menor ideia do que estava acontecendo. Parecia divertir–se com a
confusão.
Finalmente a própria Kiwala saiu da casa.

251
Juliana Duarte

O Retorno

Eu fui até lá e abracei Boofeng.


– Bem–vindo! – falei – Que saudades!
– Obrigado, Wain. É bom estar de volta. O que está acontecendo aqui,
afinal? É uma festa?
– Sim. Kiwala chamou os amigos para comemorar o aniversário.
– Imagina se Mustse visse isso – riu Boofeng.
– Também foi a primeira coisa que pensei! Ele deve estar se revirando no
caixão. Talvez ele preferisse ter queimado a casa a ver isso.
Kiwala aproximou–se lentamente. Fitava Boofeng com espanto e
fascínio. Por fim, correram lágrimas dos olhos dela, o que borrou toda a
maquiagem.
– Tio Boo...! – disse ela, sem acreditar.
– Kiwala? – perguntou Boofeng, impressionado – É você mesma?
Os dois se abraçaram. Foi muito bonito ver aquele reencontro. Quando
o abraço terminou, Boofeng sorriu.
– Nossa, como você cresceu! Está tão linda!
– Obrigada, tio Boo. E você continua exatamente igual à minha
memória.
– Olhe para você, minha Kiki! 12 anos! Feliz aniversário! Tenho
presentes, como prometi.
– Não precisa, tio. Só a sua presença já é um presente maravilhoso.
– Agora já tive o trabalho de trazer os pacotes até aqui, então aceite –
brincou ele – trazer bagagem em evocações entre mundos é complicado!
Por isso me atrasei, mas fico feliz de ter conseguido chegar antes da
meia–noite. Betah foi muito paciente.
Boofeng deu a ela três pacotes embrulhados e o tão prometido bolo de
ameixa num recipiente de plástico. Kiwala abraçou–o de novo.
– Prometi não abrir nenhum dos presentes até o fim da festa, mas estou
muito curiosa para ver os seus!
Nós três nos sentamos num banco do jardim enquanto Kiwala abria os
presentes. O primeiro deles era um laptop verde–escuro, decorado com
um monte de sapinhos.

252
Guerra das Cores Perdidas

– Lembrei que você adorava sapos quando era criança. Desculpe,


olhando para você agora, talvez ache o presente meio infantil...
– De forma alguma. Eu adorei!
– O único problema é que o computador está todo programado na
língua de nosso mundo. Só me dei conta disso depois que comprei.
– Genial! Eu sou completamente apaixonada por línguas! – falou Kiwala,
toda sorrisos – Vou adorar tentar decodificar tudo o que tem aqui.
Sempre quis aprender a língua dos outros mundos. Você pode apostar
que irei descobrir tudo.
– Foi pensando nisso que comprei um segundo presente.
Quando Kiwala abriu o segundo pacote, havia um livro grosso. Era uma
espécie de guia.
– Esse é o livro que ensina nossa língua para crianças – explicou
Boofeng – como ele é feito para estudantes a partir dos sete anos, tem
muitos desenhos, incluindo imagens coloridas e alguns exercícios
simples. O livro acompanha um CD que você pode colocar no laptop,
para escutar as pronúncias das palavras. Como não existe nenhum livro
ensinando nossa língua com traduções para a língua do Mundo Negro,
pensei que poderia ser útil.
– Nossa, é fantástico! Com toda a certeza os seus presentes serão os
melhores. Mas por que você não fica aqui em casa por alguns meses ou
anos e me ensina a sua língua? Eu aprendo rápido. Tenho facilidade para
isso.
– Eu realmente sinto muito, mas não poderei ficar muito tempo. Vim
somente para uma visita de poucos dias.
Kiwala ficou muito triste ao saber disso.
– Por que você é tão ocupado? Fique mais! Por favor! Por mim...!
– Kiwala, não insista – avisei – se Boofeng diz que não pode ficar mais,
não podemos fazer nada.
– Você ficou esses seis anos num retiro praticando uma linha de magia
octarina, certo? – perguntou Kiwala – Conseguiu dominá–la?
– Sim – informou Boofeng – e terei que retornar por mais alguns anos
para estudar uma linha nova que surgiu.
– Linha nova? – perguntou Kiwala, interessada – Aqui no Mundo Negro
a maior parte do que estudamos foi ensinado há milênios e é passado de
geração em geração. Raramente surge algo inovador.

253
Juliana Duarte

– Em meu mundo surgem novas técnicas o tempo todo. É tanta


informação, novidade e criação que dá para ficar louco. Mas toda essa
diversidade é fantástica. E você, como vai em seus estudos de magia?
– Já consegui evocar um demônio de alto grau – informou Kiwala,
orgulhosa.
– Nossa – comentou Boofeng, impressionando – parabéns. Foi um feito
impressionante na sua idade.
Kiwala ficou toda contente com os elogios.
– Por favor, abra seu último presente – lembrou Boofeng.
– Ah, sim.
Kiwala rasgou o pacote. Dentro dele havia um tipo de celular.
– Serve para várias coisas – explicou Boofeng – você pode telefonar,
ouvir músicas, tirar fotos, filmar, jogar alguns mini jogos, escrever textos,
ler livros, enfim, as possibilidade são muitas. Há muito mais, incluindo
dispositivos para magia.
– Tudo isso nesse pequeno aparelho? – perguntou Kiwala, empolgada.
No nosso mundo, nossa tecnologia não era tão avançada. Boofeng
explicou outras coisas incríveis que o laptop e o multi mini eram capazes
de fazer. Kiwala foi mexendo e desvendando. Boofeng traduzia as
palavras para que ela aprendesse mais rápido. Em pouco tempo, Kiwala
já sabia mexer nas funções básicas.
– Vamos provar a torta de ameixa? – propôs Boofeng.
– Ah... eu não ia comer nada hoje à noite porque estou de dieta –
explicou Kiwala – mas aceito provar um pedaço, só porque você trouxe.
– Você não precisa de dieta – riu Boofeng.
– Obrigada! – Kiwala sorriu – Nesse caso, acho que vou provar dois
pedaços.
Era raro ver Kiwala tão feliz. Fazia pelo menos alguns anos que eu não a
via ter essas explosões de alegria, sorrir e rir o tempo todo. Fiquei feliz
que Boofeng tivesse cumprido sua promessa, pois aquilo significava
muito para Kiwala.
Comemos a torta de ameixa, que estava deliciosa. Talvez doce demais,
mas mesmo assim gostei muito. Percebi que Kiwala não estava com
muita fome, mas mesmo assim comeu tudo para agradar Boofeng.
– Adorei, tio! Você me proporcionou o melhor aniversário da minha
vida!

254
Guerra das Cores Perdidas

– Fico honrado em saber – falou Boofeng – que tal você mostrar seu
laptop e seu multi mini para seus amigos? Eles parecem curiosos, alguns
deles estão olhando para cá até agora.
– Estão olhando para você, é claro. Você não passa despercebido. E falei
muito sobre você para meus amigos. Mas vou mostrar meus presentes a
eles outro dia. Agora quero aproveitar o máximo possível o tempo que
você está aqui. Conte–me sobre a nova linha de magia octarina que
aprendeu! Ah, você não pode, é segredo...
– Não temos muitos segredos – confessou Boofeng – era basicamente
um treinamento para a evocação de múltiplos servidores
simultaneamente através de sigilos. Você inventa um símbolo mágico
para cada criatura e desenha num pedaço de papel. Quando você o
movimenta no ar ou o ativa com o poder de um elemento, o servidor é
automaticamente evocado. É possível evocar até dezenas de servidores
com esse método.
– Uau! Não sei muito sobre servidores, mas parece incrível. Você mesmo
cria o ser?
– Sim, você o inventa exatamente como quer: características físicas,
psicológicas, elemento de poder, pontos fortes, pontos fracos, símbolo,
sigilo, correspondência com ervas, metais, pedras...
– Por que alguém iria querer colocar fraquezas num servidor? –
perguntou Kiwala, curiosa.
– Pode ser útil. Se o servidor ficar muito teimoso ou se voltar contra seu
mestre, você o conhece melhor que ele mesmo e sabe como domá–lo.
Houve gritos no pátio. Dois magos negros tinham iniciado um duelo.
Eles formaram círculos de proteção e triângulos. Evocaram demônios
maiores.
Corremos até lá. Eu não queria que os alunos se matassem no pátio da
minha casa! Alguém precisava parar aquilo.
Um dos desafiantes era um menino de uns 14 anos, usando terno, que
evocou um demônio intermediário. O outro era um menino de uns 11
anos, usando manto de magia cerimonial, que evocou um demônio
maior. Era impressionante ver um menino daquele tamanho dominando
aquela fera.
O menino de manto derrotou rapidamente o de terno. Tinha intenção de
matar o demônio do outro, mas Kiwala entrou no meio. Ela rapidamente

255
Juliana Duarte

traçou o círculo de proteção e evocou seu próprio demônio maior: a


imponente Xsossa.
Os dois duelaram de igual para igual por alguns segundos, até que Xsossa
levou vantagem. No entanto, quando Xsossa ia atacá–lo fortemente, o
demônio do menino de manto desobedeceu seu mestre, escapou do
triângulo e voou para atacar os convidados.
Houve muitos gritos. Alguns até evocaram demônios menores para se
defender, mas era inútil. Aquilo poderia ter acabado em sangue e morte
se Boofeng não tivesse chegado a tempo. Em poucos segundos, ele
traçou uma forma geométrica bizarra, recitou uma evocação numa língua
antiga de seu mundo e evocou dois servidores enormes e coloridos. Eles
imobilizaram o demônio facilmente, mas não o mataram.
– Mago negro! – avisou Boofeng – Assuma o comando de sua potência
enquanto é tempo. Se não o fizer nos próximos dez segundos, terei que
matá–la.
O mago de manto apressou–se e recuperou o controle da entidade.
Ordenou que ela desaparecesse. E assim se fez.
Todos estavam muito impressionados com Boofeng. Devia ser realmente
fantástico para eles vê–lo pronunciar termos numa língua totalmente
estranha e evocar aquelas potências exóticas e poderosas.
Kiwala também estava boquiaberta, pois era a primeira vez que via
Boofeng realizar uma magia.
Depois do ocorrido, ajudamos os convidados, pois alguns tinham se
machucado levemente. Em seguida, fomos conversar com os dois magos
que começaram o duelo.
O mago de terno alegou que o outro o tinha forçado. Ele disse que o
mago de manto evocou o demônio para cima dele e ele apenas se
defendeu.
Sendo assim, a nossa conversa seria apenas com o mago mais novo.
Ele era sardento, com pele ligeiramente morena. Tinha os cabelos curtos
arrepiados, lisos e cinzentos. Seus olhos também eram em tom cinza,
levemente azul escuro. Tinha três chifres. Usava vestes cerimoniais
negras, com símbolos arcanos. Carregava uma espada ritual simples.
– Vulh Mendeth – pronunciou Kiwala – usando o uniforme da sua
escola, como sempre. E, como de costume, causando problemas.
– Quem é ele? – perguntei.

256
Guerra das Cores Perdidas

– Um estudante do sétimo grau, como eu – explicou Kiwala – mas é de


outra escola. É famoso em todas as escolas por ser conhecido como o
segundo mago mais poderoso de sua idade. Na verdade agora que fiz 12
anos ele recebeu o posto de mago mais poderoso de 11 anos. Pode não
parecer grande coisa, mas nós, estudantes idiotas e orgulhosos de nossas
conquistas, queremos nos agarrar aos nossos pequenos triunfos. Então
me responda, Mendeth: como um mago que nem mesmo consegue
controlar direito o seu demônio pode ser o mais poderoso?
– Não me importo com o que você diz – retrucou Mendeth, friamente –
você é uma burguesa, sempre teve tudo nas mãos, não precisou se
esforçar para dominar Xsossa. Provavelmente recebeu–a como herança
também. Ao contrário de você, sofri muito para chegar aonde cheguei e
se eu estivesse em seu lugar já teria dominado até mesmo Lamue!
– Saia da minha festa! – ordenou Kiwala, irritada – Nem sei por que te
convidei, seu maldito arrogante. Seu pária, sujo, pobre, fedorento! Você
não está à altura para ser meu rival, se é isso que pensa.
– Eu sei por que está irritada, sua cadela no cio – retrucou Mendeth –
você me convidou para aquela festa de domingo, para seus experimentos
de vampirismo, e eu me neguei a comparecer. Você pensa que pode ter
todos os homens rastejando aos seus pés e pela primeira vez seus desejos
de dominação da raça masculina foram frustrados. Desculpe se está
interessado em mim, porque para mim você não passa de uma puta
nojenta.
– Cale a boca, seu filho da puta, miserável! Puta é a sua mãe, que nem
dando o rabo consegue te comprar uma espada decente para você evocar
os seus espantalhos dançantes!
– Eu não ligo se você é rica, se tem seis chifres, asas, sangue negro, se é
filha de Deus ou do diabo! Sua alma sempre será podre.
– Eu te desafio na sala de evocações. Vamos para lá agora! E não quero
porra nenhuma de platéia! – ela avisou, pois havia muita gente
acompanhando o desenrolar da discussão com espanto.
Eu e Boofeng apenas escutávamos a discussão sem interferir. Boofeng
estava particularmente impressionado com tudo o que tinha ouvido.
Acho que ele não esperava que a Kiki fosse tão boca suja.
Mendeth aceitou o desafio e os dois se dirigiram para o interior do
castelo.

257
Juliana Duarte

– Devemos impedir? – perguntou Boofeng.


– Eles não vão se matar, ou estarão com muitos problemas – falei – no
máximo um vai matar o demônio do outro. Vamos deixá–los.
Meia hora depois, Kiwala saiu de lá irritada. Ela nos contou que tinha
vencido e que Mendeth, por ser um mau perdedor, tinha ido embora da
festa.
Nós três voltamos a nos sentar no banco. Mas Kiwala ainda estava
emburrada.
– Ah... desculpe, tio Boo! – Kiwala se deu conta e corou – Você ouviu
tudo o que eu disse. Estou envergonhada. Que humilhante, eu que
venho de família nobre, dizendo essas coisas... eu deveria me portar de
acordo.
– Não se preocupe – Boofeng tranquilizou–a – entendo que estava
irritada. Mas você não deve discriminar alguém por ter menos condições
financeiras que você.
– Ele que me discriminou primeiro, me chamando de burguesa! –
defendeu–se ela – E ele sempre usa o uniforme da escola e aqueles
utensílios baratos. Você viu a espada cerimonial dele? Parecia uma faca
de fatiar carne. É ridículo! Não sei como ele tem coragem de praticar
magia com aquilo. Se eu fosse ele, usaria aquela espada para me matar.
– Kiwala, se Wain não tivesse te adotado, você talvez estivesse num
orfanato agora – lembrou Boofeng – você não seria rica, não teria
nenhuma dessas coisas. Portanto, não zombe daqueles que não tiveram o
mesmo privilégio que você.
Kiwala ficou quieta.
– E o que exatamente seriam seus experimentos de vampirismo que o
garoto mencionou? – perguntou Boofeng – Não conheço muito sobre
essa área da magia negra.
– Não é nada demais – Kiwala apressou–se em dizer.
– Aos domingos ela e as amigas vão para uma festa de ocultismo e
drenam a energia dos meninos praticantes de magia através do beijo –
expliquei.
– Tia Wain! – dessa vez Kiwala ficou braba – Por que contou para o tio
Boo uma coisa dessas? Ele vai pensar mal de mim...
Boofeng riu.
– Não se preocupe, Kiwala. Isso é normal na sua idade.

258
Guerra das Cores Perdidas

– Você deve estar desapontado comigo, não é? – perguntou Kiwala,


meio triste – Você esperava encontrar a Kiki meiga e brincalhona. A
inocente Kiki dos sapinhos e docinhos de ameixa. Sinto muito.
– Não há do que se desculpar – disse Boofeng, bondosamente – eu não
desejava que você fosse criança para sempre. Você deve crescer,
amadurecer. Fisicamente, mentalmente, espiritualmente, em todos os
sentidos. E estou mais do que satisfeito em saber que você leva uma vida
feliz, que gostou dos meus presentes e que ficou contente com minha
vinda.
Kiwala sorriu de volta.
Somente às seis da manhã todos os convidados foram embora. Nossos
empregados teriam muito trabalho pela frente.
O sol estava quase nascendo quando voltamos ao castelo para dormir.
Boofeng escolheu um dos quartos de hóspedes e eu fui para meu quarto
vermelho e negro. Kiwala nem tinha espaço para deitar na própria cama,
de tantos presentes que havia ali. Ela estava com tanto sono que apenas
colocou os pacotes no chão e deitou–se na cama. Decidiu que
descobriria o que havia nos embrulhos somente quando acordasse.

259
Juliana Duarte

O Diário de Mustse

Acordei um pouco mais tarde do que de costume, devido à festa da noite


anterior. Como ainda não estava na hora do almoço, resolvi que leria
mais um pouco dos diários de Mustse. Lê–los havia se tornado um
hábito frequente, sempre que eu reservava algum tempo. E como era
domingo, eu teria mais tempo livre.
Eu já havia lido muitos dos diários antigos dele, ao longo dos últimos
anos. Isso porque eu tinha alguma curiosidade de saber sobre os
pensamentos do Mustse jovem, quando estava começando a descobrir
magia e ainda não era imortal. E no fundo eu queria encontrar a parte
que ele contava como era realizada essa tal operação de alquimia que
permitiria viver para sempre.
Infelizmente não havia maiores detalhes sobre ela nos diários pessoais.
Ele apenas mencionava “a alquimia” e nunca era mais específico sobre
como o processo foi realizado: através de uma poção mágica, de um
grimório antigo ou se era simplesmente uma metáfora para um tipo de
operação bem diferente.
“E se for necromancia?” eu já tinha cogitado aquela possibilidade. Mas
se fosse isso, porque Mustse odiava tanto essa área?
Foi interessante ver a determinação e intensidade com a qual ele se
dedicava ao treinamento de magia, desde criança. Muito mais dedicado
que eu e, para falar a verdade, até mais dedicado que Kiwala se isso fosse
possível. Kiwala ainda saía com as amigas e ia a festas de vez em quando,
mesmo que isso tivesse alguma relação com magia. Mas Mustse sempre
foi completamente concentrado no treinamento clássico, sem erros, sem
desvios. Ele era metódico e disciplinado desde sempre.
Ele relatou nos diários o episódio em que matou os pais, com muita
frieza. Ele tinha quinze anos na época. Eu esperava que Kiwala não fosse
tão precoce. Ele também mencionou algumas de suas conquistas no
mundo empresarial e político; desde os vinte e poucos anos ele já
começou a reunir riquezas e ao mesmo tempo em que ele dizia que
aquilo poderia auxiliá–lo na prática de magia, confessava que no fundo se
tivesse o básico já seria suficiente, pois era o operador e não os utensílios

260
Guerra das Cores Perdidas

que importava. Mas ele fazia questão de ter acesso a grimórios raros e
valiosos e para ter tudo o que queria precisaria sim de muito dinheiro.
Até que ele adquiriu o hábito de multiplicar mais e mais os seus ganhos,
pois a ideia de um dia querer comprar alguma coisa e não ter dinheiro
não lhe agradava.
Isso porque os pais dele raramente lhe davam as coisas que ele queria. E
nunca tinham comprado a ele nada referente à magia, que ele praticava
escondido. O dia que matou os pais foi quando os dois o flagraram
praticando magia e se enfureceram.
Havia outra história intrigante: ele contou que aos 17 anos havia se
interessado por uma maga negra, que era sua amiga. Como ela não
correspondeu ao interesse, ele a matou. Típico. Pelo jeito Mustse fazia
questão que o mundo inteiro girasse ao seu redor e que todos
satisfizessem suas vontades; se sua vontade não fosse satisfeita
imediatamente, quando e como ele queria, ele matava. Aquilo me soava
muito infantil; recordou–me o episódio em que Kiwala matou meus pais
aos seis anos somente porque eles não puderam levá–la ao parque
porque estava chovendo. Pensando dessa forma, Kiwala foi sim mais
precoce que Mustse: matou os pais adotivos aos seis anos enquanto
Mustse o fez aos quinze.
Eu sempre desconfiei que se Mustse pisasse no Mundo Verde
novamente, ele mataria meus pais. Isso porque ele me via como sua
posse exclusiva e não queria que eu mantivesse laços com outras pessoas
ou fosse influenciada por outras visões de mundo que não fosse a que
ele me ensinasse. Mas como Mustse não teve contato direto com meus
pais, a filha dele fez o serviço.
Ainda havia dezenas de diários para ler até chegar aos últimos anos.
Pensei em ler do começo para ficar mais emocionante, mas eu não
aguentaria esperar. Resolvi folhear logo os últimos diários para ver o que
ele tinha falado de mim naqueles quatro anos que vivi no Mundo Negro
com ele.
Como esperado, ele me xingava bastante. No diário ele me chamava de
burra, insolente, fraca. Particularmente no primeiro ano em que fiquei
trancada na prisão, ele não tinha a menor expectativa a meu respeito e
disse que me ensinava magia negra por ensinar, pois seus esforços
certamente seriam em vão.

261
Juliana Duarte

No diário do terceiro ano ele confessou que estava satisfeito com meu
progresso, que eu não era um caso perdido. Mas que eu jamais seria
capaz de me tornar uma grande maga, porque não tinha foco. Que eu
provavelmente comecei a praticar somente porque achei os presentes
bonitos; os grimórios e utensílios. E que eu fingiria interesse na prática
para ganhar a confiança dele. Mas ele também disse que não era assim
tão ingênuo e que continuaria a me tratar mal para sempre. Afinal, se um
dia eu o traísse ele já estaria vingado. E que, de qualquer forma, ele era o
assassino da minha irmã, então eu sempre teria um motivo para odiá–lo
e uma justificativa para desejá–lo morto.
Aquilo parecia ser praticamente tudo o que ele escreveu sobre mim.
Fiquei meio desapontada por não ter encontrado nenhum trecho
surpreendente, com alguma revelação. Ele só me via como uma
prisioneira e não se importava comigo de verdade. Ele deixou isso
completamente claro nos escritos.
Bom, eu também devia confessar que não me importava com ele de
verdade. Algumas vezes eu tinha simpatia só pelo fato de ele ter sido
meu mestre de magia, mas eu não conseguia deixar de vê–lo como uma
pessoa cruel e sem emoções. Sendo assim, somente a existência de várias
anotações ao meu respeito naqueles quatro anos já era suficiente. E o
fato de ele ter deixado a herança para mim era quase lógico: ele não tinha
mais ninguém para quem deixar. No próprio testamento ele mencionou
que havia pensado em queimar tudo, mas que havia se tornado um
materialista no final das contas e somente por isso não mandou queimar.
As anotações sobre Clarver eram ainda mais raras e muito esparsas.
Somente quando eu lesse os quatro diários, do início ao fim, conseguiria
encontrar todas elas. Até ali eu estava apenas dando uma olhada.
Ele a considerava uma prisioneira ainda mais detestável do que eu.
Afinal, ela o havia evocado diretamente e tentado fazê–lo seu servo,
assim como o papa do meu mundo. Nas palavras dele, os magos
ignorantes dos outros mundos mereciam a morte. Ele se perguntou
muitas vezes em diferentes partes dos diários porque não matara ainda a
maga branca. A explicação mais razoável que ele encontrava era que ele
queria ver os limites dela e fazê–la sofrer antes de tirar–lhe a vida.
Achei a parte em que ele contou que decepou as asas da maga branca
quando ela realizou uma “tentativa estúpida” de escapar. E que aquele

262
Guerra das Cores Perdidas

anjo, fruto de uma magia fraca e ingênua, mereceu a morte. Ele também
mencionou que quando se trancou com ela no calabouço realizou uma
tortura diferente, que não havia tentado antes, como parte da
experiência. E ele descobriu que aquele era o tipo de tortura que ela mais
abominava. Sempre indiferente, dessa vez a maga branca expressou
medo, tristeza e fúria. E que essas sensações reunidas, embora
expressassem alguma beleza, poderiam ser capazes de destruir a pureza
do coração dela.
Era impressionante vê–lo falar de algo horrível com tanta leveza.
Ele revelou o dia que a trancou na sala 1 do castelo. E que, como a partir
desse dia se dedicaria à experiência denominada “destruição da pureza
do coração”.
Em todas as páginas seguintes a partir desse dia, sempre havia uma
anotação curta sobre isso na última linha, nesse formato:
“DPC 2: satisfatória; vítima mostra traços de medo”
“DPC 3: insatisfatória; vítima desmaia devido ao espancamento”
“DPC 4: bela; vítima expressa terror, aos gritos”
Resolvi que eu não queria descobrir até que numeração iria a DPC. Ele
jamais mencionava exatamente do que se tratava. Era sucinto e vago.
Mas no último diário houve um único dia em que ele resolveu contar.
Ele disse que naquela única ocasião, e ele jamais repetiria esse tipo de
anotação novamente, ele iria descrever em detalhes cada coisa que ele
fazia nas operações de DPCs.
Parei de ler o diário nesse momento e refleti com cuidado se eu
realmente queria ler as próximas páginas. Após alguns minutos de
reflexão, tomada de coragem, abri o diário novamente. Mas quando olhei
de novo descobri que as páginas tinham sido arrancadas.
Então Mustse havia voltado atrás. Escolheu não contar. De certa forma
eu me sentia aliviada.
Já estava na hora do almoço. Levantei–me e guardei os diários. Talvez
fosse melhor eu não ler mais aquilo. Eu me sentia mal e estranha quando
lia. Era melhor esquecer o passado e viver o presente.
Quando entrei na sala para o almoço, a mesa já estava completamente
posta. Boofeng e Kiwala também chegavam naquele momento.
– Tia Wain, eu acordei cedo para fazer uma surpresa para o tio Boo –
contava Kiwala, com entusiasmo – eu pretendia acordá–lo e levar–lhe

263
Juliana Duarte

café na cama, mas ele já estava acordado! Isso não foi justo.
– Eu aceitei a bandeja com o café que ela preparou – explicou Boofeng –
ela disse que foi feito por ela mesma e não pelas cozinheiras, então eu
não poderia recusar.
Sentamos à mesa e nos servimos. Kiwala estava extremamente feliz e não
parava de falar com Boofeng. Mesmo nos breves segundos em que tudo
ficava em silêncio ela continuava olhando para ele, sorrindo como uma
boba alegre. Kiwala havia reprimido suas emoções durante os últimos
seis anos para descarregar toda a alegria que sentia de uma vez só desde
que Boofeng retornara.
– Experimente os bolinhos de arroz! – falou Kiwala, alcançando a
bandeja para Boofeng – estão maravilhosos! E esses tomates também
estão divinos!
– Obrigado – Boofeng sorriu, aceitando a bandeja – vou provar um
pouco de cada prato para me certificar de que não perdi nada. Já abriu
todos os seus presentes?
– Claro! Mas, como eu disse, os seus foram os melhores.
– Talvez você tivesse gostado mais de um utensílio de magia – lembrou
Boofeng – em meu mundo existem varinhas metade metal e metade
madeira, além de espadas cerimoniais com sigilos de servidores inscritos
em toda a lâmina. Mas eu não tinha certeza se você seguiria ou não o
caminho da magia. Então resolvi comprar coisas que serviriam para uma
garota da sua idade que tivesse qualquer área de interesse.
– Bem, você acertou. As tecnologias do seu mundo são impressionantes.
Encontrei algumas músicas incríveis no multi mini! O gosto musical de
seu povo é extremamente refinado!
– Eu mesmo selecionei as músicas que gravei no seu aparelho, então vou
tomar isso como um elogio – riu Boofeng – então, quais os planos para
hoje à tarde? Querem ir para algum lugar? Você gosta de cinema,
Kiwala? Tem algum lugar que deseja me mostrar? Ou talvez você não se
interesse por diversões mundanas e esteja focada no seu estudo de
magia.
Kiwala não soube o que dizer. Pelo jeito ela toparia qualquer coisa,
contanto que estivesse com o tio Boo. Se fosse eu a propor algo do tipo,
ela diria que estava muito ocupada com suas pesquisas e se trancaria na
sala de evocações.

264
Guerra das Cores Perdidas

– Hmm – pensou Kiwala – vamos ficar aqui mesmo, conversando o dia


todo. Se sairmos, vamos acabar perdendo muito tempo. Não quero
perder um segundo, já que você vai ficar por um curto período.
– Ótimo – sorriu Boofeng – por mim tudo bem. O que acha, Wain?
– Vamos ficar aqui hoje, então – falei – amanhã podemos pensar em
outra coisa.
Depois do almoço fomos até a sala principal para conversarmos e
sentamos nos sofás. Era incrível ver como os empregados da casa
tinham se dedicado à limpeza, pois estava tudo em ordem. Nem parecia
que houve uma festa na noite anterior.
– Como vai a escola, Kiki? – perguntou Boofeng, com interesse – Vejo
que está gostando muito do caminho da magia negra.
– É, eu tenho potencial – contou Kiwala – meus colegas morrem de
inveja de mim.
– Fez alguns amigos?
– Tenho cinco grandes amigas. Saímos juntas frequentemente. Convido–
as para vir aqui de vez em quando. Elas são legais, gosto de conversar
com elas. Geralmente somente eu falo e elas concordam com tudo, mas
mesmo assim é divertido.
Kiwala queria bajuladoras, isso sim. Mas só o fato de ela ter feito amigas
já era super positivo.
– Então seus planos são graduar–se na escola de magia negra e seguir
carreira?
– Aos 18 anos termino o 13º grau – explicou Kiwala – se eu desejar fazer
pós–graduação numa área específica depois disso, como goécia ou
necromancia, também é possível. Mas existe a possibilidade de eu
escolher estudar sozinha, porque acredito fortemente que aos 18 já
saberei tanto que talvez não precise mais de mestres.
– Você pensa em conhecer o mundo da sua mãe um dia? – perguntou
Boofeng – Para estudar magia branca.
– Eu gostaria de ir para os outros mundos para aprender as línguas –
respondeu Kiwala – mas não tenho muito interesse em magia branca. E
nem em magia verde para falar a verdade. A única que desperta meu
interesse no momento, além da magia negra, é a magia octarina. Fiquei
impressionada com seus servidores! Gostaria de aprender a criá–los
também.

265
Juliana Duarte

– Depois que você se formar, aos 18 anos, caso decida adiar a sua pós–
graduação posso levá–la ao meu mundo se desejar – propôs Boofeng –
pode ser uma boa experiência.
– Sério? – Kiwala sorriu – Eu adoraria! Terei seis anos para pensar.
Parece que você somente faz visitas a cada seis anos, então pensarei bem,
pois só terei outra oportunidade como essa aos meus 24.
Boofeng riu.
– Não se preocupe – ele tranquilizou–a – se eu não estiver num
treinamento fechado de retiro e você mudar de ideia em algum
momento, basta me contatar. Para Kiwala e para Wain eu sempre tenho
tempo.
– Você tem amigos no seu mundo? – perguntou Kiwala.
– Eu tenho, mas muitos já morreram e outros estão velhinhos, pois nem
todos são imortais.
– É mesmo, você é imortal, assim como meu pai – lembrou Kiwala – ou
melhor, vocês não morrem por velhice e ficam sempre na mesma idade,
mas podem morrer com acidentes, certo?
– Os acidentes em questão provavelmente seriam mágicos – explicou
Boofeng – é necessário algo realmente violento para matar um imortal:
ou morte instantânea ou algo que não possa ser curado imediatamente
com magia.
– Como se faz para virar imortal? – perguntou Kiwala, interessada – Se
tiver um elixir da longa vida aí com você, só tomarei daqui uns 10 anos,
porque não quero ser criança para sempre.
– Não foi fácil. Eu e Mustse conseguimos esse feito quando ambos
tínhamos 33.
– Ensine–me!
– Como você mesma disse, ainda não é a hora – comentou Boofeng – e
há algumas consequências e responsabilidades para quem escolhe esse
caminho. Assim como magos negros devem realizar um pagamento pelo
pacto, os magos verdes estão sujeitos à vulnerabilidade ou à morte
instantânea com o falecimento de seu animal totem, etc. Nesse mundo
poucas coisas são de graça.
– Amizades são de graça – observou Kiwala.
– Algumas vezes é necessário pagar um preço muito alto por uma
amizade – comentou Boofeng – mas eu acredito que geralmente esse

266
Guerra das Cores Perdidas

preço vale a pena.


– Tio, me conte sua visão sobre cada cor da magia – pediu Kiwala, como
se quisesse dizer aquilo há muito tempo – algumas vezes eu julgo
precipitadamente certos caminhos sem compreendê–los direito. Então
queria ouvir sua opinião.
Eu também gostei muito da proposta. Boofeng aceitou.
– Então façamos o seguinte – sugeriu Boofeng – primeiro me fale suas
impressões sobre cada linha. Baseado no que você disser, direi o que
penso. Comecemos com magia verde.
– A magia verde é o caminho dos elementais e dos animais de poder –
começou Kiwala – você pode se centrar num elemento específico: há os
gnomos, silfos, salamandras, ondinas, dríades, fadas, etc; cada elemental
com uma parcela de poder da natureza. Então se você compreende os
espíritos do vento, das tempestades, das árvores, dos animais... você
começa a entender a cadeia de causalidade entre os eventos: porque
coisas ruins e boas acontecem e porque elas são necessárias. Que
algumas vezes acontecem coisas que nos parecem ruins, mas elas são
necessárias ao equilíbrio do universo. Até mesmo tragédias e destruição
de mundos podem ser necessárias à respiração do cosmos no caminho
da renovação.
Eu estava surpresa com o conhecimento de Kiwala em magia verde. E
ela ainda tinha mais a dizer:
– As coisas acontecem em diferentes velocidades. Algumas vezes é
rápido e intenso como um tufão que arrasa uma área do mundo em
poucos segundos. Mas o mago verde deve ser aquele que permanece no
olho do furacão: mesmo que o mundo esteja devastado lá fora, suas
emoções precisam estar equilibradas. Isso porque a maioria das coisas
ocorre lentamente, como o germinar de uma semente ou o desabrochar
de uma flor. Cada coisa tem seu tempo, assim como a vida humana. E
nesse ponto eu tenho uma dúvida: já escutei sobre uma alquimia verde,
mas alterar o curso natural do nascimento e da morte com a imortalidade
não seria interferir no equilíbrio da natureza?
– A alquimia verde lida com a imortalidade do universo e não com a
imortalidade do ser humano – respondeu Boofeng – existe uma área
forte na magia verde que trabalha com as flores. Uma vez conheci um
mago poderoso no Mundo Verde que era capaz de encontrar a flor que

267
Juliana Duarte

simbolizava a vida de cada pessoa naquele mundo. Baseando–se na cor


da flor, na espécie, no perfume, na sua maturação em fruto ou morte
prematura, ele era capaz de desvendar padrões complexos do corpo, da
mente, das emoções e da alma de cada indivíduo.
– Ele fez uma predição para você? – perguntou Kiwala, interessada.
– Sim, minha flor era belíssima: metade vermelha e metade amarela. Ele
realizou algumas interpretações para mim que se verificaram. A
propósito, onde obteve essa sua base em magia verde? Wain ensinou–
lhe?
– A tia Wiina contou–me.
Ou seja, minha mãe. Fiquei feliz em saber que Kiwala ainda guardava
aqueles conhecimentos valiosos.
– Acho a magia verde bonita, mas não gosto da ideia de manter as
emoções equilibradas frente aos acontecimentos ao meu redor –
explicou Kiwala – gosto de usar a raiva e o egoísmo ao meu favor, como
na magia negra.
– Na magia verde é dito que ambos, bem e mal, são necessários à
harmonia e à beleza da vida e devemos aceitá–los, pois, em última
acepção, todas as coisas que acontecem são o ideal para o todo. Portanto,
de certa forma bem e mal seriam apenas ilusões. Na magia vermelha
também é dito que são ilusões, embora para ela as coisas que acontecem
gerem apenas dor em vez de coisas positivas – explicou Boofeng.
– Então a magia verde seria otimista e a magia vermelha seria pessimista
– observei.
– A magia negra seria realista – acrescentou Kiwala – e a magia branca
seria utópica.
– Calma! – riu Boofeng – A magia verde realmente encara as coisas de
forma positiva, já que para os magos verdes a dor que sofremos pode
gerar um bem a outra parte do mundo e a nossa morte permite a
continuação do ciclo da vida. Já na magia vermelha viver é sofrimento,
então não há nada a ser feito no mundo a não ser seguir a via que destrói
o karma e interrompe o ciclo de nascimentos e mortes. No caso da
magia negra bem e mal são ferramentas, que podem ser manipuladas. Na
magia branca usam–se apenas ferramentas boas para destruir os
sentimentos considerados negativos para a purificação da alma.
– Estou confusa! – confessou Kiwala – Nesse caso, na magia verde bem

268
Guerra das Cores Perdidas

e mal são ferramentas que somente a natureza manipula, não nós. Resta–
nos apenas descobrir como funciona o jogo da natureza e dessa forma
não seremos afetados.
– Correto – falou Boofeng – acho que pulei algumas etapas e apressei a
explicação. Vamos passo a passo. Já falamos da magia verde, então fale–
me suas impressões sobre magia negra.
– Como eu disse, me identifico mais com a magia negra, pois ela me
permite mais liberdade de fazer escolhas. Apenas deixo as coisas
acontecerem, não nado contra a correnteza. Se eu fico com raiva não
controlo; uso–a para adquirir poder. Se eu fosse uma maga verde teria
que me perguntar se aquela raiva teria relação com o equilíbrio da
natureza antes de me permitir ter raiva. No caso da magia branca eu teria
que conter minha raiva, pensar em perdão e amor. Mas isso não me deixa
satisfeita! Se eu estou com raiva não tenho o direito de explodi–la? Por
que vou me conter apenas para sofrer se a raiva pode ter lados bons, me
proteger, me trazer poder?
– Você não conseguirá ficar satisfeita em todos os momentos – observou
Boofeng – em troca da sua satisfação em expressar a sua raiva você pode
ferir pessoas emocionalmente, fisicamente ou até mesmo
espiritualmente. Se você pudesse obter poder sem esforço também não
ficaria mais satisfeita?
– Talvez – respondeu Kiwala, pensativa – provavelmente.
– Na magia branca o único esforço que você precisaria fazer é conter a
raiva. Não seria necessário se debruçar em muitos livros, realizar
sacrifícios e passar noites sem dormir dedicando–se a rituais. Deus te
daria tudo o que você precisa. Então, como vê, cada linha da magia
proporciona satisfação em certas coisas, mas em outras não. Em outras
cores os aspectos negativos da magia negra não existem. Os aspectos
negativos dos outros sistemas são diferentes.
– Na magia verde você precisa ser paciente e seguir o fluxo de todas as
coisas – falou Kiwala – na magia branca você precisa de amor e fé. São
caminhos leves e tranquilos, mas em compensação você não pode fazer
o que quer, quando e como deseja. Só por esse fator, acredito que são
caminhos falhos e fracos. De que adianta ter poder se você não tem
liberdade para usar?
– Eles não são falhos – falou Boofeng – você está realizando um pré–

269
Juliana Duarte

julgamento. Se um dia você praticasse esses dois caminhos a sério veria o


poder tremendo que eles geram. Na época de fúria da natureza não
existe uma linha da magia párea para a verde. Se você enfrentar um mago
verde nessa época, as chances de morte são altas.
– Eu sei – confessou Kiwala, fitando o chão – meu pai subestimou os
magos verdes e morreu por causa disso.
Naquele dia os magos verdes imobilizaram Mustse e drenaram toda a
energia dele com um único movimento. Não precisaram de nenhum
esforço e ele já estava completamente controlado. Lamue desapareceu
em poucos segundos, pois Mustse não foi nem mesmo capaz de mantê–
lo materializado diante daquela força.
– E você também deveria saber que a maior parte dos anjos são muito
mais poderosos que os demônios – lembrou Boofeng – tente enfrentar
um mago branco da sua idade com poder similar e verá qual será o
resultado da batalha. Os anjos possuem Deus como fonte infinita de
poder e energia. Os demônios estão por si mesmos.
– Você não precisa me dizer coisas que já sei – falou Kiwala – até mesmo
na escola os professores nos ensinam que os anjos são potências de
maior poder que nossos demônios. Essa é outra razão para meus colegas
me admirarem: por eu também ter sangue do Mundo Branco. Mas eu
não acredito em Deus. Eu gostaria de controlar um anjo, já que é tão
poderoso, mas odeio essa baboseira de amor e fé.
– Não é possível controlar um anjo – explicou Boofeng – o anjo que
gentilmente lhe oferece um pouco da sabedoria e do poder de Deus.
Tudo o que ele pede é sua devoção e sua pureza de coração. Você jamais
constrange o anjo com uma espada e sim se ajoelha humildemente diante
dele.
– Nunca irei me ajoelhar diante de ninguém – falou Kiwala decidida,
cruzando os braços – se é assim, vou ficar sem o anjo. Ou descobrir
outra maneira de acorrentá–lo, com o auxílio de algum demônio
poderoso. Se o demônio do meu pai matou o anjo da minha mãe, eu
também consigo.
– Aprisionar um anjo é diferente de dominá–lo – falou Boofeng – o
máximo que você conseguirá será torturá–lo e matá–lo, mas ele jamais
seguirá suas ordens. Ele prefere morrer a se submeter a isso. Ele jamais
irá aceitar usar o poder divino para realizar os desejos de alguém cujo

270
Guerra das Cores Perdidas

coração não seja humilde e puro.


Agora eu entendia a resistência de Clarver. Ela também era como seu
anjo: preferia morrer ou ser torturada a aceitar ser a escrava de Mustse.
Finalmente tudo fazia sentido.
– Droga – falou Kiwala – preciso de um anjo para me exibir para meus
colegas. Acho que um dia vou acabar falando com parentes do Mundo
Branco para ver se entro na ordem e consigo um anjo. Talvez eu me
submeta a essa fé e amor por um tempo até obter o que quero. Depois
que eu tiver o anjo, sumo de lá o quanto antes.
– Não é assim que funciona, Kiki – falou Boofeng, pacientemente – você
precisa manter devoção a seu anjo por uma vida inteira se possui a
intenção sincera de mantê–lo. Para o anjo, seu coração é transparente
como água. É impossível enganá–lo. Enquanto você fingir amar Deus ou
tiver planos de usar o anjo somente para obter poder, ele jamais será seu
guardião. E lembre–se que existe somente um anjo guardião por toda a
vida. Se você tentar chamá–lo sem fé e trair a confiança dele, no dia em
que você quiser contatá–lo de todo o coração será muito mais difícil que
ele apareça. Deus perdoa, mas não devemos mofar de Deus. Essa
história de praticar magia para obter poder é só coisa da magia negra. As
outras linhas não são assim, então não tente compreender os outros
sistemas com a visão do caminho da mão esquerda.
Kiwala ficou quieta. Ela parecia muito orgulhosa de seu avanço incrível
na magia negra e de seu conhecimento teórico bastante correto sobre
magia verde. Mas ela não entendia bem as outras linhas. Nesse ponto eu
e ela éramos parecidas, embora eu ainda tivesse mais conhecimento.
Afinal, eu achava que nenhum outro sistema de ensino substituiria o
treinamento de primeira linha que Mustse me deu. E nenhuma teoria de
magia verde superaria o fato de possuir um animal de poder, como eu
tive.
– Deixe–me ver se entendi – falou Kiwala – como o objetivo da magia
verde é a harmonia, o poder serve ao equilíbrio. Só pode ser utilizado se
estiver de acordo com as correspondências universais. No caso da magia
negra trata–se do poder pelo poder. O poder para a evolução da alma,
para a dominação das emoções e a vitória sobre os medos e inimigos
internos.
– E o despertar de sensações e êxtases extraordinários – acrescentei –

271
Juliana Duarte

que geram a inspiração ritual e cumprem sua função tanto para


completar a magia cerimonial como pela própria sensação em si; de
completude e força.
– Concordo – disse Kiwala – já no caso da magia branca, a força é serva
do amor. O objetivo final não é o poder e sim a purificação da alma. O
poder é somente um presente do anjo, que deve sempre ser usado a
serviço do bem. O mago branco só pode usar poderes para curar e
ajudar os outros? Então por que os anjos têm espadas e atacam? Por que
na magia branca avançada se evocam demônios?
– A explicação para isso é um pouco complexa, então tente acompanhar
minha linha de raciocínio – solicitou Boofeng – naturalmente os magos
brancos seguem os mandamentos de Deus de não matar, não mentir,
não roubar. Eles utilizam essas diretrizes como regras absolutas e devem
aplicá–las para todas as situações. O objetivo final é realizar o bem. No
entanto, há situações específicas em que matar, mentir e roubar podem
não gerar o mal. Os seres humanos não costumam ter sabedoria
suficiente para distinguir qual seria a ação correta para cada situação; por
isso, devem guiar–se pelos mandamentos para todas as suas ações. Está
me acompanhando?
– Estou – confirmou Kiwala – em suma, os magos brancos são
estúpidos, não conseguem decidir nada sozinhos, são inseguros. Então
optam por serem ovelhas de Deus e passam a não usar o cérebro. Eles
permitem que um pedaço de papel com regras diga a eles o que devem
fazer.
– Seu comentário foi radical e intolerante – observou Boofeng.
– Por isso mesmo eu fiz – riu Kiwala – estou brincando, tio Boo.
Continue.
– Quando realiza o contato e conversação com o SAG, o mago branco
passa a ter acesso à sabedoria e ao poder de Deus. Só foi dado a ele
poder nesse momento porque também lhe foi dada a sabedoria para usá–
lo. E só lhe foi dado poder e sabedoria porque o mago teve fé, purificou
seu coração e se mostrou digno da presença do anjo.
– SAG seria o anjo?
– É a sigla para o Sagrado Anjo Guardião. Os magos do Mundo Branco
usam esse termo para se referirem aos seus anjos. No instante em que o
mago branco possui amor, fé, pureza, sabedoria e poder, ele não mais

272
Guerra das Cores Perdidas

precisa seguir os mandamentos. Os mandamentos só foram feitos para


guiar seres humanos que não compreendem o real significado do bem e
do mal. Quando possui o SAG o mago branco é autorizado a realizar
qualquer tipo de magia.
– Até mesmo magia negra? – perguntou Kiwala impressionada.
– Sim, da mesma forma que um mago negro também pode realizar
magia branca – respondeu Boofeng – mas enquanto tiver seu SAG o
mago branco jamais realizará uma magia que gere o mal. Mesmo que ele
faça algo como matar ou torturar, que pareça estar gerando o mal, isso é
uma ilusão. Isso porque bem e mal não existem em nossas ações
externas, mas somente em nossa mente. Só haverá um mal real sendo
feito se as intenções do mago branco forem ruins. Se isso ocorrer, o
SAG o abandonará.
– Nossa, que fantástico! – comentou Kiwala, maravilhada – Que
profundo! Então eu posso usar um anjo para destruir o mundo inteiro,
torturar e assassinar todos os seres vivos. Se minhas intenções forem
puras eu não estarei fazendo o mal, Deus continuará a me amar, me
defender, me proteger e nunca serei punida?
– Exatamente – respondeu Boofeng – você mencionou um caso
extremo. Para o mago branco o mais importante é manter–se puro em
sua mente. Mesmo que algumas palavras e ações suas possam ser
condenáveis, jamais é permitido julgar um mago branco. Se ele está com
o SAG ao seu lado, ele é puro. E estará livre de todas as acusações, pois o
próprio Deus está com ele. Mas não me entenda errado. A maioria dos
magos brancos também são puros em palavras e ações. Essa explicação é
para os casos em que isso não ocorre.
– Mesmo assim é muito impressionante – confessou Kiwala – nunca
pensei que a magia branca fosse tão linda e complexa. Achei que eram
apenas besteiras sobre amor, Deus e perdão. Embora eu confesse que
desde que escutei que eles conjuravam demônios, eu disse para mim
mesma que eu não entendia mais nada de magia branca. Não sei se sua
explicação me confundiu ou me esclareceu mais. Mas praticar magia
branca parece um bom caminho para ter um anjo e um demônio ao
mesmo tempo. Na magia negra você só pode ter demônios.
– Pela milésima vez Kiwala, você está raciocinando com base nos
princípios da magia negra – lembrou Boofeng – uma pessoa segue o

273
Juliana Duarte

caminho da magia branca porque quer se purificar e não porque quer um


anjo comandando um exército de demônios para matar os inimigos ou
para se exibir. E há outro fator: o bem que o mago branco realiza é um
auxílio à alma do outro e não uma ajuda ao corpo como curas e servidão.
O caminho da bondade da alma é complexo e profundo, não envolve
relação de favores, recompensas ou poderes. Se um mago branco mata
ou fere uma pessoa ele não estará realizando o mal se suas intenções
forem puras e também se não estiver ferindo a alma daquela criatura.
Ferir o corpo de alguém não é realizar o mal; só é mal quando se
machuca a alma.
– Nesse caso ainda não estou preparada para a magia branca – confessou
Kiwala – fale–me sobre os outros dois caminhos antes que meu cérebro
se parta em dois, tentando entender esses anjos. Tente me explicar a
magia vermelha. Meu cérebro não conhece nenhum ensinamento dessa
linha, então você pode preenchê–lo com o que desejar. A única coisa que
sei é que você e meu pai foram irmãos e monges do Mundo Vermelho
na outra vida. E que por eles não mexerem com evocações não há meios
de visitá–los.
– A magia vermelha é provavelmente a mais complicada. Para evitarmos
ficar até a noite aqui, tentarei ser sucinto. Não vou mencionar as partes
complexas, paradoxais e polêmicas.
– Eu apreciaria – falou Kiwala – em geral adoro esses debates sobre
temas controversos, mas conversar com você é um desafio. Muito
diferente de entender o que meus colegas cabeças–de–vento dizem.
– O objetivo supremo dos magos vermelhos é atingir a libertação do
ciclo de nascimentos e mortes – explicou Boofeng – alguns são bem
sucedidos, o que é outra razão para dificultar o contato. Para eles a
virtude é a dor seguida do prazer e o vício é o prazer seguido da dor.
Portanto, se você deseja eliminar a dor, deve eliminar toda a forma de
vícios, virtudes e prazeres. Para isso deve fazer cessar a própria existência
através da destruição do karma. Isso é feito por meio da meditação, em
que se atingem estados cada vez mais sutis da mente. Primeiro você cessa
as palavras por intermédio do silêncio e o movimento por meio do
repouso do corpo numa única posição imóvel. A seguir você deve
eliminar o movimento da mente. Até que tudo cesse por completo.
Nesse momento a ação, ou karma, é destruída e jamais retorna.

274
Guerra das Cores Perdidas

– Eu tenho muitas perguntas, mas me falta coragem de fazer cada uma


delas – confessou Kiwala – porque sei que a resposta será longa. Então
vou fazer só uma por enquanto: como eles obtêm poderes?
– Com a prática de meditação são despertados diversos poderes
supramundanos através dos sentidos do corpo espiritual. Mas somente o
ser que foi libertado do karma possui a sabedoria para utilizar esses
poderes. Enquanto não destruir o karma, você deve se concentrar nisso
em vez de brincar de poderes sobrenaturais.
– Então esse é outro sistema em que você não tem liberdade de fazer o
que quiser – constatou Kiwala – acho que a magia negra é a única para
mim, afinal. Esses magos vermelhos não gostam da vida, dos prazeres.
Eu gosto do êxtase que obtenho com minhas práticas, da sensação de
possuir poderes ou aprecio até mesmo coisas simples como comer, rir,
divertir–me. Esses caras são estranhos, não gostei. É meio assustador. É
niilista, destrutivo, pessimista, sei lá.
– Avisei que seria complexo compreender – falou Boofeng – você
concorda que aquele que possui controle da mente e emoções,
conhecimento do corpo físico, mente e alma pode ser capaz de
reproduzir em sua mente diversos tipos de prazeres sem alterar o lado
externo?
– Claro, é como usar drogas – constatou Kiwala – o êxtase vai direto ao
cérebro, ativa os hormônios. Afinal, tudo o que fazemos aqui fora no
final das contas serve para gerar sensações na mente. Tudo é mental,
somos a mente, de certa forma. Ainda assim, por que ignorar o corpo? É
mais fácil alterar o lado de fora do que realizar um processo de
engenharia no nosso cérebro para apertar os parafusos soltos.
– O êxtase obtido com o controle da mente é a motivação para
abandonar todas as coisas lá fora. E depois que a iluminação é obtida,
não é necessário trabalhar com influências externas. O iluminado sentirá
dor física se for torturado, mas isso não o afetará mentalmente; ou eu
deveria dizer, espiritualmente.
– Os magos vermelhos afirmam que existe alma?
– Algumas seitas afirmam que sim e outras afirmam que não. Alguns
usam o método da iluminação pela sabedoria, que é instantânea, e outros
a iluminação pela mente, que é através da meditação. Uns realizam
asceses e mortificações e outros meditação pura. É muito amplo. Ascese

275
Juliana Duarte

significa gerar um ambiente de desafios lá fora quando você já possui o


controle mental. Mortificação significa você obter inspiração para o
controle mental através do sofrimento físico como passar pelo calor
extremo, frio extremo, manter a mesma posição do corpo por horas,
realizar jejuns ou restrições alimentares rigorosas, etc.
– Acho que não tenho perguntas, porque eu não entendi quase nada –
confessou Kiwala – não consigo entender uma pessoa que odeia a vida e
se tortura por masoquismo quando na verdade busca uma suposta
evolução espiritual. Enfim, ignore o que eu disse, porque eu estou
confusa novamente. Explique–me a magia octarina. Mas se ela for mais
complicada que a vermelha, deixe pra lá.
Eu entendi a explicação sobre magia vermelha. Eu já havia conversado
sobre ela outras vezes com Boofeng. Mas para Kiwala, que havia se
acostumado somente com os sistemas de magia verde e magia negra,
entender a magia branca e a magia vermelha, que eram de uma natureza
completamente diversa, era um desafio.
– Vamos tentar – propôs Boofeng – a magia octarina lida com seres
humanos que um dia nasceram nesse mundo e como não enxergaram
nenhum livro de regras por perto, decidiram inventar tudo. Aqui não
existem verdades absolutas e você pode fazer o que quiser. Os prazeres
do mundo não são condenáveis, você é livre para combinar magia com
prazeres mundanos, com tecnologia, com música, com jogos, com
desenhos, com arte, girassóis, carrosséis, pudins, sapos, bolo de ameixa
ou o que estiver a fim.
– Só isso? – riu Kiwala – Essa foi fácil de entender. Pensei que seria a
pior.
– Como toda a linha da magia, sempre é possível ir mais fundo. Se quiser
complicar, posso dar uma explicação complexa. E se quiser facilitar, por
que não? Depende do que você deseja.
– Não duvido que você seja capaz de complicar isso. Na verdade duvido
de pouca coisa vinda de você. Então responda–me: por que os
servidores são tão populares na magia octarina?
– Porque servidores são frutos da criação – respondeu Boofeng – somos
criadores natos. Ao longo dos últimos séculos ou milênios, magos
imaginativos, criativos e geniais criaram e recriaram dezenas de
subdivisões para a magia do Mundo Octarino. Ela é também conhecida

276
Guerra das Cores Perdidas

como magia pura, pois é a magia que se inicia com uma folha de papel
em branco. Você deve ser como um bebê que vê o mundo com olhos
curiosos e desbravadores. Trata–se de uma magia experimental e
investigativa. Contanto que funcione, é um sistema válido. Isso tem
muito a ver com a particularidade de cada indivíduo. Se alguém ama
sorvetes, basta criar um sistema de magia que envolve manipulação de
energia através do sistema das cores das bolas do sorvete, combinar com
a magia do gelo, iniciar uma alquimia de emoções baseada nas sensações
sublimes que sente ao provar o sorvete e direcionar a carga de energia
para um feitiço com um fim específico.
– Que loucura! É genial! – riu Kiwala – Tem tudo a ver com você: um
gênio louco. Você me deixou com vontade de comer sorvetes, seu
malvado! Vou lá na cozinha servir três taças para nós e você vai
aproveitar e me mostrar a magia dos sorvetes.
Em poucos minutos Kiwala estava de volta e nos trouxe as taças.
– Obrigado, Kiki – falou Boofeng – achei que não notaria que essa era
uma indireta porque eu estava com fome.
Kiwala riu e sentou–se para comer seu sorvete.
– A festa já passou mesmo, então não preciso mais de regime para caber
no vestido – justificou–se ela – você pode mudar a cor das bolas de
sorvete, fazê–las flutuar ou congelar?
– No momento eu estou mais interessado em comê–las – sorriu
Boofeng.
Kiwala achava graça em tudo o que Boofeng dizia. Mas depois que
terminamos o sorvete, Kiwala disse que queria descansar um pouco, pois
a conversa sobre magia a deixou exausta. Ela disse que teve que pensar
demais para acompanhar as explicações e o cérebro dela precisava de um
descanso.
Nós tínhamos ido dormir quase sete da manhã. Acordei antes das onze e
os dois deviam ter acordado mais cedo ainda. Então decidimos ficar no
sofá para tentar dormir.
Eu cochilei apenas por alguns minutos. Num momento em que entreabri
os olhos, vi Boofeng e Kiwala sentados num dos sofás. Kiwala apoiava a
cabeça no ombro de Boofeng e estava de olhos fechados.
– Tio Boo – sussurrou Kiwala.
– Hm? – perguntou ele, com voz de sono.

277
Juliana Duarte

– Te amo.
– Também te amo, Kiki.
– Mas eu te amo de uma maneira diferente – explicou Kiwala.
– Que maneira diferente? – perguntou ele, mais dormindo do que
acordado.
– Do jeito que uma mulher ama um homem.
– Hm... – ele nem parecia estar prestando muita atenção. Estava quase
cochilando de novo.
– Os meus colegas são todos idiotas, mas você é diferente. Você é
maduro, poderoso, engraçado, divertido, criativo, diferente, inteligente...
aliás, muito inteligente. E tem uma beleza exótica.
– Você também é uma menina extraordinária, Kiki. Mas agora o tio Boo
está com sono.
– Eu notei que todos os membros do seu corpo têm cores diferentes –
prosseguiu ela – é a mesma coisa com o que está debaixo das suas
roupas?
– Hã...?
– Qual a cor da parte do seu corpo que está entre as suas pernas? –
perguntou Kiwala.
Dessa vez Boofeng acordou. Ele fitou Kiwala desconfiado. Na verdade
ele parecia não acreditar no que tinha ouvido. Franziu a testa.
– Você está bem? – perguntou Boofeng, preocupado – está estranha.
Você tomou alguma bebida com álcool ou se intoxicou de alguma
forma?
Boofeng estava falando sério, mas Kiwala riu, pois achou que ele estava
brincando.
– Não vai responder minha pergunta? – insistiu Kiwala – Você é tímido?
– Acho melhor você ir ao seu quarto para dormir um pouco – sugeriu
Boofeng – quando acordar estará se sentindo melhor.
– Quer ir ao meu quarto comigo? Assim você pode me mostrar a cor...
– Kiwala, por favor, escute o que estou dizendo: você não está bem.
Você começou a dizer essas coisas do nada...
Kiwala abraçou Boofeng.
– Eu estou bem. Mais do que nunca. Você disse que também me ama.
Vamos ficar juntos para sempre? Não vou deixar você ir embora nunca
mais. Não quero perdê–lo de novo. Esperei muito tempo para que

278
Guerra das Cores Perdidas

voltasse.
Kiwala tentou dar–lhe um beijo na boca, mas Boofeng virou o rosto.
– Kiwala, pare com isso – Boofeng ficou sério – não faça isso de novo.
Você está...
Ela tentou fazer de novo e o agarrou com força. Dessa vez Boofeng teve
que reagir. Ele deu um empurrão tão forte em Kiwala que ela foi jogada
no chão.
Eu parei de fingir que estava dormindo e me levantei.
Kiwala sentou–se no chão. Ela fitou Boofeng com tristeza e começou a
chorar.
– Por que fez isso? Seu mentiroso! Você me odeia! Tia Wain, o tio Boo
está me maltratando! Ele está estranho, estou com medo!
Kiwala me abraçou. Mas se ela pensou que eu ia defendê–la, estava
enganada.
– Eu ouvi o que você disse antes, Kiwala – eu disse a ela – peça
desculpas a Boofeng e prometa que jamais vai agir assim de novo.
Ela me soltou e fitou–me com raiva.
– Por que está defendendo ele? Eu odeio vocês dois! Como podem ser
tão cruéis assim com uma criança?
Ela saiu correndo da sala, ainda chorando. Foi para o quarto e trancou–
se lá.
Eu e Boofeng voltamos a sentar nos sofás.
– Não queria tê–la empurrado tão forte – justificou Boofeng.
– Não precisa se desculpar – eu disse – Kiwala que está errada.
– Isso é normal? – perguntou Boofeng – Ela costuma fazer isso quando
um homem visita o castelo?
– Nunca a vi agir assim antes – confessei – também fiquei chocada.
Nunca imaginei que ela faria isso com alguém que ela estima e respeita.
Por outro lado, ela está entrando na adolescência, com os hormônios
fervilhando. Ela vai àquelas festas nos domingos e não sei o que ela faz
lá além de beijar os meninos. Espero que seja apenas uma fase.
Boofeng não fez nenhum comentário. Apenas continuou sentado no
sofá e apoiou uma das mãos na testa, pensativo. Ele estava sério, meio
triste.
Uma hora depois, Kiwala retornou à sala. Sentou–se num dos sofás.
Decidiu que era melhor não sentar no mesmo sofá de Boofeng dessa

279
Juliana Duarte

vez.
– Desculpe. Não sei o que deu em mim. Eu sinto muito.
Ainda assim, não falamos nada.
– Tio Boo, você me perdoa?
Ele pensou um pouco antes de responder.
– Acho que não tenho escolha, senão perdoá–la – foi a resposta.
– Obrigada. Prometo que nunca mais agirei assim de novo.
– E acho que já vou arrumar minhas coisas para voltar ao meu mundo
amanhã – acrescentou Boofeng.
Kiwala levou um susto.
– Por quê? Só por causa do que eu fiz? Já pedi desculpas e prometi não
fazer de novo. Você não acredita em mim?
– Kiwala – resolvi intervir – você precisa entender que as coisas não
podem ser sempre do jeito que você quer. Quando entender isso,
conseguirá respeitar mais as pessoas, não tentará forçá–las a fazer algo
que não querem, não dirá coisas ofensivas e não insistirá quando as
pessoas tiverem outros assuntos a resolver e não puderem te dar atenção.
Kiwala ficou quieta. Apenas fitou o chão. Seu rosto se encheu de
lágrimas de novo. Desde que Boofeng voltara, ela passou a agir como
uma criancinha mimada outra vez. A transformação era impressionante.
Um dia antes de Boofeng aparecer, Kiwala usava um tom de voz mais
grosso, me fitava com seriedade e agia com frieza e indiferença.
Embora estivesse chateado, percebi que em parte Boofeng estava com
um pouco de pena dela, porque ele era assim mesmo. Não importava o
que acontecesse, ele sempre estava disposto a perdoar e a ajudar.
Era assustador ver o quanto ela estava ficando parecida com Mustse.
Embora ele fosse sério e reservado, as coisas tinham que ser sempre
exatamente como ele desejava, senão ele ameaçava, torturava, matava.
Kiwala só não tinha chegado a esse ponto porque ela nem sempre tinha
poder para isso. Ela não teria poder para forçar Boofeng a nada, já que
ele era incomparavelmente mais poderoso que ela. Mas se ela tivesse o
poder, eu não duvidava que ela fizesse.
No fundo Boofeng sabia disso. Ele conhecia bem Mustse, até melhor do
que eu. Ele mesmo previu o que Kiwala se tornaria. E teve esperanças.
Naquela situação ele ainda via saída, mas era difícil dizer por quanto
tempo.

280
Guerra das Cores Perdidas

Naquela noite jantamos praticamente em silêncio. De vez em quando um


de nós fazia um comentário aleatório, como elogiar a comida ou
comentar sobre o tempo. Mas estava claro que a atmosfera daquela mesa
não estava nada boa. Tentávamos agir naturalmente e evitar mencionar o
acontecimento da tarde, mas estava meio forçado.
Boofeng pediu licença para sair da mesa, pois havia terminado o jantar.
Quando ele saiu de lá, Kiwala me disse:
– Ele matou meu pai. Se ele continuar a agir friamente comigo, já terei
um motivo para puni–lo.
– Uma coisa não tem nada a ver com a outra! – falei, surpresa – E você
não tem poder para puni–lo.
– Por enquanto...
Eu não estava gostando nem um pouco do rumo que as coisas estavam
tomando.

281
Juliana Duarte

A Sala Número Um
Felizmente e surpreendentemente, no dia seguinte as coisas voltaram a
ser como antes. Boofeng e Kiwala já estavam conversando alegremente e
ele anunciou que decidiu adiar a viagem por mais alguns dias.
Kiwala passou o dia usando o laptop de sapinhos. Boofeng a auxiliava
em tudo o que ela precisava, principalmente com as traduções. Ela já
tinha começado a ler o livro que ensinava a língua do Mundo Octarino.
– Nossa! Eu posso acessar os sites do Mundo Octarino! – constatou
Kiwala, surpresa.
– Mas eles estarão estáticos – avisou Boofeng – você somente pode
acessar os sites do jeito que eles estavam no momento em que saí do
meu mundo. Não será possível ver atualizações ou conversar com
pessoas de lá.
– Mesmo assim é incrível. Vou levar anos para ler e investigar todos esses
sites. Será maravilhoso. Eu irei surpreendê–lo quando retornar, pois já
saberei tudo sobre a magia octarina. Vou aprender sua língua e ler o
máximo que eu puder sobre essa magia na internet.
– Boa sorte em sua jornada. Sei que você é capaz desse feito. Aproveite e
descubra como os magos octarinos enxergam as demais linhas da magia.
Pode ser divertido. Obviamente, muitos possuem opiniões equivocadas
sobre magia negra, mas infelizmente você não poderá enviar uma
mensagem de texto para xingá–los.
– Também estou curiosa sobre o multi mini. Você disse que ele é
diferente de outros celulares porque faz algumas “coisas misteriosas”.
Do que se trata?
– É um multi mini para praticantes de magia. Ele pode sentir a aura das
pessoas baseado num programa desenvolvido pelos nossos magos. É um
computador, então não funciona perfeitamente. Também há um sistema
completo de divinação baseado na energia das pessoas. Você pode criar
até mesmo uma forma–pensamento usando isso. Trata–se de um
pequeno servidor; um servidor júnior, desenvolvido por iniciantes.
Kiwala morreu de rir. Ela experimentou desenhar um servidor na telinha
do multi mini. Traçou um círculo de proteção e concentrou–se para
tentar evocá–lo. Mas não obteve resultado.

282
Guerra das Cores Perdidas

– Vai precisar de um pouco de prática – avisou Boofeng – deixe eu lhe


mostrar.
Boofeng desenhou outro servidor: era bem feioso, rosinha, fazendo uma
careta. Ele apertou em alguns botões e se concentrou. O servidor foi
evocado, embora quase desaparecesse e tivesse uma energia fraca.
– Uau! Bravo!
– Obrigado. Um dia você conseguirá fazer isso. Não é difícil. Também
não estou muito acostumado a mexer nisso.
– Se estivesse você evocaria até um servidor de alto nível com essa coisa.
Então esse é o futuro? Um dia evocaremos demônios clicando num
botão?
– Dificilmente – falou Boofeng – essas máquinas ainda são imperfeitas.
Foram feitas mais para diversão. Para que fosse possível usar alguns
jogos enquanto se aprende um pouco de magia. E funciona somente
para coisas básicas. Isso não vai substituir um cérebro. Lidar com magia é
muito mais complicado do que raciocinar, já que também se trabalha
com emoções e com a alma.
Topamos uma atividade exótica: ver um filme. As pessoas observavam
Boofeng com curiosidade. Além de ele mesmo ser colorido, sempre
usava roupas extravagantes. Ele inventou de vestir um macacão com
suspensórios brilhantes, tênis multicoloridos e boina. Estava parecendo
um menininho.
Era um filme de ocultismo, mas tinha algumas cenas engraçadas. Em
algumas partes Boofeng soltava gargalhadas hilárias e os outros
espectadores o mandavamele calar a boca.
Depois do filme passeamos pelo shopping. Boofeng caminhava
balançando os braços, em passos largos, como se dançasse. E não parava
de comentar sobre as cenas hilárias do filme quando saímos do cinema.
– Não foi exatamente um filme de comédia – comentei, desconfiada –
quero estar bem longe de você num dia que eu for ver um filme desse
gênero.
– O tio Boo encheu a pipoca dele de manteiga – ria Kiwala – tinha mais
manteiga do que pipoca!
– Não gosto muito de pipoca, então encho de manteiga para disfarçar o
gosto – explicou ele.
– Nesse caso você devia ter pedido um pacote de manteiga e não de

283
Juliana Duarte

pipoca.
– Não quero estragar a tradição – explicou Boofeng – quando eu e
Mustse vínhamos ao cinema sempre pedíamos metade pipoca e metade
manteiga. Ele é como eu, odeia pipoca, mas sabe que não pode existir
cinema sem pipoca. Os que odeiam precisam improvisar.
– Mustse já me disse uma vez que odiava pipoca – lembrei – e que
odiava cinema também. Ele nunca quis assistir a um filme comigo.
– Bem, isso foi há cem anos – explicou Boofeng – os cinemas agora
estão meio diferentes. Nos velhos tempos era mais divertido quando eles
faziam um intervalo no meio do filme para trocar o rolo. Nesse
momento eu ficava lançando pipocas melecadas de manteiga nas outras
pessoas.
– Como você o convenceu a ir ao cinema? – perguntei.
– Minha capacidade de persuasão pode ser terrível. Basicamente ele
aceitava minhas propostas quando eu as mencionava mais de cinquenta
vezes num único dia. Ele sentia–se um pouco sob pressão.
Isso explicava a paciência com que Mustse lidou comigo naquele dia que
entrei secretamente no quarto dele de manhã e insisti várias vezes para
irmos às salas secretas. Perto das insistências de Boofeng, aquilo não era
praticamente nada.
Sempre que Kiwala saía comigo, o que raramente acontecia, ela ficava em
silêncio, olhando as vitrines calmamente, pedindo para não irmos muito
rápido porque ela estava de salto alto. E a cada meia hora ela pedia para
ir ao banheiro para retocar a maquiagem.
Mas com Boofeng era bem diferente. Ela tinha que correr para
acompanhá–lo e conversava com ele em voz bem alta, animadamente.
Praticamente dançava com ele enquanto caminhava e ria muito.
Era algo novo poder conhecer outra face de Kiwala. Ela agia de um jeito
diferente dependendo de quem estivesse perto. Quando ela estava com
as amigas, tornava–se uma bruxa terrível e assustadora; seu olhar
impunha respeito e seu porte era admirável.
– Podemos ir ao fliperama? Podemos? Podemos? – perguntou Boofeng,
inspirado pelo seu papel de garotinho – Deixa, tia Wain, deixa!
Kiwala morreu de rir. Eu “deixei”, é claro, e joguei junto. Jogamos vários
jogos.
– Estão vendo a pontuação máxima desse aqui? – ele mostrou um

284
Guerra das Cores Perdidas

joguinho de luta – foi Mustse quem fez. Mesmo até hoje, depois de cem
anos, ninguém conseguiu superar.
Eu estava descobrindo um pouco mais sobre o passado sombrio de
Mustse. Dei um sorriso de triunfo. Jogou tantas vezes fliperama que fez
a pontuação máxima?
“Mago negro sério, completamente aplicado em seus estudos de magia?
Sei”. Essas coisas ele não contava no grimório. Só queria que ele
estivesse vivo para eu poder rir da cara dele por causa daquilo. Kiwala
também ficou impressionada em saber.
– Querem que eu revele todo o passado negro dele? – brincou Boofeng
– Eu provavelmente estive junto na maior parte das atividades lúdicas
que ele fez parte. Isso inclui até a ida a uma festa. Ele não dançou,
infelizmente. Tive que dançar sozinho. Mas ele bebeu muito e falou umas
coisas estranhas que acho melhor manter no arquivo confidencial.
Aquele foi um dia muito divertido. Mas a partir do dia seguinte, Kiwala
precisaria estudar para as provas. Eu e Boofeng a ajudamos. Eu ainda me
lembrava da teoria de magia intermediária que eu havia lido nos
grimórios da biblioteca. Acho que pelo fato de eu ter sido capaz de
auxiliá–la tão bem, subi no conceito de Kiwala.
Uma semana depois, as provas estavam terminadas. Então Kiwala
convidou as cinco amigas para o castelo. Elas ficaram muito
impressionadas com o conhecimento de Boofeng.
– Ele é tão extraordinário quanto você nos contava, Kiwala – comentou
uma delas, de cabelos metade castanhos e metade loiros.
– Vocês ouviram sobre Mendeth? – perguntou outra, de cabelos negros
encaracolados e pele escura – Foi semana de provas na escola dele
também. Ele faltou a semana inteira. Ele jamais tinha faltado um só dia
de aula. Será que o que você disse a ele na sua festa fez com que ele
desistisse da magia?
– Provavelmente foi devido à nossa luta – respondeu Kiwala, indiferente
– ele deve ter percebido claramente que era inferior. Se eu fosse ele,
jamais teria pisado numa escola de magia na vida. Fico aliviada em saber
que ele abandonou os estudos e viverá a vida medíocre que merece.
Havia algo estranho ali. Kiwala não expressou a menor surpresa ao saber
que aquele garoto havia faltado a semana inteira. Era como se ela já
soubesse, embora afirmasse o contrário. E ela parecia ter certeza de que

285
Juliana Duarte

ele havia abandonado a escola definitivamente.


Tive uma desconfiança muito forte sobre o que estava acontecendo. Os
dois tinham ido para as salas de evocação duelar no aniversário dela.
Kiwala nos contou que ganhou. Seria verdade? E depois disso, o que
teria acontecido? Ela disse que ele havia ido embora, mas para ir embora
ele precisaria sair pela porta do castelo e dirigir–se ao portão central.
Aquilo não aconteceu. Estávamos lá fora, perto da porta. Se ele tivesse
saído de lá, nós o teríamos visto.
Depois que as amigas de Kiwala foram embora, fui imediatamente até o
meu quarto pegar o enorme molho de chaves douradas e prateadas. Mas
ele não estava lá.
– Kiwala...!
Eu jamais a havia autorizado a ter acesso às chaves antes. Eu estava
muito irritada e corri até o quarto dela. Revirei todos os armários e
gavetas, até que achei as chaves. E também achei algo pior: as folhas
arrancadas do diário de Mustse, nas quais ele descrevia tudo o que havia
feito com Clarver.
Mas eu não cheguei a ler duas linhas do que estava escrito. Eu tinha algo
mais urgente para fazer.
Corri até as salas de evocação. Abri todas as dez salas trancadas, mas não
havia nada lá. Eu levei um grande susto: as salas secretas!
Fui até a torre gelada o mais rápido que pude e abri as portas uma por
uma, começando pela número 9 até a 1. E foi somente na sala 1 que
encontrei o que procurava.
Lá estava o garoto de onze anos, acorrentado, com o corpo coberto de
ferimentos, hematomas, sangue, cortes fundos. Ele estava
completamente nu. Tapei a boca com as mãos. Até nos genitais havia
cortes e hematomas. Foi uma cena muito chocante. Ele estava tão fraco e
magro que mal podia se mexer.
Boofeng e Kiwala estavam conversando na sala central e devem ter
ouvido minhas corridas desesperadas de lá para cá e batidas de portas.
Por isso eles me seguiram até a torre gelada. Escutei que eles estavam
vindo e queria mesmo que viessem, pois eu iria chamá–los de qualquer
forma.
– Kiwala! – eu gritei e agarrei–a pelos ombros quando ela chegou,
sacudindo–a – O que você fez?!

286
Guerra das Cores Perdidas

– Era apenas um experimento de magia – explicou ela, fingindo


indiferença – brinquei um pouco com possessões, torturas mágicas e
outras coisinhas. Testei a maioria das salas. Elas estão funcionando bem.
– Quem te deu permissão para pegar minhas chaves?! Você as roubou!
Você me desobedeceu!
– Culpa sua que deixou as chaves visíveis...
Dei um tapa na cara dela.
– Escute aqui, mocinha! – gritei – Enquanto estiver morando comigo
nesse castelo terá que me obedecer. Ouviu bem? Dessa vez não será só
uma ameaça. Cortarei sua mesada por causa disso, a partir de hoje. E
você não sairá com suas amigas por um mês.
Dessa vez ela ficou quieta.
– Bem feito, sua bruxa prostituta – o menino lá dentro ainda teve forças
para dizer isso.
Kiwala ficou furiosa e já ia entrar na sala para chutá–lo quando eu
segurei–a pelo braço.
– Se encostar mais um só dedo nesse menino, você jamais receberá um
centavo como mesada de novo. Vai ter que procurar um emprego se
quiser dinheiro.
Eu sabia como ameaçá–la. Aquilo era bem mais efetivo no caso dela do
que ameaçar levá–la para a sala de tortura, como Mustse fazia.
– Você o deixou uma semana trancado aí sem comida e sem água? –
perguntei, sem acreditar.
– Dei a ele algumas gotas de água suja, mas não achei que comida fosse
necessário. Ele é pobre, está acostumado a passar fome. Aposto que essa
sala foi um luxo comparado ao que ele está acostumado.
– Ele poderia ter morrido! – gritei – Uma pessoa pode morrer ao ficar
uma semana sem comer! E ainda sob tortura, é impressionante que ele
ainda esteja vivo. Ele precisa de tratamento médico urgente. Você não
tem a menor noção! Se você fosse trancada aí nas mesmas condições,
certamente não aguentaria nem quatro dias.
Boofeng não fez nenhum comentário. Ele não estava chocado, pois já
devia ter visto coisas bem piores. Mesmo assim, a expressão dele era
séria. Pedi para que ele soltasse o menino das correntes enquanto eu
chamava os empregados para ajudar.
Ele foi levado até um dos quartos de hóspedes e recebeu tratamento

287
Juliana Duarte

médico. Felizmente ele não teve nenhuma sequela grave. Depois de


tomar um banho e vestir–se com uma das roupas que havia nos armários
que lhe serviu, ele sentou–se na cama para comer uma refeição que lhe
foi trazida pela cozinheira numa bandeja.
Ele estava quase terminando de comer. Resolvi não esperar que ele
terminasse e entrei no quarto acompanhada de Boofeng e de Kiwala.
– Como se sente? – perguntei.
– Bem melhor, obrigado. A única coisa que não me agrada é a presença
daquela garota sádica. Gostaria que ela saísse do quarto.
– Eu não vou sair, idiota – retrucou Kiwala – esse quarto pertence ao
meu castelo. Essa refeição deve ter sido a melhor que já provou em sua
vida. Você jamais se sentará numa cama luxuosa como essa de novo,
então aproveite enquanto é tempo.
– Esse castelo não é propriedade sua e sim da sua mãe – observou ele –
você ouviu o que ela disse: ela vai cortar sua mesada. Talvez para sempre,
então é melhor se comportar. Seja gentil comigo ou já sabe o que a
espera.
– Você não estava assim tão falante quando eu encostei a lâmina da
adaga nos seus testículos – rebateu Kiwala, com ferocidade – é
impressionante como após uma semana de submissão e humilhação
completa você ainda se atreva a ser arrogante e a dirigir–se a mim nesse
tom. Agora você sabe do que sou capaz. Se continuar me provocando,
algo pior acontecerá da próxima vez. E a tia Wain não precisa ficar
sabendo. Dane–se o dinheiro, se eu o torturar até a morte aceito ficar
pobre até o fim da vida.
Aquilo era mais que ódio. Era uma fúria suprema, uma vingança... pelo
quê?
– O que ele fez a você para que o odeie tanto? – resolvi perguntar.
– Você ouviu o que ele disse a mim na festa – respondeu Kiwala – e nós
somos rivais. Somos os mais fortes de nossa idade, então é natural
duelarmos. Capturar prisioneiros faz parte da guerra. Não há motivo
particular. Ele teve a honra de ser o escolhido como minha cobaia de
experimentos de magia.
– Agora você me deu um motivo – observou o menino – se pensa que
deixarei isso barato, está muito enganada. Não vou deixar passar.
– Eu não tenho medo de um frangote covarde como você. E onde está o

288
Guerra das Cores Perdidas

seu demônio? Ele deve ter te abandonado por ter ficado uma semana
sem pagar o preço do pacto. Lamentavelmente também perdeu a semana
de provas, mas nem faz diferença. Acho que nesse ponto você já
percebeu que é um fracasso completo em magia.
– Sempre tirei notas mais altas que você, sua vaca.
– De que adianta se é um fracasso no aspecto empírico, tolinho?
– Trabalhei duro para obter a conjuração daquele demônio e você me fez
perdê–lo.
– Você mal conseguia controlá–lo. Quase matou meus convidados pela
sua fraqueza extrema. Tentou matar o demônio do seu amigo e vivia
desafiando outros idiotas só para provar que era o melhor. Você sabe que
é um lixo e que mereceu sua punição.
– Chega! – falei – Ele precisa descansar. Ainda está em processo de
recuperação. Vamos sair. E você ficará de castigo, Kiwala.
Saímos de lá e fechamos a porta. Kiwala ficou trancada no quarto.
Depois disso, fiquei na sala com Boofeng.
– Encontrei no quarto dela folhas arrancadas de um dos diários de
Mustse – contei a Boofeng – em que ele descreve as torturas que
realizou em Clarver. Ela deve ter se baseado nisso. Ela conhece Mustse
muito bem. Já leu os diários dele e os grimórios que ele escreveu. Ela o
admira e vai acabar se tornando exatamente como ele. E agora? O que
eu faço? Não vou conseguir segurar essa fera. É um demônio num corpo
de criança.
– Mustse não podia ser controlado tampouco, mas mesmo assim ficamos
amigos – observou Boofeng – claro que em parte isso se devia a nossa
conexão na vida anterior. Mas mesmo assim Mustse conseguia mostrar
traços humanos numas raras ocasiões. É o jeito dele de fazer as coisas;
seu jeito de ser. Não posso julgá–lo. Embora nunca tenha concordado
com as coisas que ele fazia, apenas me restava contar as minhas piadas e
ficar ao seu lado. Sinto o mesmo em relação à Kiwala. Ela vai fazer
coisas piores daqui para frente. Mas eu sou o tio dela. Até mesmo
tecnicamente, já que Mustse foi meu irmão de sangue um dia. Não vou
matá–la.
– Não acho que ela deva morrer. Mas as coisas não podem continuar
como estão.
Mais tarde, o garoto começou a se sentir mal. Ele vomitou. Voltou a

289
Juliana Duarte

deitar–se na cama. Ele estava com um pouco de febre.


– Ele está me chamando... está me chamando... – ele murmurava.
Ele parecia estar com alucinações. A febre estava realmente muito alta.
Eu e Boofeng nos entreolhamos.
– Quem está te chamando? – perguntei.
– Preciso ir... à sala de evocações...
Pelo jeito o demônio dele não o havia abandonado completamente. Eu
sabia o grande sacrifício que era obter a conjuração de um demônio de
alta hierarquia. A conexão daqueles dois parecia frágil, mas ele estava
disposto a sacrificar qualquer coisa para recuperá–lo. Ele levantou–se da
cama. No entanto, coloquei–o de volta.
– Você não pode – eu disse a ele – sua febre está muito alta! Se você
piorar teremos que te levar a um hospital. É melhor avisar os seus pais.
Diga–me o telefone da sua casa.
– Eu morava num orfanato – respondeu ele – odiava aquele lugar. Eu era
obrigado a limpar aqueles banheiros sujos todo dia. Fugi de lá há três
semanas. Durmo nos bancos da rodoviária e uso os banheiros de lá.
– Do que você vive? Está trabalhando? Como você come?
– Não trabalho. Ultimamente só estou vivendo com os lanches que dão
de graça na minha escola. Só fui à festa idiota da bruxa para comer.
– Não foi só por isso. Você comprou briga com um estudante e quase
matou o demônio dele. E agora você está com medo de perder o seu.
Ele não era uma vítima. Kiwala era pior, mas ele também não era flor
que se cheirasse. Por outro lado, a maioria dos magos negros não deviam
ser muito diferentes dele. Ele passava por sérias dificuldades financeiras e
no momento estava sem lar e sem renda. Ele devia se esforçar muito
para ser um magista tão forte mesmo com todos aqueles problemas. E
Kiwala havia tornado a situação ainda pior. Eu não podia culpar o
menino por estar zangado.
Subitamente, ele levantou–se da cama e saiu correndo do quarto, em
direção às salas de evocação. Foi tão rápido que nem deu tempo de pará–
lo. Eu e Boofeng corremos atrás dele. Era só o que faltava.
As salas estavam trancadas. Ele parou diante da número 1, tentando
abri–la sem sucesso.
– Abra a porta! Ele está lá!
Realmente parecia haver alguma coisa no interior da sala. Diante daquela

290
Guerra das Cores Perdidas

insistência e determinação, peguei o molho de chaves e destranquei a


porta.
Mas não havia nada lá. Talvez uma presença, mas não era corpóreo.
O garoto segurou a espada cerimonial que havia em cima de uma das
estantes de ouro. Traçou magicamente o círculo de proteção e o
triângulo, que já estavam traçados fisicamente no soalho da sala, com
cores muito vivas. Ele acendeu as velas e o incenso. Fez somente o
básico e pegou um bastão da mesma prateleira. Sem manto, sem
preparação prévia e sem os outros procedimentos ritualísticos, ele deu
início à evocação, pois estava com muita pressa e ansiedade.
Ele era um dos poucos magos que usava a espada para traçar o círculo
em vez de usar a varinha. Também notei que ele era canhoto. O jeito de
ele manipular os utensílios e realizar as preparações era estranho.
Mostrava que ele tinha prática e que ao mesmo tempo possuía seu jeito
particular de fazer as coisas, sem se prender a tantas regras.
Ele concentrou–se por um longo tempo. Sequer se movia, tamanha sua
capacidade de concentração e foco.
Mas para que o demônio surgisse em sua forma física quando não estava
preso sob uma conjuração, era necessário realizar um sacrifício. Eu me
perguntava o que ele faria, já que não havia um animal na sala. Se ele
encontrasse um inseto não seria suficiente e eu duvidava muito que ele
achasse algo assim naquela sala limpíssima. A alternativa era sacrificar
um ser humano, mas ele não tinha poder para matar a mim e muito
menos a Boofeng. E um sacrifício humano era somente para ocasiões
especiais. Para evocar um demônio como o dele que, mesmo sendo
avançado, não era incrivelmente poderoso, o sacrifício de um coelho ou
de uma galinha faria o serviço.
No entanto, ele improvisou de outra maneira: cortou o pulso e derramou
as gotas no cálice de prata. E ele cortou o pulso com a espada ritual!
Geralmente se usava uma faca de cabo branco especificamente para isso.
Ou até a adaga, mas não a espada. Senão o demônio poderia controlá–lo
através do sangue. Ou ele possuía o controle da situação ou não fazia a
menor ideia do que estava fazendo. Pela expressão dele, parecia saber
estar fazendo a coisa certa ou aceitando assumir o risco. Ele parecia
ciente da situação.
Finalmente o demônio começou a se materializar através da oferenda de

291
Juliana Duarte

sangue. Uma forma surgiu no interior do triângulo.


O meu susto não poderia ser maior. Boofeng também ficou boquiaberto
com o que viu.
O demônio no interior do triângulo tinha olhos vermelhos e sete chifres.
– Não pode ser! – Boofeng estava pasmo – Lamue estava no Mundo
Verde! Tentei trazê–lo de volta para cá muitas vezes, mas ele negava–se a
deixar o mundo onde foi sepultado o corpo de seu antigo mestre!
– Há muito tempo tento chamar Lamue – explicou o garoto, que
também fitava o magnífico demônio com fascínio – essa é a grande
ambição de todo o mago avançado. Muitos já tentaram conjurá–lo, desde
o falecimento de seu antigo mestre, mas até hoje ninguém havia obtido
uma evocação. Creio que fui o primeiro.
Aquilo não fazia sentido. Aquele menino, embora fosse genial na magia,
ainda tinha dificuldade de controlar seu antigo demônio que, mesmo
sendo de alta hierarquia, era de menor poder que Xsossa. Então por que
Lamue...?
Era completamente surreal. Calculei que a própria Kiwala, que era mais
forte que o tal de Mendeth, ainda levaria muitas décadas até obter a
conjuração de Lamue. No fundo eu acreditava que Lamue estava
destinado a ela, já que ela tinha o sangue de Mustse.
Eu não entendia mais nada. A única coisa que eu sabia era que corríamos
perigo. Mendeth obtivera uma evocação, mas Lamue jamais se permitira
ser dominado por ele. Lamue iria matá–lo e era possível que
morrêssemos junto.
– Proteja Mendeth! – avisei a Boofeng, com urgência – Eu vou chamar
Kiwala!
Ela ficou meio surpresa quando eu destranquei a porta do quarto dela.
– O castigo já acabou? – perguntou ela, desconfiada – Suponho que você
já tenha mandado aquele imbecil embora daqui?
– Ele está na sala de evocação número 1 – informei a ela – ele obteve
uma aparição física de Lamue.
– Quê?! – Kiwala deu um grito – Impossível! Quantos sacrifícios
humanos ele fez? Como ele fez?! Bem feito, o desgraçado vai morrer
agora! E eu obterei a conjuração de Lamue!
Corremos de volta à sala de evocação. Quando entramos, fechamos a
porta. Estava tudo escuro; somente a luz de umas poucas velas iluminava

292
Guerra das Cores Perdidas

o recinto.
Surpreendentemente Lamue ainda não tinha atacado. Até porque
Mendeth ainda não fizera o próximo movimento. Ele não tentou
conjurá–lo. Acho que no fundo ele sabia que qualquer tentativa nesse
sentido resultaria em morte imediata.
– Você quer morrer?! – gritou Kiwala, quando entrou – Se quiser, vá em
frente. Lamue não terá piedade.
– Cale a boca – retrucou Mendeth – apenas assista quietinha. Vou
realizar um feito com o qual você jamais sonhou. Não posso perder essa
oportunidade.
– Já te dei uma oportunidade de morrer. Se quiser tanto assim, deixe–me
usá–lo como sacrifício para obter essa conjuração. Assim sua morte não
terá sido em vão. Sou mais forte que você, tenho mais chances de
dominá–lo. Vou entrar nesse círculo e oferecê–lo como sacrifício.
– Você está tirando minha concentração! E não ouse entrar no meu
círculo! Eu não vou permitir.
Mas como Kiwala era mais poderosa, pegou uma segunda espada e abriu
um portal no círculo. Entrou lá. Ela colocou a lâmina da espada na
garganta de Mendeth.
– Ó, imponente e respeitável demônio de alta hierarquia! – bradou
Kiwala – Eu te vejo e te reconheço como o grande Lamue, o mais
poderoso dentre as potências infernais existentes! Solicito que te tornes
o meu servo absoluto até o fim de minha existência no pacto sagrado
que nesse momento eu e tu travaremos! Ofereço esse imprestável mago
negro como sacrifício, que possui energia mágica suficiente da qual tu
poderás te servir. Diz–me os termos de teu pacto que os aceitarei, não
me importa quais forem. Sou Kiwala Kynhei Mustse, primogênita do
poderoso Jodu Feybar Mustse, seu antigo senhor, e exijo meu direito à
sua posse como descendente.
Era verdade que o fato de ela ser a primogênita pesaria muito, já que
havia o sangue de Mustse em suas veias. Mas ela não era Mustse e eu
nunca ouvi falar de demônios que passassem através das gerações apenas
pelo sangue. Não deveria ser tão fácil. Mesmo que aquilo contasse,
Kiwala teria que provar que possuía poder para dominá–lo.
Lamue atacou. Kiwala protegeu–se com a espada ritual. Uma enorme
quantidade de sangue negro caiu de seu braço direito.

293
Juliana Duarte

Ela ficou tonta e caiu no chão. Ela não teria mais condições de se
concentrar para uma conjuração daquele porte, ferida como estava.
Ainda assim, ela queria insistir.
– Pare, Kiwala! – falou Boofeng – Você vai morrer! Volte imediatamente.
Sabe que ainda não está preparada, então não entregue sua vida. Aguarde
com paciência e treine com diligência que um dia chegará o seu
momento.
Acho que Kiwala escutou somente porque foi Boofeng quem disse. Ela
compreendeu. Boofeng era forte e se nem mesmo ele era capaz de
comandar Lamue, Kiwala entendeu que ainda não era hora de tentar algo
daquele porte.
Ela abriu o portal no círculo e saiu. Eu e Boofeng ajudamos a tratar a
ferida dela. Boofeng amarrou um pedaço de pano com força no braço de
Kiwala para estancar o sangue.
– A enfermeira do castelo irá tratá–la – informei a ela – eu te levo até lá.
– Não – falou Kiwala, determinada – só sairei daqui depois que eu ver
Lamue estraçalhar Mendeth em mil pedaços. Vou usar meu multi mini
para filmar. Só não vou mostrar para meus colegas porque senão eles vão
babar pela evocação dele e irão tratá–lo como mártir.
Mendeth não teria condições de tentar uma conjuração, pois estava se
sentindo mal. Ele caiu no chão. Estava tonto, possivelmente com dores
de cabeça fortes. A febre devia estar ardendo. Ele não devia ter saído da
cama naquelas condições.
– Já é o bastante – falou Boofeng, por fim – eu mesmo vou entrar no
círculo e tentar fazer Lamue retornar.
Quando Boofeng ia abrir um portal, Mendeth não permitiu.
– Ele está falando comigo – explicou Mendeth – Lamue está causando as
dores de cabeça. Ele disse que isso é necessário. Deixe que ele faça.
– Ele dificilmente falaria com você, já que a conjuração não foi concluída
– explicou Boofeng – Lamue raramente fala e se ele está realmente
realizando uma comunicação por intermédio de sua mente, será para
enganá–lo. Ele irá gerar dores cada vez maiores no seu corpo até matá–
lo.
Lamue saiu do triângulo e entrou no círculo de proteção! Soltei uma
expressão audível. O menino era fraco demais para manter Lamue
lacrado no triângulo. Mendeth estaria morto nos próximos segundos.

294
Guerra das Cores Perdidas

Somente a energia intensa emanada pelo corpo de Lamue já seria


suficiente para matá–lo. Nesse momento Kiwala levantou seu multi mini
para gravar.
Lamue colocou uma das mãos na cabeça de Mendeth, provavelmente
para explodir o cérebro. Por que ele havia demorado tanto para matá–lo?
Eu conhecia Lamue: ele era como um raio que surgia deixando um rastro
de ossos, carne e sangue e desaparecia antes que se pudesse fitá–lo com
mais clareza. Desde o massacre no santuário ele havia desaparecido. O
que ele pretendia, aceitando aparecer diante de um neófito depois de
tanto tempo?
Com as mãos trêmulas, Mendeth segurou o bastão. Lamue segurou a
outra ponta. Depois disso, Lamue desapareceu num rastro de fumaça e
Mendeth ficou inconsciente.
– Lamue o matou – falou Kiwala, satisfeita por ter gravado o momento –
ele deve ter cortado as veias do cérebro. Preferia que ele o tivesse
esquartejado.
Boofeng foi até lá e verificou o pulso de Mendeth.
– Ele ainda está vivo – informou Boofeng – mas por um fio. Se não for
tratado agora, ele vai morrer.
Boofeng o segurou nos braços facilmente, pois o menino estava magro e
era leve. Ele deitou–o na cama do mesmo quarto de hóspedes. A
enfermeira e mais duas empregadas foram tratá–lo imediatamente.
– Ele sofreu uma espécie de trauma – explicou a enfermeira – o
demônio deve ter–lhe aplicado alguma tortura mental violenta. A chama
da vida dele está se apagando como numa rajada de vento. Ele vai sofrer
antes de morrer.
Ele não parecia estar sofrendo, pois estava desmaiado. Mas, por outro
lado, eu não entendia muita coisa de ferimentos mágicos. Talvez Lamue
tivesse sido mais bonzinho se o despedaçasse. Aquilo que ele fez tinha
sido mais cruel.
– Agora entendi – observou Kiwala – Lamue é ardiloso. As pessoas
geralmente pensam que as maiores torturas são as que envolvem
mutilação e sangue. Mas é no cérebro que se encontram as zonas de dor.
Os neurônios dele devem estar queimando. Cada gota do sangue deve
estar entrando em ebulição agora.
Mas a verdade era que não havia meios de se saber o que realmente se

295
Juliana Duarte

passava. Mendeth parecia estar numa espécie de coma.


Ele permaneceu assim por dois dias. Nada podia ser feito. Até que ele
finalmente acordou. Quando isso aconteceu era noite. Estávamos nós
três jantando e a enfermeira nos chamou. Corremos até o quarto de
Mendeth.
Ele estava sentado na cama, fitando o nada. Estava muito nervoso.
– Seu coração está acelerando demais – avisou a enfermeira – por favor,
deite–se. Você não pode se submeter a qualquer situação de estresse.
Então era melhor manter Kiwala longe. Mas Mendeth não queria voltar a
deitar–se.
– Você está bem? – resolvi perguntar – Como se sente?
Ele olhou para mim. E apenas me olhou sem dizer nada.
– A menina – ele pronunciou – venha até aqui.
Kiwala, desconfiada, aproximou–se da cama.
Mendeth fitou–a por um tempo considerável, como se a analisasse.
Kiwala sentiu–se incomodada.
– Que foi? O que você quer?
– Nada – falou Mendeth – já é o suficiente. Pode se retirar.
– Ele ficou louco – avisou Kiwala – mandem–no direto para um
hospício. Esse castelo não é um hospital e ele nem está mais doente. Vá
embora daqui, Mendeth. Já me aborreceu o suficiente. Depois de tanto
luxo que recebeu, estamos quites.
– E agora? Conto para vocês ou não? – perguntou–se Mendeth – Eu
poderia esconder a verdade, mas vocês a descobririam cedo ou tarde.
– Do que está falando? – perguntou Kiwala – Vai dizer que dominou
Lamue?
– Isso de fato ocorreu – disse Mendeth – você o viu tocar a varinha. O
pacto está estabelecido.
Kiwala desatou a rir.
– Duvido – desafiou ela – evoque–o então, para que eu o veja.
– Em outra oportunidade – Mendeth respondeu – meu corpo e minha
mente não estão em condições de realizar isso agora sem que eu sinta
uma forte dor de cabeça.
– Você só está se gabando.
– Da próxima vez que eu evocá–lo gastarei muita energia, já que matarei
duas pessoas dessa sala – explicou Mendeth – sendo assim, não há razão

296
Guerra das Cores Perdidas

para ter pressa, a não ser que você seja como eu e não tema colocar–se
diante da morte, garotinha ingênua.
– Presumo que uma das pessoas seja eu. E quem seria a outra?
– Sempre acreditei que sua capacidade de dedução seria genial,
considerando de quem você é filha – comentou Mendeth – a outra
pessoa é aquele palhaço logo ali.
– O tio Boo não interferiu na sua brincadeira.
– O tio Boo? – perguntou Mendeth, fitando Boofeng com curiosidade –
Então agora você é o tio Boo. Parabéns. Deve ter muito orgulho pela
sobrinha. Mas pensando bem, acho que a “tia Wain” também merece ser
morta. Você jamais foi apenas uma espectadora passiva.
– Pare com seus joguinhos – resolvi dizer – diga o que quer. O que
Lamue te contou?
– Ah – falou Boofeng – entendo.
– Então faça a gentileza de explicar a elas – solicitou Mendeth.
– Lamue deve ter revelado minha participação direta e sua participação
indireta, Wain, na morte de Mustse – sugeriu Boofeng – mas se Lamue
queria se vingar, podia ter nos matado naquele dia.
– Você me compreendeu de forma errada – falou Mendeth – estou
desapontado. Lamue não busca vingança alguma, pois ele já encontrou o
que procurava. Ele me revelou fatos surpreendentes. Claro que não
acreditei quando ele disse. Ele teve que me mostrar. Durante esses dois
dias que estive em coma, tive visões extraordinárias.
– Ele está blefando – avisou Kiwala – não diga que agora pode ver o
futuro?
– Ao contrário – respondeu Mendeth – ele me mostrou o passado. Mais
especificamente, minhas duas vidas passadas. Na primeira vida eu me
chamava Kadolo Bopei e fui um monge do Mundo Vermelho até morrer
com meu irmão devido a uma tragédia quando ambos tínhamos 14 anos.
Na minha segunda vida, fui um mago negro chamado Jodu Feybar
Mustse, mestre de Lamue, que junto do mago octarino Hei Qwob
Boofeng e da maga branca Priela Krist Knossa adquiriu a imortalidade
para ironicamente falecer aos 386 anos. Nesses últimos dois dias recordei
cada detalhe da minha vida e cada conhecimento que adquiri.
– Então acho que nesse instante eu deveria dizer: bem–vindo de volta,
Mu! – riu Boofeng – Eu estava com saudades!

297
Juliana Duarte

– Cale–se – mandou Mendeth – eu me pergunto se você está zombando


ou simplesmente agindo da mesma maneira idiota de sempre. Seja como
for, independente de você ter me matado ou não, não há nenhuma razão
para tratá–lo com cortesia.
– Esse é o Mu que eu conheço; você me convenceu – decidiu Boofeng –
mas Kiki está com uma expressão de quem acha que estamos apenas
brincando. Sugiro um duelo para acabar com as dúvidas da pequenina.
– Como quiser.
Ali mesmo, em cima da cama, Mendeth traçou um círculo de proteção.
Mas dessa vez ele usou o braço direito! Agora ele era ambidestro.
Boofeng traçou o círculo de onde estava.
Mendeth evocou Lamue e Boofeng evocou dez servidores!
Mendeth pronunciou evocações numa língua desconhecida. Não havia
meios de aquele garoto conhecer o idioma. Lamue atacou ferozmente os
servidores, arrancando–lhes sangue. Mas Boofeng estava tão forte
atualmente que era possível que o poder dos dez servidores superasse
Lamue.
A parede do quarto rachou ao meio e desabou.
– Chega! – gritei – Vocês vão destruir o castelo! Parem agora!
Surpreendentemente os dois me obedeceram. Mendeth não parecia ter a
intenção séria de matar Boofeng. Ao menos não por enquanto.
Aquilo foi mais do que suficiente para me convencer. Mesmo admitindo
a hipótese extremamente improvável de aquele menino, por um acaso
fantástico do destino, ter conseguido evocar e até mesmo dominar
Lamue, ele jamais teria sido capaz de usá–lo daquele jeito. Mesmo com a
conjuração selada, o menino por enquanto só iria poder evocar Lamue
mais ou menos uma vez por mês por poucos segundos e seria muito. E
precisaria de sacrifícios humanos a cada vez. Não tinha chance de o
menino ter feito isso em poucos segundos, sem sacrifício e sem nada,
utilizando aquela quantidade fenomenal de energia.
E Mendeth não desmaiou após a evocação. Não teve nenhum efeito
colateral, fora a dor de cabeça que ele já experimentara ao acordar.
Kiwala olhou para Mendeth boquiaberta. Mendeth percebeu o olhar.
– Acho que você entendeu agora.
Mendeth deu alguns passos em direção a ela. Kiwala recuou. Ela estava
assustada demais. Tremia de tanto medo.

298
Guerra das Cores Perdidas

Ela deve ter pensando que Mendeth pretendia matá–la imediatamente,


porque se desesperou. Começou a respirar rápido e a derramar lágrimas.
– Eu não sabia! – exclamou ela – Como eu poderia saber que você era a
reencarnação do meu pai? Eu jamais teria feito o que fiz se eu soubesse,
então você não pode me punir!
– Eu posso fazer qualquer coisa – retrucou Mendeth, friamente – porque
eu sou onipotente, onipresente e onisciente.
Dessa vez Kiwala ajoelhou–se no chão e desatou a chorar. Fitava
Mendeth com horror.
– Perdoe–me, por favor! Estou arrependida! Eu sempre admirei–o e
respeitei–o muito, meu pai! Estou honrada em finalmente conhecê–lo!
Peço humildemente para ser a sua discípula e que você seja meu mestre
para ensinar–me a nobre linha das artes das trevas.
– Presumo que Clarver esteja morta ou a tenha abandonado?
– Minha mãe está morta – informou Kiwala – e meu pai morreu e voltou
à vida.
– Eu nunca fui seu pai – falou Mendeth – em minha vida anterior, meus
genes acabaram gerando uma vida, embora eu não tivesse a menor
vontade que isso ocorresse. E agora sou estudante de uma escola de
magia negra, como você. Mas daqui em diante não terá o menor sentido
frequentar uma escola lamentável como aquela, já que recordei de todas
as minhas experiências com magia da minha vida passada. Esse corpo é
um fardo e até hoje o ser chamado Mendeth teve apenas uma vida
miserável. Você contribuiu consideravelmente para que isso ocorresse.
– Novamente, eu sinto muito por tudo o que fiz – reforçou Kiwala – por
ter te trancado naquela sala e...
– Wain e Boofeng nesse ponto já possuem uma ideia considerável sobre
o que você fez – observou Mendeth, interrompendo–a – portanto, não
há necessidade de colocar em palavras. O que você teme, afinal? O meu
poder? A possibilidade de eu anunciar–me novamente como proprietário
do castelo e você perder tudo? Se eu me apresentasse a você como a
reencarnação do seu pai, um ser sem dinheiro e com menos poder que
você, como Mendeth, eu me pergunto se você ainda assim estaria aí
ajoelhada no chão implorando por perdão. No fundo é somente poder e
dinheiro que você deseja; e não um pai.
– Não é verdade! Eu te disse que sempre o admirei e mirei–me no seu

299
Juliana Duarte

exemplo. Eu sei quem você é e me orgulho de todas as coisas que você


conquistou. Já li todos os grimórios que você escreveu, assim como as
anotações fantásticas dos seus diários...
– Eu tinha receio que isso ocorresse – falou Mendeth – que a senhorita
Wain e a senhorita supostamente minha filha fossem bisbilhotar as
anotações dos meus grimórios pessoais. Alivio–me por ter revelado
poucos segredos neles. Pensando agora, você parece ter seguido o meu
guia de tortura que usei com Clarver para fazer as coisas que fez comigo.
Parabéns. Você está seguindo com sucesso os passos de seu pai. Ganhará
um prêmio.
– Mesmo? – perguntou Kiwala, esperançosa, levantando–se – O que vou
ganhar? Você vai me treinar?
Mendeth foi na direção de Kiwala e deu–lhe um soco violento no rosto.
Kiwala caiu no chão, com o nariz sangrando muito e um corte nos
lábios.
– É por esse motivo que eu jamais quis ter filhos – explicou Mendeth –
eles sugam seu dinheiro, sua paciência, brincam com suas emoções, te
usam, e, após uma vida de indiferença e má educação, vem com choros e
falsidade quando precisam de alguma coisa. Bebês merecem ser
queimados vivos após o nascimento. Eu devia ter dado essa sugestão a
Clarver quando ela me perguntou o que devia fazer com o pedregulho
dentro de sua barriga.
Mendeth saiu de lá. Eu sabia que ele não sairia do castelo, simplesmente
porque ele não teria para onde ir.
Como sempre, nos momentos em que precisava, Kiwala corria até mim e
me abraçava, chorando. Algumas vezes ela usava o tio Boo para isso,
particularmente nas ocasiões em que eu brigava com ela.
– Kiwala, esse é o preço de ser uma menina má – avisei a ela – jamais
terá quem a defenda quando precisar. É possível que no futuro você já
não tenha um ombro para chorar. Você nunca pareceu satisfeita em me
ter como sua mãe adotiva, porque você certamente desejava ter sido
criada pelo lendário mago negro Mustse, magista de primeira linha, para
que ele tivesse lhe ensinado coisas grandiosas sobre magia. Agora seu pai
está de volta. Tenho certeza de que já não precisa de mim. Você poderá
morar sozinha com ele, como sempre quis.
Kiwala começou a chorar ainda mais e agarrou–se ao meu vestido.

300
Guerra das Cores Perdidas

– Não me abandone, tia Wain, por favor! Preciso de você! Não quero
viver com aquele monstro!
Kiwala era extremamente contraditória.
– Acho que a nossa janta esfriou – observou Boofeng.
Eu já tinha até esquecido disso. Nós três voltamos para a sala de jantar.
No caminho passamos pela sala de estar e encontramos Mendeth deitado
num dos sofás. Ele devia estar dormindo, mas acordou quando nos viu.
– Quer se juntar a nós para jantar? – ofereci.
– Suponho que sim – ele respondeu.
Mendeth levantou–se e nos acompanhou. Boofeng fez questão de
comunicar aos cozinheiros a verdadeira identidade de Mendeth. Os
empregados conheciam Boofeng há muito tempo e confiavam no que ele
dizia. Logo a notícia começou a se espalhar pelo resto do castelo e
empregados de todos os setores foram à sala de jantar para
cumprimentá–lo e dar–lhe as boas–vindas, alguns entre lágrimas. Betah
até mesmo abraçou Mendeth.
Desse jeito ele não ia conseguir jantar. Solicitei que os empregados
esperassem que ele terminasse antes de vir mais gente para vê–lo, mas
naquele ponto a maioria já o tinha cumprimentado. Mendeth retribuía os
cumprimentos de maneira formal com um aceno de cabeça ou aperto de
mão.
Era muito esquisito saber que aquele menininho era Mustse. O jeito de
falar, de agir, de fazer as coisas, era o mesmo. Mas a voz dele, embora
não fosse fina, era voz de criança. Era estranho ver uma criança agindo
com toda aquela autoridade e polidez. Eu não levaria a sério se não
soubesse quem havia por trás daquele corpo.
As taças de cristal eram extremamente finas e fazia mais de onze anos
que Mustse não as usava. Devia estar acostumado com copos de vidro
ou plástico. Por isso, quando ele foi segurar acabou pegando com muita
força e quebrou–a. O suco de uva derramou e a palma da mão dele
sangrou um pouco.
– Desculpe... por que estou pedindo desculpas? Fui eu que comprei essas
taças – acrescentou Mendeth, pensando melhor.
– Você se machucou? – perguntei.
– Não foi nada.
Uma das cozinheiras levou a ele um pano, com o qual Mendeth removeu

301
Juliana Duarte

o excesso de sangue. Ele pegou outra taça e segurou a garrafa de vinho.


– Você não tem idade para beber – avisei – pegue a garrafa de suco de
uva.
– Você só pode estar brincando. Tinha suco naquela taça que quebrou?
– Sim. Kiwala também só toma suco. Não permito que ela tome álcool.
Se ela bebe nas festas que vai, eu não sei. Mas aqui em casa ela está
proibida.
– Eu posso beber álcool – gabou–se Boofeng, mostrando a própria taça
a Mendeth – Wain permite.
Mendeth se irritou.
– Não quero saber. Eu bebo o que eu quiser.
– O álcool é prejudicial para crianças em fase de crescimento – alertei – e
você não deseja nenhum dano permanente nesse corpo, pois precisará
usá–lo a partir de agora para controlar Lamue.
Esse argumento convenceu Mendeth que, contrariado, serviu–se do suco
de uva.
Ele comeu pouquíssimo. Pegou apenas um pouco de carne e arroz e já ia
sair da mesa antes de todos, mas eu não permiti.
– Coma mais – mandei – crianças da sua idade precisam se alimentar
apropriadamente.
– Não estou com fome – Mendeth deixou claro – portanto, não vou
comer.
– Coma mais ou ficará sem sobremesa! – brincou Boofeng, rindo de
Mendeth.
– Cale a boca, idiota – retrucou Mendeth – só vou comer para você
parar de me encher o saco.
Ele pegou mais um pouco de carne e arroz.
– Pegue os vegetais – mandei.
– Odeio vegetais.
– Antigamente você gostava – observei.
– Estou num outro corpo. O aparelho gustativo de Mendeth é diferente.
Esse corpo é esquelético, então não sinto fome frequentemente.
– Você ficou uma semana sem comer e depois ficou desmaiado por dois
dias – lembrei – então você deve comer. Vegetais são muito importantes,
então pegue o tomate e a alface agora!
Mendeth me fitou sem acreditar.

302
Guerra das Cores Perdidas

– Você está gostando disso, não é? – ele perguntou.


– Estou adorando – respondi.
Mendeth, levemente irritado, serviu–se de uma folha de alface e de uma
fatia minúscula de tomate. Boofeng estava segurando o riso. Kiwala
também estava com um sorriso no rosto.
– Em breve irei ao Mundo Branco para contatar Knossa – informou
Mendeth – foi com o auxílio dela que eu e Boofeng obtivemos a
imortalidade. Portanto, suponho que ela também tenha um método de
me fazer envelhecer mais depressa. Não vou aguentar vários anos nesse
corpo fraco e débil.
– Para resolver isso, basta comer bem – informei – assim você será
robusto, grande e forte.
– Quer parar de falar em comida, por gentileza? – solicitou Mendeth.
– Até que você é um menino educado...
Mendeth levantou–se e quebrou o prato de vegetais no chão.
– Sugiro que não abusem da minha paciência. Da próxima vez que eu
escutar qualquer gracinha sobre a minha idade, essa pessoa será levada à
sala de tortura.
Acho que estávamos realmente indo longe demais. Principalmente eu.
Eu dificilmente teria coragem de ser tão abusada se estivesse fitando o
Mustse no corpo antigo.
– A propósito, suponho que o castelo é seu novamente e você queira as
senhas dos bancos que me deixou como herança? – perguntei.
– Por enquanto irei morar aqui simplesmente porque Mendeth não tem
para onde voltar. Se eu tivesse outro lugar para ir, estejam certos de que
eu ficaria o mais longe de vocês possível. Não vou pegar nada de volta, o
que eu dei está dado. Só irei solicitar pela senha de um dos bancos
apenas para não aborrecer–me requisitando dinheiro sempre que eu
precisar.
– Está certo.
Até que ele tinha sido convincente. Era verdade: ele não ligava muito
para dinheiro. E devia ter confiança em mim; ele viu que eu tinha certa
autoridade para lidar com Kiwala. Mas se a própria Kiwala fosse a
proprietária de todos os bens, eu desconfiava que Mendeth não seria tão
gentil e tomaria todos os seus bens de volta. Ele não confiava nela.
– Quer seu quarto de volta? – perguntei.

303
Juliana Duarte

– Tanto faz – respondeu Mendeth.


– Fique com ele – resolvi dizer – ele está exatamente como você o
deixou. Não mudei nada de lugar, apenas acrescentei uma ou duas coisas
minhas que logo tirarei de lá.
Ele aceitou. Depois disso, Mendeth pediu licença e levantou–se da mesa.
Saiu da sala de jantar.
Notei que ele havia deixado metade do suco de uva na taça. Mas resolvi
não aborrecê–lo mais com aquilo. Era melhor deixá–lo descansar,
porque ele precisava.

304
Guerra das Cores Perdidas

O Menino de 400 anos


Mendeth não sabia direito o que faria dali para frente. Com aquela idade
ele não conseguiria emprego na firma. Mesmo que explicasse a situação
para Eideikel, ele decidiu que era melhor esperar pelo menos alguns
anos, para que crescesse mais um pouco, pois ele não queria ser motivo
de piadas na firma.
Na verdade, até mesmo na vida anterior ele já não sabia o que fazer. Ele
viveu tempo demais da outra vez e lá estava ele com mais uma vida. Já
tinha todo o conhecimento de magia negra que precisava. Então ele
optou por dedicar–se a fortalecer sua ligação com Lamue. Afinal, ele
estava com um novo corpo e as coisas seriam diferentes.
Kiwala sugeriu que Mendeth se transferisse para a mesma escola de
magia negra que ela, para que fossem colegas. Ela queria que ele fosse o
mestre dela, portanto seria útil sentarem perto na sala de aula para que
Mendeth comentasse com ela as explicações erradas dos professores.
– Eu vou odiar assistir a essas aulas – avisou Mendeth – além de os
professores serem estúpidos, na sua sala tem ainda mais idiotas do que
na minha, se é que isso é possível. E eu detesto aquelas suas cinco
amigas frescas. Na verdade eu sempre te odiei mais que elas, mas elas
também são insuportáveis. Quando vocês seis se juntam prefiro estar
bem longe.
– Tente ir por algumas semanas e ver o que acha.
– Tenho sérias dúvidas se suportarei sequer os primeiros dias. E nem
pense em convidar aquelas suas amigas para visitar o castelo novamente,
pois eu não vou permitir.
Mendeth acabou aceitando a transferência. Acho que depois de ter
vivido uns 400 anos ele já devia estar tão entediado que topava
praticamente qualquer coisa.
Quando voltaram da aula naquele dia, eles contaram para mim e para
Boofeng como tudo ocorreu.
– Até o pessoal desse outro colégio ficou sabendo sobre minha ausência
prolongada na minha escola – contou Mendeth – eu disse que estava
doente, embora eu não precisasse dar nenhuma satisfação a essas pessoas
simplórias. Minha mudança de colégio também surpreendeu, pois foi

305
Juliana Duarte

repentina.
– Mas a maior surpresa foi quando minhas amigas me viram chegar ao
colégio acompanhada de Mendeth no meu carro particular – contou
Kiwala – disse que descobri que ele era meu primo e que ele moraria no
meu castelo por enquanto devido a uns problemas familiares. E foi a
primeira vez que elas te viram usar uma roupa que não fosse o uniforme
do colégio.
– Já realizei a encomenda de algumas roupas e sapatos do meu tamanho
pela internet – explicou Mendeth – vai levar um bom tempo até que
minhas roupas antigas caibam, infelizmente.
– Por que não foi à loja de roupas? – perguntou Kiwala – Eu poderia ter
ido com você e lhe ajudado a escolher. Teria sido mais divertido.
– Teria sido o inferno. Odeio loja de roupas. E não preciso da sua
opinião.
– Eu sei o que está na moda hoje em dia – justificou Kiwala – você não
deve saber nada sobre a moda entre os jovens, porque sempre usou a
mesma roupa.
– E quem disse que eu quero estar na moda? – perguntou Mendeth – No
fim, mesmo sendo praticante de magia, você tornou–se uma adolescente
fútil e superficial. Estou desapontado. É isso que dá sair de casa e ter
contato com esse tipo de gente. Wain não teve esse problema, pois eu a
mantinha trancada no castelo, como deve ser.
– Em parte eu concordo que a maioria das pessoas daquela escola são
seres fracos e inferiores, que sou melhor, mais poderosa, mais inteligente
e mais bonita que todos eles – observou Kiwala.
– Já é um começo. Mas por se importar tanto com a opinião dos outros,
você faz questão de concluir essa escola fraca de método questionável
somente para obter um diploma inútil que a torna qualificada para
ensinar uma suposta magia negra para a próxima geração de infelizes.
– O tio Boo estava certo – comentou Kiwala – ele sempre disse que,
embora fosse muito sério, meu pai também era engraçado. Agora entendi
o motivo.
– Não estou tentando ser engraçado – esclareceu Mendeth – é a mesma
coisa quando as pessoas dizem que riem em algumas partes dos
grimórios que escrevo. Como as pessoas podem rir lendo um livro sério
como aquele, em que revelo segredos milenares? É um absurdo.

306
Guerra das Cores Perdidas

– Isso porque você é um comediante nato, Mu – comentou Boofeng –


ao contrário de mim que sempre tenho que me esforçar para ser
engraçado. Mas às vezes eu consigo, certo, Kiki?
– Claro! Adoro as piadas do tio Boo!
Kiwala abraçou–o.
– Você é um caso perdido mesmo – concluiu Mendeth – sua mãe devia
ter te levado junto quando foi para o inferno.
– Credo, papai! – reclamou Kiwala – Como você é mau...
Boofeng desatou a rir.
– Cuidado – alertou Mendeth – a convivência com esse bufão e com a
menina–árvore está tornando–a retardada. Eu vou ensiná–la disciplina
na sala 4 se você me chamar de “papai” outra vez.
– Eu sou a menina–árvore? – perguntei, ofendida – Caso você não tenha
notado, não sou mais uma criança como você. Sou uma mulher agora e a
pessoa mais razoável nessa casa.
Quando Mendeth voltou do colégio no dia seguinte, ele tinha muitas
reclamações.
Em primeiro lugar, ele contou que havia discutido com uma professora
arrogante que, segundo ele, estava falando muitas besteiras. Ele começou
a discordar de tudo o que ela dizia e desafiá–la. Quando chamou–a de
burra foi levado à direção e recebeu uma ocorrência.
– Vai ficar de castigo por causa disso – caçoei.
– Muito engraçado – comentou Mendeth, de má vontade – se você
estivesse lá e ouvisse o que ela disse, também teria vontade de dar um
soco na cara dela.
– Você deu um soco nela? – perguntei, impressionada.
– Não, mas da próxima vez eu dou, nem que eu receba uma suspensão.
– Acho que nesse caso seria uma expulsão – observei – o que ela disse,
afinal?
– Ela dizia que mesmo que já tivéssemos a capacidade de evocar
potências de alto grau, deveríamos somente evocar as de grau
intermediário por enquanto.
– Ela está certa – eu disse – você mal conseguia controlar aquele seu
antigo demônio de alta hierarquia quando ainda não sabia de seu
passado. Pessoas correram risco de vida na festa por causa da sua
displicência.

307
Juliana Duarte

– E daí que elas tivessem morrido? Todos vão morrer um dia. Elas
deviam se sentir honradas por serem assassinadas por um demônio de
alto grau.
Se esses eram os argumentos de Mendeth, não era difícil concluir o
motivo de a professora tê–lo enviado para a direção.
– Tive vontade de evocar Lamue para matar aquela diretora desgraçada.
Ela me fitava como se eu fosse um inseto. Maldita arrogante.
Para Mendeth, todos eram arrogantes, menos ele...
– Arrogante é quem se eleva acima de sua condição – explicava Mendeth
– e eu já estou acima de todos, então não há meios de eu me elevar mais.
– Está acima de todos, menos de Knossa – lembrou Boofeng – e de
alguns magos vermelhos.
– Poupe–me de seus comentários – falou Mendeth – os melhores magos
vermelhos já atingiram a iluminação e não existem mais em nenhum
mundo. Não há como eu estar abaixo de alguém que não existe.
Como de costume, ele tinha resposta para tudo.
– Mas você sabe que não pode superar Knossa – insistiu Boofeng – foi
para evitar um duelo que te revelaria a verdade que você se escondeu
aqui no Mundo Negro.
– Quando eu for solicitar a ela um elixir de envelhecimento te provarei
que não estou me escondendo de ninguém.
No outro dia, Kiwala convidou as cinco amigas para o castelo, para
tomar um chá. Mendeth queria matá–la.
– Eu te avisei que eu não permitia que aquelas suas amigas pisassem
aqui! Você é surda?!
– Não é só porque você é anti–social, odiado e não tem amigos que eu
preciso ser assim também – justificou Kiwala – eu sou uma jovem bonita
e saudável e quero mostrar minha beleza para o mundo.
– Então vá mostrar a sua beleza bem longe do meu castelo! O mundo
está lá fora e não na minha sala.
– Mas aqui tem chá de graça. Wain cortou minha mesada, não posso
ficar saindo de casa.
– É dinheiro que você quer? Se eu te der dinheiro você some com suas
amigas?
– Agora eu já as convidei. Seria indelicado remarcar.
– Sim, eu sei que você é super delicada – ironizou Mendeth – quando me

308
Guerra das Cores Perdidas

trancou na sala 1 você me deu um tratamento típico de uma dama.


– Será um chá de bonecas – explicou Kiwala, desviando o assunto –
Lilipaw comprou uma boneca nova e essa será a festa do batismo. Cada
amiga minha trará uma boneca para participar do chá. Já pedi para
nossos servos decorarem a sala de acordo, cheia de enfeites cor–de–rosa,
que será a cor chave do dia.
– Chá de bonecas? – perguntou Mendeth, completamente aturdido –
Vocês usam maquiagem carregada, sapato de salto fino, mini saia e
decote, vão a festas para traçar os outros rapazes retardados e brincam
de boneca?
– Você não entenderia. É necessário que uma mulher possua um
equilíbrio perfeito entre sensualidade e doçura. É importante possuir o
aspecto da mulher fatal e poderosa, mas incrementar com pitadas de
inocência e graça.
– Agora eu entendo porque existem lugares em que se tem o costume de
assassinar o bebê quando nasce uma menina – comentou Mendeth.
– Se fosse o costume contrário, você não teria nascido e eu teria sido
poupada de ouvir isso.
– Se eu não tivesse nascido, eu não teria trepado com a sua mãe e você
não existiria.
– Existem maneiras mais leves de dizer isso, sabia? – observou Kiwala.
A campainha soou. As cinco meninas chegaram ao mesmo tempo, todas
vestidas de boneca, com laços e vestidos rodados. Mendeth foi recebê–
las, mandando–as irem embora imediatamente.
– Ele está brincando – falou Kiwala – ignorem–no. Podem entrar,
meninas. Parabéns pela nova boneca, Lilipaw!
– Obrigada, Kiwala! O vestido da sua boneca está lindo! Você e sua
boneca se parecem muito: ambas são belas e seus vestidos são
maravilhosos!
Kiwala abraçou todas elas e as convidou a entrar. A sala de estar estava
completamente transformada. Nem parecia mais a sala de um castelo
mal assombrado. Estava repleta de flores, com laços de fita cor–de–rosa,
ursinhos de pelúcia, vidrinhos com balas. Na mesa principal havia um
bule com chá de morango e um recipiente com bolo de morango. Tudo
cheio de purpurina e fru–frus.
Eu cumprimentei as meninas também e segurei o riso ao ver o rosto de

309
Juliana Duarte

nojo de Mendeth ao fitar a decoração da sala. Acho que ele estava com
vontade de arrancar cada um daqueles laços, queimar os ursinhos e
torturar os empregados que fizeram aquilo à sua preciosa sala.
– Mendeth fará a gentileza de se juntar a nós – contou Kiwala.
– Não. Essa gentileza eu não faço.
– Vamos falar sobre magia. Não ligue para a forma. É a essência dessa
reunião que importa.
Kiwala falou o que precisava para convencê–lo a ficar.
Ela não mentiu. Elas falaram sobre magia e começaram o assunto
tentando inventar uma definição para a magia rosa.
– Eu acho que é a magia das coisas doces e meigas; a magia das fadinhas
mágicas – sugeriu Lilipaw – minha boneca, que também é minha filha,
será uma maga rosa. Ela terá um manto cerimonial rosa, uma espada
ritualística enfeitada com pom–pons e irá vestir o demônio que evocar
com um vestido de bailarina cor–de–rosa.
Imaginei que Mendeth já estaria se enforcando a esse ponto, mas ele
apenas mantinha–se sentado na poltrona, extremamente sério.
A partir daí a coisa foi ficando ainda pior, se é que isso seria possível. As
meninas conversavam animadamente, dando risinhos e em alguns
momentos imitavam uma voz fininha, como se fosse a própria boneca
falando. Uma delas tentou dar chá para a própria boneca e derramou
metade do chá de morango no tapete, que ficou com uma grande
mancha cor–de–rosa.
Mendeth fez força para fingir que não viu aquilo e apenas tomava seu
chá de morango em silêncio.
– Uma coisa veio à minha mente agora – comentou Lilipaw.
– Incrível – observou Mendeth – achei que sua mente fosse um vácuo.
– O que é um vácuo? – perguntou Lilipaw – É o marido da vaca?
Todas as meninas deram risinhos. O rosto de Mendeth tornou–se
mortalmente sério. Acho que ele havia decidido permanecer em silêncio
até o fim do chá. Era incrível que ele estivesse aguentando até ali.
Eu e Boofeng também estávamos participando do chá, mas sentados em
sofás um pouquinho mais afastados. Os sete estavam num conjunto de
sofás mais próximos à mesa de docinhos e ursinhos. Pelo menos eu e
Boofeng podíamos sussurrar um com o outro sobre outros assuntos,
enquanto Mendeth estava cercado de garotinhas vestidas de rosa que não

310
Guerra das Cores Perdidas

paravam de tagarelar.
– O que veio à minha mente é que eu nunca escutei que Mustse tivesse
irmãos – prosseguiu Lilipaw – já li a biografia dele. Ele afirma ser filho
único. Então como você poderia ser o primo de Kiwala?
– Ele é meu primo de segundo grau – explicou Kiwala, muito
naturalmente.
– Então ele é um parente distante – observou Zeikei, a amiga de cabelos
metade marrons, metade loiros, presos em duas chiquinhas – você
poderia usá–lo para experiências de magia sexual. Ele está na sua casa de
favor, então ele pode retribuir sendo útil.
– Já fiz isso, mas foi péssimo – confessou Kiwala – ele só ficava me
encarando com uma expressão de leite azedo. Estraga totalmente o
clima.
– Nesses casos que se aplica tortura – comentou Zeikei – você pode
eletrocutá–lo ou golpeá–lo na cabeça com uma marreta. Se você não o
está usando, tenho interesse em alugá–lo.
– Claro, podemos negociar o preço – falou Kiwala – minha mesada foi
cortada por tempo indeterminado, como sabem. Se o pagamento for em
dinheiro será muito útil.
Antes de elas irem embora ocorreu o batismo da boneca de Lilipaw,
batizada de Lilipipa. Todas elas deram um beijo na boneca para
comemorar. Boofeng aceitou ser o padrinho, já que Mendeth negou–se.
Quando elas foram embora, houve uma briga feia entre Mendeth e
Kiwala.
– Você está achando que é minha cafetina? – perguntou Mendeth – O
que foi aquela atitude desrespeitosa de suas amigas? Elas estavam
falando de mim como se eu fosse um objeto, um pedaço de lixo.
– Você as trata assim também. Nenhuma delas gosta de você.
– É óbvio que elas não gostam. Você tem as jogado contra mim desde
sempre.
– Sua atitude não ajuda – observou Kiwala – você queria expulsá–las do
castelo assim que chegaram e xingou a minha amiga de cabeça–de–
vento.
– Fui extremamente educado, considerando as circunstâncias. Para mim
hoje foi a gota d'água. A partir de amanhã não mais irei frequentar aquela
escola cheia de ignorantes. Não irei treiná–la em magia negra tampouco.

311
Juliana Duarte

Se vire. Boofeng, eu vou embora com você para qualquer lugar que você
for. Vamos nos mandar daqui. Achei que a sua companhia era ruim, mas
isso foi antes de conhecer Kiwala.
– Eu não acredito que por causa do seu egoísmo você vai levar o tio Boo
embora também – queixou–se Kiwala – retire–se sozinho se quiser, não
envolva os outros.
– Kiwala, agora que Mustse mencionou, me dei conta que eu já fiquei
tempo demais – observou Boofeng – bem além do que eu pretendia.
Preciso retornar ao Mundo Octarino para retomar meus retiros. Mas
antes de ir lá podemos dar uma passada rápida no Mundo Branco para
conversar com Knossa.
– Feito – falou Mendeth – partiremos amanhã, então.
– Se é assim, quero ir junto – decidiu Kiwala.
– Você não pode – falei – e a escola?
– Faltam só duas semanas para as férias – explicou Kiwala – e já fiz as
provas finais. Não vai fazer mal eu faltar só nesses dias, já que raramente
falto.
Acabei concordando. Dessa forma eu poderia ir junto. Seria uma grande
oportunidade conhecer outros mundos.
Kiwala começou a arrumar sua mala alegremente. No entanto, Boofeng
avisou:
– Não leve muita coisa. É difícil transportar muita bagagem na evocação
entre mundos.
Kiwala telefonou para as amigas para contar as novidades. Ela fechou a
porta do quarto, mas entreouvi algumas coisas. Ela se exibia, dizendo
que iria conhecer dois fantásticos mundos lindos e que compraria
lembrancinhas de lá para todas as amigas.
– Não viajaremos para turismo – expliquei a ela – e sim para um
treinamento sério de magia. No Mundo Branco iremos conhecer uma
grande mestra. Você conhecerá a terra natal de sua mãe e talvez sua
família materna. E Boofeng poderá nos introduzir completamente ao
Mundo Octarino, já que ele conhece tudo lá. Todos os amigos dele são
magos, então acredito que iremos aprender muito.
A evocação foi realizada logo de manhã cedo. Abriu–se um enorme
portal. Kiwala ficou maravilhada, pois pouco recordava de sua viagem ao
Mundo Negro.

312
Guerra das Cores Perdidas

E, em poucos segundos, já estávamos num universo completamente


novo.

313
Juliana Duarte

Priela Knossa

O Mundo Branco era deslumbrante.


Quando olhei para o céu, deparei–me com uma cor azul clara brilhante,
misturada com um amarelo muito vivo. Algumas estrelas pulsavam,
formando desenhos misteriosos.
Ao redor, estavam as famosas árvores de folhas vermelhas e verdes. Era
época de outono. Montes de folhas acumulavam–se na terra, formando
caminhos. Ao ver aquilo recordei–me imediatamente de Clarver. Fiquei
feliz ao poder ver o mundo dela pelo menos uma vez.
Todas as construções imponentes ao redor tinham a cor branca. As
calçadas também eram embranquecidas. Somente os templos e igrejas
eram construídos em outras cores: os templos eram dourados e eram lá
que ficavam os monges; as igrejas eram prateadas, nas quais os leigos
poderiam obter ensinamentos dos sábios.
Estávamos perto de um majestoso templo, construído integralmente em
ouro, com estátuas gigantes de anjos tocando trombetas. A escadaria
decorada com um tapete branco e prata praticamente convidava–nos a
entrar.
– É esse o caminho – indicou Boofeng – a escadaria nos levará a
Knossa.
Boofeng agradeceu educadamente aos amigos que tinham lhe auxiliado a
realizar aquela viagem. O habitante que o ajudou sorriu com alegria. Os
dois falavam uma língua diferente; obviamente a língua local daquele
mundo. Kiwala amava línguas e prestou bastante atenção no que diziam.
Enquanto subíamos a enorme escadaria, avistamos alguns monges de
manto branco passando. Era como Boofeng me contou: havia os seres
de asas douradas, prateadas e brancas, de diferentes tamanhos. Aquela
atmosfera de paz era contagiante.
Por que eu ficara tanto tempo no Mundo Negro, que era um mundo que
ensinava uma magia de sacrifícios, demônios e sangue, se havia um
paraíso real no universo?
Nas ruas as crianças andavam de mãos dadas, sorrindo e dançando. Suas
asinhas balançavam freneticamente. Era mágico ver tantas crianças. No

314
Guerra das Cores Perdidas

Mundo Negro as pessoas praticamente as escondiam, como se fosse algo


vergonhoso.
No Mundo Negro você precisava ser mais velho para ser respeitado. Por
isso Mendeth tinha tanta pressa em envelhecer logo. Ele chegou a
mencionar que dessa vez tomaria o elixir com 40 anos em vez de 30,
para obter mais respeito ainda. Se tomasse com 50, 60 ou mais que isso
poderia ser afetado por alguns problemas da idade, sentir dores
incômodas, e somente por isso ele não tinha intenção de envelhecer
tanto assim. Se não fosse isso, acho que por ele Mendeth escolheria uma
aparência de uns 100 anos, para ser visto como um ancião sábio,
experiente e maduro.
As criancinhas pararam numa banquinha para pegar balões e doces. O
dono deu tudo a eles alegremente.
– Elas não vão pagar? – perguntei para Boofeng, com curiosidade.
Ele olhou na direção que apontei e viu as crianças.
– No Mundo Branco não existe dinheiro. Tudo é de todos. Os habitantes
são generosos e adoram dar presentes. Há comida, diversão e conforto
suficiente para todo mundo.
– Então se eu for ao shopping poderei comprar dezenas de vestidos? –
perguntou Kiwala, maravilhada – Posso comprar móveis de ouro e viver
numa mansão de cristal?
– Por que você quer dezenas de vestidos? – perguntou Boofeng.
– Para usar um vestido diferente a cada dia – respondeu Kiwala, como se
aquilo fosse óbvio.
– Aqui a maioria não liga muito para isso. Os habitantes são simples,
usam apenas mantos brancos. Você pode ter uns mantos extras em casa
para quando for lavar ou se rasgar. Se precisar de um novo, basta ir à loja
e pegar.
– No Mundo Negro eu seria chamada de suja e pobre se usasse a mesma
roupa – observou Kiwala – e as meninas notam quando você usa a
mesma roupa dois dias seguidos e ficam cochichando.
– Aqui o pessoal não está muito preocupado em se exibir, fazer desfile
de beleza ou falar mal dos outros – explicou Boofeng – todos apenas
desejam viver em harmonia, orar para Deus para agradecer a vida
maravilhosa que possuem e desfrutar com simplicidade o belo mundo
em que vivem. Por isso as casas também são simples, eles não desejam

315
Juliana Duarte

ter móveis de ouro. O ouro é usado para os templos e representa a


grandiosidade de Deus.
– Que mundo sem graça – reclamou Kiwala – eu odiaria viver aqui.
– Espere, Boofeng, você está sendo contraditório – lembrei – uma vez
você me contou que falou com os parentes de Kiwala para ela viver aqui
e eles foram intolerantes e se negaram a cuidar dela. Essa atitude não
tem muito a ver com o que você acabou de me contar.
– Acho que nesse único ponto os habitantes do Mundo Branco ainda
têm muito que melhorar – reconheceu Boofeng – assim como os
habitantes dos outros mundos também. Particularmente no Mundo
Negro e no Mundo Branco existe essa xenofobia. No Mundo Negro os
habitantes do Mundo Branco são vistos com ódio. Já aconteceu um caso
em que uma maga branca foi evocada no Mundo Negro e cidadãos
comuns a encontraram, viram as asas e a apedrejaram até a morte. Então
se os cidadãos do Mundo Negro fazem isso, imagine o que os magos
fariam a eles.
Entendi um pouco mais a atitude de Mustse em relação a Clarver. E
talvez ele sempre a mantivesse escondida para evitar que as pessoas de
fora a vissem ou uma tragédia poderia acontecer. Já no meu caso não era
tão grave, já que eu viera do Mundo Verde, embora eu sofresse alguma
discriminação de vez em quando.
– No caso do Mundo Branco, eles recebem com alegria pessoas de
outros mundos, com exceção de habitantes do Mundo Negro.
Certamente eles não matariam se vissem um habitante de lá, mas talvez
não sorrissem para você, como sorriem para todos os outros. Isso
porque para eles magos negros são assassinos, que torturam pessoas e
animais. Seria meio duro sorrir para um assassino. E se um habitante do
Mundo Negro entra para a ordem monástica, sofre ainda mais a
discriminação. Mustse sabe disso, pois já viemos ao Mundo Branco em
outras ocasiões para conversar com os eclesiásticos e participar de alguns
retiros.
Terminamos de subir a longa escadaria. Caminhamos pelos corredores
do templo. Teríamos a oportunidade de conferir por nós mesmos a
reação dos monges quando nos vissem. Afinal, Mendeth era um
habitante do Mundo Negro e Kiwala também tinha sangue negro.
A maioria dos monges sorria para nós. Até ali estava tudo bem. Eles

316
Guerra das Cores Perdidas

deviam ter visto claramente os chifres de Mendeth e de Kiwala;


principalmente os de Kiwala, que eram seis chifres enormes de diferentes
formatos, que se destacavam. Eles cumprimentavam Boofeng com
alegria, que era o “líder” do nosso grupo, já que conhecia a língua local.
Mendeth, possuindo o conhecimento de Mustse, também tinha
familiaridade com a língua, mas todos concordaram que seria muito mais
prudente Boofeng introduzir–nos.
Senti vontade de aprender mais sobre magia branca: purificar meu
coração, livrar–me da inveja, do ódio, do egoísmo e de tudo que havia de
mal em mim. E, finalmente, sentir–me livre. Sorrir naquele mundo de
amor, em que os corações eram puros.
Talvez eu pedisse para entrar na ordem e ficasse por lá...
Não. Eu não podia. Eu havia assumido uma responsabilidade. Precisava
cuidar de Kiwala. Por outro lado, o pai dela havia retornado. Talvez
Mendeth pudesse fazer o serviço. Mesmo com corpo de criança, ele
tinha a mente de Mustse. Sinceramente, isso era o que mais me
preocupava. E se ele maltratasse Kiwala? E se ele acabasse por torturá–la
e matá–la? Kiwala não era nenhuma santa, mas, pela memória de Clarver,
eu desejava protegê–la. Clarver no fundo desejava que a filha estudasse
magia branca. Eu esperava que Kiwala pudesse ser tocada por aquela
atmosfera contagiante. Mas ela abandonaria tudo aquilo por vestidos...
Chegamos à sala central do templo. De lá era possível seguir por um
corredor que levaria aos aposentos das monjas. Uma moça com sorriso
gentil falou alguma coisa para Boofeng. Ele traduziu para nós. A moça
havia dito que somente as mulheres poderiam avançar para as demais
salas.
Boofeng informou a ela que a razão de nossa presença não era realizar
um tour pelo templo e sim falar com a monja Knossa. A moça informou
que ela se encontrava no dormitório feminino do mosteiro e que iria
chamá–la. Ela nos levou até uma sala reservada para que aguardássemos.
Sentamos em cadeiras simples ao redor de uma mesa circular baixa.
Tudo ao redor era branco. Havia símbolos estranhos, em outras línguas
que eu nunca vira na vida. Enquanto aguardávamos, Boofeng traduzia
para nós o que cada símbolo significava.
Embora as salas fossem simples, tudo era muito limpo e perfumado. O
clima lá dentro era sempre agradável e dava para ficar à vontade.

317
Juliana Duarte

Finalmente, a famosa Knossa entrou no recinto. Eu me surpreendi muito


com o que vi.
A primeira coisa que me chamou a atenção, de longe, foram as asas:
eram enormes! Quando abertas, cada asa aparentava medir pelo menos
uns três metros. E elas tinham as três cores ao mesmo tempo! Tinham
penas brancas, prateadas e douradas alternadas. As asas reluziam.
No topo da cabeça dela, flutuando, havia uma imponente auréola. Uma
vez Boofeng me disse que certos habitantes raros do Mundo Branco
nasciam com auréolas, o que era o caso daquela monja. A auréola dela
era dourada e brilhante.
Aquela moça era belíssima! Uma das mulheres mais lindas que eu já
havia visto na vida.
O rosto dela era meio quadrado, muito adulto. Não tinha nada a ver com
o rosto meigo, doce e inocente de Clarver. Clarver tinha rosto de
criancinha. Aquela monja possuía face de mulher madura, mais velha.
Ela aparentava ter entre 30 e 40 anos.
O nariz dela era reto, levemente grande, mas que se harmonizava com o
resto do rosto. Sobrancelhas e lábios grossos, olhos grandes. Queixo
saliente e em suas bochechas formavam covinhas quando ela sorria.
Ela era bastante sensual. Vestia o manto cerimonial, que era bem
comportado. No entanto, era possível perceber alguns traços de seu
corpo. Ela tinha quadris largos e busto grande. Pés e mãos compridos.
Ela era muito alta. Devia ter mais ou menos 1,90. Não era magra; havia
carne belamente delineada em seu corpo, o que a tornava ainda mais
linda.
Ela não usava maquiagem ou qualquer tipo de enfeite além do manto;
afinal, ela era uma monja. Mas ela nem precisava, pois tinha uma beleza
natural.
Os cabelos dela eram muito longos; passavam–lhe a cintura. Eram
completamente encaracolados e muito cheios. Seu cabelo tinha cachos de
três cores diferentes, assim como as asas: cachos dourados, prateados e
brancos.
O olhar dela era sério e sedutor; olhos cor de vinho, estonteantes.
Acreditei que qualquer homem que fitasse aqueles olhos se apaixonaria
perdidamente por ela. Curiosamente, ela era membro de uma ordem
monástica que possivelmente exigia voto de castidade.

318
Guerra das Cores Perdidas

Mas eu não pude presenciar qual seria a reação de um homem ao fitá–la


pela primeira vez, já que tanto Boofeng quanto Mendeth já a conheciam.
Mas Kiwala ficou boquiaberta quando viu a monja entrar e não
conseguia tirar os olhos dela.
Ela fechou as asas, que diminuíram consideravelmente de tamanho. Mas
o mais surpreendente veio a seguir: ela falou conosco utilizando a língua
do Mundo Negro! Numa voz grave, bonita.
– Sejam bem–vindos, viajantes de terras distantes. Fui previamente
informada sobre suas vindas. Já sei quem são e o que buscam. Também
estou ciente de que a língua negra é a ideal para a nossa comunicação, já
que ela é conhecida por todos aqui presentes. Agradeço pela gentil visita
e peço que fiquem à vontade. Se precisarem de alguma coisa, não
hesitem em me pedir ou mesmo solicitar o desejo a uma de nossas irmãs.
– Muito obrigado, irmã Knossa – agradeceu Boofeng – apreciamos a sua
hospitalidade e posso garantir que estamos à vontade.
– Fico feliz em saber disso – ela sorriu – irei sentar–me junto a vocês.
Ela sentou–se numa das cadeiras. Fitava cada um de nós com interesse.
– Fui informada de que o senhor Mendeth é a reencarnação do irmão
Mustse. A que posso lhe ser útil?
– Busco um elixir que me faça envelhecer 30 anos – informou Mendeth
– e eu apreciaria se tal elixir fizesse efeito em no máximo poucas horas.
– Poderia me contar a razão de um pedido tão inusitado? – perguntou
Knossa, com curiosidade.
– Isso não é da sua conta. Apenas dê–me o elixir. Irei embora depois
disso e não mais a perturbarei.
Como ele tinha coragem de falar daquele jeito com aquela monja tão
magnífica, gentil e pura? Eu não me atreveria sequer a elevar levemente
meu tom de voz diante dela.
Até onde eu sabia, Knossa, Boofeng e Mustse eram conhecidos de longa
data. Foi com o auxílio dela que os dois tinham se tornado imortais.
Knossa não se sentiu ofendida pelas palavras de Mustse. Ela já devia
estar acostumada a lidar com ele. Apenas levantou as sobrancelhas.
– Muito bem. Irei verificar com as irmãs superiores. Peço que aguardem.
Logo estarei de volta.
A monja levantou–se e saiu pela porta novamente.
Pelo jeito, todos iriam permanecer em silêncio até que ela retornasse. Por

319
Juliana Duarte

isso eu resolvi fazer uma pergunta aleatória:


– Ela consegue voar com aquelas asas?
– Claro – falou Boofeng – muitos magos brancos são capazes de voar.
Mas é necessário passar por um longo treinamento espiritual para isso.
– Então eu também poderia voar? – perguntou Kiwala, maravilhada –
Eu não sabia disso!
– O Mundo Branco é o único local em que você poderá receber
treinamento espiritual para voar, com esse tipo de asas que tem –
explicou Boofeng – portanto, a única maneira de você voar um dia será
iniciar–se no caminho branco.
Eu achei que Kiwala iria praguejar e cruzar os braços com raiva. Mas ela
não fez isso. Seus olhos estavam brilhando, diante da incrível
possibilidade.
Quinze minutos depois, Knossa estava de volta.
– Por favor, senhor Mendeth, queira me acompanhar. Irei levá–lo para
uma sala diferente na qual você deverá beber todo o conteúdo do elixir.
Permanecerá sozinho na sala para ter privacidade, mas pode nos chamar
para qualquer coisa que precisar. Deixamos um manto masculino para
adultos, já que as suas roupas atuais não mais lhe servirão após o
processo estar completo. O procedimento inteiro levará três horas.
Senhores, peço que aguardem enquanto o guio até a sala.
Mendeth levantou–se e acompanhou–a. Ambos saíram. Aquela seria a
última vez que eu veria o menino Mendeth. Quando ele retornasse, seria
um adulto.
E lá estava Knossa, dez minutos depois. Ela reuniu–se a nós novamente,
sentando–se à mesa.
– Gostariam de fazer alguma coisa diferente nessas três horas? –
perguntou ela – Talvez passear pela cidade ou ir ao centro de
entretenimentos? Nosso mundo oferece algumas opções bem
interessantes para os viajantes.
Nós três nos entreolhamos. Eu particularmente não tinha nenhuma
preferência.
– Acho que estamos bem aqui, obrigado – respondeu Boofeng –
podemos aguardar as três horas aqui mesmo nessa sala. Se você tiver
algum compromisso, ficaremos bem sozinhos.
– Posso ficar mais algum tempo, se não se importarem.

320
Guerra das Cores Perdidas

– Nós adoraríamos – falou Boofeng.


– Então... vocês três são amigos de longa data, certo? – tomei coragem
para perguntar – Mas curiosamente vocês utilizam um tom bem formal
para a conversa. Não parece um reencontro de velhos conhecidos.
Desculpe se fui rude.
Eu estava meio arrependida do que disse. Não tinha intenção de ofendê–
la. Aquela monja me parecia a pessoa mais boazinha do mundo e eu não
queria que ela ficasse chateada com algo que eu dissesse.
Ela me fitou com atenção. Senti–me um pouco embaraçada diante do
olhar dela.
– Sinto muito! – ela tinha um leve tom de tristeza – Não imaginava que
minha maneira de falar os estava constrangendo. Desculpem, faço isso o
tempo todo. A ordem requisita essa formalidade. Tentarei ser mais
informal daqui em diante se isso os fizer sentir mais confortáveis.
– Imagine – Boofeng apressou–se em dizer – não estamos incomodados,
você pode utilizar a maneira de falar que a faz sentir mais à vontade. Não
precisa se adequar a nós.
– Posso ser informal sem problemas – esclareceu a monja – Então,
Boofeng, o que sentiu ao retornar ao nosso mundo? Saudades?
Nostalgia?
– Com certeza – falou Boofeng – fazia muito tempo que eu não vinha ao
Mundo Branco. Ele parece mais magnífico a cada vez que o visito.
Knossa riu com o comentário. Como era encantador o sorriso dela! Era
um sorriso grande, que preenchia todo o seu rosto.
– O nosso mundo está como sempre foi: simples, pacífico e
aconchegante. O único que é realmente magnífico é Deus. Mas
considerando cada pequenina parte do mundo como criação de Deus,
então essa terra é sim magnífica.
– Eu não acredito em Deus – comentou Kiwala, de má vontade.
Achei que a má educação de Kiwala em dizer aquilo foi uma atitude
infeliz. Tudo bem que Kiwala tivesse sua opinião, mas ela poderia
guardar para si num momento em que a monja expressava toda a sua
alegria ao falar disso.
Mas a resposta dela foi ainda mais incrível.
– Bem, o mais importante não é se Deus existe ou não – comentou
Knossa – o que importa é que há a bondade e o amor.

321
Juliana Duarte

– Não quero essas coisas – retrucou Kiwala, em tom de desafio – eu só


desejo dinheiro, fama, beleza e poder. Principalmente poder.
– Já obteve o que procura? – perguntou Knossa, com curiosidade.
– Sim. Minha família é rica, sou famosa entre os jovens magos do meu
mundo, sou considerada por eles como muito bonita e já obtive a
evocação de um demônio de alto grau. Mas quero mais.
– Você é feliz com aquilo que já conquistou? – indagou Knossa.
– Sou, mas sei que sempre poderei ter mais. Parece que nunca serei
completamente feliz enquanto não atingir meu máximo. Mas acho que
quando eu chegar a esse ponto ficarei entediada, como meu pai.
– No meu mundo queremos apenas nos purificar, pois através dessa
purificação podemos espalhar bondade e amor pelo universo – explicou
Knossa – e aqueles que receberem nossos sentimentos irão contagiar
mais pessoas com amor e bondade. É como uma linda teia de paz que
vai se multiplicando e ramificando para todos os lados.
– Então vocês se tornam bons... e o que acontece depois? – perguntou
Kiwala – Não há nada para fazer aqui, não deve ter shows de música
destruidora, álcool, diversões loucas e perigosas. Ser bom deve ser um
tédio. Quero diversões que façam meu coração acelerar, como realizar
um sacrifício, evocar um demônio, amaldiçoar os outros e ter a vida por
um fio.
– Muitas vezes, apenas sorrir para outra pessoa e receber um sorriso
sincero como resposta já faz meu coração se aquecer e acelerar, num
misto de êxtase, paz e completude – disse Knossa.
– Eu ouvi falar que alguns habitantes desse mundo não sorriem para
nativos do Mundo Negro – comentou Kiwala – como pode haver amor
com preconceito?
– Infelizmente há os que assim procedem – falou Knossa – nós não
somos perfeitos. Perfeito é só Deus. Mas damos o nosso melhor, com fé
e confiança no poder da sinceridade, nessa busca de fazer tudo o que
está ao nosso alcance. No passado houve guerras, muitos de nós
morreram. Muita gente entregou a própria vida sem lutar, por não querer
ferir outros seres vivos. Outros optaram por batalhar com o auxílio do
anjo. Não sabíamos se Deus desejava que morrêssemos sem lutar ou que
nos salvássemos com seus anjos. Nem sempre temos a sabedoria para
enxergar o que Deus espera de nós. Se soubéssemos, todo o nosso povo

322
Guerra das Cores Perdidas

teria se unido numa ação única com a certeza de seguir o caminho certo.
– Acredito que as pessoas também se dividam em relação aos habitantes
do Mundo Negro – comentou Boofeng – alguns aqui devem achar que
estão fazendo o bem ao não sorrir para alguém que eles consideram um
assassino, pois eles acreditam que Deus não deseja que eles ajudem ou se
envolvam com pessoas que realizam atos que eles consideram errados. Já
outras pessoas sorriem para todos por simplesmente acharem que todos
merecem sorrisos, sem serem julgados. Que mesmo as pessoas ruins
possuem alguma bondade em seus corações.
– Exatamente, Boofeng! – Knossa sorriu, com entusiasmo – Achei lindo
o que você falou!
– Obrigado – Boofeng riu – eu me esforço, mas não sou tão bom nisso
quanto você.
Knossa sorria e se alegrava com pequenas coisas. Acho que Kiwala se
convenceu e não teve mais nenhum argumento para rebater a filosofia
do Mundo Branco.
– Você tem sorte, pois já é naturalmente bonita – observou Kiwala – no
meu caso, preciso me esforçar e me enfeitar para isso. Se eu vivesse num
mosteiro e usasse apenas um manto, sem maquiagem, sem arrumar o
cabelo, eu ficaria com uma aparência comum e sem graça.
– Acho que você é uma menina adorável – sorriu Knossa.
– Mas não basta ser adorável – comentou Kiwala – você é uma musa.
Meu pai e o tio Boo praticamente a devoram com os olhos quando te
olham. Acredito que você esteja ciente disso.
– Kiwala, isso foi... – começou Boofeng.
– Isso foi a verdade – interrompeu Kiwala – quando me ofereci para o
tio Boo, ele não quis e me empurrou. Se você se oferecesse para ele,
senhora monja, eu tenho certeza de que o tio Boo te possuiria aqui
mesmo.
– Kiwala, você tem doze anos! – explicou Boofeng – Eu não podia fazer
aquilo. Não achei certo. Eu não me neguei por achar você feia ou
qualquer coisa assim. Foi por respeito a você.
– Então você tem preconceito com a minha idade – falou Kiwala – por
ser criança ainda não tenho um corpo sensual, então você não gosta.
Não sente atração sexual.
– Você não entendeu – Boofeng tentou explicar de novo – eu não disse

323
Juliana Duarte

que não sinto atração por você. Bom, eu também não posso dizer que
sinto... Knossa, salve–me, por favor! Estou numa situação difícil.
– Hã... Kiwala – começou Knossa, também pensando em como
explicaria – o seu tio acredita que se tivesse aceitado a sua proposta, ele
sentiria como se estivesse se aproveitando de você. Da sua confusão e
desejo por afeto naquele momento. Ele sabe que crianças na sua idade
estão apenas começando a descobrir a paixão e algumas vezes a
confundem com outros sentimentos. E é bastante provável que você
tenha confundido o grande amor e afeto que sente por Boofeng com
paixão.
– Você é sábia, senhora monja – falou Kiwala – quando eu fizer 18 anos
vou me declarar de novo para o tio Boo e ele não terá nenhuma desculpa
para me rejeitar, pois já terei um corpo de mulher e serei maior de idade.
Eu entenderia Boofeng se ele rejeitasse Kiwala quando ela fizesse 18
anos. Afinal, Boofeng a via como a sobrinha querida, com quem ele
brincava e para quem ele trazia presentes desde que ela era pequena.
Acho que para ele era difícil juntar isso com desejo sexual.
Como ninguém fez nenhum comentário, Kiwala continuou a falar:
– Monja, você é belíssima, inteligente e deve ser extremamente poderosa
e famosa no Mundo Branco e na ordem. Para você que já tem tudo isso,
é muito fácil desejar somente o amor... além disso, você é simpática,
agradável, educada e parece não ter nenhum defeito. Entendo porque
você é feliz. Não é por causa do amor.
– Eu já vivi mais de 400 anos – respondeu Knossa – e jamais saí do
Mundo Branco, por toda a minha vida. Nasci aqui e pretendo morrer
aqui. Apesar de eu não envelhecer, sei que chegará um momento em que
a minha vida deverá acabar, pois todas as coisas possuem um fim. Já
passei por várias experiências. Mesmo aqui no meu mundo, somos
apenas humanos cheios de falhas. Então posso te garantir que minha
vida nunca foi um mar de rosas. Foi extremamente difícil tentar ser boa
para receber a bênção de Deus. Eu tive que lidar com muitas partes
minhas que eu tinha dificuldade de me libertar. Boofeng sabe como eu
era no passado.
– É verdade – confirmou Boofeng – quando eu e Mustse conhecemos
Knossa nós dois tínhamos 22 anos e ela tinha 26. Éramos mortais. Até
então Mustse havia se dedicado à magia negra e eu praticava magia

324
Guerra das Cores Perdidas

octarina. Ensinamos o que sabíamos um para o outro, mas como nós


fomos criados na linha de magia de nossos mundos, nossas opiniões
eram tendenciosas. Knossa nos evocou por acidente, ao tentar chamar os
demônios do Mundo Negro. Ela já era monja da ordem nessa época e o
que ela nos contou despertou muito nosso interesse na linha branca. Ela
nos treinou por um tempo e... não sei se tenho sua permissão para
contar os detalhes, Knossa.
– Tudo bem – falou Knossa – afinal, isso é passado.
– Vocês dois transaram com ela – falou Kiwala, sem rodeios.
– Eu não pretendia dizer nesses termos – explicou Boofeng – mas
devido ao nosso envolvimento com ela, Knossa foi expulsa da ordem.
Nós dois nos sentimos muito culpados por ter estragado a promissora
carreira mágica dela. Ela ficou furiosa conosco e eu e Mustse brigamos
muito um com o outro também. Depois nós três passamos a morar sob
o mesmo teto numa cidade do Mundo Branco. Nós ensinamos nossas
línguas e linhas da magia para Knossa. Ficamos tão amigos que
desejamos a eternidade, assim poderíamos continuar nossas experiências
malucas de magia para sempre. E foi com essa intenção que conduzimos
um experimento louco em que combinamos as três linhas da magia com
alquimia para descobrir poções que faziam muitas coisas; uma delas, em
especial, nos garantia a imortalidade. Levamos onze anos para
desenvolver essa poção. Eu e Mustse bebemos aos 33 anos e Knossa aos
37. Mas depois disso, iniciou–se um período complicado. Começamos a
fazer coisas erradas. E nos sentimos mal com isso, tivemos as piores
brigas das nossas vidas e por fim decidimos que seria melhor nos
separarmos. Então cada um voltou ao seu mundo e achou seu caminho
exatamente onde ele sempre esteve: no lar doce lar.
Curiosamente, mesmo depois de aprender diversos tipos de magia, cada
um deles no final optou pela linha de magia de sua terra natal. Eu
também gostaria de ter uma história mágica assim, mas eu não conseguia
me enxergar voltando para o Mundo Verde. A magia verde já me parecia
sem graça perto das outras misteriosas e fantásticas cores das quais eu
tanto ouvia falar.
– Fazer coisas erradas significa vocês três fazendo sexo ao mesmo
tempo? – perguntou Kiwala – Por que os adultos enrolam tanto para
falar as coisas? Nós jovens costumamos ser bem diretos. Talvez até

325
Juliana Duarte

demais.
– Então tente não ser tão direta a partir de agora para não nos
constranger, Kiwala – brincou Boofeng – para mim é difícil falar desses
assuntos na sua frente, já que você é criança. Algumas vezes eu esqueço
que as novas gerações já estão bem avançadas. Viver 400 anos é um
problema porque você vive tempo demais para fazer muitas besteiras e
também para jamais esquecer as besteiras que seus outros amigos de 400
anos fizeram.
Aquela história era bem impressionante. Ao olhar para Knossa eu jamais
imaginaria nada daquilo. Ela aparentava ter sido uma monja pura e
bondosa a vida inteira, como se tivesse nascido perfeita e fosse
eternamente perfeita. Eu não a imaginava vivendo numa casa com dois
homens, evocando anjos, demônios e servidores em meio a perversões
sexuais.
Os três juntos deviam resultar numa mistura de extraordinária
inteligência e poder para gerar o elixir da longa vida. Uma visão estranha
e divertida surgiu em minha mente: Knossa com um chapéu de bruxa
enorme – com sua auréola a enfeitá–lo – mexendo uma poção verde e
borbulhante num enorme caldeirão enquanto os jovens Mustse e
Boofeng alcançavam a ela todo tipo de ingrediente nojento.
Minhas visões foram interrompidas quando Mendeth entrou na sala. Ele
estava completamente mudado.
Ele vestia um manto branco. Estava bem alto; mais alto do que Mustse
foi, mas não tão alto quanto Knossa. Tinha a mesma pele levemente
morena, os cabelos cinzentos desarrumados e os misteriosos olhos
cinzentos, meio puxados para o negro ou azul escuro. O rosto dele
estava muito adulto. Havia algo de sensual naquela maturidade. Com
certeza ele estava muito melhor do que o Mendeth de onze anos, que era
apenas um menino magrelo e desengonçado.
Os três chifres dele estavam enormes e imponentes.
– Uau – comentou Kiwala – você está sexy, pai.
– Silêncio – requisitou Mendeth – um dia eu vou te ensinar a ter respeito.
Eu vou te bater tanto que você irá fazer uma reverência e se ajoelhar a
cada vez que me vir. E irá se dirigir a mim somente por “senhor”.
Certamente Kiwala teria mais respeito por um pai de 41 anos do que por
um de 11.

326
Guerra das Cores Perdidas

– Você também bebeu o elixir da longa vida? – perguntei a ele.


– Ainda não – respondeu Mendeth – estava pensando em convidá–la
para bebermos juntos, Wain. Você aceita?
Fui pega de surpresa com a pergunta. Eu já estava com 30 anos. Era uma
boa proposta e ele me perguntou em tom gentil e cavalheiro.
– Claro, por que não? – foi minha resposta.
– Receberemos sua permissão, Knossa? – perguntou Mendeth.
– Claro. Por favor, acompanhem–me.
Fomos levados até a mesma sala em que Mendeth passou pelas três
horas do processo de envelhecimento. Percebi isso porque as roupas
antigas dele estavam dobradas numa das cadeiras.
Knossa abriu uma espécie de cofre, com uma chave. Pegou uma das
garrafas, na qual havia um líquido vermelho–sangue. Serviu em duas
taças e entregou–nos.
– Vocês devem beber todo o conteúdo de uma vez – explicou Knossa –
o mais rápido que conseguirem. Depois disso, vocês irão sentir alguma
ardência no estômago, mal estar e queimação pela próxima meia hora.
Não vomitem. Depois disso, tudo voltará ao normal e faremos o teste da
imortalidade para confirmar se o efeito foi perfeito.
Era só isso? Que fácil.
No entanto, ao segurar aquela taça percebi que não seria tão fácil assim.
Minha mão começou a tremer. No minuto derradeiro passei pela maior
dúvida da minha vida.
A única coisa que me encorajou a beber foi quando vi Mendeth erguer a
taça com confiança e esvaziá–la em poucos segundos. Inspirada, reuni
coragem e bebi.
O gosto era terrível. Parecia morango misturado com sangue, vômito...
que mistura louca era aquela? Ou talvez eu estivesse imaginando coisas.
Não devia ter nada daquilo ali dentro. Mas eu entendi o aviso de não
vomitar.
Enfrentei um enjoo e dor de estômago terrível. Agonizei durante a meia
hora, parecia que não ia terminar nunca.
Até que de repente... tudo parou. Exatamente 32 minutos depois.
Mendeth também já não sentia nada.
Estava na hora do teste da imortalidade. Eu torcia para que não fossem
tentar me matar para confirmar. Eu e Mendeth deitamos cada um numa

327
Juliana Duarte

cama. Knossa nos encheu de fios e monitorou nosso estado físico por
um aparelho.
– Isso vai doer um pouco, mas aguentem firme.
Ela começou a nos aplicar uma compressa enrolada numa espécie de
aparelho eletrônico que alternava de muito gelado para muito quente.
Outras vezes eram apenas pequenos choques elétricos.
Senti uma enorme pressão na minha cabeça e no peito. Ela devia estar
tentando coisas estranhas como parar nosso cérebro ou nosso coração.
Algumas vezes doía muito. Eu estava ficando nervosa. Tive medo de
morrer.
Os testes continuaram por um tempo considerável. O mais horrível de
tudo foi meu medo de morrer de repente, de ter um colapso. Até que
Knossa retirou os aparelhos e anunciou:
– Está tudo certo. Vocês são imortais a partir de agora. Ficarão
eternamente com a idade que tinham hoje. Não envelhecerão nem
mesmo um dia, mesmo que se passem mil anos ou 100 mil anos. Vocês
sobreviverão à maioria dos acidentes graves de natureza não mágica. Mas
há certos tipos de magia que podem matá–los, especialmente aquelas
geradas por potências, que não possuem natureza humana.
Era assustador demais para ser verdade.
Quando voltamos à sala de antes, Kiwala se pronunciou:
– Também quero envelhecer! Desejo ser imortal! Posso fazer isso? Pai?
Tia Wain? Tio Boo?
Cada um de nós disse “não”; um por vez.
– Por que vocês podem e eu não posso? – perguntou Kiwala, irritada.
– Seja paciente e espere mais alguns anos – eu disse a ela – quando
estiver com a idade apropriada, você poderá tomar o elixir da
imortalidade. Mas antes dos seus 18 eu não permito.
– Basta eu tomar agora uma bebida para que eu envelheça seis anos.
– Eu prefiro que você desfrute cada etapa do seu crescimento de forma
natural – falei.
– E por que meu pai não desfrutou?
– Porque eu já tive a paciência de passar por isso uma vez – respondeu
Mendeth – e não desejo passar pelo processo de novo.
Por fim, Kiwala se convenceu. Ela aceitou o sacrifício de esperar mais
seis anos.

328
Guerra das Cores Perdidas

– Ei, monja – chamou Kiwala – tia Knossa. Posso ficar esses seis anos
aqui no mosteiro para aprender a voar e a evocar um anjo?
– Você deseja seguir o caminho de amor da magia branca com
sinceridade? – ela perguntou.
– Olha, tia, eu só quero voar e ter um anjo – respondeu Kiwala,
simplesmente – se eu precisar de amor para conseguir isso, que seja.
– Mas e seus estudos, Kiwala? – perguntei – Você não queria tanto se
formar?
– Eu terei a eternidade para fazer isso – falou Kiwala – no momento
estou com vontade de estudar magia branca. Acho que isso é algo raro
que só ocorrerá uma vez em toda a minha eternidade, então tenho que
aproveitar.
Claro que eu não seria contra. Achei que aquilo seria super positivo para
Kiwala. O coração dela poderia se transformar totalmente naqueles seis
anos e apagar todo o seu passado negro. Clarver ficaria feliz se soubesse
que Kiwala finalmente seguiria a via branca.
Eu confiava totalmente em Knossa. Se havia alguém qualificada para ser
uma excelente instrutora, era ela. Eu não tinha medo de manter–me
longe de Kiwala enquanto ela estivesse com Knossa, pois eu sabia que
ela estaria em boas mãos.
Combinamos o seguinte: enquanto Kiwala ficaria por seis anos no
Mundo Branco, eu, Mendeth e Boofeng estudaríamos a magia octarina.
Antes até pensei em ficar no Mundo Branco, mas a possibilidade de tirar
férias de Kiwala e ter momentos agradáveis com meus dois amigos era
mais interessante.
Dali a seis anos, exatamente no dia do aniversário de 18 anos de Kiwala,
retornaríamos ao Mundo Branco para a festa. Prometemos que nesse dia
também seria travada uma batalha simbólica entre todos nós, para
demonstrarmos o que cada um de nós aprendeu durante esse período.
Em especial, eu estava ansiosíssima para testemunhar as habilidades
lendárias de Knossa, que era possivelmente a maga mais poderosa de
todos os mundos – com exceção, talvez, do Mundo Vermelho, do qual
pouco sabíamos.
Nos despedimos e desejamos boa sorte para Kiwala. Eu ia ficar com
saudades daquela pequena diabinha e eu esperava que quando eu
retornasse me deparasse com uma moça angelical. Eu não duvidava da

329
Juliana Duarte

capacidade de Knossa em transformar o coração das pessoas. Por outro


lado, pessoas não costumam mudar facilmente e Kiwala era muito
teimosa. Se ela melhorasse pelo menos um pouquinho, eu já ficaria
satisfeita. E eu sabia que Knossa poderia fazer bem mais do que “um
pouquinho”.
Dei um abraço forte em Kiwala. Depois disso, Boofeng e Kiwala deram
um abraço divertido e Boofeng levantou a pequena Kiwala no ar. Ela riu
muito.
Como Mendeth não parecia muito a fim de abraçá–la, a própria Kiwala
fez isso. Mesmo que Mendeth não tenha retribuído o abraço, ela
derramou algumas lágrimas e disse:
– Adeus. Vou sentir sua falta. Até daqui a seis anos.
Depois da despedida, nós três fomos levados até o Mundo Octarino; um
dos mundos mais fantásticos que eu jamais poderia imaginar que
existisse.

330
Guerra das Cores Perdidas

Um Mundo Louco e Colorido!

Aquilo era estonteante! Tantas cores que meu cérebro precisou se


acostumar para organizar os padrões e captar algumas delas.
O céu era como um arco–íris e brilhava tanto que meus olhos quase
doíam ao olhar para ele. As nuvens possuíam formas claras: animais,
frutas, frases... os magos octarinos deviam moldá–las o tempo todo.
Alguns conversavam através das nuvens com amigos distantes.
Assim que chegamos, Boofeng identificou uma das frases: “Bem–vindo
de volta, Boof!”. Boofeng imediatamente mudou o padrão das nuvens e
respondeu: “Obrigado, pessoal! Separem as cervejas!”
Caiu uma chuva multicolorida. Quando as gotas tocavam o solo,
estouravam em fogos de artifício.
– Coisa de Djroll – observou Boofeng, rindo – ele é o maior piadista que
o mundo já conheceu. É também meu mestre, que me iniciou na magia e
nas piadas. Por acaso Mu odeia ele.
– Evidentemente – observou Mendeth – ele é como você elevado à
décima potência.
As casinhas de lá eram muito criativas! Todas coloridas, felizes, nos
formatos mais estranhos. Algumas eram baixas e compridas como um
trem. Outras eram esguias e altíssimas, formando arranha–céus.
Aquele era o mundo da tecnologia. Os aparelhos eletrônicos estavam em
todos os lugares. Provavelmente a magia seria mais popular se não fosse
isso. Por causa da tecnologia muito avançada, que já fazia quase tudo
pelos cidadãos, a maioria tinha preguiça em se dedicar a algo tão árduo
quanto a magia.
– Aqui eles te chamam de Boof, então – observei.
– Sim – sorriu Boofeng – e só como curiosidade: chamo Mustse de Mu
por causa de Eideikel. Desde a primeira vez que a vi chamá–lo assim,
achei muito engraçado e desde então passei a dirigir–me a ele dessa
forma.
Boofeng adorava implicar. E eu imaginei que ele levaria muito tempo
para nos mostrar cada uma das belezas daquele mundo. Avistei uns
parques de diversões gigantes! Os centros comerciais pareciam os mais

331
Juliana Duarte

maravilhosos, complexos e perfeitos de todos os mundos. Eu estava com


vontade de conhecer tudo, mas Mendeth não.
– Vamos direto ao ponto – disse Mendeth – para as construções dos
magistas.
– Nós temos seis anos – observei – não vai fazer mal se usarmos
algumas horas para explorar.
Kiwala com certeza iria adorar os parques. Acabamos dando uma
passada rápida no shopping. Mendeth nos acompanhou a contragosto.
As vitrines eram praticamente um jogo de videogame ou um show de
luzes e festas. A cada lugar que eu olhava, lembrava–me de Kiwala. Era
possível que ela se encantasse ainda mais com o Mundo Octarino do que
com as tentações do Mundo Negro. Se ela realmente queria sentir o
coração acelerar, poderia fazer isso de uma maneira saudável e divertida.
Os habitantes eram os mais intrigantes. Todos eles possuíam diferentes
cores em cada parte do corpo. Dessa vez eu pude ver as divisões das
cores com maior clareza. Boofeng geralmente usava um monte de
roupas e mantos, então não dava para ver muita coisa. Mas alguns
habitantes vestiam roupas mais leves naquela estação quente. Então eu
notei que algumas vezes a cor da mão era diferente da cor do braço. Ou
que às vezes o braço inteiro possuía camadas de diferentes cores ou uma
cor só preenchida de bolinhas. Literalmente, tudo era possível! E cada
habitante possuía cores únicas, o padrão da variação das cores não era
regular.
Aqueles habitantes eram provavelmente os mais exóticos que eu já vi.
Com exceção de uma pessoa: Zermer. Ele sim provavelmente seria o ser
mais esquisito do mundo. O antigo alto sacerdote da água que possuía
pele verde azulada e transparente pela qual era possível enxergar
claramente as veias e os órgãos internos. Infelizmente aquele ser raro
havia sido assassinado pela pessoa que caminhava ao meu lado. Era
lamentável. Mas servia de consolo saber que esse mesmo assassino já
tinha recebido pena de morte.
O passeio estava meio longo e Mendeth ficou impaciente. Por isso
Boofeng resolveu nos levar logo à “área de construções apocalípticas”;
apelido dado aos templos de magia deles, que mal se pareciam com
templos. Sinceramente, lembravam circos de alta tecnologia ou qualquer
coisa assim.

332
Guerra das Cores Perdidas

Naquele mundo todas as pessoas nos recebiam com sorrisos também.


Mas diferente do Mundo Branco, em que os sorrisos emanavam uma
atmosfera de paz e amor profundos, lá os sorrisos eram de alegria,
entusiasmo, energia. Sorrisos cheios de dentes, vindos de pessoas
divertidas.
Costumava haver uma tendência comum sobre a personalidade dos
habitantes de cada mundo. No entanto, havia exceções, é claro.
No Mundo Negro, a maioria dos habitantes eram vistos como frios,
sérios, irritados, malvados e sanguinários. Quando possuíam humor, era
humor negro. Mas claro que você poderia encontrar alguns seres
bonzinhos e sorridentes, como os santos empregados de nossa casa, que
eram a gentileza em pessoa.
No Mundo Branco, a maioria era tida como seres de luz, de paz, de
bondade. Mas também se via pessoas carrancudas e conservadoras que
torciam o nariz quando viam um ser com chifres.
Já no Mundo Octarino, todos eram alegres, cheios de energia, dançavam,
pulavam, queriam festa, diversão e principalmente muitos risos. Mas
quando entrei numa das tais construções apocalípticas vi um mago
octarino com uma expressão extremamente séria, totalmente aplicado e
dedicado a pesquisas e experimentos. Era difícil imaginar um sorriso no
rosto dele.
No meu mundo, a nossa fama era de sermos muito calmos. Quase
passivos, diziam que caminhávamos com movimentos lentos, que
fazíamos cada coisa com cuidado e sem pressa, como se o relógio não
passasse. E que a nossa língua era falada em tom muito devagar, numa
entonação quase monótona. Na verdade eu nunca tinha notado isso. Só
notei quando voltei para lá de novo, após viver na velocidade do Mundo
Negro.
Mas se o Mundo Negro tinha velocidade, o Mundo Octarino era como
uma montanha–russa! A língua deles era curiosa, meio chiada. Era
divertido poder notar tudo isso.
E sobre o Mundo Vermelho? Mistério!
Quando perguntei sobre isso para Boofeng, ele disse que o Mundo
Vermelho possuía a calma do Mundo Verde, pois os magos vermelhos
eram pacientes como os magos verdes, sentando–se numa mesma
posição e meditando sem se mexer por horas a fio. Mas eles não eram

333
Juliana Duarte

bondosos como os magos brancos, não eram malvados como os magos


negros e não eram divertidos como os magos octarinos. Eles eram
praticamente neutros. Já no Mundo Verde havia certa tendência branca
para harmonia, bondade e paz, embora não fosse tão absoluta e forte
como no Mundo Branco.
Ele não soube me explicar direito, até porque as lembranças não estavam
tão claras em sua memória após 400 anos. Ele disse que só vendo para
entender. Era como se uma atmosfera mística perpassasse
frequentemente todo o Mundo Vermelho.
Minha linha de pensamento foi cortada por uma visão muito
interessante:
Tratava–se do ser mais incrivelmente colorido que eu já vi. Cada dedo da
mão dele era de uma cor diferente. Ele usava um chapéu três vezes maior
que o de Boofeng e dez vezes mais espalhafatoso. O seu manto
multicolorido, listrado e brilhante, provocava vertigens, de tão cintilante.
Os sapatos deviam ser duas vezes maiores que o pé dele.
Ele tinha o rosto dividido em quatro cores: laranja, rosa, vermelho e
marrom. Os olhos pareciam ter todas as cores possíveis; mas o direito
era mais claro e o esquerdo era mais escuro. E cada mecha de cabelo
possuía uma cor única. Os cabelos eram bem longos e lisos.
O sorriso dele ia de orelha a orelha. Quando Djroll viu Boofeng, correu
até ele. Os dois se abraçaram, rodearam e sapatearam. Djroll deu
“tapinhas” nas costas de Boofeng que quase lançou–o contra o chão. Os
dois riam muito. Djroll era mais alto e maior que Boofeng, então aquelas
demonstrações efusivas de emoção eram meio perigosas.
– Esse aqui por acaso seria a reencarnação de Mumu? – perguntou
Djroll, impressionado.
– Possivelmente – respondeu Mendeth, com uma expressão séria.
– Ah, é ele mesmo – constatou Djroll – Como tem passado, Mumu?
Djroll deu os “tapinhas” nas costas de Mendeth também. Djroll excedia
Boofeng em tudo. Mendeth tinha razão. Até o apelido de Mustse vinha
em dobro.
– Eu estava muito bem até agora – comentou Mendeth.
– Espirituoso como sempre – Djroll deu uma gargalhada – eu vivo
dizendo que ele daria um excelente mago octarino, mas ele não acredita.
Mumu tem o senso de humor refinadíssimo.

334
Guerra das Cores Perdidas

Acho que Mendeth só tolerava esse tipo de coisa porque sabia que ele
era poderoso. Para ser o mestre de Boofeng, aquele cara, que
praticamente tinha uma casa na cabeça no lugar do chapéu, devia possuir
um poder tremendo. Um imortal, obviamente.
– Onde está Qirimot? – perguntou Mendeth.
– Ah, sim, o seu amiguinho! – observou Djroll – Ele está na sala de
operações explosivas; pesquisando, como sempre. Vamos lá falar com
ele.
– Se ele está ocupado, não há necessidade de interrompê–lo – observou
Mendeth.
– Ora, é claro que podemos interrompê–lo! – riu Djroll – Se ele estiver
realizando uma experiência de dez horas e interrompermos no meio,
basta ele retomá–la do começo tudo de novo!
Nós retornamos por alguns corredores. Entramos numa das salas. O tal
Qirimot era o mago octarino sério que eu havia visto antes, de relance. O
corpo dele também era colorido, como de costume. O olho direito era
branco e o esquerdo negro. Os cabelos eram roxos. Ele aparentava ter
quase 50 anos e eu não tinha certeza se ele era imortal. Provavelmente
não. Algumas partes do cabelo dele estavam se tornando violeta, como
se estivessem embranquecendo. Ele usava vestes de cores discretas,
cinzentas.
– Senhor Djroll – cumprimentou Qirimot, em sinal de respeito, parando
o que estava fazendo – em que posso ajudá–lo?
– Boofeng está de volta e com ele recebemos uma visita muito
inesperada: a reencarnação de Mustse. Lembra–se dele?
Qirimot fitou Mendeth com curiosidade.
– Mustse é imortal. Como você pode ser a reencarnação dele? Sofreu um
terrível acidente mágico ou se matou?
– Fui condenado à morte no Mundo Verde devido a uns pequenos mal
entendidos – esclareceu Mendeth.
– Eu acho que foram alguns grandes “bem entendidos” – sorriu
Boofeng.
– É fantástico você ter relembrado de sua vida passada – observou
Qirimot – possivelmente devido ao seu passado no Mundo Vermelho, eu
presumo.
– Talvez, em parte – confessou Mendeth – mas foi minha potência que

335
Juliana Duarte

conseguiu penetrar através do meu karma e sentir a minha energia.


– Potências são impressionantes – comentou Qirimot – algumas vezes
nos conhecem melhor do que nós mesmos. Mas o que o traz a nosso
mundo? Está de passagem? Busca treinamento?
– A segunda alternativa – respondeu Mendeth – temos intenção de
permanecer aqui por seis anos, se possível. Estou certo de que Djroll
instruirá Boofeng nesse período. Então eu estava pensando se você
poderia me treinar.
Mendeth solicitava um mestre? Soava interessante.
– Certamente – respondeu Qirimot – recordo–me que você já possui um
conhecimento considerável sobre as bases de nossa magia. Sendo assim,
podemos passar direto ao treinamento intermediário. Irei colocá–lo em
contato com diferentes divisões e você escolherá a sua área de maior
interesse, na qual deseje se aprofundar.
– Você por acaso possuiria um mestre para Wain? – perguntou Mendeth,
me indicando com o olhar – Ela não tem conhecimento sobre magia
octarina, então precisaríamos de alguém que ensinasse a ela desde o
começo.
– Nós temos a senhora Dteya – respondeu Qirimot – vou levá–la até ela.
Qirimot me conduziu até outra sala no andar superior. A senhora Dteya
aparentava ter entre 40 e 50 anos. Rosto roxo, olhos brancos, cabelos
cor–de–rosa e cacheados. Seus membros tinham outras cores, mas não
estavam tão visíveis, pois ela trajava um manto.
Qirimot nos apresentou. Dteya sorriu com simpatia. Ela parecia calma e
gentil como um habitante do Mundo Branco. Gostei dela imediatamente
e tive certeza de que ela seria uma ótima mestra.
Então seria o seguinte: Boofeng estudaria magia octarina ultra avançada;
Mendeth estudaria magia intermediária e eu magia básica. Eu estava
ansiosa e curiosa.
Nós ficamos hospedados em quartos de construções separadas. Afinal,
havia um prédio diferente para cada tipo de magia. Como estávamos
meio distantes, constatei que eu teria pouquíssimo contato com os
outros dois naquele período.
Meu quarto era divertido. Tudo era controlado por máquinas. E eu fiquei
muito surpresa que um quarto para treinamento de magia tivesse tantas
distrações: havia computador, rádio, televisão, decorações coloridas e

336
Guerra das Cores Perdidas

diversas coisas esquisitas que eu nem sabia o que era. Dteya afirmava que
tudo aquilo seria utilizado como utensílio de magia. Eu não entendia
como. Mas se a magia octarina era a junção de magia com tecnologia e
ideias malucas, era bem possível.
Fiquei satisfeita por ter sido considerada qualificada para iniciar aquele
treinamento. A magia octarina era tida como uma magia interessante para
magos mais avançados, que já possuíam certa base em outras linhas.
Isso porque aquela era uma via para se desapegar de certos conceitos e
vícios da magia. Mas primeiro você precisa dos conceitos e vícios para
poder abandoná–los. Na maior parte das operações de magia cerimonial
clássica há uma grande ênfase no aspecto ritualístico: aprender para que
serve cada utensílio e só poder usar certo instrumento específico para
determinado fim. Mas na magia octarina você sequer precisa de uma
espada para evocação; pode evocar um servidor até com um patinho de
borracha.
É verdade que espadas e varinhas são o ideal, já que madeira e metal
canalizam energia de forma bastante satisfatória e cada cristal cravejado
possui uma energia específica para determinada operação e tudo mais.
Mas o que conta mais na magia é o aspecto psicológico. Portanto, se
você convencer seu cérebro de que um patinho de borracha tem a
mesma eficácia de uma espada, assim será.
Há ocasiões em que magos de diversas linhas se encontram de mãos
vazias e precisam improvisar, realizando suas operações, até mesmo
evocação, através da energia projetiva emanada da mão direita. A magia
octarina é a magia clássica do improviso e mostra como é possível a
geração de energia e inspiração através de praticamente qualquer fonte,
com base na personalidade do mago.
A magia clássica se baseia em nossa confiança nos séculos de experiência
e tradição dos grimórios antigos, que têm funcionado desde sempre, de
geração em geração. A magia moderna tem como base a nossa lógica,
quando aceitamos a possibilidade de realizar magia com instrumentos
inusitados, e também o nosso conhecimento sobre as coisas que mais
gostamos. Por isso é muito importante conhecer a si mesmo para saber o
que te inspira mais. Se você é apaixonado por bolo de chocolate, adora
jogos de videogame de corrida, ama a cor azul, aprecia uma música
eletrônica específica, é fascinado pelo cheiro do milho amanteigado

337
Juliana Duarte

servido numa praia calma em um dia de sol claro, basta usar tudo isso
como fonte de inspiração: objetos, cenários, cheiros, sons... vale tudo.
Dteya explicou–me tudo isso no primeiro dia e me deu uma tarefa: nos
próximos dias eu teria que explorar todos os objetos que havia no meu
quarto. Eu devia descobrir quais deles eu mais gostava. Então eu faria
algumas listas: numa delas haveria todas as coisas que eu mais amava
dentre tudo o que encontrei naquele quarto. Na outra eu escreveria as
coisas que não gostei. E numa terceira lista eu mencionaria objetos,
cores, sons, aromas ou qualquer outro fator do qual eu sentia falta, que
não pude encontrar no meu quarto.
Dei início à minha desafiadora e divertida tarefa. Resolvi começar
observando o ambiente ao redor. Sentei na minha cama. Ela era macia e
confortável. Não era nem pequena e nem grande; do tamanho ideal. Era
uma cama bonita, de madeira. Os lençóis e cobertores eram confortáveis.
No entanto, o cobertor que cobria a cama era completamente colorido e
quadriculado, com cores vivas. Achei que aquilo me distraía demais e
escrevi na lista que preferia lençóis brancos e cobertores com um
desenho menos chamativo, como algo azul com flores brancas salpicadas
pelos cantos.
O guarda–roupa era ideal, também feito de madeira. Havia bastante
espaço, muitas gavetas. Encontrei diferentes roupas lá dentro. Gostei
mais de umas do que de outras. Na verdade provei todas as roupas.
Algumas ficaram pequenas, outras grandes. Então separei a lista das
roupas que eu mais gostei e que me serviram e a outra das roupas feias e
que eram de tamanho inadequado para mim.
Sobre o banheiro não tive muitas reclamações, pois tudo estava
funcionando muito bem, era limpo e higiênico. Só escrevi que não gostei
dos sabonetes, que tinham cheiros muito fortes. Eu preferia um aroma
mais suave, como flor de laranjeira. A toalha era bonitinha, com
desenhos de bichinhos.
Voltei para o quarto. Havia um tapete no chão, que não achei
maravilhoso, mas também não achei feio. Na verdade fiquei um bom
tempo filosofando sobre o tapete, se ele precisaria ser trocado ou não.
Por fim, resolvi deixá–lo lá.
Nas paredes havia três quadros. Anotei que gostei de dois, mas de um
deles não gostei muito. O que eu não gostei tinha um desenho meio

338
Guerra das Cores Perdidas

incômodo de uma mulher com boca deformada que vomitava. Outro


quadro era fofo, com um ursinho azul com asas de fada, rodeado de
abelhas sorridentes; meio infantil, mas eu gostei. E o outro era uma
paisagem com cisnes, que era meio sem graça, mas também não me
incomodava.
Havia um cartaz na porta que dizia: “O sol amarelo foi beijado pela
grama e ficou com uma mancha de batom verde na bochecha” E havia a
imagem ilustrativa: o sol envergonhado e a grama com cílios; ambos com
carinhas e um coração metade verde e metade amarelo entre eles.
A maior surpresa foi quando eu mudei de lugar; a imagem do desenho se
alterou: agora era um sol macabro e derretido, sangrando sobre a grama.
Havia lágrimas, muito sangue e uma horrível atmosfera de dor. E, lá no
meio, havia a propaganda de uma marca de bronzeador.
Aquilo foi estranho. Senti uma sensação ruim e arranquei aquilo da
porta. Lá no teto havia uma espiral extremamente colorida. Deitei–me na
cama para fitá–la. Eu não tinha certeza se gostava ou não daquilo. Às
vezes eu ficava tonta ao olhar para ela; outras vezes era uma sensação
agradável.
Havia uma estante com diversos livros e grimórios. Quase todos eram
sobre magia octarina. Achei que todos eles poderiam ser úteis, então eu
anotei que gostei de todos, pelo aspecto utilitário.
Lá no meio encontrei alguns gibis, mas curiosamente o tema era magia.
Deixei–os na estante. Havia também alguns romances. Um deles era
sobre sexo. Aquilo teria algo a ver com magia octarina?
Espere. A questão ali não era se as coisas tinham a ver ou não com a
magia e sim se eu gostava delas. Se eu gostasse, bastava inventar uma
relação com magia. A proposta era essa. Tive muitas dúvidas com o livro
sobre sexo e no fim resolvi anotar que não serviria e foi o único da
estante que tirei, por nenhum motivo especial.
Observei a próxima estante, que era repleta de objetos exóticos: relógios,
bonequinhos, estatuetas, aparelhos eletrônicos, adesivos. Tirei poucos,
pois a maioria me agradou. Notei que até mesmo certos objetos com os
quais eu nem simpatizava muito, quando integrados com o ambiente
ficavam harmoniosos. Achei interessante. Por exemplo, eu talvez não
tivesse nenhuma predileção pelo sol, sozinho. Mas segundo aquele
exemplo de gostar do cheiro do milho numa praia calma com sol forte,

339
Juliana Duarte

nesse contexto o sol seria valorizado e necessário.


A seguir, liguei aquele rádio complexo e moderno, no qual havia
possivelmente centenas de músicas. Elas estavam divididas em diferentes
categorias, de acordo com o estilo. Não pude ouvir todas, pois havia
músicas demais. Mas fiz anotações de algumas que odiei, outras que
gostei muito e os estilos que mais me chamaram a atenção. Algumas
eram instrumentais e outras tinham vocal, o qual, obviamente, eu não
entendia nada. Mas apesar de eu geralmente preferir músicas apenas
instrumentais ou eletrônicas, notei que a língua octarina ficava muito
bonita para músicas. Por causa do chiado era quase como um
instrumento diferente e exótico, o que me agradou.
Testei alguns tipos de defumadores; gostei dos mais suaves. Ainda assim,
eu preferia deixar o quarto com o cheiro natural. Havia um pequeno
compartimento para guardar alimentos. Ele estava dividido entre um
compartimento que deixava os alimentos sempre aquecidos, outro que os
deixava gelados e o terceiro com temperatura ambiente. Provei uma
pequena porção de alguns alimentos e anotei minhas impressões.
Depois disso, lá fui eu zapear os canais da televisão. Claro que eu não
entenderia nada, mas simpatizei mais com um canal do que com outros.
Particularmente gostei do canal que passava desenhos animados e o de
clipes musicais, pois eu não precisaria saber muito da língua para
apreciá–los.
A hora de checar o computador foi a mais difícil, pois além de ser
complicado de mexer, pois parecia muito moderno e com muitas
funções, tinha coisas demais lá.
Levei alguns dias até listar tudo e escrever os comentários, pois eu fazia
questão de analisar tudo com cuidado. A lista das coisas que eu desejava
e não tinha ficou bem curta, pois não consegui pensar em muita coisa.
No máximo seriam coisas que eu possuía em outros mundos, que
dificilmente seriam possíveis de reproduzir no Mundo Octarino, como
uma música de uma banda de outro universo ou uma comida típica.
Fiquei meio sem graça em entregar aquelas listas enormes,
principalmente em relação às coisas que eu não gostei. Assim pareceria
que eu era uma visita mal agradecida. Mas Dteya sorriu e ficou
entusiasmada com meu trabalho, pois eu tinha me esforçado bastante
para analisar tudo. Ela entendia consideravelmente a língua do Mundo

340
Guerra das Cores Perdidas

Negro e leria minhas observações. Enquanto isso, ela me sugeriu ir


treinando o básico de qualquer magia, como esferas de energia e
visualizações. Ou, se eu preferisse, poderia explorar um pouco mais as
músicas do rádio e deixar tocando uma melodia de fundo enquanto eu
treinava. Ela queria que eu começasse a perceber o efeito das coisas
externas na minha magia.
Então, enquanto eu treinava esferas e visualizações – algo que eu não
praticava há muitos anos – deixei o rádio tocando uma música, o
computador ligado com uma imagem inspiradora e a televisão ligada no
desenho animado, sem som. O que normalmente eram consideradas
“distrações” eram valorizadas na magia octarina. Nas outras magias
costuma se sugerir não depender tanto de coisas como música e
conforto para a magia; apenas utilizar os fatores ritualísticos essenciais.
Mas ali era diferente, eles não ligavam para apego. Acho que o cérebro
dos magos octarinos devia ser treinado para realizar várias tarefas ao
mesmo tempo em vez da clássica concentração num único ponto,
ensinada em outras linhas.
No dia seguinte, recebi o resultado da análise dela. As coisas do quarto
que eu havia gostado seriam deixadas lá. Alguns itens da lista sobre as
coisas que eu não gostei seriam retirados ou alterados, mas alguns deles
deviam ficar lá, mesmo sem eu gostar, pois poderiam ser bem úteis,
segundo ela, e quando eu começasse a me acostumar a eles haveria
possibilidade alta de eu passar a gostar deles. E também foram trazidos
alguns poucos itens da lista os quais eu escrevi que sentia falta, já que a
maioria era impossível de reproduzir.
Fiquei satisfeita com o novo ambiente, pois ele mudou
consideravelmente após a lista. Aquele quarto estava mais a minha cara.
“Então isso aqui é a Wain”. Acho que eu estava me conhecendo um
pouco melhor depois de tanta análise. Notei que eu preferia os aromas
mais suaves e as músicas mais tranquilas. Que muitas cores me
incomodavam e me desconcentravam; no entanto, falta de cores também
era um problema, pois devia haver um equilíbrio.
Equilíbrio! Mundo Verde! Afinal, eu tinha algumas características do meu
povo.
A seguir, recebi novas tarefas: eu devia começar a desenhar. Eu era
péssima em desenho. Quando comecei a desenhar, me lembrei de uma

341
Juliana Duarte

coisa; dei–me conta de algo pela primeira vez.


Uma vez achei algumas telas de pintura numa salinha que ficava próxima
ao quarto de Mustse. Isso foi quando morávamos somente eu e Kiwala
no castelo, ela devia ter uns nove anos na época. Eram pinturas bem
antigas, algumas com monstros, a maioria com cores fortes como negro,
vermelho, laranja, amarelo, vinho. Havia muitas paletas e tintas. Imaginei
que Mustse havia usado as telas para fazer testes com desenhos, mas que
depois abandonou. E eu até gostei de algumas telas.
Mas, pela primeira vez eu havia parado para pensar: será que aquele
quadro magnífico acima da cama dele, que retratava um imponente
demônio em sua verdadeira forma, foi pintado pelo próprio Mustse? Se
fosse assim, ele era um pintor realmente genial. Havia outros quadros
interessantes e macabros espalhados pela casa. Eu jamais havia cogitado
a possibilidade de alguns deles terem sido pintados por ele. Achei que
eram quadros de algum artista famoso de ocultismo, que Mustse havia
comprado num leilão ou oferecido uma grande fortuna por eles.
Se um dia eu retornasse ao castelo no Mundo Negro, eu me lembraria de
analisar os quadros da casa com muita atenção; em especial, o quadro no
quarto de Mustse. Seria aquela imagem a revelação da verdadeira forma
de Lamue, cuja visão somente era suportada pelo mestre da potência? Se
fosse, seria extraordinário. Eu sabia que Lamue podia transformar–se em
dragão e talvez em outras coisas, mas a verdadeira forma era algo
secreto, profundo. Eu mesma jamais tive coragem de pedir para ver a
verdadeira forma de Garfdie. Afinal, ao mesmo tempo em que seria uma
atitude de ousadia solicitar isso, pois Garfdie poderia não gostar do
pedido, eu poderia passar por sensações de tontura, mal estar,
desconforto, desmaiar ou até mesmo correr risco de vida diante da
forma verdadeira dela. A minha imortalidade não me salvava de impactos
gerados por magia.
Voltei minha atenção aos desenhos. Acho que eu precisaria de algumas
aulas de desenho antes das aulas de magia octarina, pois eu sentiria pena
do meu servidor se fosse desenhado por mim. Eu sabia que no fundo
aqueles rabiscos eram o início de um futuro treinamento envolvendo
servidores.
Aos poucos Dteya me ensinava como eu poderia sentir a energia de cada
coisa que fazia, transferir minha energia para a atividade, fundir–me nela

342
Guerra das Cores Perdidas

e utilizar cada objeto e ação como um gerador. Iniciaram–se minhas


primeiras experiências.
Nos momentos em que eu traçava as linhas na folha de papel, eu devia
sentir como se empunhasse uma varinha mágica. O lápis em minhas
mãos era o canalizador e as linhas que eu traçava, fluxos de energia.
Somente dessa maneira o servidor um dia poderia criar vida.
Começaram também minhas experiências com jogos de videogame. Fui
instruída a sentir uma emoção forte em algum jogo que eu gostasse. Eu
deveria tentar me especializar num jogo específico e, como fruto da
maestria, gerar o estado da mente necessário.
Escolhi um dos jogos, que era de corrida. Eu devia deixar o volume
muito alto e sentir–me no interior do jogo. Conforme eu fazia as
manobras radicais e a música poderosa penetrava nos meus ouvidos,
senti meu coração acelerar. Gerei energia através da mente. Logo, minhas
mãos começaram a formigar, meu estado de consciência foi alterado e...
foi incrível! Eu mal estava lá; eu era somente as mãos que mexiam nos
comandos do controle; eu e ele éramos um. Quando despertei da
experiência, eu mal sabia onde estava, que horas eram ou o que havia
acontecido, tamanha a emoção.
Quando me especializei em gerar esse tipo de emoção com os jogos,
Dteya me levou para um local fantástico: era um tipo de fliperama
projetado apenas para praticantes de ocultismo. Eram jogos muito
modernos em que você colocava capacetes, fios ou entrava no interior da
máquina. Tive experiências completamente surreais. Em alguns
momentos, eu sentia que quase saía do corpo. Até que, em certo
momento, eu saí.
Eu estava no céu, voando! Não era meu corpo. Somente a minha mente.
Passeei pela cidade e vi coisas incríveis. Avistei uma ponte colorida e
pássaros enormes, mesclados de branco e azul. Depois que descrevi a
experiência, Dteya me disse que tanto a ponte quanto os pássaros
existiam, embora eu nunca os tivesse visto com meu corpo do mundo
real. Ela me contou qual era a parte da cidade em que se localizava a
ponte e os pássaros. Mostrou–me fotos deles e por fim acabou me
levando até lá.
– Pode ter sido uma premonição – avisou ela – você disse que o céu
estava escuro. Então talvez você devesse vir aqui durante a noite no dia

343
Juliana Duarte

de hoje, para alguma descoberta.


Atentei para o ambiente ao redor. Eu tentava sentir as impressões,
receber uma revelação, mas nada vinha. No fundo, o que eu deveria
encontrar estava diante dos meus olhos.
Quando escolhi que era o instante de abrir os olhos, vi um muro
pichado. Havia diversos tipos de desenhos lá, mas um em especial me
chamou a atenção: tratava–se de um ser marrom coberto de espinhos,
com olhos amarelados e muito vivos. Aquilo me recordou de meu
próprio povo; parecia uma árvore ou um cacto. Mas tinha olhos, rosto...
Resolvi tirar uma foto do muro. Também peguei uma pedra que havia
nas proximidades e informei a Dteya que minha busca estava terminada.
Finalmente eu tinha uma ideia para a forma do meu futuro servidor.
Treinei bastante copiar o desenho do muro numa folha de papel. Claro
que acrescentei uns toques pessoais meus, que tornavam a figura ainda
mais divertida.
Imaginei que se fosse Kiwala a passar por aquele treinamento, ela criaria
um servidor muito criativo, talvez com um boné, roupas modernas, de
cor rosa ou roxa. Transformaria o quarto numa casa do terror e se
concentraria nos jogos de luta e em músicas de rock. Acho que ela se
divertiria bastante com a experiência. A magia octarina tinha tudo a ver
com ela.
Eu não era particularmente criativa, mas tinha minha própria maneira de
captar o mundo. Era mágico desvendar tantas coisas sobre a Wain. Era
como me redescobrir.
Após mais algumas experiências de gerar energia com jogos, músicas,
desenhos animados, concentração em figuras, dentre outras técnicas,
iniciou–se meu treinamento com sigilos e formas–pensamento.
Treinei desenhar sigilos com aquele alfabeto. Eu também já estava
começando a aprender o básico sobre a língua octarina, embora não
fosse nem de longe o suficiente para entender os grimórios da minha
prateleira, os quais eu queria tanto ler. Eu folheava os gibis, olhando as
mesmas figuras de sempre, somente imaginando o que estaria escrito nos
balões de falas.
Finalmente realizei minha primeira experiência de criação com a forma–
pensamento. Fiz um desenho caprichado dela numa folha de papel e
colori. Depois moldei um bonequinho com massa de modelar, no

344
Guerra das Cores Perdidas

formato apropriado. Enchi um recipiente com óleo e terra, que eram os


canalizadores mais fortes. Dteya disse que mais adiante treinaríamos com
outros tipos de canalizadores.
Todo dia, na mesma hora, fortifiquei a minha forma–pensamento com
confiança. Eu apenas queria aprender mais e mais sobre aquela magia tão
emocionante. Como eu devia escolher um pedido em particular, pedi
para que eu dominasse logo o básico do idioma daquele mundo.
E, surpreendentemente, algumas semanas após a atuação da forma–
pensamento, após libertá–la, eu já estava começando a ler com certa
facilidade algumas palavras. Decorei o alfabeto rapidamente e já era
capaz de desvendar algumas frases e dar o significado aproximado.
Finalmente descobri algumas palavras do gibi, para a minha alegria.
Isso facilitou meu trabalho com sigilos, já que eu dominara o alfabeto.
Mas dominar a língua ainda levaria muito tempo.
Tive aquele treinamento básico por um ano. No ano seguinte, recebi
autorização para tentar começar a dar forma ao meu servidor no plano
espiritual e escolher alguns utensílios mágicos fixos para fortificar e
consagrar.
As lojas de utensílios mágicos do Mundo Octarino eram incríveis! Os
instrumentos eram muito criativos. Dteya disse para eu escolher uma
espada e um bastão, que eram os utensílios fundamentais do mago.
Coisas como velas, óleos, ervas, pedras, dentre outras ferramentas
básicas, havia disponível na construção.
Escolhi uma varinha curiosa, na forma de um sapo verde, feita de metal,
cravejada de esmeraldas. Optei por essa porque me lembrei de Kiwala.
Acabei comprando essa para dar de presente a ela e escolhi outra para
mim: uma varinha fascinante cheia de formas geométricas, cubos
coloridos, pirâmides, etc.
A espada foi mais difícil. Optei por uma que tinha asas. E, novamente,
lembrei–me de Kiwala! Era uma maldição. Não vi outra escolha senão
comprar esse utensílio para Kiwala e escolher outro: uma espada cheia de
protuberâncias que lembrava um tronco de árvore e galhos, na
empunhadura. Havia símbolos arcanos na lâmina. Os símbolos da minha
espada significavam integridade e imaginação. Os símbolos da espada de
Kiwala significavam pureza e sacrifício.
Boofeng havia me dado dinheiro do Mundo Octarino. Eu aceitei, mas fiz

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Juliana Duarte

questão de fazer uma troca com ele por dinheiro do Mundo Negro. Eu
me sentia feliz por ter aceitado, pois o Mundo Octarino era repleto de
tentações para todos os lados. Muita tecnologia, muitas maravilhas. Havia
até espadas e varinhas feitas com aparelhos eletrônicos, que eram
caríssimas. Optei pelas clássicas, pois além de serem mais baratas tinham
mais a ver comigo. Imagina se eu quebrasse uma varinha eletrônica, que
desperdício.
De volta ao meu quarto, concentrei–me em consagrar meus novos
utensílios. Dteya também me ensinou umas magias estranhas com
comida. Peguei a mania de praticar magia em todas as horas das
refeições, mas como minha comida acabava esfriando no processo,
resolvi abandonar a prática.
Era divertido energizar a comida. A prática de experiências mágicas com
comida e bebida, como as poções mágicas, existia em todos os mundos.
Mas cada uma delas empregava técnicas específicas. Por essa razão, a
junção das fórmulas das poções dos mundos negro, branco e octarino
tinham levado àquelas fantásticas descobertas.
Nos últimos anos, a prática de evocação entre mundos havia aumentado
consideravelmente. E não falo daquela prática antiga de evocar potências
dos outros mundos, pois isso sempre existiu. Falo de viajantes que
visitam outros mundos para conhecer a magia local. Até então, somente
magos avançados mexiam com viagens entre mundos com a intenção
clara de aprender mais sobre magia. Eu esperava que esse maior contato
entre os povos fortalecesse as relações entre eles e diminuísse os
preconceitos. Mas era difícil dizer se aquilo resultaria numa era com troca
de conhecimentos de forma saudável ou numa guerra.
E lá estava eu, com meus utensílios energizados, traçando formas
geométricas de proteção para minhas primeiras tentativas de evocação de
servidores. Decorei os dizeres da evocação, mas aquele processo era
difícil. Demorei muito para criar um servidor e materializá–lo pela
primeira vez.
Foi muito emocionante quando vi minha arvorezinha espinhosa que eu
inventei surgir pela primeira vez diante de mim, piscando seus olhos
amarelos curiosos. Dei–lhe um nome: Wooii. Era um nome bonitinho.
Era parecido com meu nome e na língua octarina aquele termo tinha a
ver com árvore.

346
Guerra das Cores Perdidas

Nos próximos dias ocupei–me em criar uma personalidade para meu


servidor, dentre várias outras características importantes referentes a
poderes mágicos. Nossa, como eu escrevia! Na magia negra eu não
precisava escrever tanto. A magia octarina exigia anotações, análise e
criações o tempo todo.
Levou pelo menos mais dois anos até que eu dominasse completamente
a prática de evocação do meu servidor. Mas eu ainda não conseguia me
comunicar com ele. Eu já vira Boofeng bater altos papos com os
servidores dele, como se conversasse com uma pessoa, que respondia.
No meu caso, quando eu tentava conversar com Wooii eu me sentia
falando com um amigo imaginário que era eu mesma e que não entendia
uma palavra do que eu estava dizendo.
Por enquanto Wooii só sabia piscar os olhos e balançar as pernas. Decidi
que ele teria magia da terra como ponto forte, para honrar meu povo do
norte, no Mundo Verde. E sua fraqueza seria o ar.
Mais alguns meses depois, Wooii conseguiu evocar uma pequena
florzinha. Foi tão lindo! Eu estava me apegando muito ao meu pequeno
servidor que criei. E enquanto eu estava trabalhando com uma árvore
pequenina cuja única habilidade era evocar uma flor, Boofeng controlava
dezenas de servidores que possuíam uma força monstruosa, lançavam
bolas de fogo, transformavam–se, utilizavam as magias mais
inacreditáveis.
Como era complexo trabalhar com servidores! Na magia negra bastava
evocar um demônio que já existia e aprender sobre ele. Mas na magia
octarina você cria uma concha vazia sem poder algum e precisa
preenchê–la com alguma coisa.
Magos negros já possuem algum poder desde o começo do treinamento.
Após evocar e dominar um demônio de classe baixa, o mago negro já
tem capacidade de atacar com ele. Kiwala matou meus pais aos seis anos
evocando um demônio de classe baixa sem círculo e sem nada.
No caso de um mago octarino, ele possui poucos poderes na magia
básica. Esse é um dos pontos fracos da magia octarina: você só consegue
um poder considerável mais adiante, quando fortalece e inventa diversos
incrementos para o servidor. E ele fica cada vez mais forte quanto mais
se brinca de “amigos imaginários”. Era como educar uma criança, você
tinha que ensinar tudo desde o começo: a falar, a andar... e quanto mais

347
Juliana Duarte

ela te ouvisse falar, mais se acostumava e mais rápido aprendia.


Bem, o pobre do meu servidor iria aprender a língua negra. Fiquei com
pena, porque ele era tão meiguinho. Se eu soubesse bem a língua
octarina, gostaria de ensinar a ele, mas para isso primeiro eu mesma
precisava aprendê–la. Eu acabava não usando tanto a língua verde, a não
ser que eu quisesse tornar meu servidor bilíngue e confundi–lo ainda
mais.
Claro que há diversas possibilidades na magia octarina. Você pode se
focar na área de sigilos, nas viagens astrais, divinações, feitiços, controle
de sonhos, as clássicas magia do gelo e fogo, dentre outras. Fora as áreas
modernas, que envolvem tecnologia. Surgiam novas subdivisões o tempo
todo, pois aquele era um mundo cheio de criadores. Mas a área mais
tentadora e famosa era servidores e foi nessa que escolhi me especializar.
Por isso foquei–me nela.
Eu sentia–me realmente tomando conta de um bebê. Sentava–me com
Wooii no colo, dava carinho, contava histórias, como se fosse um
bichinho, mas com inteligência.
No entanto, eu não podia ficar com ele o dia todo, pois consumia muita
energia mantê–lo materializado. Meu tempo com ele era limitado,
infelizmente.
Wooii parecia ter passado da fase de bebê para criança, pois já estava
mais esperto. Mais um ano depois, ele era capaz de realizar umas magias
bem simples. Ele já conseguia evocar várias flores e folhas ao mesmo
tempo; materializar pequenas árvores. Quando tocava no solo, ele
produzia um pequeno tremor.
Visualizei o futuro de Wooii: um servidor gigante e poderoso, que seria
capaz de produzir um grande terremoto. Será que eu conseguiria chegar
lá? A magia octarina era cheia de possibilidades. Era difícil se entediar
com ela, pois sempre era possível criar novos servidores, “atualizar” os
antigos com novas características ou aparência diferente e dar–lhes
outros poderes.
Eu estava tão empolgada com meu pequenino, que mal percebi a
passagem do tempo. Aqueles seis anos passaram como um raio. O
aniversário de Kiwala seria dali a dois dias. Decidimos finalizar o
treinamento por ali e usar o último dia para nos despedirmos da cidade,
já que Mendeth negou–se a passear na época que chegamos.

348
Guerra das Cores Perdidas

Eu estava ansiosíssima para conversar com Boofeng, pois eu teria muito


a contar. E eu ainda testemunhei uma cena engraçada: Boofeng queria
pagar a Djroll pelo treinamento de nós três por aqueles seis anos. Djroll
disse que não aceitava pagamentos para ensinar magia. Boofeng
argumentou que era apenas uma doação simbólica para ajudar, mas
Djroll disse que não podia aceitar aquela enorme quantia de dinheiro.
Naquele mundo havia cédulas com valor altíssimo: mil, dez mil, cem
mil... as cédulas eram resistentes, não se rasgavam facilmente e possuíam
chips, permitindo que fossem rastreadas e só podiam ser utilizadas com
o código de seu dono original. Portanto, era super seguro andar com
uma nota de cem mil por aí.
Boofeng colocou o maço de notas no bolso de Djroll. Ele as tirou e
devolveu ao bolso de Boofeng. Eles tiveram um duelo divertido com
socos, chutes e muitas risadas, até que Boofeng venceu, pois lacrou o
bolso da roupa de Djroll de forma mágica, com as notas dentro.
– Touché! – exclamou Boofeng – Agora eu ganhei, fanfarrão! Não
insista!
Por fim, Djroll desistiu e disse que da próxima vez ele daria o “troco”,
literalmente. Os dois soltaram altas gargalhadas com o trocadilho.
– Como vocês falam besteiras, é impressionante – comentou Mendeth,
quando estávamos somente nós três na mesa de um bar. Boofeng fez
questão de nos levar em um lugar que, segundo ele, servia a melhor
bebida do mundo e ele queria que provássemos – Ainda bem que
estamos sozinhos dessa vez. Teve uma ocasião em que Boofeng
convidou um monte de amigos. Imagine vários magos octarinos, os
amigos de Boofeng todos juntos, foi um pesadelo.
– E você era o único que não ria das piadas. Ficava apenas quieto com
uma expressão de...
– Leite azedo – sugeri, usando o termo que Kiwala usou uma vez.
– Exatamente! – riu Boofeng – Leite azedo! Ele passou a madrugada
toda só bebendo com a esperança de que seu sistema cognitivo falhasse e
a audição dele parasse de funcionar sob o efeito do álcool. Mas ele não
estava acostumado com nossas bebidas fortes e acabou vomitando
depois.
– Péssima noite – constatou Mendeth – péssima memória. Ainda bem
que me esqueci da maior parte das coisas que vocês falaram. Pelo menos

349
Juliana Duarte

o álcool ajudou nisso.


– Boofeng, aprendi a criar meu primeiro servidor! – contei a ele, animada
– Ele consegue evocar folhas, flores e até materializar pequenas plantas.
– Que ótimo! – sorriu Boofeng – Parabéns!
– Que inútil – comentou Mendeth, de má vontade.
Eu não gostei do comentário. Olhei feio para Mendeth.
– Então me conte o que consegue fazer com servidores, gênio – desafiei
Mendeth.
– Já desenvolvi mais de um servidor – explicou Mendeth – e eles são
capazes de utilizar vários tipos de magia. Mas perto do poder de Lamue,
meus servidores são completamente dispensáveis.
Eu tinha curiosidade de ver a aparência de um servidor criado por
Mendeth. Seria um monstrinho feio? Os servidores de Boofeng eram
enormes, lindos, coloridos e criativos. Os de Mendeth provavelmente
eram negros, macabros e sem graça.
– E você, Boofeng, o que estudou dessa vez? – perguntei, curiosa –
Ainda existe algo que você não saiba sobre magia octarina?
– Concentrei–me em ensinar os meus servidores a criar outros
servidores e evocá–los sozinhos – explicou ele.
– Nossa! – exclamei – Que fantástico! Seu servidor é um mago octarino
poderoso! Aposto que suas potências evocam servidores bem mais
fortes do que o que eu criei.
– Qual a utilidade disso? – perguntou Mendeth – Colocar cem servidores
no campo de batalha para formar um exército?
– A principal utilidade seria se o servidor estiver à beira da morte –
explicou Boofeng – antes eu conhecia somente o mecanismo de
explosão, em que o servidor, caso se depare com a morte derradeira e
certa, se suicida, provocando uma explosão violenta com todas as suas
últimas energias. Mas agora, em vez disso, o servidor é encorajado a
evocar outro servidor caso esteja prestes a morrer. Dessa forma, sua
criação poderá lutar em seu lugar.
– Essas novas potências seriam fortes o suficiente? – perguntou
Mendeth.
– Estou trabalhando nisso – respondeu Boofeng – querem me mostrar
seus servidores? Estou curioso para ver.
– Aqui, no meio do bar? – perguntei.

350
Guerra das Cores Perdidas

– Sim, por que não? As pessoas do Mundo Octarino já estão


acostumadas a ver magias e servidores por aí. Sem problemas. Mas não
ataque ninguém, Mu.
– O que o faz pensar que eu atacaria alguém? – perguntou Mendeth.
Eu e Boofeng nos entreolhamos.
– Seria inútil fazer isso com um servidor fraco – explicou Mendeth –
quando eu realmente quero atacar, ataco de verdade. Não com
brinquedos.
– Muito bem, senhor sério – falou Boofeng – mostre–nos sua criação.
Mendeth evocou um servidor, usando a evocação clássica na língua
octarina.
– Seu sotaque para nossa língua é engraçado – comentou Boofeng – e
você pronunciou um dos termos errado.
Mendeth ignorou–o. O servidor dele era assustador: uma espécie de
gárgula negra com dentes e garras enormes.
– Que mau gosto, Mu – comentou Boofeng – você nem precisa fazer
seu servidor usar magia. Só essa aparência já mata de medo o adversário.
Deixe–me ver o seu, Wain.
Evoquei a minha árvore espinhosa. Wooii fitou os dois e piscou os
olhos.
– Que adorável – riu Boofeng – foi bem criativo. Vou dar a ele uma
namorada.
E, de improviso, Boofeng simplesmente inventou um servidor! Era
muito parecido com o meu, mas levemente rosado, com um lacinho na
cabeça, cílios e batom. Wooii ficou com os olhos brilhando quando viu o
servidor de Boofeng. Os olhos da criaturinha rosa também brilharam.
Eu e Boofeng rimos. Mas Mendeth evocou a gárgula negra no meio dos
dois para separá–los. Os dois saíram correndo, com medo.
– Você é a pessoa mais cruel do mundo, Mu – falou Boofeng – você não
tem coração.
– Obrigado.
Nós chamamos os servidores de volta.
A bebida chegou. Era deliciosa, tinha um gosto doce e fresco. Adorei.
No dia seguinte, pela manhã, nos preparamos para retornar ao Mundo
Branco. Eu estava ansiosa para rever Kiwala. Como ela estaria? Mais
bondosa? Teria crescido muito?

351
Juliana Duarte

Foi realizada a evocação entre mundos. Com pouca bagagem nas mãos,
nós retornamos.

352
Guerra das Cores Perdidas

Poderes

Enfim, o Mundo Branco novamente! Aquela atmosfera de paz era mais


do que desejável depois de tantas emoções, entusiasmo e cores no
Mundo Octarino.
Eu havia adorado a magia octarina. Amei criar servidores, pois havia
infinitas possibilidades. A imaginação era o limite.
Era maravilhoso e ao mesmo tempo perturbador a existência de todas
aquelas magias; de todos aqueles mundos. Como de costume, a cada
lugar que eu pisava, eu deixava uma parte de mim. E lá estava eu,
retornando para recuperar mais um de meus pedaços, no mundo onde as
folhas das árvores formavam caminhos.
Fomos em direção ao templo dourado. Knossa recebeu–nos com alegria.
Ela estava como sempre: belíssima, imponente, gentil e encantadora.
– Chamarei Kiwala – avisou Knossa – ela ficará muito feliz ao revê–los.
Aguardamos com ansiedade. Alguns minutos depois, Knossa retornou
acompanhada de uma moça.
Kiwala estava completamente mudada. Pouco se parecia com a Kiwala
de 12 anos.
A Kiwala que eu conhecia já era muito bonita. Mas a Kiwala atual estava
deslumbrante. Como ela também estava no monastério, vestia apenas o
manto e nenhum enfeite. E, embora Kiwala afirmasse antes que só ficava
bonita quando se enchia de maquiagem e jóias, isso já não era verdade.
Isso porque ela não precisava mais fazer esforços para parecer mais
velha. Ela já estava com 18 anos.
Os cabelos dela estavam muito longos! Cabelos bem negros e lisos na
maior parte. Nas pontas alguns cachos se formavam. A mesma pele
pálida, levemente avermelhada, como a de Mustse. Mas o rosto foi de
cair o queixo.
Ela havia se tornado praticamente o Mustse, na versão feminina. Só os
traços do rosto que eram mais leves; nesse ponto ela era como Clarver:
rosto arredondado e harmonioso. Mas o nariz estava igualzinho ao de
Mustse. As sobrancelhas grossas também eram parecidas. A cor dos
olhos era sempre a mesma, além do olhar misterioso e sério do pai.

353
Juliana Duarte

Kiwala conseguiu o que queria: estava com 18 anos e havia se tornado


uma moça linda. As quatro asas, duas brancas e duas negras, estavam
enormes. Não tão grandes quanto as de Knossa, mas ainda assim muito
maiores que o padrão do Mundo Branco. E os chifres se destacavam:
intrigantes e exóticos.
Kiwala abriu um grande sorriso quando nos viu. Abracei–a. Ela estava
mais alta que eu.
Ela e Boofeng se abraçaram também. E Kiwala tomou a iniciativa de
abraçar Mendeth.
Tínhamos muito a contar. Contei a ela todas as minhas impressões sobre
o Mundo Octarino: o quanto era lindo, o tipo de treinamento que tive e
o quanto ela iria gostar quando o visitasse. Presenteei–a com a varinha de
sapo e com a espada de asas de anjo. Ela amou os presentes e me
agradeceu muito. Mostrei a ela meu servidor e ela ficou encantada.
Boofeng também tinha presentes.
– Feliz aniversário, Kiki! Espero que goste. Escolhi com carinho.
Ele entregou a ela uma cestinha. Ali dentro continha vários pequenos
presentinhos. Havia um pequeno buquê de flores brancas. Ao redor
tinha bombons de chocolate e um mini bolinho de ameixa. Kiwala
encontrou também um pacote de tarot com imagens lindas de anjos e
demônios, um pequeno kit com velas, óleos e ervas, além de uma
estatueta de uma mulher de cabelos negros com chifres de demônio e
asas de anjo.
– Sou eu – riu Kiwala, ao olhar a estátua – adorei tudo, tio Boo! Foi um
presente lindo, gracioso e criativo! E esse tarot é incrível!
– Fico feliz que tenha gostado – sorriu Boofeng.
Mas eu sabia que Kiwala ia gostar de qualquer presente que Boofeng
desse, como sempre.
– Também tenho um presente – informou Mendeth.
Kiwala foi pega de surpresa. Acho que ela não esperava ganhar um
presente de Mendeth. Ele deu a ela um pacote. Kiwala desembrulhou–o
com curiosidade.
Eu tinha quase certeza de que seria um instrumento de tortura. Talvez
Mendeth achasse que o tal caminho branco era uma baboseira e quisesse
fazê–la retornar à via negra. O presente poderia servir de inspiração.
Mas não era nada disso. Era uma... flor, num vasinho. Mas não era uma

354
Guerra das Cores Perdidas

flor comum, como aquelas que Boofeng havia dado a Kiwala. Tinha algo
de diferente nela: um perfume estranho; uma energia incomum.
– Essa flor chama–se “lírio da alma” – explicou Mendeth – ela precisa
ser regada apenas uma vez por semana: com lágrimas ou com sangue. E
somente com suas lágrimas e com seu sangue. A cada vez que regá–la ela
ficará de uma cor diferente, dependendo de seu estado de espírito mais
profundo. Outra pessoa jamais deverá derramar seus fluídos na flor, ou
ela morrerá. Essa flor te aceitará como guardiã após sua primeira lágrima
derramada.
– Nossa – Kiwala fitou Mendeth – é tão... poético. Inacreditável. Não
sabia que existia algo assim.
Kiwala havia derramado algumas lágrimas de saudade ao nos rever.
Portanto, ela enxugou os olhos e tocou a ponta do dedo com a gota de
lágrima nas pétalas da flor. Imediatamente o lírio assumiu um tom cor–
de–rosa. Ela consultou o livreto que acompanhava para descobrir o
significado.
– Amor, ternura, carinho – leu ela – é belíssimo! Aqui diz que algumas
vezes ela pode assumir duas ou mais cores ao mesmo tempo.
Embora tenha sido o presente mais simples, talvez fosse o mais
profundo.
– Muito obrigada, pai – sorriu Kiwala – você me fez ficar emocionada
agora.
Kiwala acabou derramando ainda mais lágrimas. Quando uma delas caiu
sobre a flor diretamente, as pétalas se abriram ainda mais e o lírio
tornou–se mais belo.
– Obrigada a todos vocês por fazerem parte da minha vida – prosseguiu
ela.
Kiwala parecia realmente mudada. Ela estava mais sensível. E, ao mesmo
tempo, parecia ter adquirido uma grande vitória sobre certos medos,
incluindo algo que Mustse nunca conseguiu: não temer expressar
emoções.
Knossa também deu um presente a Kiwala: um bracelete dourado, que
possuía poder e canalizava a energia. Se Kiwala erguesse a varinha ou a
espada com a mão do bracelete teria uma energia ainda mais forte.
– Aprendi a voar! – revelou Kiwala, com emoção – E depois de muito
tempo de dedicação, fui capaz de realizar o contato e conversação com

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Juliana Duarte

meu sagrado anjo guardião. Foi um dos momentos mais especiais de


toda a minha vida!
– Estamos muito orgulhosos de você, Kiki – disse Boofeng – sabia que
você conseguiria.
– Vamos lá fora – ela propôs – mostrarei como voo.
Nós aceitamos a sugestão e fomos até o pátio do templo. Kiwala, com
confiança, bateu as asas. Ela não voou muito alto, mas o fez
graciosamente. Todos nós demos parabéns a ela quando retornou.
Depois disso, ela fez questão de nos mostrar seu anjo. Era tão belo
quanto o anjo de Clarver. Imaginei o quanto ela estaria orgulhosa ao ver
a filha de 18 anos com aquele manto branco, empunhando a espada de
asas, evocando seu próprio SAG que ela conquistou com amor e fé.
Antes eu tinha pensado em propor um duelo a Kiwala quando eu
retornasse: ela usaria seu anjo e eu meu servidor. No entanto, estava
claro que Kiwala me derrotaria com o anjo. Isso porque a magia octarina
exigia mais tempo que as outras linhas para se conquistar o poder
máximo. Porque o anjo já estava ali; imponente e poderoso. Mas o
servidor precisava aprender, estudar, crescer, pouco a pouco. Nas outras
magias era tudo ou nada: ou você possui a potência ou não a possui. Na
magia octarina você já obtinha uma forma–pensamento desde o início
do treinamento. Mas levava um tempo considerável para fortalecê–la:
anos, décadas de dedicação.
Mas se fosse uma batalha de magia negra de Garfdie contra Xsossa, eu
seria a vencedora, com certeza. Meu demônio era mais forte que o dela.
Sendo assim, eu e Kiwala seríamos apenas espectadoras da batalha entre
Knossa, Mendeth e Boofeng. Fazia muito tempo que eles não se
enfrentavam. Todos eles tiveram 400 anos para treinar, então seria
bastante justo. O mais poderoso seria decidido puramente pela
habilidade que cada um tinha no sistema de sua escolha.
– Não vamos nos matar de verdade – riu Boofeng – só brincar.
– Eu não brinco com magia – retrucou Mendeth – ou fazemos do jeito
certo, ou não aceitarei. Eu vou pegar pesado e não me importo se vocês
morrerem. Se isso acontecer, é porque são fracos.
– Não se preocupem – reforçou Boofeng – se Mu se empolgar demais,
eu e Knossa juntos teremos poder suficiente para pará–lo. Agora, se
Knossa se empolgar também, sinto muito, mas o máximo que poderei

356
Guerra das Cores Perdidas

fazer será tentar proteger minha própria vida e sugiro que corram.
– E se vocês três se empolgarem, o Mundo Branco será destruído –
constatei – controlem–se, por favor! Querem tomar um calmante antes
de começar?
– Vamos de uma vez – apressou–se Mendeth, traçando o círculo com a
espada – não tenho o dia todo.
Cada um deles traçou o círculo de proteção. Meu coração acelerou.
Agora sim ficaria interessante. Eu estava com um pouco de medo, mas
desde quando ter medo é uma coisa ruim? Desde os primórdios do meu
treinamento de magia negra, eu já conhecia o grande poder do medo e
do terror.
Bem previsíveis, cada um utilizou o seu próprio sistema. Mas eu estava
prestes a testemunhar as últimas técnicas conquistadas pelos maiores
mestres de magia branca, negra e octarina que eu conhecia.
Mendeth evocou Lamue e até hoje eu ainda sentia um frio na espinha ao
fitar aquela criatura de ar espectral. Boofeng evocou o seu servidor mais
poderoso: um palhacinho colorido antropozoomórfico que eu já tinha
visto outras vezes. E chegou a vez da evocação de Knossa.
O SAG de Knossa era gigantesco. O anjo de aparência feminina possuía
nada menos que dez asas douradas e uma auréola flamejante! Tinha
cabelos brancos e lisos, com duas tranças, e olhos laranjas intensos.
– Heielaia! – Knossa bradou o nome do próprio SAG; a seguir,
pronunciou um monte de dizeres numa língua antiga do Mundo Branco.
Lamue atacou as potências com lâminas de gelo. O servidor soprou
bolhas de sabão. As bolhas coloridas causavam uma explosão quando
estouravam. O anjo, portando uma espada faiscante, partiu para cima
dos outros dois.
O anjo nem precisou atacar. Bastou o bater daquelas asas gigantes para
que o servidor e o demônio fossem jogados longe. Nem mesmo Lamue
parecia ser páreo para aquele anjo. Foi preciso apenas poucos segundos
para Boofeng e Mendeth compreenderem com clareza que Knossa era
muito mais poderosa que eles. Por isso, os dois se juntaram para atacar
apenas o anjo.
Lamue assumiu sua forma de dragão vermelho. O servidor de Boofeng
tornou–se um dragão azul. Então o dragão vermelho e o azul partiram
para cima do SAG.

357
Juliana Duarte

Os voos rasantes do anjo eram impressionantes; era como se ela


dançasse a cada investida dos dragões da qual ela escapava. Os monstros
tentavam abocanhá–la, mas o anjo revidava com a espada. Ela feriu
horrivelmente o dragão azul com aquela lâmina. Boofeng fez seu
servidor desaparecer e evocou outros dez: todos coloridos e gigantes.
Para evocar cada um deles, Boofeng lançava os papéis dos sigilos no ar.
Eram muitas potências e o anjo já parecia com alguma dificuldade para
lidar com todas elas. Por isso, Knossa realizou outra evocação. Dessa vez
na língua nobre.
Eu já ouvira falar da lendária língua nobre: era um idioma antigo e
secreto do Mundo Branco, que era cantado. E através daquela evocação,
o Mago Branco liberava seu poder máximo. Se Knossa chegou a esse
ponto, significava duas coisas: ela considerava seus oponentes muito
poderosos e ia pegar pesado.
Knossa começou a cantar, com sua voz belíssima e forte. Era uma
canção doce, divina. Compreendi porque era chamada de língua nobre:
era bonita demais aquela canção.
Mas eu me aterrorizei com o que vi a seguir: Knossa evocou nada menos
que cinquenta demônios de alta hierarquia ao mesmo tempo!
– Puta que pariu! – soltou Mendeth, completamente alterado. Era a
primeira vez que eu o via com tanto espanto e medo.
Boofeng também fitava aquilo boquiaberto. Ele teve que agir muito
rápido: liberou dezenas de servidores poderosos ao mesmo tempo.
Boofeng só conseguiu se proteger porque pensou muito depressa. Ele
criou um grande escudo de servidores; dezenas deles foram
imediatamente estraçalhados com o ataque dos demônios e Boofeng só
não morreu por causa daquele escudo.
Mas a outra metade dos demônios de alta hierarquia investiu contra
Lamue. Vinte e cinco ao mesmo tempo.
– Mustse, evoque potências! – gritou Boofeng – Você vai morrer!
Mas a excessiva confiança que Mendeth possuía em Lamue lhe custaria
muito caro.
Lamue foi completamente esquartejado pelos demônios de alta
hierarquia. Mas ele os levou junto. No momento da morte, Lamue
explodiu, matando todos os vinte e cinco ao mesmo tempo.
Lamue não precisava ter morrido. Ele fez aquilo somente para proteger

358
Guerra das Cores Perdidas

seu mestre.
Mendeth apenas fitava o nada, com o corpo coberto pelo sangue de
Lamue.
– Knossa – Boofeng estava muito sério – você tentou nos matar?
– Eu não imaginava que havia tanta diferença entre nossos poderes –
respondeu Knossa –realizei um ataque normal e achei que suas potências
dariam conta do recado.
– Desculpe, Knossa, mas essa explicação não colou – retrucou Boofeng
– você usou uma evocação na língua nobre. O que tinha em mente?
– A língua nobre é completamente aceitável em batalhas. Mustse deixou
claro que queria lutar para matar.
– Você ainda leva a sério as coisas que ele diz? Você o conhece tão bem
quanto eu. Nem sempre ele mata quando ameaça.
– Ele me mataria se tivesse o poder – falou Knossa.
Mendeth estava em estado de choque. Acho que ele preferia jamais ter
recordado o seu passado ou recuperado Lamue para presenciar aquilo.
Eu sabia como Mendeth se sentia naquele momento: completamente
impotente. Ele havia focado todo o seu treinamento em Lamue. Tinha
dedicado toda a sua vida para fortalecê–lo e era completamente
dependente dele. Sem Lamue, o próprio Boofeng era capaz de matar
Mendeth em poucos segundos.
Todos fizeram suas potências desaparecer. Mendeth continuava
ajoelhado no chão, fitando o nada e tremendo.
Kiwala correu até Mendeth. Ajoelhou–se ao lado dele. Eu, Boofeng e
Knossa também fomos até lá.
– Pai? – perguntou Kiwala, com urgência – Fale alguma coisa, por favor.
– Isso aconteceu porque você não evocou outras potências para auxiliar
Lamue – falou Boofeng – mas você sempre faz questão de usar apenas
Lamue para tudo e nenhum outro. Aí está o resultado.
– Isso aconteceu porque você me levou para seu mundo idiota, para
estudar a magia octarina imbecil! – gritou Mendeth – Se eu tivesse
passado esses seis anos treinando minha própria linha da magia, como
vocês dois fizeram, o resultado dessa batalha seria diferente.
– Mustse, aceite: seis anos não teriam feito diferença – falou Knossa –
Lamue estava destinado à morte quando me enfrentasse. Só evoquei 50
demônios maiores. Eu poderia ter evocado cem ou mil. Mas eu tinha

359
Juliana Duarte

receio de matá–los junto com as potências se eu fizesse isso.


Mendeth levantou–se. Empurrou Knossa contra o chão e segurou–a
pelos cabelos.
– Sua desgraçada miserável! – gritou Mendeth – Fica aqui nesse mundo
sujo, posando de boazinha, mas na hora de matar tem sede de sangue e
prazer pela tragédia. Paz e amor no inferno! Sua falsa, hipócrita, lobo em
pele de cordeiro! Escrava do Deus dos desgraçados!
Mendeth deu um violento soco no rosto de Knossa e começou a chutá–
la. Boofeng tentou segurá–lo, mas Mendeth deu uma cotovelada no rosto
de Boofeng, o que fez com que ele cambaleasse. O nariz de Boofeng
sangrou.
Mas Mendeth parou. Afinal, ele sabia que para Knossa seria muito fácil
puni–lo se ele continuasse. Bastava evocar o anjo e Mendeth não teria
como se defender contra ele sem Lamue. Ela nem mesmo precisaria
cantar na língua nobre.
Eu, Kiwala e Boofeng fomos ajudar Knossa. Ela estava com o rosto
cheio de sangue. Mal conseguia se levantar por causa do corpo dolorido
com os chutes. Nós a ajudamos a levá–la ao templo. Lá dentro, as outras
irmãs deram assistência médica a ela.
– Eu não vou defender nenhum dos dois – Boofeng disse para mim e
para Kiwala – além de assassinar Lamue, Knossa também matou vários
dos meus servidores. Só não matou meu servidor principal e mais
poderoso porque o fiz desaparecer a tempo, quando percebi que a
situação estava feia.
– Então nem você e nem Mendeth tinham a intenção de lutar a sério? –
perguntei.
– Aí que está; nós lutamos a sério. Acontece que Knossa tem muito mais
poder que nós. Ela sabia disso e quando viu que a diferença era gigante,
poderia ter parado. Ela continuou porque quis. Bastava ela ter mostrado
os cinquenta demônios que eu acreditaria nela. Não precisava ter
ordenado toda a legião descer a espada em nós.
– Lamue foi impressionante – observou Kiwala – matou vinte e cinco
antes de morrer. E ele poderia ter matado mais.
– Eu sei – falou Boofeng – se ele não tivesse um mestre para proteger,
ele poderia ter derrotado todos os cinquenta sem morrer. Mas Knossa
disse que poderia evocar mais cem ou mil! Nem Lamue ia sobreviver a

360
Guerra das Cores Perdidas

essa. Eu também teria mais dezenas de servidores para continuar a luta,


mas eu duvido muito se eu teria continuado, somente para mandar todos
os meus servidores para a morte. Knossa não se importou em sacrificar
os demônios, como se não fosse nada.
Pouco depois, Mendeth reapareceu.
– Por onde andou? – perguntou Boofeng.
– Vagando – respondeu Mendeth – já que Knossa destruiu minha razão
de viver, pensei em pedir a ela um elixir da morte. Mas não estou a fim
de pedir mais favores para aquela falsa maga branca que não honra os
deveres de sua própria linha. Ela colocou o poder acima de sua suposta
bondade. Eu já disse antes e vou repetir: magos brancos são todos lixos
hipócritas. O ser humano não é bom e não pode negar sua natureza.
– Minha mestra não é perfeita – falou Kiwala – mas isso não exclui as
suas conquistas. Todos erram. Até mesmo a sua demonstração de
sentimentos em relação a Lamue pode ser vista como traição a sua
fidelidade à magia negra. No seu caso você colocou a bondade acima do
poder. Então não vejo motivos de você julgar os outros antes de julgar a
si mesmo.
Mendeth fitou–a seriamente.
– Vejo que Knossa aplicou–lhe um bom serviço de lavagem cerebral –
observou Mendeth – vai continuar a praticar magia branca, seguindo a
falsa maga e trair–me? Se optar por esse caminho, seguindo a maga que
matou a minha potência, você não mais precisará falar comigo
novamente. E não será mais minha filha.
– Achei ter ouvido você dizer que ia se matar – observou Boofeng.
– É possível que eu fique vivo somente para fazer Kiwala sentir culpa. Se
eu morrer, ela fará o que quiser e não me dará satisfações. No entanto,
eu quero satisfações.
– A sua razão de viver não é Lamue – falou Boofeng – e sim a busca
pelo poder, evolução espiritual ou qualquer coisa parecida com isso.
Você pode alcançar objetivo semelhante estudando outras linhas da
magia ou conjurando outro demônio de alta hierarquia. Poder para isso
não lhe falta.
– Não será o mesmo sem Lamue – falou Mendeth – meu poder e minha
evolução espiritual sempre foram completamente dependentes dele. Se
eu obtiver outro demônio ou seguir outro caminho terei menos da

361
Juliana Duarte

metade do meu antigo poder. Não posso aceitar isso. E você será
eternamente mais forte que eu. Isso é inadmissível.
– Acredito que cada um de nós deverá pensar qual caminho deseja seguir
a partir de agora – falou Boofeng – eu já decidi há muito tempo que a
minha linha de magia é a octarina e permanecerei no meu mundo para
prosseguir meus estudos. Convido Kiwala para conhecer o Mundo
Octarino também, a não ser que queira continuar aqui ou talvez retornar
com seu pai ao Mundo Negro. E se Wain desejar poderá vir comigo para
dar continuidade ao seu desenvolvimento promissor na área de
servidores.
– Aceito retornar ao Mundo Octarino – falei.
Afinal, eu estava bastante entusiasmada com meu servidor. Podia ser que
no futuro eu escolhesse treinar outra linha, mas eu não queria
interromper meu treinamento de magia octarina justo quando eu estava
empolgada e interessada.
Eu já tinha estudado e visto coisas suficientes de magia negra para
considerá–la uma linha perigosa e infeliz. Cheguei a empolgar–me com a
possibilidade de ter um SAG, mas de certa forma saber que a operação
mais avançada de magia branca exigia envolvimento com magia negra
não me agradava. Portanto, talvez fosse melhor eu descartar tanto a
magia negra quanto a branca.
Sendo assim, eu teria duas opções: aprofundar–me na divertida magia
dos servidores ou simplesmente fazer a coisa mais óbvia possível:
retornar ao meu mundo, como eu sempre senti que deveria fazer,
embora ainda não me sentisse preparada.
Kiwala já tinha 18 anos. Ela não dependia mais de mim. Portanto, eu
estava livre para ir aonde desejasse. Mas se cada um fosse para um canto
diferente seria triste. Por isso eu torcia para que Kiwala optasse pelo
caminho octarino como eu, para ficarmos todos juntos. Já Mendeth eu
duvidava muito que tivesse interesse em se aprofundar em servidores,
pois para ele seria insuportável ser sempre inferior a Boofeng.
Kiwala parecia com uma dúvida cruel. Quem ela seguiria? Boofeng?
Mendeth? Knossa?
Kiwala foi na direção de Boofeng e abraçou–o.
– Não me importa qual caminho eu quero – ela disse – só quero ficar
junto de você.

362
Guerra das Cores Perdidas

– Vamos ao Mundo Octarino, então? – perguntou Boofeng.


– Só irei com você se me aceitar como sua namorada – falou Kiwala –
tenho 18 anos agora. Você não tem mais desculpas.
Agora Boofeng estava realmente sob pressão. Não teria mais como
escapar sem machucar os sentimentos dela.
– Sou imortal agora – anunciou Kiwala – hoje de manhã, no meu
aniversário, fui autorizada por Knossa a beber do elixir da longa vida,
pois sou maior de idade e posso decidir o que desejo. Você me instruirá
na magia octarina e ficaremos juntos eternamente no seu mundo.
– Kiwala, eu posso ser seu mestre – disse Boofeng – posso ensiná–la
magia para sempre e você poderá permanecer no Mundo Octarino pela
eternidade, se desejar. Auxiliarei você em tudo o que estiver ao meu
alcance. Pode contar sempre comigo. Mas não poderemos namorar.
– Por quê? – perguntou Kiwala, chocada – Você acha que eu me tornei
feia? Você continua achando Knossa mais bonita, não é?
– No momento estou muito desapontado com o que Knossa fez e ela
não tem nada a ver com isso – Boofeng deixou claro – Você se tornou
uma moça linda. Mas ainda assim não posso aceitar.
– Você não sente atração por mim?
– Você é muito atraente, mas eu ainda te vejo como minha sobrinha.
Não posso fazer isso. Desculpe.
– Então vamos fazer sexo pelo menos uma vez, por favor! – insistiu
Kiwala – Eu te desejo muito! Depois disso, prometo que te deixarei em
paz.
– Kiwala! – falou Boofeng, espantado – Você por acaso ouviu alguma
coisa que eu disse? Eu não queria ser mal educado com você, mas eu
disse não. E não é não! Eu repito isso desde que você era pequena e até
hoje você não aceita receber um não. Eu tinha esperanças de que você
mudasse depois do seu período de purificação no Mundo Branco, mas
você continua a mesma.
– Se você quiser que eu mude, eu mudarei por você – respondeu Kiwala
– diga exatamente que tipo de namorada você deseja e eu me tornarei
essa pessoa. Pelo menos me dê um beijo! Você vai me negar até mesmo
um beijo?
Nesse momento, Kiwala já estava derramando lágrimas. Coitado do
Boofeng. Ele estava tentando ser educado, mas aquilo só piorava a

363
Juliana Duarte

situação.
Mendeth também olhava sem acreditar, embora já estivesse ficando
entediado com aquela novela. Acho que ele não sabia sobre aquela
história de Kiwala gostar de Boofeng.
– Sendo assim, eu vou dizer, mas você não vai gostar – falou Boofeng –
eu gosto de uma namorada que não seja insistente e que as coisas
aconteçam naturalmente, sem forçar a barra.
– Você só está dizendo essas coisas para me humilhar! – gritou Kiwala –
Eu te odeio! Você matou meu pai! Você merece morrer!
Kiwala tinha a mania de colocar no assunto coisas que não tinham nada
a ver.
– Esperei por todos esses anos, ansiosamente, para chegar até uma idade
em que você me aceitasse – prosseguiu Kiwala, dramaticamente – te
ofereci todo o meu amor, te ofereci a minha vida, e você negou! Eu
jamais me esquecerei disso! Pai, eu vou voltar com você para o Mundo
Negro. Eu vou ficar mais poderosa que você, tio Boo. Eu prometo. E
quando isso acontecer, darei um jeito de te trancar nas salas de tortura e
fazer tudo o que eu quiser com você.
Boofeng parecia não acreditar que a “Kiki” estivesse dizendo aquelas
coisas.
– Kiwala, você é uma imbecil – falou Mendeth – poderia ter ido ao
mundo dos palhaços e ter dado um jeito de conquistar o seu tio trouxa
lá, já que ele é a ingenuidade em pessoa. Bastava enganá–lo até obter o
que queria. Mas eu não estou nem aí. Se quiser viver no meu castelo, terá
que obedecer às minhas regras. Já te aviso: você vai sofrer. Eu sei que eu
sou um desgraçado e sua vida comigo estará fadada à infelicidade; esse
foi o único destino daqueles que já viveram sob o mesmo teto que eu.
Essa é sua última chance de pedir desculpas ao “tio Boo” e voltar atrás.
Kiwala ficou assustada com todas aquelas ameaças. Mas Boofeng falou
antes dela.
– Eu não vou aceitar desculpas – Boofeng estava sério – e jamais vou me
esquecer do que me disse. Se desejava ter um inimigo forte, acabou de
arranjar um. Eu não vou mais interferir na sua vida. Se um dia você me
procurar pedindo ajuda, eu não vou dar. Antes você era criança, então eu
admitia que dissesse coisas absurdas. Mas agora é diferente. Esqueça que
me conheceu.

364
Guerra das Cores Perdidas

Kiwala desatou a chorar.


– Bem feito, Kiwala – falou Mendeth – você mereceu. E você, Boofeng,
disse alguma coisa que presta pela primeira vez.
– Cale a boca – retrucou Boofeng – suma daqui.
– Está todo confiante agora que sabe que tem mais poder que eu – falou
Mendeth – cuidado, infeliz. Isso não será por muito tempo. Eu vou obter
alguma potência poderosa nem que eu venda minha alma. Vou voltar
para matá–lo e oferecer o seu cadáver para Kiwala violentar.
Mendeth afastou–se alguns passos. Levou Kiwala para o círculo de
proteção e evocou uns dos servos do castelo. Alguns segundos depois,
Mendeth e Kiwala foram evocados de volta ao Mundo Negro.
Assim que os dois foram embora, Boofeng começou a chorar.

365
Juliana Duarte

Fraquezas

Ainda bem que eu estava ao lado de Boofeng para ajudá–lo. Ele ainda
chorou por algum tempo, mas depois conseguiu se acalmar.
– Wain – falou Boofeng, de repente – eu estou errado?
– Não sei mais o que é o certo e o errado – confessei – mas acho que
você fez o melhor que pode.
– Obrigado. Eu precisava ouvir isso. Estou muito confuso. Se eu
simplesmente tivesse aceitado namorar Kiwala, nada disso teria
acontecido.
– Você não podia ter feito algo contra a sua vontade – falei – não pense
mais nisso.
Antes de ir embora, resolvi convencer Boofeng a irmos conversar com
Knossa uma última vez. Ele não estava muito a fim, mas devido ao meu
pedido ele aceitou.
Knossa nos recebeu. Ela estava cheia de curativos, devido aos
machucados produzidos por Mendeth.
Ela pediu muitas desculpas a Boofeng e disse que estava arrependida do
que tinha feito. Boofeng disse que ia pensar no assunto, pois não estava
em condições de dar uma resposta agora.
Contei superficialmente o que havia acontecido. Não dei detalhes, apenas
mencionei sobre uma briga feia e que Mendeth e Kiwala tinham
retornado ao Mundo Negro.
– Lamento por Kiwala – falou Knossa – ela tem talento para magia
branca. É realmente uma pena ela ter se desviado do caminho.
Ainda conversamos mais algumas coisas. No entanto, percebi que
Boofeng estava com vontade de sair de lá. Por isso, despedi–me de
Knossa e avisei que iríamos partir. Ela disse que nós dois seríamos
sempre bem–vindos no Mundo Branco. Kiwala também poderia
retornar, mas Mustse estava proibido de pisar no templo.
Eu e Boofeng voltamos ao Mundo Octarino. Boofeng propôs algo
diferente dessa vez. Ele ofereceu–se para me treinar em magia octarina.
Quando ele resolvesse prosseguir em seus próprios estudos com Djroll,
Qirimot voltaria a ser a minha mestra.

366
Guerra das Cores Perdidas

Passei a viver com ele na sua residência, que também tinha muitos
aposentos, embora não fosse tão imponente quanto o castelo de Mustse.
Ainda assim, eu tinha certeza de que eu seria muito mais feliz lá do que
no Mundo Negro.
A casa dele era completamente colorida e feliz. Havia quadros de arte
abstrata por todos os lados, assim como móveis e decorações de todas as
cores. Era estonteante caminhar ali dentro.
Arrumei um emprego como garçonete. As garçonetes no Mundo
Octarino não ganhavam tão mal quanto no Mundo Negro e eu fazia
questão de trabalhar para ajudar com as despesas da casa. Boofeng
trabalhava com criação de jogos, alguns dos quais tinham feito muito
sucesso no Mundo Octarino. Os jogos que ele criava eram totalmente
voltados à prática de magia. Na verdade ele tinha um curso completo de
magia octarina no formato de jogos. Ele fez questão que eu jogasse
todos. Beneficiei–me muito com o que aprendi e me diverti demais.
E sempre quando eu tinha momentos de grande diversão, eu pensava em
como Kiwala adoraria estar conosco. Eu nunca mencionava nada, pois
não queria deixar Boofeng triste. Mas eu sabia que ele também devia
estar pensando nela de vez em quando. Ela devia estar sofrendo na
companhia de Mendeth.
Eu melhorei muito no desenvolvimento do meu servidor. Wooii tornou–
se consideravelmente poderoso e já sabia fazer várias magias. Boofeng
adorava criar servidores do meu nível para duelar comigo. Nessas
batalhas sempre ocorriam coisas engraçadas, como evocação de flores,
disputas de criatividade, guerra de cores e tudo mais que pudéssemos
pensar. Tudo terminava em muitas risadas, pois fazíamos nossos
servidores evocarem coisas completamente sem sentido e totalmente
inúteis para uma batalha real, como abajures, sapatos, cabides, comidas e
ursinhos de pelúcia.
Alguns anos mais tarde, depois de muito treinamento, meu servidor
tornou–se um auxiliar real. Ele já estava quase tão poderoso quanto
Garfdie, o que era muito impressionante. Então decidi libertar–me
completamente do pacto que me unia a ela.
No dia em que fiz isso me senti muito leve. Era como retirar um peso
das costas. Eu só precisava de Wooii agora. Mesmo assim, Boofeng
alertou–me para num futuro próximo começar a desenvolver outros

367
Juliana Duarte

servidores para não cometer o mesmo erro de Mustse que depositou


todos os seus poderes em apenas um ser e, quando o perdeu, a maior
parte de seus poderes se foram com ele.
Já fazia dez anos desde que havíamos retornado do Mundo Branco. Foi
tempo suficiente para que eu superasse o poder que eu tinha com a
magia negra por intermédio da magia octarina. Wooii estava fortíssimo e
eu já havia desenvolvido outros servidores menores como auxiliares.
Meu estudo de sigilos estava indo bem e eu já havia dominado
consideravelmente a língua octarina.
Na maior parte do dia, nós dois nos dedicávamos ao trabalho ou ao
treinamento espiritual. Mas de vez em quando tínhamos tempo para sair
e nos divertir, como ir ao cinema, jantar fora, dentre outras diversões
exóticas e únicas que aquele mundo colorido oferecia.
Houve uma ocasião em que saímos para jantar fora à noite, no dia do
meu aniversário. Boofeng vestia um terno marrom e uma gravata
colorida; estava muito elegante. Eu usava um vestido azul tomara que
caia e sapatos de salto alto.
Boofeng contou–me que já estava independente de Djroll e poderia
prosseguir seus estudos e pesquisas sozinho a partir dali. Os dois tinham
poderes bem parecidos, embora seguissem áreas diferentes. As épocas
em que Boofeng estudava com Djroll eram para que ele lhe ensinasse
sobre áreas específicas que ele ainda não dominara, mas nesse ponto
Djroll teria pouco a lhe ensinar.
Conversamos um pouco sobre teoria da magia. Até que, tomado de
coragem, Boofeng ofereceu–me o meu presente. Era uma caixinha
pequena. Com curiosidade, abri–a.
Eu levei um susto. Era um anel de noivado. Boofeng estava me pedindo
em casamento.
Bem, fazia dez anos que vivíamos juntos. Ele havia esperado bastante
tempo. Como tínhamos a eternidade, ele escolheu não ter pressa.
Fiquei nervosa. Eu não sabia o que dizer.
Fitei–o firmemente. Ele aguardava ansiosamente por uma resposta.
– Me desculpe – tive que dizer – não posso aceitar. Eu te vejo apenas
como amigo. Você é um amigo muito especial e agradeço por tudo o que
fez por mim em toda a minha vida. Mas infelizmente não posso retribuí–
lo dessa maneira.

368
Guerra das Cores Perdidas

Eu nunca esquecerei a expressão triste no rosto de Boofeng. Ele estava


se segurando.
– Tudo bem – ele disse – eu compreendo. Agora sei como Kiwala se
sentiu.
Ele disse que precisava ir embora mais cedo, pois não estava se sentindo
bem. Desejou–me um feliz aniversário e uma boa noite.
Nos dias seguintes nos falamos pouco. Até que eu expressei o meu
desejo de retornar ao Mundo Verde. Boofeng ficou muito surpreso.
– Isso foi por causa do meu pedido? – perguntou Boofeng, desapontado
– Por favor, não vá embora por esse motivo. Prometo que não vou
mencionar esse assunto de novo. Podemos ser sempre apenas amigos.
– Não é por isso – afirmei – sinto que está na hora de eu retornar. Sinto
saudades do meu povo e da minha terra. Um dia retornarei ao Mundo
Octarino. Mas no momento gostaria de permanecer um tempo por lá.
– Nesse caso, está tudo bem. Eu a acompanharia, mas parece que você
quer um tempo sozinha. Então irei te passar os procedimentos
evocatórios para quando desejar retornar a esse mundo. Você será
sempre bem–vinda.
Quando ele saiu para o trabalho naquele dia, resolvi visitar cada cômodo
da casa uma última vez. Eu sentiria muitas saudades daquele lugar. Se eu
quisesse, poderia continuar lá para sempre. Eu era feliz. No entanto,
havia algo mais forte que eu que me impulsionava a retornar. Desde a
nossa velha ida ao Mundo Branco eu já possuía esse desejo. Depois de
escutar o pedido de Boofeng, resolvi que já era hora de partir. Eu me
importava muito com ele, o considerava um maravilhoso mestre e amigo.
Mas eu não queria esquecer quem eu era e de onde vim.
Quando entrei no quarto de Boofeng, encontrei o diário dele, aberto
numa página. Li o que ele havia escrito um dia antes de irmos ao jantar
do meu aniversário.

“Não queria precipitar–me em dar o anel para Wain, mas já adiei demais essa
decisão. Posso arrepender–me e ela pode me odiar. No entanto, se ela aceitar penso no
futuro maravilhoso que nos aguarda. Ficaremos mais próximos, faremos mais coisas
juntos, sairemos mais para jantar e nos divertiremos na cidade. Tenho muitas ideias
para belíssimos presentes que Wain gostaria de ganhar, mas que não dou agora para
não constrangê–la, já que ela não gosta que eu gaste demais com ela. No futuro talvez

369
Juliana Duarte

tenhamos filhos... poderemos dar a eles os nomes dos pais de Wain. Eles poderão
estudar a magia octarina e conhecer os outros mundos”

Eu estava muito triste por ter frustrado os sonhos de Boofeng. Nos


próximos dias, as páginas estavam em branco. Acho que ele não teve
coragem de continuar escrevendo depois daquilo. Talvez tenha sido um
choque para ele. Por morarmos juntos há dez anos, ele tinha esperanças
de que aquilo naturalmente aconteceria. Mas o fato de eu não aceitar...
essas coisas não se explicam.
Finalmente nós nos despedimos. Foi doloroso, mas tinha que ser feito.
Retornei ao Mundo Verde uma vez mais. E ao voltar, senti uma sensação
esquisita. Não consegui explicar se foi boa ou ruim. Doía e ao mesmo
tempo me confortava, já que naquele mundo tinham acontecido tantas
coisas horríveis e maravilhosas.
Voltei para minha casa. Mas eu só ficava lá à noite. Na maior parte do
tempo, eu passeava nos bosques e me deitava sob a beira dos rios, para
ouvir o som dos pássaros e olhar o céu.
Fechei os olhos. Ouvi o som da cachoeira. Recordei–me de Grina e sua
foquinha. Ela mostrava–me a magia da água; que era capaz de congelar.
A pequena Grina, tão doce. Mas eu lembrava que em nosso primeiro
encontro havíamos discutido. Engraçado.
Minha querida irmã. Ela, em sua magnificência, vestindo o manto da alta
sacerdotisa da terra e, no dia derradeiro, honrada com o manto papal.
Talvez eu pudesse estudar muito e tentar conquistar uma posição de
honra na ordem também. Sempre senti que eu deveria dedicar minha
vida a isso. Eu teria a imortalidade para tal realização. Mas ainda assim,
eu sentia urgência que fosse feito.
Adentrei nas florestas. Eu buscava ansiosamente por um animal de
poder.
Será que alguma criatura iria me aceitar? Eu, cujas mãos tinham sido
manchadas pelo sangue de muitos seres em meus sacrifícios de práticas
de magia negra? Os animais totem eram capazes de sentir o interior de
cada coração. O meu estava manchado com morte. Eu seria digna?
Por muitos dias vaguei pela floresta. Os animais pareciam se esconder de
mim, com medo. Até que avistei uma cobra.
Recordei–me da cobra na cama de Mustse. Também me lembrei da

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Guerra das Cores Perdidas

cobra que eu vi um dia nas florestas, aos meus 12 anos. Ela não me
aceitara.
Essa cobra veio na minha direção. Finalmente, eu obteria a minha
companheira mágica. Abaixei–me para dizer–lhe que estava tudo bem.
Que ela estava segura.
Ela abocanhou a minha mão e escondeu–se por dentre os arbustos.
Deitei–me no chão. Eu estava me sentindo mal. Sentia dores, febre,
náuseas. Era uma cobra venenosa. Mas aquele veneno não poderia me
matar, pois eu era imortal.
Eu sofri. Meu corpo não sabia se morria ou se vivia. Eu desejava
desesperadamente viver. Não entendia o motivo. Talvez não houvesse
um significado. O meu corpo simplesmente me impelia para a vida.
Naquele momento eu compreendi. A natureza me dizia que já estava na
minha hora. Aquele era meu povo; eis meu mundo.
No Mundo Negro deparei–me com um ambiente violento de morte,
sangue, tortura e sede pelo poder. Tudo o que importava era o
primoroso poder. O coração acelerado frente ao êxtase do perigo. O
empunhar de uma espada para dominar feras bestiais. E, quando o bravo
herói, preenchido por um poder tremendo e banhado em sangue, chega
ao cume da montanha, contempla a humanidade perdida. Descobre, em
sua fúria violenta, que ele também é humano. Ele está vivo e tem tanto
medo quanto o coelho morto no altar do sacrifício. Os olhos vermelhos
do coelho branco...
Vi um coelho branco cruzar pela floresta. Não sei se foi sonho ou
pesadelo.
No Mundo Branco de doces anjos emanava o amor. Mas eu nada sabia
sobre amor, paz e bondade.
Que é o amor?
O coelho branco balançou os bigodes.
No Mundo Octarino havia a diversão, a alegria, o divertimento, a
amizade.
Vamos ser amigos?
O Mundo Vermelho era da cor do sangue.
“O coelho branco quer ser meu amigo. Aproxime–se, coelho branco”.
E, finalmente, eu entendia o que era meu mundo. A natureza era sábia
por inventar a morte. Era a invenção mais genial do mundo.

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Juliana Duarte

Eu não entendia porque os seres humanos tinham tanta dificuldade para


superar as coisas ruins. Por que sofriam tanto? Por que eram tão fracos?
Por que precisavam de algo supremo?
“A magia é para os fracos”. Por quê? Por que existia a magia, a religião?
A filosofia e a arte? Por que todos os seres humanos eram diferentes?
O Mundo Verde era o mundo em que nenhuma pergunta ou resposta
eram necessários. Você somente caminha pelas florestas e compreende
tudo. Por que eu nunca entendi uma coisa assim tão simples?
Talvez eu não precisasse de amor. Não precisasse de amigos. Não
precisasse de beleza, fama, dinheiro ou poder. Simplesmente não
precisasse de coisa alguma.
Na Magia Verde você apenas respira; e aí reside todo o significado.
Avistei uma grama rala. Senti a grama com os dedos. Cada coisa tinha
seu tempo para acontecer.
No instante derradeiro, dominei uma única magia verde: a magia de
escolher o momento da morte.
Eu abdiquei da minha imortalidade. Isso porque aquele momento de
morte seria o mais feliz do mundo. Eu estava deitada no solo e avistava a
copa das árvores. Havia uma atmosfera fresca e tudo parecia muito vivo.
Meus sentidos estavam aguçados e eu ouvia cada um dos sons.
Fui ficando com sono. O veneno da cobra era doce como mel
percorrendo minhas veias.
O coelhinho branco queria escolher–me como sua dona. Queria ser meu
animal totem. Mas eu ia morrer. Se eu aceitasse aquela conexão, eu iria
matá–lo junto.
“Coelho branco, corra. Aqui é perigoso. Não chegou a sua hora”.
Eu chorei antes de morrer, porque eu senti–me sozinha. O coelho
branco havia ido embora. Ainda assim, as árvores me fitavam
maravilhadas.

372
Guerra das Cores Perdidas

O Mundo Vermelho

Quando despertei, eu era um pequeno ser.


Eu tinha pele escura; cabelos negros, longos e crespos. Olhos negros.
Orelhas com lóbulos muito longos. Pescoço com marcas de anéis.
Meu nome era Fugli. Minha irmã pequenina chamava–se Feinur. Senti
que a maior tarefa da minha vida seria tomar conta de minha irmãzinha.
Ela era bem mais nova que eu, mas nossos pais não mais estavam nesse
mundo. Por isso, como não tínhamos renda, nós duas, mesmo sendo tão
pequenas, fomos enviadas para o mosteiro.
Os anos passaram. Tornei–me uma maga vermelha poderosa. Eu tinha
19 anos. Minha irmã tinha 12. Ambas éramos monjas extremamente
dedicadas. Minha irmã era frágil; sua saúde era fraca e seu coração era
trêmulo. Eu sempre estava ali para apoiá–la. Para abraçá–la, dar–lhe
ternura e afeto. Eu a amava mais que tudo. Não entendia o motivo
daquele amor. Sabia apenas que minha pequenina era o tesouro mais
especial do mundo e ela precisava de mim ao seu lado para suportar a
fúria do mundo.
O céu de nosso mundo era vermelho–sangue. As casas eram
rudimentares; pequenas ocas de madeira. Nada tínhamos de tecnologia,
pouco sabíamos sobre os outros mundos.
No entanto, possuíamos um conhecimento admirável em meditação e
era disso que mais nos orgulhávamos.
Quando fui iniciada na ordem, rasparam os meus cabelos. Eu e minha
irmã tínhamos as cabeças raspadas e usávamos mantos vermelhos.
Caminhávamos juntas de mãos dadas para mendigar nossos alimentos.
As pessoas gentis nos davam alguns restos de comida e assim vivíamos.
Mergulhei fundo em meditação. Eu desejava ir mais longe. Eu
ambicionava desvendar o segredo de todas as coisas.
Eu sentia que era uma pessoa diferente; especial. Precisava resgatar o que
havia sido perdido. Ficava horas e horas meditando sem parar. Até que
um dia, determinada, resolvi permanecer 24 horas sem me mover.
Foi duro; foi sofrido. Mas era algo que eu precisava.
E, finalmente, após muito sofrimento, suor, dor e lágrimas, eu vi.

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Juliana Duarte

Eu vi a imagem de uma menina feita de árvore. Eu enxerguei o Mundo


Verde.
Wain. Meu nome era Wain. Viajei para diversos mundos e conheci
pessoas mágicas: Mustse, Clarver, Boofeng, Kiwala, Knossa, dentre
tantos outros. Contudo, meu coração sempre esteve num só lugar: minha
irmã.
Eu tentava esquecer. Mas no fundo o meu karma possuía um só
caminho: unir–me a ela uma vez mais.
Wain agora era Fugli; a poderosa monja vermelha que enxergou sua vida
passada. E a papisa Panl agora era Feinur; minha pequena irmãzinha
mais nova.
Quando saí daquela meditação, minhas pernas tremiam. Toquei a cabeça
da minha irmã, com leveza. Através desse ato, ela se lembrou de tudo.
Nós duas nos fitamos com carinho e nos abraçamos. Finalmente, as duas
irmãs tinham se reencontrado.
Um dia, todas as pessoas que já conheci iriam reencarnar no Mundo
Vermelho. Cada uma delas atingiria a libertação e jamais renasceria
novamente em nenhum dos mundos.

FIM

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