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Juliana Duarte
2013
Para Pedro
Sumário
O Mundo Verde____________________________________________7
O Animal de Poder________________________________________23
O Novo Papa_____________________________________________31
Evocações_______________________________________________40
Os Prisioneiros____________________________________________47
O Treinamento____________________________________________56
O Trem_________________________________________________64
O Bar___________________________________________________74
Aniversário_______________________________________________86
A Maga Branca___________________________________________100
A Ira de Fiska____________________________________________125
Demônios______________________________________________133
As Salas Secretas__________________________________________142
Magia Avançada__________________________________________153
O Anjo Imortal__________________________________________166
A Fúria da Natureza_______________________________________185
A Execução_____________________________________________196
Cores da Magia___________________________________________204
O Retorno______________________________________________252
O Diário de Mustse_______________________________________260
Priela Knossa____________________________________________314
Poderes________________________________________________353
Fraquezas_______________________________________________366
O Mundo Vermelho_______________________________________373
Guerra das Cores Perdidas
O Mundo Verde
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O povo floema de pele clara é mais dedicado à área das belas artes.
Também os admiro, vários amigos meus são desses clãs, embora existam
também artistas xilema e guerreiros floema.
O povo do leste é regido sob o elemento ar. Dizem que os líderes de clãs
são capazes de adquirir o controle sobre o peso e voar. Eles possuem nas
costas asas atrofiadas feitas de folhas. São geralmente magros e leves, ao
contrário de nosso povo, que já possui uma maior consistência muscular.
O povo do sul é do elemento fogo. Possuem a pele completamente
negra e carbonizada. É sempre bonito ver um caminhante do sul, com
seu sorriso gigante cheio de dentes brancos perfeitos e os dedos da cor
do carvão. Eles têm cabelos amarelos, vermelhos e alaranjados. Os olhos
são de mesma cor.
Os caminhantes do oeste dominam o elemento água. A tonalidade de
suas peles varia do azul escuro ao azul claro. Raramente nascem alguns
com pele levemente esverdeada. Quando essas criaturas raras nascem
costuma–se nomeá–las com a letra “Z”, pois essa letra é utilizada
somente para nomear membros da nobreza de todos os povos. Em geral
possuem cabelos e olhos completamente negros.
A questão espiritual é muito forte em nosso mundo, assim como na
maioria dos outros mundos dos quais já ouvi falar. Sobre os outros
mundos apenas ouvimos rumores, pois não nos é permitido pisar em
terras estrangeiras e assim ocorre com a maioria dos demais povos. Isso
porque existe a lenda de que um sangue estrangeiro que pisa em terras de
solo não materno resulta em grandes guerras. Existiram algumas guerras
entre mundos no passado que dizimaram muitos dos nossos e felizmente
permaneceram apenas na memória.
A dedicação ao espiritual é considerada o caminho mais elevado que uma
criatura do povo verde pode seguir. No entanto, são poucos os que
possuem vocação suficiente para esse grande desafio. Não é uma escolha
fácil, pois exige muito sacrifício, disciplina e dedicação.
A maioria de meus colegas e amigos sempre admiraram os monges,
sacerdotes e altos sacerdotes. Quando crianças todos eles, quando
questionados sobre seus sonhos e sobre o futuro, apontavam essa
carreira como a mais desejável e promissora.
No entanto, quando crescemos muitos de nós deixam de lado esses
sonhos antigos e lendas para viverem o mundo real, desejando profissões
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Nesse dia prendi meus vastos cabelos castanhos escuros em dois coques;
esse era um penteado chique para celebrações desse porte. Usei um
vestido verde escuro e delineei meus olhos castanhos escuros de negro.
Batom vermelho escuro nos lábios, unhas pintadas, pulseiras, brincos,
colar, sapatilhas.
E lá estava eu, num cantinho da festa, sentindo–me completamente
perdida naquele local em que as únicas pessoas que eu realmente
conhecia eram meus pais e minha irmã, além de alguns parentes distantes
que eu raramente via.
Meus pais conversavam alegremente com os parentes. Observei minha
respeitável irmã, em seu porte majestoso. Ela era incrivelmente bonita;
de uma beleza rara, exótica, estonteante. Desnecessário dizer que nós
nos parecíamos pouco. Na verdade, sempre que um parente ou
desconhecido mencionava que nós duas nos parecíamos eu me sentia
extremamente feliz, embora sentisse pena da minha irmã, já que estava
sendo praticamente insultada com a comparação. Ainda assim, ela nada
dizia. Nem mesmo um sorriso ou alteração facial.
Ela era extremamente séria. Era raro ver um sorriso em seus lábios, se é
que eu já vira um dia. Enquanto meus cabelos eram meio ondulados,
levemente crespos e rebeldes, os dela eram repletos de cachos bem
definidos: cabelos de caracóis, longos, perfeitos. Tínhamos cabelos de
cor semelhante, mas os olhos dela eram de um tom castanho médio.
Ela tinha a pele em tom marrom mais escuro que o meu. O contraste
entre o tom castanho mais claro dos olhos dela e o castanho escuro de
sua pele eram o que gerava aquela beleza exótica, rústica e violenta. O
olhar dela era assustador, provocante, sensual.
Naquele dia ela trajava o manto clerical marrom escuro, portado somente
pela alta sacerdotisa da terra. Seu colar, brincos e pulseiras eram de ouro
puro, todos com o símbolo do elemento terra incrustado: o triângulo
invertido cortado por uma linha horizontal. Ela usava botas marrons,
com detalhes dourados.
Carregava um enorme cajado dourado com o símbolo de um planeta
circundado por um anel. Aquele cajado era incrível, de uma beleza
fenomenal. Eu tinha vontade de pedir para segurá–lo por um momento,
ele parecia pesado. Mas eu não tinha coragem de fazer um pedido como
aquele para ela. Eu a respeitava muito e, sinceramente, também a temia.
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coração palpitante.
Depois de terminado o discurso, ela abraçou meus pais e parentes.
Houve um momento em que ela aproximou–se de mim e me abraçou
também.
Ela não pronunciou nenhuma palavra e eu também não. Foi um
momento de muita emoção para mim, mas eu não consegui dizer nada.
Depois disso, ela se afastou novamente.
“Jamais conseguirei expressar o que sinto por você, minha amada irmã; o
quanto te admiro e respeito. Espero que possa ter captado todos os
meus sentimentos por esse abraço”
Esses foram apenas pensamentos que jamais expressei.
Quando consegui sair de meu transe, atentei para os próximos altos
sacerdotes que foram chamados.
– Belida Lacon Pok.
Eis a alta sacerdotisa do leste, de elemento ar. Suas asas de folhas verde–
vivas eram consideravelmente desenvolvidas; prova de sua majestade,
que muitas vezes se reflete em traços físicos. Vestia um manto cinzento
semelhante ao seu tom de pele. Era adornada por jóias de prata e
carregava um cajado prateado de estrela. Seus cabelos eram bem curtos,
finos e delicados.
Logo o terceiro nome foi chamado:
– Sassa Xinqui Kovu.
A alta sacerdotisa do sul, senhora do elemento fogo, tinha pele negra
como breu e trajava o manto vermelho do fogo. Carregava o cajado de
bronze do sol. Seus cabelos longos eram loiros e ondulados, parte deles
presos; a outra parte caia–lhe pelos ombros adoravelmente. Seus olhos
eram alaranjados.
E, finalmente, uma surpresa quando o último nome foi anunciado:
– Zermer Darfir Zonja.
Eu já tinha ouvido falar naquele nome antes. Minha irmã já o
mencionara algumas vezes e, mesmo entre alguns conhecidos meus, ele
devia ser relativamente famoso. Mas era a primeira vez que eu o via
pessoalmente.
Ele era o maior rival da minha irmã. Ele e ela eram os candidatos mais
fortes para o posto de papa.
Meu maior espanto foi ver a cor da pele dele: um azul extremamente
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desafiei–a.
Dessa vez ela ficou quieta; apenas fitou–me com raiva. Se nem eu mesma
tinha coragem de falar com minha irmã, era óbvio que aquela menina
qualquer não ousaria nem mesmo aproximar–se dela. Quanto mais para
dizer aquelas coisas absurdas.
Em seguida, o próprio Zermer aproximou–se de Grina e segurou–a pelo
braço.
– É o bastante – falou Zermer – Grina, você vem comigo. Solicitei que
você fizesse amizade com ela e não que discutisse. Sinto muito, senhorita
Barzz.
Zermer afastou–se, levando Grina pelo braço. Ela apenas lançou–me um
olhar esnobe e acompanhou–o.
Aquele incidente me deixou muito pensativa. Ao contrário do que
imaginei, Zermer devia ser uma pessoa educada e humilde. Mas o fato de
sugerir que sua irmã conversasse comigo me soou meio hipócrita: ele
queria dar uma de bonzinho por fora, enquanto na verdade desejava que
minha irmã fosse destruída. Eu não duvidava que aquilo não passasse de
uma encenação e que Zermer tivesse mandando que ela dissesse aquelas
coisas.
De qualquer forma, aqueles dois me pareciam criaturas desprezíveis: por
falta de coragem de dirigir a palavra a minha irmã, eles queriam me usar
para o joguinho deles. Obviamente eles desconheciam que o meu
diálogo com Panl era zero. Eu jamais a incomodaria, muito menos para
relatar aquele incidente.
Servi suco de uva numa taça e sentei–me sozinha numa mesa isolada.
Permaneci observando os convidados. Por um lado era divertido ver os
seres dos quatro povos reunidos: aquela mistura linda de cores e raças.
Por outro lado, eu já estava entediada, sentia que não devia estar ali.
Embora admirasse os monges e quisesse saber mais sobre o caminho
monástico, eu não tinha coragem de conversar com nenhum deles.
Sinceramente, a única pessoa com quem eu tinha coragem de conversar
seria com a petulante Grina. Afinal, ela já havia sido mal educada comigo
e eu me sentia no direito de retrucar.
Bolei uma estratégia: percebi que Grina gostava dos salgados de tomate e
que eles eram bem servidos quando se colocava óleo sobre eles. Reuni
algumas garrafas de óleo espalhadas pelas mesas e coloquei–as sobre a
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minha. Dessa forma ela teria que se dirigir até o local em que eu me
encontrava.
Isso demorou longos minutos. Muitas pessoas vinham até a minha mesa
pegar o óleo e aquilo era um incômodo.
Quando Grina se aproximou, ela apenas segurou a garrafa rispidamente
e fez menção de se retirar.
– Tenho algo a te perguntar.
Ela apenas me fitou desconfiada sem dizer nada. Aguardou que eu
falasse.
– Você sabe como se faz para seguir o caminho monástico?
Grina fez uma expressão de desprezo.
– Você não sabe algo simples assim? Por que não pergunta para a sua
irmã?
– Posso compartilhar com você o que minha irmã me conta se você me
revelar o que sabe.
Ela concordou. Claro que ela queria saber mais sobre a minha irmã:
talvez tentar descobrir algum ponto fraco e revelar para Zermer. Ela
sentou–se ao meu lado.
– Não tenho interesse nesses assuntos, portanto sei pouco – disse Grina
– agora conte–me você.
– Duvido muito que não tenha interesse. Não quer estudar para ser
monja?
– Isso não lhe diz respeito.
Aquela conversa não estava muito promissora.
– Qual a idade mínima para começar o treinamento? – resolvi perguntar.
– Não creio que exista uma idade mínima – respondeu Grina – devido
ao grande potencial captado em Zermer, ele iniciou um rigoroso
treinamento desde os sete anos.
– Ao potencial você se refere apenas ao fato de ele possuir pele
esverdeada?
– Essa é uma evidência mais do que suficiente caso não saiba, menina
ignorante – esbravejou Grina – se eu também tivesse nascido com tal cor
de pele, hoje em dia eu já seria uma grande mestra de magia, mesmo com
minha idade.
– Pensei que você tivesse dito não ter interesse nessa área – comentei.
– Na verdade me interesso, mas que posso fazer? Meu irmão é ocupado
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O Animal de Poder
Eu tinha feito uma amiga, se é que dava para chamar Grina dessa forma.
Embora fosse mal educada e orgulhosa, ela tinha interesse em magia e
possuía até mesmo um companheiro mágico, o que a tornava mais
interessante do que meus outros amigos.
Falando nas minhas velhas amigas, Lahfa e Tuuxs me convidaram muitas
vezes para brincar, mas eu recusava. Afinal, eu queria passar mais tempo
nas florestas.
– Que está acontecendo? – perguntou–me Lahfa – Está se tornando
adulta? Não quer mais saber de brincar... isso é muita arrogância da sua
parte.
– Preciso passar mais tempo nas florestas para que meu animal de poder
me encontre – expliquei.
As duas riram quando eu disse isso. Senti–me chateada.
– Não leve a mal, Wain, mas isso é ridículo – falou Tuuxs – não é por ser
irmã da alta sacerdotisa que você terá mais facilidade em contatar seu
guardião. Isso leva anos de esforço para acontecer. Quer mesmo
sacrificar sua vida em troca disso? Tem gente que passa décadas nessas
florestas.
– Aos que sinceramente desejam, encontrarão o que procuram – falei – o
animal da minha irmã veio a ela quando ela tinha somente oito anos.
– Você está se comparando a Panl? Preste atenção no que está dizendo!
– falou Tuuxs – Ela tem vocação. Se você tivesse, já estaria no caminho
monástico há muito tempo.
– Cada um tem seu tempo – eu disse a elas – pelo menos eu não desisto
no primeiro obstáculo, diferente de vocês. Antigamente todas tínhamos
o sonho de sermos monjas. Que aconteceu a esse sonho?
– Minha mãe disse que monges não ganham salário e não podem
comprar coisas caras e ter luxo, fora aquelas jóias que o templo empresta
para celebrações especiais – respondeu Lahfa – você quer ser uma
mendiga? Rastejando pelas florestas como uma minhoca?
– Quando eu estiver soltando bolas de fogo pelas mãos não me peçam
para esquentar seus jantares com elas – avisei.
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Minha busca não estava indo tão bem. Provavelmente nenhum bichinho
ia me querer...
Eu estava com muita sede. Perdi–me no meio da floresta, minha casa
estava longe e eu não poderia voltar. Esqueci–me onde havia lagos. Eu
torcia para que chovesse.
Passei um dia inteiro sem água e sem comida sob o sol forte. Talvez eu
fosse morrer antes de encontrar meu animal totem. Teria sido uma vida
muito infeliz. Mas ao menos eu teria morrido por uma causa nobre. Se
houvesse um deus para julgar a minha alma, talvez ele tivesse um pouco
de misericórdia. Eu não renasceria como anjo, então pelo menos eu
poderia reencarnar como o animal totem de alguém. Eu não seria tão
arrogante como o macaco. Ou eu poderia me tornar um elemental da
terra... para surpreender algum monge novato com alguma travessura.
Eu estava deitada sob a sombra de uma árvore, morrendo de calor, sem
energias para me mover. E em meio aos meus delírios eu vi uma cobra.
Ela se aproximou ameaçadora e eu morri de medo. Subi numa árvore
imediatamente, aos tropeços.
“Um animal totem do fogo”; a cobra não era para mim. Era raro uma
criatura de outro elemento apresentar–se. A cobra acabou desistindo de
me picar e se afastou.
Eu já tinha ouvido falar dos animais da nobreza, como leões, panteras,
cobras, corujas, águias, tubarões, lobos... eram criaturas difíceis de domar
e que se apresentavam somente para os verdadeiros merecedores: os
magistas mais poderosos.
E, honestamente, eu não queria algo nobre. Sinceramente, eu queria
qualquer coisa.
E o “senhor qualquer coisa” apresentou–se diante de mim num dos
galhos. A criatura estava em cima da árvore, com uma noz nas mãos: um
esquilo.
Fitamos–nos por alguns segundos. Eu percebi que ele não era um animal
comum. Tinha o potencial do totem; meu coração acelerou. Certos
animais, que possuem a alma mais evoluída, lembram de suas vidas
passadas e reencarnam como totens para pagar uma dívida.
Eu o queria; ele queria a mim. Ele subiu na minha mão. Nesse momento
senti uma sensação maravilhosa: um fluir de energia. Era o momento de
selar o pacto.
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– Seu nome será Bapum – falei de repente, sem nem saber se era eu a
escolher o nome ou se ele iria me contar sua identidade.
A energia se tornou mais forte quando eu disse tais palavras. Foi um dos
momentos mais fantásticos da minha vida. Era uma criatura tão
inocente, tão pura...
– Nunca me abandone – quando eu falei isso, algumas lágrimas saíram
dos meus olhos.
Mas eu entendia que ele precisaria permanecer na floresta em alguns
momentos. No entanto, nossa ligação estava assegurada.
– Preciso de água, Bapum – informei – estou com sede.
Ele pareceu entender o que eu disse, pois começou a escalar as árvores
rapidamente. Foi difícil segui–lo. No entanto, não chegamos a nenhum
rio. Minha sede estava me matando. Eu me sentia mal.
Bapum permaneceu ao meu lado o tempo todo, transmitindo–me
energia. Mas ele era tão fraquinho... pouco poderia fazer para me ajudar.
Sim, talvez eu morresse. Agora era uma possibilidade real. Mas eu
poderia morrer com um sorriso no rosto. Meu animal totem estava
comigo.
Eu estava quase desmaiando. Finalmente abri os olhos e me deparei com
um imponente castor; mais grandioso do que qualquer criatura que eu
jamais vira. Ele emitia uma energia fenomenal. Era extraordinário.
Quando ele aproximou–se de mim, senti–me muito mais forte. Ele
recuperou minhas energias. Eu ainda me sentia cansada, com sede, com
fome, com calor... mas ele havia alterado uma porção de mim que não
pude explicar. Havia me concedido uma força espiritual. Naquele
momento percebi que, possuindo uma grande quantidade dela, eu seria
capaz de superar qualquer limitação física.
Não sei se foi causado pelo meu cansaço ou se foi um delírio, mas vi
minha irmã materializar–se diante de mim. Ela vestia o manto marrom e
portava seu imponente cajado.
Ela traçou um círculo no ar e dentro dele dois triângulos formando um
hexagrama: o símbolo dos quatro elementos. Um círculo mágico de
energia pura materializou–se sobre a terra. Ela pronunciou algumas
palavras numa língua estranha e segurou na minha mão.
Nesse momento eu senti... uma energia purificada percorrer todo o meu
corpo. Era como veias espirituais, uma parte de mim que eu não sabia
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que existia. Meu cérebro se tornou leve, senti como se minha alma
desejasse abandonar o meu corpo e tornar–se somente luz.
Aquele êxtase superou qualquer tipo de prazer desse mundo. Derramei
lágrimas, chorei muito. Aquilo era algo que eu não imaginava. Eu não
sabia que algo assim existia. Que um prazer como aquele fosse possível.
– Jamais faça algo tolo assim novamente – alertou–me minha irmã, em
sua seriedade usual. Não parecia comovida com minha situação.
Eu não sabia a que ela se referia. Eu não dera o máximo de mim para
alcançar um objetivo supremo? Por que eu estava errada?
Antes que eu dissesse qualquer coisa, ela acrescentou:
– Você precisa da sabedoria para conhecer os seus limites. De nada
adiantará progredir espiritualmente estando morta. Você também
causaria tristeza aos nossos pais.
Ela estava certa, como sempre.
Em seguida, ela pronunciou outras palavras mágicas e um belo corcel
surgiu por trás das árvores. Ela subiu nele, colocando–me diante dela.
– Parabéns pela conquista de seu animal totem. Agora que completou
sua jornada, irei levá–la para a sua casa.
E o corcel trotou com a velocidade do vento.
Pelo que entendi de suas palavras, ela não sentiria tristeza com minha
morte. Devia ter ido me salvar para que nossos pais não ficassem tristes.
Eu sabia que ela era indiferente, mas não imaginava tamanha frieza. Se
aquilo continuasse por muito tempo, eu passaria a odiá–la.
Aquela era a “minha casa”; não era mais a casa dela. Ela parecia ser capaz
de controlar qualquer tipo de animal, não somente a sua criatura de
poder. Que poder impressionante era aquele?
Quando eu desci do cavalo e cheguei em casa, antes que ela se fosse, tive
a coragem de perguntar:
– Você ficaria triste se eu morresse?
Ela fitou–me firmemente antes de responder.
– Claro, minha irmã, embora a morte seja necessária para manter o
equilíbrio da natureza. Você também deve entender que, embora
tenhamos o mesmo sangue, devemos tratar com igual respeito todas as
criaturas. Adeus.
E ela foi embora no corcel marrom.
Eu sabia exatamente o significado de suas palavras. Ela dava alguma
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terrorismo.
– Que eles querem aqui?
– Poder – respondeu Grina – que mais um mago negro desejaria? Em
nosso mundo o mais importante é entrar em sintonia com a natureza,
conectando–se com sua fúria, adquirindo poder sobre os elementos,
sobre as plantas e animais. Somos muito pacifistas para lidar com a
bestialidade daquelas feras.
– É verdade que eles são realmente mais poderosos que nós?
– Se armássemos um exército para enfrentá–los talvez tivéssemos
chance, mas eles nos pegaram desprevenidos.
– Desprevenidos? Que absurdo é esse que está dizendo? – perguntei –
Eles atacaram os magos de maior poder em nosso mundo e você alega
que nos pegaram desprevenidos?
– Você não entende. Nós, magistas verdes, ou magistas cinzas como eles
nos chamam, temos pouco poder em estado normal. Liberar uma alta
carga de energia de uma vez só exige um período de preparação. É como
a natureza: permanece calma geralmente, mas quando explode é na
forma de terríveis tsunamis e furacões! Se nos preparássemos para uma
guerra poderíamos derrotá–los, embora nossa natureza tivesse que pagar
o preço. Se nosso mundo fosse usado como plataforma de guerra, seria
muito difícil a nossa sociedade se erguer de novo. Destruir as nossas
árvores e nossos animais seria quase como nos destruir. Nossa ligação
com a natureza é muito forte e dependente.
– Por outro lado, precisamos estar aqui para utilizar o poder máximo, é
isso?
– Exatamente – respondeu Grina – há muito tempo foi assinado um
tratado que impede a entrada de estrangeiros nos outros mundos, devido
às guerras ocorridas no passado distante. Nós temos interesses diferentes
e a única chance de irmos aos outros mundos é depois da morte, caso
reencarnemos nesses outros lugares. Nessa vida é proibido. Houve casos
de cruzamentos entre raças, o que gerou descendentes fracos. Houve um
episódio em que os magos negros xenófobos reuniram centenas de
magos mestiços e os dizimaram para impedir a propagação da fraqueza e
destruição das raças.
– Não nos ensinam na escola nenhuma dessas coisas – comentei,
apavorada.
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– Claro que não. Eles não querem divulgar algo tão vergonhoso. Para
começar, magia é uma disciplina heterodoxa, adotada somente por raros
colégios. E a existência de outros mundos e raças praticamente se tornou
uma lenda. Isso porque os outros mundos existem em universos
paralelos. Eles só podem ser acessados através de uma prática ritualística
de invocação ou meditação, que são algumas das maiores operações de
magia avançada.
– Algo me diz que você não deveria estar me contando isso – observei –
parece conhecimento secreto dos mais proibidos.
– Tem razão – concordou Grina – melhor eu ficar quieta. Vamos
esquecer esse assunto. Talvez os magos negros tenham perdido o
interesse em nós ao achar que somos fracos, então não irão retornar.
Aposto que somos mais fortes que eles quando liberamos o poder total,
mas prefiro não descobrir. Se esses caras nos vencerem numa guerra vão
dizimar quem permanecer vivo. Eles são uns malditos sanguinários.
Eu me sentia mal só de ouvir falar nesse outro povo do Mundo Negro.
Era lamentável pensar que havia um mundo somente de pessoas más.
Seria o próprio inferno, habitado por demônios? Resolvi que era melhor
não perguntar. Tinha medo de receber uma confirmação.
– Fale–me sobre a prova prática que os altos sacerdotes farão – resolvi
mudar de assunto – sabe alguma coisa sobre ela?
– Quase nada, mas será o teste mais importante. Acredito que eles
deverão lidar com práticas avançadas como divinações, invocações,
conjurações e feitiçaria.
Pensei em perguntar o que era cada uma daquelas coisas, mas eu tinha
outra pergunta mais urgente:
– Invocação de elementais somente, certo? Não de... demônios ou algo
assim.
Ela me fitou de forma estranha.
– Invocação de príncipes dos elementais – respondeu Grina – meu
irmão invocará Nicksa, o príncipe da água; sua irmã invocará Gob, o
príncipe da terra. Que te faz pensar que eles invocariam demônios...?
– Talvez alguns monges exijam testes heterodoxos... bem, esqueça. Que
tal treinarmos nossos animais totem enquanto aguardamos? Ainda falta
muito até o fim do dia.
Nós duas fomos até a beira de um lago para que Grina chamasse Platas.
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Evocações
Era uma criatura estranha, que eu jamais vira na minha vida e jamais
imaginaria ver. Por mim eu estaria bem longe dali, mas meus olhos não
conseguiam desviar daquele ser magnífico.
Ele usava um tipo de terno branco com gravata vermelha, embora não se
parecesse tanto com os ternos que usávamos por aqui. Sapatos negros
lustrosos. Ele estava bem elegante.
Sua pele era pálida, levemente puxada para o tom vermelho. Seus cabelos
e olhos eram negros. Quatro chifres sobressaíam–se em sua fronte.
Ele falou algo em outra língua. Panl traduzia tudo o que ele dizia:
– Por que me perturbam? Existe alguma situação diplomática não
resolvida referente ao assunto anterior?
Minha irmã respondeu a seguir:
– Você assassinou dezenas dos nossos por nada e ainda assim exige que
esse assunto requeira diplomacia?
– Vejo que é a nova papisa. Felicitações. Será a próxima a ir para a
sepultura caso tenha a insolência de me desafiar, como procedeu o seu
infeliz antecessor.
Panl ia traduzindo tudo o que ambos diziam. O mago negro parecia
impaciente com isso.
– Você praticamente declarou guerra ao nosso povo com o seu ato.
– Acredite em mim: você não quer uma guerra contra os magos negros.
Somente um de nós esmagou cinquenta dos seus em dois segundos.
Você chama isso de guerra? Eu chamo de piada ruim.
– Veremos quem será o último a rir – desafiou Panl – exijo que seu
governo condene a morte o assassino.
– O “assassino” sou eu, em pessoa. Prazer. Sou também o ditador
vitalício do Mundo Negro. Quer que eu organize um tribunal para
condenar a mim mesmo? Verei o que posso fazer. Prometo que
organizarei a papelada até o dia do meu funeral.
Tanto o mago negro como minha irmã pareciam sem paciência para
resolver o assunto. Achei que a decisão mais sábia era deixar o mago
negro se retirar, já que, conforme ele afirmou, o assunto não poderia ser
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resolvido.
– Ditador vitalício? – perguntou Panl – Quem disse que acredito em
você?
– Você tem meios de verificar? Quer que eu chame meu advogado? Eu
poderia concordar com a minha sentença de morte, mas você não teria
como averiguar se ela ocorreu de fato. Sua única opção é acreditar em
minha palavra. Experimente evocar outros magos negros e você receberá
a confirmação de minha alta posição no governo. Eu tenho muita
influência. Não há meios de você me tocar. Só peço que não me
aborreça com esse desejo irracional por vingança.
Se o governante deles já era péssimo, os demais habitantes deviam ser
ainda piores. Aborrecer outros deles com evocações seria correr um
risco desnecessário.
– Nesse caso, nós o condenaremos à morte aqui mesmo – decidiu Panl –
não há meios de você sair desse triângulo. Eu tenho o controle da
situação e não permitirei que volte ao seu mundo até que reconheça seu
erro.
Ele apenas fitou–a por um momento.
– Você acha que está me prendendo nesse triângulo inútil? Concordo
que triângulos funcionem, mas somente quando operados por magistas
competentes. Seu povo não possui conhecimento de alquimia ou
imortalidade da matéria. Sua idade real deve ser aquela que aparenta.
Esse tempo é muito pouco para que você seja uma rival de peso; você ou
qualquer um de seu povo. Estou cansado. Vou me sentar, pois vejo que a
conversa de hoje será longa.
O mago negro simplesmente saiu do triângulo, caminhou até o trono da
papisa e sentou–se! No mesmo instante, todos os sacerdotes apontaram
os cajados na direção dele.
– Não se preocupem – alertou o mago negro – nada farei a vocês até
concluirmos a conversa. Eu sou uma pessoa razoável e não realizo atos
precipitados que irão me trazer um peso desnecessário como governante.
Somente ataquei os cavalheiros daquela sala devido a insultos
imperdoáveis que recebi, assim como tentativas de me assassinar. Agi em
legítima defesa.
– Se é assim tão poderoso, poderia tê–los imobilizado sem matar –
observou Panl.
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– Começar o quê?
– Você será iniciada na magia negra.
Aquilo me soou extremamente absurdo. Fitei–o incrédula.
– Prefiro morrer – eu disse a ele, determinada.
– Você vê aquela senhorita logo ali? – perguntou ele – Mesmo sendo
habitante do Mundo Branco, começou a mexer com goécia. Aqui em
nosso mundo não trabalhamos com invocação de elementais, anjos,
deuses ou quaisquer outras potências que não sejam os seres demoníacos
e espíritos errantes de nossos mortos. Então por que raios os habitantes
dos outros mundos insistem em mexer onde não devem? Pagarão o
preço.
– Achei que demônios gostassem de ser evocados – comentei – para
tentar barganhar com o operador e enganá–lo, fazendo–o vender sua
alma em troca de quinquilharias.
– Você está completamente enganada. Vejo que nada conhece sobre
magia negra se pensa que gostamos de zombar dos fracos ou obter
ganhos mundanos. Nossa busca é muito mais séria e profunda. Vou te
mostrar.
Ele jogou um manto branco para dentro da cela.
– Tome um banho e troque–se. Retornarei em breve.
Não era possível que ele iria me soltar. Ele estava tramando algo.
Fiz como ele ordenou. Tomei um banho rápido no chuveiro velho do
canto da cela. Vesti o manto branco, que ficou um pouco grande para
mim. Tive que dobrar as mangas e a bainha.
Logo ele já estava de volta. Ele colocou uma argola de ferro no meu
pulso e prendeu–me ao pulso dele através de uma corrente.
Ele abriu a cela e saímos da prisão. Será que ele iria me levar para um
tour pela cidade? Pouco provável. Ele mandou que eu cobrisse o rosto
com o capuz. Caminhamos pela cidade. Lá fora o mundo era bem
diferente.
Havia casas e prédios, a maioria em tons de cinza escuro. Mais rochas e
montanhas compunham a paisagem do que árvores. As poucas árvores
eram de folhagem verde escura e galhos retorcidos. O céu era de um tom
roxo e a lua era negra.
Apesar de ser noite, as ruas estavam bem movimentadas. Percebi que
havia diferentes raças, variados formatos de chifres e cores de pele.
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“Aqui estou eu, prisioneira de meu próprio destino. Se não fosse a ideia de espionagem
de Grina, isso não teria acontecido. Se não fosse a teimosia e orgulho da minha irmã,
ninguém teria morrido tampouco. Pelo menos não agora. Seja como for, me considero
parcialmente responsável pelo acontecido pelo mero fato de ter presenciado tudo e ter
sido a única a escapar com vida. Talvez eu seja a maior desgraçada e traidora da
minha raça, por não ter coragem de me matar. Estou me submetendo aos caprichos de
um mago negro arrogante que faz questão de ser meu mestre de magia negra e induzir
uma lavagem cerebral violenta em mim.
Enquanto ainda conservo a minha sanidade, faço questão de informar aqui as
minhas concepções sobre o mundo: não quero me envolver em assassinatos de pessoas e
animais, em torturas, em magias negras que gerem sofrimento e desgraça. Isso porque
eu sentiria um desagradável peso na consciência se fizesse essas coisas. Também tenho
medo de ter que pagar na mesma moeda: ser condenada a uma vida de sofrimento
eterno pelos meus atos.
É possível mexer com magia e obter poder de uma forma pacífica e divertida. Sendo
assim, por que escolher o caminho do sofrimento, horror e morte por vontade própria?
Isso irá apenas me perturbar e preciso de uma mente sã para realizar operações
mágicas. Não quero transformar minha vida num inferno, num mar de sangue.
Não desejo me tornar uma pessoa indiferente, séria, sem emoções e de coração gelado
como o misterioso mago de terno. Ele não deve ser feliz. Apenas aparenta estar
confiante por fora, mas ninguém que pratica o mal deve ter uma paz real. É tudo
mentira. Os magos negros são uns desgraçados, odeiam a si mesmos e ao mundo
inteiro. Para descontar suas infelicidades, matam os inocentes.
Odeio aquele cara, repudio o meu estado atual. Não quero me tornar como ele.
Socorro! Espero que no final desse treinamento insano que mal começou, reste uma
parte em mim que ainda seja humana.”
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O Treinamento
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antes.
– Você viu o que ocorreu à sua amiga que se apegou demais: seu destino
foi a morte. Concentre–se nas diretrizes da magia negra agora e um dia
se sentirá completa através de outros meios.
– Melhor morrer com um amigo fiel do que morrer sozinha –
argumentei.
– É melhor não morrer. Você também pensa assim ou não estaria mais
viva. Teria morrido com seu esquilo ou com a menina azul.
“Você pisoteou meu esquilo; você assassinou a foca de Grina”. Mas nem
adiantava argumentar. Talvez sua vontade fosse me libertar de meu
animal de poder da forma mais horrível.
– Magos negros não possuem animais de poder?
– Eles possuem auxiliares mágicos; é diferente. Os animais vivem na
natureza e fornecem suas energias temporariamente. Não há um tipo de
contrato ou obrigações. Conjurações são feitas somente em relação a
demônios.
– Você e o demônio de sete chifres parecem ter uma ligação muito forte
– observei.
– Você terá o seu momento.
Com o passar dos dias, ele me ensinou o básico sobre a língua deles e leu
para mim algumas frases do grimório. Eu ia anotando embaixo das frases
a tradução para poder estudar sozinha depois. Na maior parte do tempo
eu estudava só, já que ele dizia ser muito ocupado.
Aprendi a consagrar os utensílios mágicos e a mexer com energia. Eu já
conseguia sentir a energia de seres vivos e minerais. Na cela eu treinava
com pedras e ervas. Energizava meus utensílios mágicos para realizar
algumas operações simples.
Na magia negra não se focava em operações com elementos e
elementais. Ia–se diretamente ao quinto elemento: o poder do operante
que contata potências superiores como espíritos e seres demoníacos.
Mas antes de estudar invocações, comecei de forma mais leve, com
divinações e sigilos. Eu passava muito tempo estudando o tarot e seus
significados, tentando realizar interpretações. Eu desejava descobrir a
potência mágica de cada um dos objetos que eu possuía.
Em meu grimório pessoal, eu reproduzia alguns símbolos arcanos e
quadrados mágicos. Era extraordinário que uma mera folha de papel
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vindo aqui todo dia. Você não teve progresso nem mesmo com a sua
magia verde feliz estúpida, o que prova que sua chance de evoluir na
magia negra é zero.
Ao ouvir isso, senti uma sensação muito ruim. Fiquei desapontada
comigo mesma, me achei um lixo.
Fitei–o de forma séria:
– Não precisa ocupar–se disso. Eu mesma me matarei nessa noite.
– Você já possui os materiais necessários. Sendo assim, tenha uma
excelente noite.
E ele se retirou. Que desgraçado!
Ou talvez a desgraçada fosse eu. Fitei a minha adaga retorcida e a espada
magnífica e brilhante que jazia no chão. Que eu deveria fazer com elas?
Foi só nesse momento que parei para pensar: o que significa a morte?
No ocultismo possui um significado bem mais profundo. Morrer
significa dizer adeus ao seu passado e à sua velha vida. É renascer para a
nova vida que se inicia.
Nesse instante descobri que já era hora de realizar uma cerimônia de
auto–iniciação solitária.
Tirei as minhas roupas esfarrapadas e tomei um banho. Vesti o meu
manto branco cerimonial. Com os pés descalços fui até a área ritual, levei
balde e esfregão e lavei o chão para purificar o local de trabalho. Aspergi
óleo essencial nos pulsos, no chão e nas velas. O ambiente ficou
preenchido por um aroma forte.
A moça zumbi pareceu meio incomodada com o cheiro, mas ela apenas
se mexeu por um momento e voltou ao seu estado semimorto.
Tracei o círculo de poder no chão e o triângulo fora dele, com a varinha
de madeira. Depois tracei–o fisicamente com o giz. Acendi dezenas de
velas negras para delinear o círculo e o triângulo. Repousei uma caixa de
madeira com terra no interior do triângulo.
Coloquei água dentro do cálice e acendi um defumador, queimando
algumas ervas com carvão num recipiente de metal. Espalhei as pedras
semipreciosas, formando com elas símbolos arcanos. Posicionei ao redor
todas as cartas de baralho. Dei um jeito de utilizar praticamente todos os
utensílios que eu possuía. Trouxe a espada e meu grimório para o interior
do círculo.
Iniciei com uma breve meditação e visualização, para concentração. Logo
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O Trem
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olhos para a moça presa à parede. Se ela amava Deus e os anjos, por que
havia evocado um demônio? Eu não conseguia entender, até porque eu
não sabia nada sobre magia branca. Eu não conhecia a fundo nem
mesmo a magia de meu próprio povo, mas era melhor deixar para lá por
enquanto. Se eu não me concentrasse na magia negra, minha vida estaria
por um fio.
– Por que você não está ensinando magia negra para a maga branca? –
resolvi perguntar.
– Ela é teimosa e se nega a aprender. Ela acha que irá se profanar caso
mexa com isso. Prefere uma vida de sofrimento no cárcere a envolver–se
com nossa magia. Se ela conhecesse a magia negra real e deixasse os
preconceitos de lado, certamente mudaria de ideia.
“Preconceitos? Olha quem fala... acabou de afirmar que magia branca é
uma baboseira”
– Por que ela evocou um demônio se odeia magia negra?
– Ela odeia a magia negra e não a goécia – explicou ele – existe uma
magia branca avançada que envolve a invocação do anjo guardião e
posterior invocação dos príncipes demoníacos. É uma magia perigosa e
quem a realiza sem o devido preparo se dá muito mal.
– Vocês a torturaram? – resolvi perguntar – A aparência dela está
péssima. Dá para afirmar que está viva somente porque ela respira. Ela
mal come. De resto, parece estar morta.
– Pare de falar nela. Não quero saber de uma pessoa sem o menor
interesse nos conhecimentos sublimes. Deixe de enrolar e responda à
minha pergunta de ontem: no que consiste a magia negra?
Eu estava um pouco nervosa no momento de responder. Eu teria que
adivinhar qual resposta iria deixá–lo satisfeito.
– Basta dizer que não existe magia negra para fracos, covardes ou
iniciantes – resolvi responder – ou você é um mago negro competente e
poderoso, capaz de evocar potências de alto grau e príncipes
demoníacos, ou você é um charlatão repleto de vícios e de desejos
frívolos. É tudo ou nada. Ou você se dedica seriamente nesse caminho
até alcançar o poder e a sabedoria necessários ou o abandona e escolhe
um caminho da magia adequado à sua mediocridade.
Havia duas opções possíveis: ou ele iria elogiar o meu discurso ou iria
cuspir em mim. Literalmente, era tudo ou nada, pois dessa vez fui longe
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Oba! Eu conseguira!
– Vá tomar um banho e se trocar. Sairemos em dez minutos.
E ele se retirou.
Eu estava muito feliz. Curiosa, no mínimo. Mesmo que ele me levasse
para um lugar chato, poder sair daquela cela era positivo. Afinal, eu já
tinha lido todos os livros que ele me deu e me julgava com um
conhecimento básico para participar dos debates. Isso se o meu mestre
fizesse a gentileza de traduzir o que eu dizia, pois eu estava longe de ter
fluência naquela língua.
Vesti o manto branco e coloquei o capuz. Ele acorrentou meu pulso ao
dele e abriu a cela. Trancou–a logo em seguida.
Era uma noite linda. Estava fresco lá fora, um vento leve. Que
maravilhoso!
– Iremos de trem. O local é meio distante.
Ele pagou as nossas passagens e nos acomodamos no assento do trem.
Concluí que ele devia estar bastante entediado para aceitar alguém como
eu como discípula. Não por falta de capacidade, pois sempre achei que
eu possuía um promissor futuro espiritual, principalmente por possuir o
mesmo sangue de Panl. Mas eu era de outra raça. Não poderia correr o
risco de ser descoberta nas ruas. E tive que aprender toda a magia negra
do zero. Ao menos seres daquele mundo teriam alguma base, sem contar
o conhecimento da língua. Mencionei isso para ele.
– A base do povão é ridícula – foi a resposta dele – eu realmente prefiro
alguém sem base nenhuma. Assim me poupa o trabalho de destruir suas
concepções erradas. E como você também não sabe nada de magia
cinza, por mim está perfeito. Um cérebro vazio é ideal para o ensino da
magia. Assim o espaço dentro dele será ocupado somente por coisas
nobres.
Aquele cara era arrogante ao extremo. Certamente se considerava o dono
absoluto da razão. Devia pensar que somente a magia negra estava certa
e todas as outras cores estavam erradas. Aliás, somente a ideia dele sobre
magia negra seria a correta. Tudo o que os outros dissessem seriam
falácias. Admirava–me que ele me desse livros de outros autores de
magia que não fosse ele.
– Por que não me indica algum grimório escrito por você? – resolvi
perguntar.
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pontos.
– Então por que quer me levar para lá?
– Ver outras visões sobre o tema pode deixar sua mente mais aberta.
Há! Até parece que era esse o motivo. Ele, querendo me deixar ver
outras visões sobre o tema? Aquilo estava muito suspeito. Ele me
mantinha trancafiada numa cela, não permitia que eu tivesse contato com
outras pessoas e eu só era permitida a ler o que ele autorizasse.
Provavelmente ele iria me levar para que ele se exibisse, derrotando os
companheiros com argumentos lógicos. Nem iria adiantar, pois eu não
entenderia metade do que eles diriam.
– Você começou a reler o grimório antigo ontem à noite? – lembrei de
perguntar.
– Reli–o na íntegra – ele informou – é inútil para você esse tipo de
leitura no momento. Contém apenas diretrizes cerimoniais para
realização de magia ritual. Informações a respeito da simbologia, todo
tipo de operação avançada e alfabetos mágicos. Só irei devolver o livro
quando você estiver preparada para lê–lo.
– Mas...! Eu gostei do pouco que entendi. As figuras coloridas são lindas,
inspiradoras! Eu gostaria de tê–lo comigo para estudar os alfabetos
mágicos aos pouquinhos...
– Não.
Aquilo encerrou a discussão. Que droga! Se eu argumentasse mais um
pouco, era capaz de ele dizer: “Insista mais e eu te mato”. Eu estava
estudando sob pressão. Não tinha mais vontade própria ou escolhas.
Depois disso, ficamos quietos por uma boa parte da viagem. Ao
perceber que eu não iria perturbá–lo mais, ele tirou um livro de bolso e
começou a ler. Eu também queria ganhar um livro de bolso para
ocasiões como essa.
Mas não adiantava muito eu pedir a ele que me desse um livro de bolso
ou perguntasse que livro ele estava lendo. Ele não era meu pai, para
atender a todos os meus caprichos, embora ele me presenteasse demais
para uma mera prisioneira. E, evidentemente, ele não iria revelar que
livro era aquele, pois deveria se tratar de um exemplar de magia
avançadíssima de centésimo grau, cuja introdução eu só seria capaz de
compreender dali a cem anos ou na próxima encarnação.
Fiz questão de permanecer de cara emburrada pelo resto da viagem, mas
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O Bar
No final, entramos numa loja de roupas, mas apenas para comprar uma
capa branca. Coloquei–a por cima do manto para esconder o sangue.
Passamos na farmácia também para que colocassem uma atadura na
ferida. Apesar de ter muito sangue, a ferida não foi assim tão grave; foi
só o susto.
Ele podia ter realizado uma magia de cura, mas não tive coragem de
pedir aquilo depois do que aconteceu. Obviamente ele não estaria muito
a fim.
Percorremos as ruas em silêncio. O bar ficava num local bem escondido.
Era um lugar exótico, cheio de luzes neon. Aquele espetáculo de cores
era lindo.
O bar era completamente escuro. O formato das mesas e cadeiras só era
visível devido ao neon, que dava forma às sombras na escuridão.
Ele não demorou muito a encontrar o local em que se reuniam seus
conhecidos. Muitas pessoas o cumprimentaram formalmente, o que ele
retribuiu com um aceno de cabeça. Ele devia ser muito conhecido e
respeitado.
Em uma das mesas havia três pessoas que o saudaram de maneira mais
informal. Era ali que iríamos nos sentar.
– Mustse, não tem vindo muito aqui ultimamente. Ocupado com seus
negócios?
– Bastante.
– Negócios políticos ou ocultos?
– Ambos.
Finalmente descobri o nome dele. Já era hora. Fazia uns nove meses que
eu estava naquele mundo, afinal.
Quem se dirigiu a ele foi um sujeito gordo com dois chifres de touro. Ele
nos convidou a sentar e assim fizemos.
– Poderia nos apresentar a sua acompanhante? – perguntou uma mulher
de vestido vermelho e cabelos longos encaracolados. Ela tinha três
chifres.
– Wain – resolvi que era melhor eu mesma introduzir–me, já que ele não
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cinco minutos para Mustse quando poderíamos ir embora, até que ele
encheu o saco e se despediu de todo mundo para sairmos de lá de uma
vez.
Tive que escutar um sermão no trem depois disso:
– Nunca mais te trago ao bar novamente. Eu teria ficado lá conversando
até o amanhecer. Você mal prestou atenção no que dizíamos. Nem
reparou que num momento mencionei um tópico polêmico sobre magia
avançada. Você é uma privilegiada e jogou essa oportunidade única no
lixo. Depois das cinco da manhã, quando metade dos presentes está
dormindo e a outra metade já se embriagou o suficiente, ocorrem duelos
de magia fantásticos. Você perdeu o espetáculo.
Eu não soube o que dizer. Aprendi um pouco com as conversas, mas
acabei não falando quase nada, por insegurança. Claro que eu queria ter
participado, ouvido mais e principalmente presenciado mestres de magia
a realizar evocações. Mas a culpa foi dele que me deu aquela taça enorme
de álcool.
– Lamue é o demônio de sete chifres? – perguntei.
– Sim.
– Aquele que matou minha irmã – acrescentei – ou eu deveria dizer: ele a
matou a seu mando. Você é o verdadeiro assassino, assim como aquele
que segura a faca é também aquele que mata; não a própria faca.
– Correto – concordou Mustse – demônios e facas são instrumentos.
Lamue não está vivo da forma que definimos vida. Ele é energia, não
matéria.
– Ele é seu? Sua posse? Seu... escravo?
– Todos esses termos são inapropriados para definir o que realmente se
passa – respondeu Mustse – estamos unidos por uma conjuração. Isso é
tudo.
Novamente, ele deu a conversa por encerrada, então eu não insisti.
Recostei–me no assento do trem. Eu estava com muito sono.
– Sinto falta dos meus pais – falei, baixinho – quando poderei voltar para
meu mundo e vê–los de novo?
– Voltar para seu mundo? Você tem sorte por estar viva.
– O Mundo Negro e a magia negra são extraordinários e tentadores –
admiti – mas nada que você me ensine ou me mostre me fará esquecer o
fato de que eu tenho pais e uma vida esperando por mim em outro
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Aniversário
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e de frio!
Mustse olhou para mim. Depois disso, voltou os olhos para a maga
branca antes de fitar–me de novo.
– Você emprestou para a maga branca a capa de seda que te dei –
observou ele – em vez de emprestar, arranque as roupas dela e se cubra.
O problema do frio estará resolvido. Roube a comida dela também e não
morrerá de fome.
– Se eu fizer isso, ela morrerá. Na verdade, mesmo que eu não faça isso
ela morrerá da mesma forma. E se ela morrer, não terei mais refeições
duplas, senhor lógico.
– Essa foi uma das poucas vezes em que você falou algo que faz sentido
– comentou ele.
– Obrigada? Eu tenho uma ideia melhor: que tal você voltar a nos dar a
quantidade regular de refeições e nos trazer dois cobertores?
– Eu posso acrescentar também duas xícaras de chocolate quente com
chantilly, luvas, cachecóis e travesseiros. Chamamos isso de kit de
inverno para prisioneiros e todos os nossos serial killers recebem um
antes de atravessarem o corredor da morte.
– Há... há... há... muito engraçado – comentei, num tom
desagradavelmente sério – eu não estou pedindo conforto. Apenas o
mínimo para não morrermos.
– Pensei que as acomodações estivessem de seu agrado. Até agora a
maga branca não teve nenhuma reclamação. Gostaria de solicitar alguma
coisa, seu anjo esquelético e sujo?
– Ela não entende sua língua.
– Entende sim. Ela está me ignorando por arrogância e já decidiu
morrer. O ambiente é ideal para que o desejo dela seja atendido.
– Então pelo menos traga comida e cobertor para mim – tentei.
– Somente se você recitar os versos clássicos da magia negra sem errar.
Eu até tentei. Mas fiquei meio nervosa e errei tudo. Eu não tinha
treinado o suficiente.
– Você terá o dia inteiro para treinar. Retornarei em vinte e quatro horas.
Eu nunca estudei algo com tanto fervor. Afinal, minha vida estava em
jogo. Passei minha segunda noite seguida sem dormir, tremendo e
relendo centenas de vezes as páginas que continham os versos.
Assim que Mustse chegou no dia seguinte, realizei uma admirável
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Mas mesmo sabendo disso, eu queria ouvi–la falar alguma coisa um dia.
Mustse disse que ela entendia a língua do Mundo Negro. Mesmo sem
saber se isso era verdade ou não, passei a ler meus livros em voz alta. Se
ela realmente odiasse magia negra devia ser um tormento ouvir aquilo,
mas ela já não tinha como reclamar.
Alguns dias depois, quando Mustse voltou, perguntei que dia era.
Quando ele me respondeu, lembrei–me de um fato estranho.
– Amanhã é meu aniversário – eu disse – completarei 14 anos.
Eu já estava ali há pouco mais de um ano. A maga branca devia estar há
mais tempo, pois quando cheguei ela já estava lá. Quantos anos ela teria?
Mas a pergunta que Mustse fez a seguir interrompeu minha linha de
pensamento:
– O que você vai querer de presente?
Meu queixo caiu. Ele ia me dar um presente? Resolvi me acalmar. Devia
ser sarcasmo. Só podia.
– Um passeio pelo shopping, um banho de mar, um jantar num
restaurante chique à luz de velas, um vestido de baile... – comecei,
contando nos dedos – calma que ainda tem mais.
– Que desejos fúteis – ele comentou – escolha uma coisa só. E que seja
digna.
Ele estava mesmo falando sério!
– Você vai realmente me dar qualquer presente que eu pedir? –
perguntei, para me certificar.
– Contanto que não envolva a minha morte, a sua libertação ou qualquer
outro desejo que eu julgar absurdo. Irei analisar o que você pedir e dar
meu veredicto.
– Nesse caso, desejo que você solte as mãos da maga branca – falei,
decidida.
– Você não pode estar falando sério. Vai desperdiçar seu presente com
isso? Pense bem: você pode pedir praticamente qualquer coisa. Dinheiro
não é uma limitação. A limitação aqui é vida e liberdade.
– Já decidi. Não vou voltar atrás.
Ele me fitou firmemente. Por fim, constatou que eu falava sério.
– Muito bem. Ela será desacorrentada pela manhã. Obviamente
continuará a dividir a cela com você como prisioneira.
– Muito obrigada. Você é misericordioso.
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inferior dos grimórios que ele possuía? Eram centenas de livros. Talvez
milhares.
– Você já leu tudo isso? – perguntei só por perguntar.
– Sim.
– Mas...! – aquilo não fazia sentido – Eu sei que você lê numa velocidade
anormal e sua concentração é incrível. Mas mesmo que você tivesse se
mantido trancado aqui lendo desde que nasceu e jamais fizesse outra
coisa, não creio que seria tempo suficiente para ler tudo!
– Novamente, você está raciocinando como um mortal de seu mundo.
Ele aparentava ter uns trinta e poucos anos. Só então que me dei conta.
– Quantos anos você tem na verdade? – perguntei, com cautela.
– Não é da sua conta. Mas é muito mais do que você imagina.
– Você é imortal...?
– Não pergunte o que não deve. Concentre–se na escolha de seus livros
em silêncio. Seja rápida.
Será que o povo do Mundo Negro vivia algumas centenas de anos? Mas
eu já tinha visto alguns velhos nas ruas. Talvez somente os magos mais
poderosos tivessem o poder de prolongar a vida.
Ele era extremamente poderoso, consideravelmente famoso,
incrivelmente rico e provavelmente possuía vida e juventude eterna. O
que mais alguém desejaria?
Foi só então que percebi que eu também poderia ter todas aquelas coisas.
Que adiantava reencarnar se eu esquecia minhas memórias, minhas
experiências passadas? Seria muito mais interessante ser imortal e ter a
posse de um poder tremendo. Com muita dedicação à magia negra eu
poderia conquistar essas coisas. E eu tinha um mestre que poderia me
ensinar.
Mustse adivinhou o que eu devia estar pensando.
– Você praticará magia por objetivos mundanos ou para aperfeiçoar a sua
alma? – ele perguntou.
– Acredito que ser imortal seja útil para que eu tenha mais tempo de
seguir objetivos nobres. Na verdade ser rico e influente também pode ser
útil nesse sentido, pois seria muito mais fácil ter acesso a grimórios raros
e a informações secretas.
– Vivendo num mundo superficial, devemos nos adequar a ele – ele
acrescentou – ainda assim, jamais devemos nos esquecer de nossas
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de uma vez na sua cabeça–dura. Seu cérebro não possui uma capacidade
de memorização como o meu. Dessa forma, você precisa de muito mais
treino para aprender o básico.
– Deixando isso de lado, nosso passeio não durou nem quinze minutos.
– Isso não foi um passeio. Eu te dei uma permissão especial de visitar
uma de minhas bibliotecas. Você deveria me agradecer de joelhos.
– Obrigada pelos livros, senhor Mustse. Irão me ajudar muito.
Ele foi na minha direção em passos rápidos, com um olhar aterrorizante.
Eu recuei até encostar numa parede. Ele me olhou firmemente.
– Jamais me chame pelo nome de novo. Isso é uma ordem. Está claro?
– Sim, eu sinto muito – apressei–me em dizer – Como devo chamá–lo?
– Prefiro que nunca me chame. Odeio ser perturbado. Mas quando for
extremamente necessário, dirija–se a mim como “mestre”.
– Entendi, mestre. Obrigada pelo esclarecimento, mestre...
– Não fique repetindo isso. É irritante. Eu disse somente quando
necessário. Você é surda ou retardada?
Resolvi ficar quieta. Caminhamos pelos corredores da biblioteca em
silêncio. Ele anotou num computador de lá quais livros tinham sido
retirados. Trancou a porta que dava acesso ao local com uma chave.
Depois disso, guardou o chaveiro no bolso do casaco. Havia dezenas de
chaves nele: douradas e prateadas, de vários tamanhos e formas.
Lá fora ainda nevava; o vento estava gelado. Coloquei as mãos dentro
dos bolsos do casaco para me aquecer e encolhi o pescoço dentro dele.
Era difícil dizer se eu preferia voltar para a cela fria e ficar sem o casaco
ou passear por mais tempo ao ar livre, numa temperatura ainda mais
rigorosa, mas como o casaco. Embora meus pés estivessem gelados
dentro daqueles sapatos finos e eu carregasse grimórios pesados, ainda
assim eu preferia a oportunidade única de ver o céu estrelado, olhar a lua
negra e observar os pequenos flocos de neve cristalinos.
Eu precisava dar algum bom argumento que o convencesse a ficarmos
mais tempo lá fora antes de retornarmos.
– Como eu dizia... – comecei, com cautela – permanecemos apenas
quinze ou vinte minutos aqui fora. Ainda faltam duas horas para a meia–
noite, o que significa que tecnicamente ainda é meu aniversário.
– Vá direto ao ponto – ele disse, enquanto seguíamos pelo caminho que
nos levaria de volta à prisão.
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– Sem contar que quando descobrirem que você não é desse mundo irão
matá–la. O povo do Mundo Negro é extremamente xenófobo. Com seu
pouco conhecimento de nossa língua e sua aparência maltrapilha não
conseguirá nenhum emprego, deverá viver como mendiga, se arrastando
pelas ruas até que morra ou seja assassinada. Obviamente não terá o
menor acesso a nenhum conhecimento de magia. Mesmo que encontre
os locais para os quais lhe levei anteriormente, não permitirão que entre
se não estiver acompanhada por mim. Não espere caridade dos
habitantes desse mundo.
Senti lágrimas nos olhos. Ele estava sempre certo. Sempre.
– Seus planos já estão bem definidos – prosseguiu ele – você continuará
a fingir interesse em magia negra e, dessa forma, conquistar em mim
certo apreço, o que fará com que eu lhe dê conforto e presentes com o
tempo. Até que você adquira conhecimentos suficientes sobre magia
para retornar ao seu mundo. Caso não seja acomodada, incitará uma
guerra para destruir meu povo e principalmente a mim, já que você
conhecerá nossos pontos fracos. Diga–me se estou mentindo. Perto de
seu verdadeiro eu, até mesmo a maga branca me parece mais agradável.
Pelo menos ela foi sincera desde o começo e negou–se a seguir minhas
ordens. Sofreu por tal escolha, mas jamais demonstrou falsidade como
você.
Aquelas palavras eram como facadas. Eu sempre o considerei uma
pessoa terrível e cruel, mas ao colocar as coisas nesses termos, eu já não
o achava tão terrível assim. Talvez eu fosse pior que ele.
E não adiantava eu dizer que não tinha escolha. No fundo eu sempre tive
escolha. Todas as pessoas têm a capacidade de escolher, não importa em
que situação se encontrem, mesmo que se restrinja apenas a dois
caminhos: a vida ou a morte.
– Serei sincera – resolvi dizer – se eu fosse capaz de sobreviver sem o
seu auxílio, eu já teria tentado fugir há muito tempo. Mas, ao mesmo
tempo, não quero meramente sobreviver num mundo estranho, sem
objetivos espirituais e longe de minha terra natal. Preciso de você, tanto
para manter meu corpo vivo como para evoluir minha alma. Você tem
me usado para suas experiências. Por que não posso usá–lo para retornar
ao meu mundo? Se não fosse você, eu nunca teria saído de lá e nada
disso teria acontecido.
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Finalmente ele cedeu, talvez por simpatia ao meu pedido miserável. Ele
prendeu novamente as correntes no meu pulso e senti–me feliz quando
ele fez isso.
Voltamos para a prisão. Devolvi–lhe o casaco. Ele colocou–me de volta
na cela. Comecei a ler um dos grimórios até adormecer.
Quando acordei, havia uma escova de dentes ao meu lado.
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A Maga Branca
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Eu tinha certeza de que ela iria responder afirmativamente, mas ela não
fez isso.
– Essa é uma conclusão precipitada – explicou ela – não existe uma cor
de magia mais poderosa. Isso depende exclusivamente do praticante que
a opera. Cada pessoa possui afinidade com uma cor específica. O
caminho é descobrir qual o seu potencial: qual das cores combina mais
com aquilo que você acredita. Se suas intenções estiverem de acordo
com a cor, será nela que sua magia mostrará o maior poder.
– Cada ser nasce num mundo e é educado sob uma cor. Não temos
escolha.
– Sim, nós temos. Se realmente desejamos seguir um caminho que não
exista em nosso mundo, resta–nos dominar a magia de nossa terra natal
até adquirir o poder de invocar seres de outras dimensões ou viajar para
o universo que ambicionamos.
De certa forma, era esse meu objetivo. Embora eu me interessasse por
magia negra e ela possuísse muitos atrativos que a magia verde não tinha,
eu desejava retornar para meu lar e fazer parte da ordem monástica da
minha terra, para seguir o caminho de Panl e de todos os grandes
mestres do meu povo.
– Mas você está presa aqui – lembrei – isso significa que Lamue é mais
poderoso que seu anjo?
– Infelizmente sim – respondeu a maga – escolhi abrir os portais do
Mundo Negro para dar prosseguimento a uma prática avançada de magia
branca que envolve a evocação de demônios. No entanto, eu não fui
forte o suficiente para isso. Mustse roubou meus quadrados mágicos,
fontes de meu maior poder, e passou a utilizá–los com Lamue. Isso lhe
conferiu um poder inimaginável. Não há meios de eu derrotá–lo
enquanto ele tiver a posse dos quadrados.
– Podemos tentar recuperar os quadrados – sugeri.
– Não adianta. Agora ele já conhece a fórmula para confeccioná–los. É
um caminho sem volta.
– Então você o odeia. E também odeia a magia negra.
– Eu não diria que odeio magia negra, pois podem existir praticantes
bons até mesmo nessa linha da magia – ela respondeu – mas, sim, odeio
Mustse mortalmente. E não aceitarei estudar magia negra somente para
me submeter aos caprichos dele.
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Eu disse a coisa errada. Claro que Mustse não queria que ela me
“contaminasse” com conhecimentos sobre magia branca. E muito
menos permitiria que eu fosse amiga de uma maga de uma linha tão
perigosa.
Ele disse que me daria cinco horas para puni–la. Se eu não fizesse isso,
nós duas seríamos separadas.
Quando ele foi embora, resolvi conversar com a maga branca.
– Não dê ouvidos a ele – ela me aconselhou – ele quer que você o tema.
Você não deve ter medo dele ou obedecer todas as suas vontades.
– Não sou tão forte como você – eu disse – tanto em termos de poder
mágico como emocionalmente. Você foi capaz de aguentar a fome, o
tédio e a dor, sempre acorrentada e jamais disse uma palavra. Eu não
seria capaz disso.
– Será quase impossível retornar ao seu mundo pelo seu próprio poder.
Se quiser estudar magia negra vá em frente, mas eu não recomendo
Mustse como mestre. Embora ele seja sábio para certas coisas, também é
muito cruel.
– Ele torturou você?
– Da pior maneira possível: usou Lamue para torturar meu anjo. Lamue
não teve poderes para destruí–lo, mas eu fiquei chocada
psicologicamente ao ver que Mustse era capaz de ferir uma forma tão
pura. Bikham é meu anjo. Ela foi muito forte e me inspirou a ter forças
para continuar.
– Qual o seu nome? – lembrei–me de perguntar.
– Clarver. E o seu?
– Wain. Há quanto tempo está aqui?
– Há três anos – ela respondeu – desde os meus 15.
– Seu povo conhece a fórmula para a imortalidade?
– Não ligo para a imortalidade do meu corpo. Minha alma é imortal. A
morte me levará para junto de Deus se eu tiver forças para manter minha
fé.
Mustse veio mais cedo que o previsto. Ele já devia adivinhar que eu não
tinha intenção nenhuma de punir Clarver e muito menos teria poder para
fazê–lo.
– Maga branca – ele disse, quando se aproximou – irei conduzi–la ao
calabouço. Você jamais verá a luz do sol de novo. Suas pernas e braços
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serão acorrentados. A partir desse dia você terá apenas restos de água
suja e migalhas de pão velho. Veremos se o seu Deus te salva agora.
– Que Deus tenha piedade de sua alma e de sua ignorância – pronunciou
a maga branca.
Como ela não se moveu para acompanhá–lo por vontade própria, ele
segurou–a pelo braço, com a intenção de arrastá–la até lá à força.
Ela pronunciou algumas palavras em sua língua, traçou o circulo de
proteção no ar e evocou seu anjo guardião no instante em que a cela
estava aberta. Era impressionante vê–la fazer isso sem quaisquer
utensílios mágicos.
Mustse ficou surpreso que ela ainda tivesse força e ousadia suficiente
para esse feito. Imediatamente retirou o punhal da cintura, traçou círculo
e triângulo e invocou Lamue.
Senti uma sensação horrível ao ver novamente o demônio de sete chifres
diante de mim. Era o medo e o terror. Mal conseguia me mexer diante da
visão fenomenal daquela besta enorme; muito maior que o magnífico
anjo de Clarver.
O anjo avançou com espada em punho na direção de Lamue. O
demônio repeliu a lâmina com os dedos, emitindo alguns sons guturais.
Ele lançou o anjo contra a parede, com uma força fenomenal. Bikham
atravessou a parede, que se quebrou com um estrondo. A construção
estava começando a desmoronar. Eu corri para fora, para não ser
soterrada. Não havia perigo algum de eu fugir, pois Mustse sabia que se
eu quisesse sobreviver não poderia fazer algo assim tão estúpido.
As garras do demônio viraram lâminas enormes e feriram o corpo do
anjo, que tentava se esquivar sem sucesso. O demônio retirou pedaços de
papel de dentro do manto. Eu gelei. Com um daqueles pedaços ele era
capaz de matar um sacerdote do meu mundo instantaneamente.
Ele atirou dez pedaços de papel na direção do anjo. Surpreendentemente
ela não morreu, mas seu corpo ficou todo deformado. O cérebro tinha
afundado e ela tentava voar ou fazer qualquer coisa sem conseguir.
– Lamue, mate – mandou Mustse, tranquilamente.
O braço de Lamue atravessou a barriga do anjo. Ela ainda se mexia.
Lamue arrancou o coração. Abriu o crânio do anjo e esmigalhou o
cérebro. Por fim, ela agonizou no chão por um momento, sem coração e
sem cérebro, com as asas tentando mover–se debilmente. Até que parou
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precisava saber.
– Pare com perguntas ou farei a mesma coisa a você para saciar sua
curiosidade – ameaçou ele – eu realizei uma operação de magia negra
avançada, sem evocação. Estou muito cansado. Não me aborreça.
Ele estava mentindo. Eu não conhecia nenhuma operação avançada de
magia negra que não envolvesse evocação. Mas eu só iria descobrir que
operação era essa se um dia eu tivesse acesso aos livros avançados de
magia negra; principalmente os grimórios dele.
Mas eu estava chocada demais para pensar em qualquer coisa. Eu sequer
conseguia pensar. Só era capaz de derramar lágrimas.
– Pare de chorar, eu já disse que odeio isso! – gritou ele – Odeio choro
de criança! Cale a boca antes que eu perfure sua garganta!
Era a primeira vez que eu o via gritar e se irritar daquela maneira. Eu
parei de chorar no mesmo segundo e fiquei quieta. Se ele já fazia aquelas
coisas absurdas quando estava calmo e controlado, eu não queria
presenciar o que ele faria quando estivesse realmente irritado.
– Não posso te trancar de volta na sua cela, pois ela foi completamente
destruída – prosseguiu Mustse, já um pouco mais calmo – também não
quero deixar vocês duas juntas. Vou te enviar como escrava de Eideikel
por enquanto. Se ela quiser te deixar dormir numa cama ou te chicotear
todo dia no porão, isso é problema dela.
– Não quero – falei – não gostei dela. É a mulher de vestido vermelho e
sorriso suspeito? Ela parece muito desagradável.
Havia algo naquele sorriso que me metia medo. Eu sabia que ela não
podia ser pior que Mustse. Ainda assim, eu não queria ficar com ela.
– Você não tem escolha. Ou vai para a casa dela ou vou te largar na rua.
– Deixe–me morar na biblioteca, por favor!
– Nem pensar. Você irá desorganizar todos os meus livros.
– Nesse caso, deixe–me ser sua escrava – sugeri – contanto que não me
peça para fazer coisas absurdas, eu aceito. E com a condição de você
continuar a me ensinar magia.
– Você não entendeu, menina insolente. Você não tem direito a dar
sugestões e impor condições. Meus escravos levam uma vida de luxo.
Qualquer um daria tudo para ser meu escravo. Não é algo que você
mereça.
Era melhor desistir. Pelo jeito eu seria obrigada a ser escrava da mulher
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de três chifres. Talvez não fosse tão ruim. Havia a possibilidade de eu ter
refeições melhores. Mas se ela me encarregasse de serviços domésticos,
eu não teria tempo para estudar magia. Nesse caso, era melhor ficar
presa, suportando desconforto e refeições ruins do que não ter tempo
para me dedicar à evolução espiritual. Dei todos esses argumentos.
Mustse estava cansado e irritado, então acabou cedendo.
– Vamos logo pegar o maldito trem.
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bem com aquela escrava e fiquei feliz de saber que eu teria uma amiga
para me dar forças para suportar o inferno que a minha vida
provavelmente se tornaria a partir dali.
A mansão era gigantesca. Parecia–se mais com um castelo de torres altas.
Desconfiei que eu seria a princesa trancada no topo da torre mais alta.
O castelo era negro e a decoração interior era incrível e macabra. Os
aposentos eram decorados com utensílios de magia e móveis que faziam
referência ao ocultismo. Todos provavelmente caríssimos e feitos sob
encomenda. Vi duas faxineiras espanando pó por ali. Depois apareceu
um homem vestindo um terno, provavelmente um mordomo,
perguntando se o patrão desejava comer alguma coisa. Ele respondeu
que em breve o chamaria e que no momento não queria ser incomodado.
Mustse era frio e indiferente com seus empregados, embora todos eles
fossem simpáticos e sorridentes. Eles já deviam estar acostumados com
o humor do patrão.
Mustse fez questão de me mostrar alguns aposentos reservados
exclusivamente para a prática de ocultismo. Neles era possível ajustar a
luz do ambiente e acender dezenas de velas instantaneamente. Havia
salas com variados tipos de formas geométricas mágicas traçadas no
chão, cada uma delas utilizada para diferentes tipos de evocações.
Aquilo tudo era extraordinário! Provavelmente aquele castelo era o local
mais interessante a ser visitado por um praticante de ocultismo. Mustse
me deu uma explicação breve sobre o significado dos símbolos e
utensílios encontrados em cada sala, assim como a sua correspondência
em relação à importância da operação proposta para o local.
Ele também indicou quais salas eram proibidas. Eu não deveria me
aproximar daqueles locais em hipótese alguma. De qualquer forma, todas
aquelas salas eram trancadas a chave e eu não estava muito entusiasmada
a roubar o molho de chaves dele para conferir o que havia lá dentro.
Mustse sugeriu que eu não chegasse perto de seus aposentos particulares
e de seu escritório de trabalho. Ele inclusive me entregou um mapa que
indicava todos os aposentos da casa. Ordenou que eu estudasse o mapa
com cautela, pois caso ele me flagrasse num local proibido ele não
aceitaria a desculpa de que eu havia me perdido.
Por fim, ele me mostrou o meu quarto. Como suspeitei, era um local
isolado, numa das torres altas. Eu teria uma vista fenomenal de lá. Ele
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“É surpreendente a virada que ocorreu na minha vida. Antes eu era uma prisioneira,
dormindo num chão duro de uma cela fria. Agora vivo no mesmo castelo do meu
captor. Talvez um dia eu seja autorizada a jantar na mesma mesa que ele, a ter
acesso aos fantásticos aposentos de evocações e às misteriosas salas secretas. É tudo
muito mágico. Amanhã começo a exercer minha função como auxiliar da simpática
jardineira Betah.
No entanto, a série de eventos que me trouxe até aqui foram muito tristes. Mustse,
com sua fera demoníaca, Lamue, matou cruelmente o anjo guardião da maga branca
Clarver, minha companheira de cela. Depois disso, as asas dela foram cortadas e ela
foi confinada ao calabouço. Eu me pergunto se ela ainda está viva. Enquanto ela está
lá agonizando, estou deitada numa cama macia, escrevendo nessas páginas. Mas esse
foi o destino que cada uma de nós escolheu. Talvez ela sofra agora, mas todo esse
sofrimento termine em breve. Pode ser que eu tenha conforto nesse momento, mas o
verdadeiro terror me aguarde no futuro, como resultado dessas escolhas.
Eu me pergunto por que estou fazendo todas essas coisas. Fiz isso por conforto? Por
medo? Por conveniência? Ou simplesmente por uma vontade genuína de aprender a
magia negra e de retornar ao meu mundo?
Não sei mais o que penso de Mustse. Eu odeio o fato de ele matar tanto,
principalmente pessoas especiais para mim. Ainda assim, assisto a tudo sem mover
uma palha. Eu sou uma pessoa assim. O fato de eu não ter poder para impedir é
razão suficiente para eu não fazer nada? Algumas vezes vejo Mustse como um pai
indiferente, como um mestre rígido, como um magista extraordinário ou como um
assassino frio e desgraçado. Eu me pergunto se o fato de ele ter entrado na minha vida
acabou com essa vida ou salvou–a. Seja como for, acredito que eu estaria mais feliz
ingressando na ordem monástica do meu mundo, com simplicidade e graça.
Agora que parei para pensar... como Mustse e Panl são parecidos! Nenhum deles
nunca pareceu se importar comigo realmente. Mas Panl já me salvou da morte,
enquanto o meu mestre quase me deixou morrer diversas vezes. Em compensação,
Mustse já me deu valiosas lições sobre magia enquanto Panl jamais me ensinou nada.
É melhor eu parar por aqui. Sinto–me mal ao comparar minha adorada irmã com
um assassino sanguinário”.
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treinar. Mas na mesma hora que eu reclamei, me dei conta de que ele era
mais atarefado que eu e ainda assim conseguia tempo livre para suas
práticas de magia e para me treinar.
– Teria como você me conseguir um emprego lá fora? – propus – Não
existem escolas também? Pessoas da minha idade não estudam por aqui?
– Há poucas pessoas de sua idade e você não se interessaria pelos
estudos mundanos das escolas. Sobre o emprego, posso pensar. Semana
que vem te dou uma resposta.
Eu agradeci. Uma semana depois, ele me informou que havia me
conseguido um trabalho. Que rápido! Ele devia ser muito influente.
– Como você não possui nenhuma especialização, se tornará a secretária
na minha firma. O salário não é muito, mas pelo menos você não
precisará mais servir de faxineira em troca de cama e comida.
Para mim estava perfeito. As escravas me emprestaram algumas roupas e
compareci ao meu primeiro dia de trabalho.
Eu sempre usava um chapéu ou boina para esconder o fato de eu não ter
chifres. Eu já estava falando bem a língua local e gostei do meu trabalho.
Era algo simples: fazer anotações sobre quem chegava, marcar horários e
reuniões, servir café... bem básico, mas era suficiente.
Um mês depois, com meu primeiro salário comprei algumas roupas
novas numa loja. Afinal, lá era um local respeitável e eu precisava me
vestir de acordo.
Aos poucos minha vida começava a fazer algum sentido. Eu cumpria
minha jornada de trabalho e à noite tinha um tempo para praticar magia.
Só tinham acontecido coisas positivas desde que eu comecei a morar
naquele castelo. As coisas ruins somente começariam a aparecer mais
tarde.
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A Ira de Fiska
– Peguei!
Consegui capturar um pequeno lagarto que encontrei dentre os arbustos
no final do serviço. Mustse estranhou quando eu entrei no trem com o
lagarto, embora ele não desse muita bola para o que eu fazia. Algumas
vezes voltávamos no mesmo trem para casa, quando nosso fim de
expediente coincidia.
– É para o ritual de evocação – expliquei – hoje em dia acredito ter
poder suficiente para lidar com Fiska.
– Excelente. Nesse caso, use a sala de invocação número 10. Ela é boa
para operações envolvendo demônios menores. Faz décadas que não
entro naquela sala, mas, como todo o resto da casa, ela está
perfeitamente bem conservada e servirá aos seus objetivos.
Meu queixo caiu. Ele estava permitindo que eu usasse a sala de
invocação? Não dava para acreditar.
Quando chegamos em casa, ele resolveu me presentear com a famosa
varinha de metal, que ele tinha deixado guardada para me dar somente
quando julgasse apropriado. Já havia se passado vários meses desde que
ele me falou daquela varinha e era impressionante como eu a havia
imaginado: feita sob encomenda, do tamanho exato do meu braço. Não
era leve e nem pesada. Os cristais a embelezavam magnificamente.
Meu salário ainda não era suficiente para comprar utensílios elaborados e
caros. No entanto, se eu começasse a economizar, talvez um dia eu não
dependesse mais dos presentes de Mustse para obter o que queria.
Por outro lado, se um dia eu conseguisse alugar um pequeno
apartamento e me separar dele... eu não tinha certeza de que ele iria
permitir. Ele era o dono da firma em que eu trabalhava. Se ele quisesse
me demitir seria muito fácil.
Mas após conseguir adquirir alguns bens como roupas e coisas básicas
por minha conta e aprender bem a língua local, talvez não fosse
impossível eu obter um emprego simples.
Mustse via a minha independência financeira com certa cautela. Quanto
mais independente eu me tornasse, ele tinha menos poder sobre mim;
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demônio. Mas não era assim fácil. Era complexo obter uma aparição
desse porte. E levava tempo e sacrifício até chegar a uma conjuração. Era
melhor eu deixar as coisas como estavam e somente libertar Fiska
quando eu obtivesse um demônio mais forte.
A promessa da magia intermediária era dar–me poder para eu controlar
um demônio de porte médio. A partir dali seria o momento de
concentrar–me nas leituras dos grimórios e nas novas operações.
– De qualquer forma, foi uma conquista importante – acrescentou
Mustse – e bem no dia do seu aniversário, se é que isso simboliza alguma
coisa para você.
Ele havia me elogiado ligeiramente. E também lembrava que aquele era o
dia do meu aniversário de quinze anos.
– Quer ir jantar fora para comemorar? – sugeriu Mustse – Já que você
dedicou o dia para uma atividade tão nobre, talvez queira realizar algo
inútil e mundano como um jantar. Caso a sua condição física permita...
– Claro! Eu me sinto ótima – acrescentei, embora ainda sentisse uma
leve tontura – podemos sair para jantar sim. Vou apenas tomar um
banho e me trocar.
– Encontre–me na sala principal quando estiver pronta.
Eu mal podia acreditar. Escolhi o vestido mais arrumado que eu tinha
para sair à noite. Escovei os cabelos, passei um batom e observei–me no
espelho. Eu estava bonita.
Encontrei Mustse na sala. Ele estava como sempre, afinal, ele sempre
vestia roupas elegantes não importava a ocasião: jantares, ida ao trabalho,
até mesmo em casa. Até então eu nunca o vira com roupas informais.
Até porque eu não tinha permissão para me aproximar dos aposentos
dele.
Fomos de carro. Um veículo extremamente chique. Tinha até motorista.
– Por que você vai ao trabalho de trem se possui um carro e um
motorista particular? – resolvi perguntar.
– Gosto de trens. Sempre chegam no horário. No dia que eu enjoar
deles, passarei a andar de carro.
Então ele não odiava totalmente contato com as pessoas. Era verdade
que os trens não eram lotados, mas de vez em quando se via alguns
passageiros indo para aqueles lados da cidade.
Chegamos ao restaurante. Eu não imaginava que haveria mais dois
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presentes à mesa...
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Demônios
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Preferi não comentar. As conversas que ocorriam entre nós sempre eram
meio insanas. Bem, alguém que levava um prato de salada com uma
lagosta viva para um banheiro de restaurante com a intenção de evocar
um demônio não poderia ser levado a sério. Pelo menos não foi ideia
minha.
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As Salas Secretas
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acontecendo.
Ele segurou no meu braço tão fortemente que doeu. Fitou–me
diretamente.
– O que... está... fazendo... aqui? – perguntou ele, parecendo somente
meio acordado, com os olhos entreabertos e cabelos despenteados.
– Tem uma cobra na sua cama! – apontei.
– Eu sei que tem uma cobra na minha cama – grunhiu ele.
– Ah... ela é seu bichinho de estimação? – perguntei, com cautela.
– Não desvie o assunto e arrume uma desculpa melhor para vir ao meu
quarto antes que meu despertador tocasse. Eu mandei bater na porta
antes de entrar!
– Mas eu bati na porta – justifiquei – você não respondeu.
– Claro que não. Eu estava dormindo. Da próxima vez, dê murros na
porta dez vezes antes de entrar e espere pela minha resposta. E jamais
bata antes das sete da manhã, entendeu?
– Entendi. Desculpe.
– O que queria aqui, afinal? Mandei você vir somente se fosse urgente.
Alguém morreu? Você está morrendo?
– Não... mas acho que estarei morrendo em breve – observei – você
prometeu me mostrar uma das salas secretas hoje, então pensei em te
chamar para irmos lá.
– Foi para isso que veio, então?
– Sim. Aceito ver qualquer sala, menos aquela dos aparelhos de tortura.
– Você realmente fala demais – falou Mustse – tem sorte de eu não estar
irritado esta manhã. Estou com dor de cabeça por causa do vinho forte
de ontem. Então suma daqui antes que eu volte ao normal. Ainda não
acordei completamente.
– Ah, claro. Nesse caso, vou indo. Não se esqueça de alimentar sua
cobra.
– Eu sei com que eu vou alimentá–la.
– Depois que você acordar, pode me mostrar uma das salas?
Quando perguntei isso, ele me arrastou para fora do quarto e fechou a
porta na minha cara. Até que demorou para acontecer.
Quanto mais liberdade ele me dava, mais eu abusava. Era melhor eu me
controlar. Mustse era imprevisível. Achei que ele iria me bater quando
me visse no quarto.
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outras coisas.
Não sabia qual parte eu olharia primeiro. Tinha coisas suficientes para
que eu permanecesse o dia inteiro analisando. No entanto, ele disse que
ficaríamos apenas uma hora na sala e depois ele a trancaria de novo.
Ele me explicou a história de cada um dos utensílios: ano de fabricação,
material, local de compra ou momento de confecção, características
particulares, em qual operação ele utilizara, etc.
Eu estava maravilhada e ouvia tudo com atenção. Havia uma seção
coberta por vidro, em que eram conservados grimórios tão antigos que
as folhas estavam marrons e se despedaçando.
– Eu digitalizei o conteúdo de todos esses grimórios para não precisar
manipulá–los mais quando preciso ter acesso a eles.
Ficamos cerca de uma hora e meia lá, até que ele se deu conta que o
tempo limite já havia passado. Depois disso, ele trancou a sala. Eu ainda
não conseguia acreditar no que vi.
Quando pude sair do transe, pedi para ver outra sala.
– Melhor não – ele recomendou – vai estragar seu dia.
Quando ele colocava dessa forma, eu realmente sentia medo de
descobrir o que havia. Algumas vezes eu tinha vontade de dizer que eu
jamais desejaria descobrir o que havia dentro delas.
– Vou abrir a sala número 9 – ele decidiu.
Senti um arrepio. Tentei reunir coragem e segui–o.
Era uma sala escura. Parecia não haver nada lá dentro. Ele acendeu uma
vela.
Talvez fosse a sala de tortura. Mas logo eu descobri que não. Era a sala
de sacrifício.
Os aparelhos de lá eram próprios para causar morte instantânea. Mas
eram usados somente para matar animais.
Ele explicou, tranquilamente, como funcionava cada um dos aparelhos:
de que forma o animal morria e para qual animal cada método era mais
recomendável.
Eu não fiz nenhum comentário. A atmosfera daquela sala era péssima,
terrível. Queria sair de lá. Assim que ele terminou a explicação, que
durou quinze minutos, saímos.
Antes que eu pudesse respirar, ele abriu a sala número 8.
Era parecida com a anterior, mas com algumas diferenças. Essa era
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Magia Avançada
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como louco. Ele corria pela sala, pingando sangue e eu corria atrás dele –
até saí do círculo de proteção.
Ele corria desesperadamente por sua vida e não importava quantas
facadas eu desse; o bicho continuava correndo e... gritando! Era quase
um grito humano, de tão alto e desesperado. Tive que bater com uma
estátua pesada na cabeça dele e arrancar os órgãos para que ele parasse.
Continuei dando facadas, cada vez com mais força. Havia um mar de
sangue ao meu redor, no meu rosto, nas minhas mãos, no meu manto.
Estranhamente, me lembrei de mim mesma, comendo bolo naquele dia,
lambuzando a boca como uma criança. Era quase isso: eu não sabia
matar e sujava tudo para realizar uma operação simples.
Eu estava exausta, suada. O suor escorria de meu rosto, tanto pelo
nervosismo como pelo esforço descomunal que tive que realizar para
aquele sacrifício. E, em meio a isso, talvez houvesse lágrimas. Ao mesmo
tempo, eu estava séria. Aguardava com confiança que aquele demônio
maldito mostrasse a face.
“Sou uma maga negra. Essa foi a provação invencível”, constatei, fitando
o sangue em minhas mãos trêmulas, com o coração palpitante num
êxtase indescritível.
Foi uma aparição incrível. Garfdie estava irada e atacou para matar.
Ameacei fazer a ela o mesmo que fiz ao porco. Ela me disse que assim o
desejava.
Aquela tentativa de dominação levou horas. Mais um pouco e eu
desabaria. Suor, lágrimas, sangue, terra, ar, fogo, água; eu não conseguiria
lidar com isso por mim mesma.
Evoquei Meidel com as últimas forças que me restavam. Garfdie a
estraçalhou impiedosamente. Eu não era burra de invocar Fiska, um
demônio menor. Além de não ter outro animal de sacrifício, ela iria
certamente morrer mais rápido do que Meidel.
Garfdie começou a falar sobre pactos e eu fingia que não estava ouvindo.
Mas ela insistiu tanto que eu ordenei que ela se calasse e se ajoelhasse
imediatamente diante de mim.
Eu ia morrer. Senti isso na mesma hora. Não tive outra escolha senão
mandá–la embora.
Desmaiei e fui parar no hospital depois dessa. Nas semanas seguintes
trabalhei com a dominação de dois demônios de poder médio para me
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– Então se alguém torturasse você naquela sala iria quebrar todas as suas
concepções de mundo que formou por séculos? Depois de algumas
horas você sairia de lá praticando magia branca?
– Não, minha pequena desmiolada – comentou Mustse – pessoas que
possuem poder mágico fraco que são atingidas por essa tortura. Se eu a
torturasse lá, por exemplo, eu poderia fazê–la seguir qualquer linha da
magia.
– Eu não tenho poder mágico fraco – argumentei.
– Comparado a mim você tem. Ou seja, você poderia realizar o processo
em alguém de menor poder que você. No meu caso, somente um
magista de maior poder que eu me provocaria alguma alteração.
– Legal... e qual o sentido em fazer uma pessoa perder a capacidade de
escolha? – perguntei.
– Você disse que todas as magias são igualmente poderosas e o resultado
final depende do operante e de suas convicções de mundo, mas isso é
falso. Existem os operantes fortes e os fracos. Os fortes sempre irão se
destacar na linha da magia que escolham. E os fracos sempre serão
fracos, mesmo que escolham a linha com que “mais se identifiquem”.
– Mas mesmo que isso esteja correto, não exclui a afirmação inicial;
somente a última parte – observei – “todas as magias são igualmente
poderosas e o resultado final depende do operante”. Não depende das
convicções de mundo da pessoa, mas somente em seu potencial para o
poder. Se alguém tem uma vontade genuína de praticar magia, assim
como a disciplina necessária para realizar o treinamento completo, isso o
torna um praticante forte. No caso de o praticante possuir objetivos
múltiplos e não conseguir a disciplina para seguir o que realmente
importa, será um praticante fraco.
– Isso está parcialmente correto – observou Mustse – também existem
os naturalmente inteligentes e os naturalmente burros. Uma pessoa
inteligente, mesmo que divida seu tempo em outras coisas, devido a uma
concepção lógica forte será um praticante superior a um estúpido que se
dedica em tempo integral, mas que nada penetra em sua cabeça–dura,
pois sua linha de pensamento e prática são naturalmente pobres. Mesmo
assim, existem linhas da magia mais poderosas que outras por si mesmas.
– Então você acha que a magia negra é superior a todas as outras? –
perguntei.
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mago octarino não se foca nas ferramentas e sim na própria magia. Por
isso também é chamada de magia pura. Basta que a magia aconteça.
– Então a sua dúvida já foi respondida há milênios – falei – largue a
magia negra e torne–se um mago octarino.
– Sinto informar que eles ganharam a guerra devido à tecnologia
avançada e não à magia em si. Claro, foi uma combinação de magia e
tecnologia. Mas caso os outros mundos possuíssem tecnologia
semelhante, o resultado da guerra poderia ser outro, o que não prova
nada.
– Então vão ter que destruir os mundos tudo de novo para descobrir –
falei – por que somente os magistas não se matam e deixam os cidadãos
em paz?
– Pessoas medíocres vivas ou mortas não fazem a menor diferença.
– Mas não existe somente magia no mundo. Existem alfaiates,
carpinteiros, pintores, engenheiros, médicos, cozinheiros, que, se não
existissem, você não possuiria aquelas espadas belíssimas, varinhas
cravejadas de cristais, mantos elaborados e toda a parafernália de um
mago.
– Existem tipos de magias capazes de produzir todas essas coisas: magias
de cura, alquimia, materialização de objetos.
– Se todos os animais e pessoas forem exterminados você terá que
sacrificar vegetais para evocar um demônio de novo – argumentei.
Era difícil ter algum diálogo com ele. Eu duvidava muito que mesmo
aquela sala de tortura mágica dirigida por um operante poderoso fosse
capaz de fazer Mustse mudar de ideia sobre a divisão entre “pessoas
inferiores mundanas” e “pessoas superiores mestres de magia avançada”.
Mais alguns meses se passaram, em que fortifiquei meu contato com
meu demônio e descobri alguns de seus poderes. Li mais grimórios de
magia avançada e aumentei meu conhecimento sobre certas magias
antigas não cerimoniais. Até que, no meu aniversário de 17 anos, Mustse
me presenteou com um grimório escrito por ele.
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O Anjo Imortal
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mas a goécia provou ser mais eficaz para mim. Por isso centrei–me nela.
– Claro, você conseguiu o demônio mais poderoso. Mesmo invocando o
espírito do mago morto mais forte seria complicada uma equivalência.
Até porque almas avançadas tendem a reencarnar logo para continuar a
evoluir, em vez de servir de lacaio para outros.
– Um mago realmente poderoso não morre. Portanto, ser poderoso com
necromancia é uma falácia.
Como sempre, Mustse tinha muita facilidade em criticar um sistema que
ele não seguia.
Magia negra era lidar com coisas perigosas, polêmicas e assustadoras
para despertar em nós o medo que sentíamos de todas essas coisas e,
com essa sensação, gerar euforia, êxtase, adrenalina. Nesse estado
psicológico era possível libertar uma carga de poder tremenda.
Lidar com espíritos, fantasmas, mortos–vivos, demônios, morte, tortura,
sacrifícios, eram meios eficazes para gerar a emoção que leva ao poder.
Mas Mustse já havia neutralizado o seu medo em relação a certas coisas,
o que o fazia ficar entediado e procurar novas experiências. Uma vez
perguntei por que ele não trabalhava com maldições e ele simplesmente
respondeu que algumas vezes até matar alguém já não surtia o efeito que
ele buscava. Maldições só seriam eficazes se fossem muito criativas.
Escolhi comer um bolo de milho no desjejum. Servi também leite com
chocolate. Mustse geralmente acordava mais cedo que eu, mas naquela
ocasião tomávamos café na mesma hora. Então me lembrei de
perguntar:
– Como vai sua cobra? Ela tem um nome?
– Sacrifiquei–a num ritual – respondeu ele – por que ela teria um nome?
– Porque você disse que sabe o nome de seus aliados de magia.
– Conheço o nome quando eles já possuem um. Não dou nomes. Eu me
referia a demônios.
– Por que você sacrifica seus bichinhos de estimação? – perguntei,
sentindo pena pela cobra – Ela já devia estar se apegando a você.
– Suas observações são absurdas. De qualquer forma, tenho uma aranha
agora.
– A sua próxima vítima?
– Possivelmente.
– No seu grimório você recomenda que o praticante conviva com o
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Por que ele não queria me perder? Talvez porque, no meio de uma vida
de tédio e riqueza vazia, eu fosse a única coisa que fizesse sentido.
Quando escutei sobre a ameaça de tortura, eu quase me vi pronunciando
as palavras “Desculpe, Clarver”, puxando meu bastão mágico e atacando
a maga branca. Afinal, eu não teria escolha. Se eu o obedecesse não seria
torturada. Se destruísse o anjo, talvez eu fosse elogiada por Mustse e
receberia o prêmio de voltar ao meu mundo.
Mas aquilo não seria um prêmio. Mustse não tinha o direito de fazer
aquilo comigo. Ele havia me arrancado do meu mundo e tinha a
obrigação de me devolver a ele. Não importava que ele tivesse me
ensinado magia e me dado presentes. Ele havia me raptado e destruído
minha liberdade. Eu não devia nada a ele. Ele que estava em dívida
comigo por toda a vida pelo assassinato da minha irmã, dos sacerdotes
do meu povo e por ter me feito sofrer tanto.
Como Clarver falou, tudo aquilo que Mustse tinha – e,
consequentemente, tudo aquilo que eu tinha – era vazio. Não tinha mais
significado viver daquela maneira. Era o momento de dizer adeus.
Se eu simplesmente dissesse que iria embora, Mustse iria me impedir e
me atacar. Por isso, eu precisava utilizar alguma chantagem emocional.
– Mestre – eu falei, finalmente – por que as roupas de Clarver estão
rasgadas?
– Não é você quem faz as perguntas aqui – retrucou Mustse – Eu te
mandei evocar Garfdie e matar o anjo da maga branca. Você vai me
obedecer, ou por acaso seu maldito respeito pela vida está te
contaminando? Se for assim, algumas horas na sala de tortura irão fazê–
la se curar dessa sua doença.
– Mestre – eu repeti, ignorando o que ele disse – eu tolero, com muito
sacrifício, a sua prática de matar e torturar para que seja criada a
atmosfera ritual. No entanto, o que você fez à Clarver não pode ser
perdoado.
– De que está me acusando? – perguntou Mustse – O que fiz envolve
tortura. Ela precisava ser punida.
Meu coração acelerou. Então era verdade.
Senti lágrimas nos meus olhos. Fitei Mustse com nojo e ódio.
– Eu te odeio. Você não é mais meu mestre.
– Do que está falando? – perguntou Mustse – Está louca? Está pedindo
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– Então não faz muita diferença o que você vai fazer conosco – falou a
maga branca – apenas me libere da minha tortura nos próximos dias.
Talvez Deus tenha alguma piedade de você por esse último ato de
bondade.
– Não tenho intenção de ser bondoso e não reconheço seu Deus –
retrucou Mustse – sua tortura vai continuar. Exatamente a que você mais
odeia.
– O feitiço se voltará contra o feiticeiro – ameaçou Clarver – lembre–se
do seu pacto. Você vai se sentir mal e se humilhar na minha frente se
fizer isso.
Mustse pensou melhor.
– Maldita seja. Está liberada de sua tortura.
Senti–me aliviada. Clarver não fez nenhum comentário. Acho que ela
queria ter ouvido aquilo há muito tempo.
– Não quero mais saber – prosseguiu Mustse – se querem tanto assim se
livrar de mim, sumam. Vocês estão livres. Deem o fora daqui. Vou querer
vocês bem longe quando iniciar as minhas flutuações de emoções.
Nunca mais voltem aqui.
Aquilo foi inesperado. Ele estava falando sério. Era melhor sairmos logo
antes que ele mudasse de ideia.
– Não se preocupe, pois só levarei comigo os pertences que comprei
com meu salário – avisei – e vou arrumar outro emprego.
– Pode levar os presentes que te dei também – falou Mustse – não ligo.
Apenas seja rápida em arrumar suas malas. Peça para a camareira ajudá–
la.
– Preciso de uma roupa – falou a maga branca – não posso andar assim.
– Eu te dou uma, Clarver – falei.
Então era assim que terminava. Nunca mais iríamos vê–lo de novo. E eu
provavelmente jamais saberia como ele teria morrido.
No entanto, uma coisa completamente surreal aconteceu: um enorme
círculo de luz verde apareceu no chão, envolvendo a nós três.
Assim que enxerguei o círculo entendi tudo: aquela era a noite de
celebração dos sacerdotes de meu povo. E, depois de quatro anos, eles
finalmente tinham conseguido realizar outra evocação entre mundos: ou
para tentar me levar de volta ou para tentar punir Mustse. Seja qual
tivesse sido a escolha, eles teriam a nós dois ao mesmo tempo, além de
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A Fúria da Natureza
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poderes de uma vez só. Aquela era uma das ocasiões. A habilidade seria
mantida por no máximo alguns dias. Portanto, era melhor que
decidissem o que fariam com Mustse antes disso.
Meu povo não era assassino, mas era justo. Mustse havia matado muitos
sacerdotes de formas horríveis. Eu não duvidava que o matassem.
– Seu povo é muito poderoso – comentou Clarver – impressionante.
Enquanto Mustse estava preso ao lacre do triângulo, sem energias, os
sacerdotes debatiam sobre o que fariam com ele.
– Ele será morto, isso é fato – falou o alto sacerdote do fogo – mas antes
disso, sugiro que ele seja torturado. Todos os que ele matou revelaram
traços de morte sob tortura. Ele não poupou nem os animais. Realizou
mutilações e extração de órgãos com os bichos vivos. Esse monstro
merece a pior punição. Sugestões?
Na verdade houve muitas sugestões de diferentes tipos de tortura. Mas,
embora fossem torturas horríveis, o que Mustse costumava fazer era
muito pior.
Outros sacerdotes, por sua vez, mantinham silêncio. Alguns eram a favor
de uma morte limpa e rápida.
– Nosso povo não é violento – comentou um deles – não permitam que
esse mago negro contamine a pureza de seus corações. A alma dele irá
reencarnar num novo corpo após a morte e será nesse novo corpo que
ele limpará seu karma. Não sujem suas mãos de sangue.
– A natureza mata os seres vivos de seu meio de tempos em tempos.
Somos os representantes da natureza e iremos honrá–la. Com a morte
dessa criatura, o equilíbrio estará restabelecido.
Enquanto os sacerdotes debatiam, eu e Clarver fomos para perto de
Mustse e nos sentamos.
– Lamue é um excelente profeta – comentou Clarver – parece que eles
vão te matar amanhã. Você teve sorte. Afinal, era isso que você queria.
– Que ironia – comentou Mustse, quase sem forças; ele olhou para mim
– serei destruído pelo povo mais fraco. Em vez de te fazer aprender a
magia negra, eu devia ter te perguntado algo sobre magia verde. Se bem
que você não sabia de quase nada.
O papa resolveu se aproximar de nós. Sentou–se no chão ao nosso lado,
bem informalmente, com um sorriso estampado no rosto.
– Deixem esse sujeito carrancudo de lado – sugeriu Boofeng – falem–me
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sobre vocês. A irmã de Panl, hã? Estudou magia negra, ao que parece.
– Como sabe? – perguntei, interessada.
– Posso sentir a sua aura – explicou Boofeng – você realizou uma
conjuração com um demônio maior. Foi um grande feito. Você também
tem grande potencial para a magia verde. Mas isso depende do que
deseja. Poderia receber um novo animal totem e retomar o estudo de
magia verde de onde parou. Mas se quiser prosseguir no seu estudo de
magia negra também é possível.
– Vou pensar nisso – falei – ainda não decidi.
– Boofeng, você tem contatos em todos os mundos – falou Mustse – se
ela quiser seguir no estudo de magia negra ou iniciar–se em outra linha
de magia pode levá–la às outras dimensões?
– Claro – falou Boofeng – pode contar comigo, Mustse. Sua discípula
está em boas mãos. E o que faço em relação à maga branca?
– Acredito que ela deseje retornar ao seu próprio mundo – respondeu
Mustse – então leve–a de volta.
– Por que está tão bonzinho? – riu Boofeng – Virou um santo no
momento da morte? Se o conheço bem, você deve ter torturado essas
duas até o limiar da morte. Teve que fazer alguma cirurgia dessa vez?
Transplante de órgãos?
– Não as torturei tanto assim – falou Mustse – pelo menos não como eu
fazia com meus prisioneiros nos velhos tempos.
Boofeng ficou sério quando prestou atenção em Clarver.
– A maga branca precisa de um manto – constatou Boofeng – você fez o
que não devia com ela, não é?
– Não vou responder – falou Mustse – você que é o adivinho.
– Mu, você pode até torturar e matar, mas... isso não se faz. Não é digno
de um cavalheiro.
– Não me venha com sermões – retrucou Mustse – seu passado também
não é exemplar.
– Não me diga que você é aquele mago de outro mundo que tirou 99 no
teste para papa? – perguntei, impressionada.
– Dessa vez eu não escrevi o teste teórico de trás para frente e não
evoquei os príncipes debaixo da cadeira do aplicador – explicou Boofeng
– portanto, agora tirei 100.
– Eles vão realmente te deixar como papa? – perguntei, desconfiada –
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Era a hora de minha traição. Fitei o alto sacerdote do fogo e revelei, com
confiança:
– Os chifres.
O alto sacerdote do fogo segurou o seu cajado e invocou uma navalha
em chamas que decepou um dos chifres de Mustse. No local ficou uma
ferida aberta que jorrou muito sangue.
Mustse caiu no chão. Respirava rápido e estava sentindo muita dor.
Depois que ele sofreu por um momento, o alto sacerdote arrancou outro
chifre. Assim ele procedeu, com intervalos regulares, até que os quatro
chifres fossem quebrados.
Mustse gritou quando o último de seus chifres foi quebrado. Ele estava
perdendo muito sangue e suava. A respiração estava descompassada. Sua
energia havia sido completamente drenada e ele não seria capaz de
realizar uma magia de cura naquela situação.
– Essa dor não é nada comparada ao que você fez aos nossos irmãos
sacerdotes e animais de poder – falou o alto sacerdote do fogo, em tom
sério – você permanecerá acorrentado. Não terá comida ou água por
uma semana, até o momento de sua execução. O papa irá vigiá–lo
durante a semana. Ele não poderá dar qualquer conforto ou realizar
algum tipo de tortura em você sem a autorização prévia da ordem.
O alto sacerdote agia como se já fosse a maior autoridade ali presente.
Acho que a própria presença de Boofeng já seria uma tortura para
Mustse. Mas nem mesmo ele havia sido tão cruel comigo e com Clarver
em relação à comida e água. Ele já havia diminuído a quantidade, mas eu
não me lembrava de já ter ficado um dia inteiro sem comer ou beber
nada por punição. Ele ficaria sete.
– Você, irmã de Panl, e também você, maga branca – falou o sacerdote
do fogo – ambas foram maltratadas por ele. Sendo assim, vocês têm o
direito de aplicar uma punição ao seu captor. Se desejarem, o momento é
agora.
– Que Deus dê a ele o Seu julgamento sagrado – foi a resposta de
Clarver – eu não puno. Minha magia é para a defesa. Eu somente
perdoo. No entanto, dessa vez eu deverei pedir perdão aos céus, pois,
por Deus, ele será a única pessoa em toda a minha existência que jamais
poderei perdoar.
Era a minha vez de pronunciar–me. Eu queria poder fazer algo para
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vingar minha irmã. Qualquer coisa, para puni–lo em nome dela. Mas não
consegui pensar em nada.
– Apenas um ato simbólico de despedida – falou a maga branca.
Clarver entrou no triângulo e deu um tapa na cara de Mustse. Ele não
expressou a menor reação. Estava apenas sentado no chão, sangrando,
devido aos chifres arrancados.
Encorajada pelo ato de Clarver, entrei no triângulo depois dela. Dei
alguns socos no rosto e no peito dele, mas não consegui continuar, pois
lágrimas caíram dos meus olhos.
– Eu te perdoo pelo que fez a mim – resolvi dizer – mas não te perdoo
pelo que fez à Clarver, à minha irmã e ao meu povo.
Depois da “punição” minha e de Clarver, que não foi praticamente nada,
os sacerdotes se retiraram. Somente Boofeng permaneceu no grande
salão.
Eu e Clarver não tínhamos nada a fazer lá. Saímos.
Convidei Clarver a se hospedar na casa dos meus pais durante a semana,
até que tudo estivesse terminado e ela decidisse o que queria fazer.
Foi maravilhoso poder rever meus pais. Nós três choramos, nos
abraçamos. Foi um dos momentos de maior emoção da minha vida. Eles
receberam Clarver com alegria. Por enquanto ela ficaria no antigo quarto
da minha irmã.
Nós duas estávamos com fome, então meus pais serviram uma refeição
para nós. Eu já estava com muitas saudades da comida de casa. Não
lembrava que era tão delicioso. O gosto de uma comida natural, do suco
feito com a laranja da minha terra; o sabor era insubstituível.
Enquanto comíamos, conversávamos sobre o passado. Evitávamos tocar
no nome de Panl, pois uma atmosfera de tristeza preenchia o ambiente
quando isso acontecia. Meus pais estavam impressionados ao ver o
quanto eu crescera nos últimos anos.
– Você se tornou uma moça linda, Wain – falou minha mãe, com um
sorriso – estamos felizes que tenha suportado tudo bravamente e voltado
com vida. Eu sempre acreditei que um dia eu iria te ver de novo.
Depois da refeição, levei Clarver para meu quarto e procurei uma roupa
para emprestar a ela. No entanto, todas eram muito pequenas, pois eram
minhas vestes de quando eu tinha 12 ou 13 anos. Minha mãe emprestou
um vestido para Clarver e, depois disso, nós duas saímos, pois eu
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A Execução
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ele. Foi uma das coisas mais estranhas que eu me lembrava de ter feito.
– Está frio – observou Mustse, após provar – e tem mais leite do que
café. Gosto do contrário. Logiza sabe exatamente a mistura certa.
Logiza era a cozinheira.
– Na situação que você está não devia ser tão exigente – observei.
– Mas você é tão idiota que é capaz de voltar para a sua casa e tentar
acertar a mistura dessa vez – respondeu Mustse.
– Sim, eu sou idiota a esse ponto. Se me mandar fazer isso, eu faço.
Afinal, você é meu mestre. Você manda, eu obedeço.
– Esqueça – ele disse – dê–me logo o bolo. Eu não aguentaria esperar
mais alguns minutos até você retornar.
Após experimentar o bolo, ele disse que estava horrível. Ainda assim,
comeu todo.
– Desculpe, não tinha torrada – falei – você precisa de mais alguma
coisa? Quer que eu solte seus braços e te liberte?
– Não vou te dar o gostinho de me salvar – retrucou Mustse – prefiro
que você seja a culpada pela minha morte do que minha salvadora.
A roupa dele ainda estava cheia de sangue por causa da perda dos chifres.
Também havia uma mancha de café e farelos de bolo na camisa. Eu
esperava que os sacerdotes não notassem.
– Agora saia daqui – falou Mustse – já cumpriu sua função. Não tem
sentido ficar mais só para assistir ao meu sofrimento.
– Essa é a maneira de Mustse pedir para que vocês fiquem mais um
pouco – riu Boofeng – eu conheço bem esse patife.
Quando eu ouvi Boofeng dizer isso, senti uma sensação estranha. Será
que Mustse já tinha me dito várias coisas que significavam o contrário?
Eu nunca tinha pensado nisso. Mesmo depois de conviver com ele por
quatro anos, eu o conhecia tão pouco...
Eu e Clarver nos sentamos ao lado dele. Num primeiro momento, não
dissemos nada.
– O que está fazendo aqui, maga branca? – perguntou Mustse – Eu não
permiti que você viesse. Está gostando do espetáculo de me ver passar
pelo que eu te fiz passar no passado?
– Estou – respondeu Clarver, com frieza.
– Fico satisfeito por ter destruído sua bondade – comentou Mustse –
acabei com a pureza do seu coração. Basta um único desvio no caminho
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do sangue.
Os insetos penetraram nas feridas abertas de Mustse, que dessa vez
mostrou sinais claros de que sofria, conforme os insetos caminhavam no
interior de seu corpo. Eu quase vomitei quando vi aquilo.
O sorridente palhaço Boofeng estava mostrando sua verdadeira face.
Em seguida, ele ordenou que o lobo atacasse. Aquela besta enorme deu
uma dentada violenta no braço esquerdo de Mustse e arrancou–o. Ele
deu um grito horrível.
A participação de Boofeng terminou. Aquele sádico maldito sabia
quando ser cruel. Pelo menos ele não riu enquanto fez aquilo.
Chegou a vez da alta sacerdotisa da água. Eu me perguntava qual seria a
próxima abominação apresentada.
Como esperado, ela realizou a evocação de Nicksa. O príncipe da água
materializou um enorme recipiente transparente em torno de Mustse,
completamente cheio d'água, em que ele foi mergulhado. O corpo dele
estava totalmente submerso. Não havia meios de sair.
Mustse não conseguiria segurar o ar por muito tempo. Ele ia morrer
afogado.
Mas antes que isso ocorresse, o alto sacerdote do fogo, que certamente
fazia questão de fazer parte do grande final, deu um passo a frente para
invocar Djin. O espírito do fogo lançou grandes labaredas, o que fez
com que a água do recipiente fervesse instantaneamente.
A pele de Mustse começou a derreter e ele se contorceu. Por fim, parou
de respirar.
Eu olhava para aquilo em choque completo. Achei que eles iriam matá–
lo sem tortura: que o enforcariam, o decapitariam ou qualquer morte
rápida. Aquilo foi doentio.
E alguns segundos após a morte de Mustse, aconteceu uma coisa que
ninguém tinha previsto. Um pequeno detalhe que seria fatal.
Com o seu mestre morto, Lamue libertou–se. Ele surgiu no grande salão,
irado, e atacou a todos de surpresa com uma rajada de quadrados
mágicos.
Ninguém teve tempo de se proteger, de tão rápido que aconteceu.
Muitos monges e sacerdotes foram decapitados, mutilados ou
estraçalhados no mesmo segundo. Os altos sacerdotes do ar, fogo e água,
que estavam muito próximos, morreram instantaneamente, com seus
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“Lamue, seu mestre está morto. Você agora se encontra no Mundo Verde. Ficará
preso aqui eternamente se nos matar. Podemos enviá–lo de volta ao Mundo Negro,
mas para isso você deve interromper essa batalha e se retirar. Será chamado quando
for a hora”.
Lamue recebeu a minha mensagem, pois sua atitude mudou. Ele lançou
um grande raio de energia roxa no servidor. Após esse ato, desapareceu
em meio à fumaça.
– Obrigado, Wain – falou Boofeng, que já devia saber o que havia
acontecido – meu cérebro já estava quase se partindo em dois para
manter esse servidor.
Os magos e sacerdotes que escaparam ilesos foram ajudar a curar os que
receberam ferimentos graves e mutilações. No entanto, a maior parte dos
presentes estava morta.
Depois que Boofeng tratou seus próprios ferimentos, ele chamou a mim
e a Clarver para uma conversa particular. Enquanto isso, os sacerdotes se
ocupavam das solenidades a fim de organizar o enterro dos que foram
assassinados por Lamue naquele dia.
– Está feito – começou Boofeng – Mustse está morto. Agora seu povo
terá paz, a não ser que inventem de caçar Lamue, o que espero que não
aconteça.
Contei a ele sobre a promessa que fiz a Lamue.
– Você não tem poderes para levar Lamue de volta ao Mundo Negro –
falou Boofeng – e você sabe disso. A não ser que se concentre nos
estudos de magia negra pelas próximas décadas. Mas enquanto isso,
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Lamue ficaria confinado a esse mundo, a não ser que surja outro magista
de grande poder para tentar o feito.
– Você quer dizer que daqui a algumas décadas serei capaz de dominar
Lamue? – perguntei, impressionada.
– Não, eu disse que você poderá obter uma aparição física dele.
Conseguir uma conjuração é outra coisa totalmente diferente.
– Você não pode levar Lamue ao Mundo Negro? – perguntei a Boofeng.
Ele pensou um pouco antes de responder.
– Bem, eu teria que arriscar minha vida para fazer isso. Hoje quase
morri. Quando Mustse tinha o controle de Lamue era diferente. O
Lamue selvagem é muito mais perigoso, pois é imprevisível. Ele pode ter
poderes ocultos que não revelou a Mustse e não vai hesitar em usá–los
agora que está livre.
Boofeng fez a seguinte proposta: primeiro ele levaria a maga branca de
volta ao mundo dela. Só depois disso ele tentaria o transporte de Lamue.
Afinal, se ele morresse na tentativa, a maga branca ficaria presa ao meu
mundo.
– Não – falou a maga branca – ainda não posso voltar. Terei que ficar
aqui por mais alguns meses.
– Claro – falei – vou adorar se ficar aqui mais tempo. Mas você tem
algum motivo especial? Deseja aprender mais sobre a magia verde?
– Na verdade... preciso conversar com você sobre isso, Wain. É assunto
sério.
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Cores da Magia
Por fim, Clarver decidiu que Boofeng também deveria ouvir aquilo, pois
ela precisaria de conselhos.
Já era fim da tarde. Resolvemos que o melhor local de encontro seria a
casa dos meus pais. Eles ficaram chocados com a notícia das mortes, mas
aliviados em saber que o terrível mago negro, assassino de sua filha,
estivesse finalmente morto.
Meus pais ficaram honrados em receber a visita do papa. Boofeng foi
extremamente simpático e conversou informalmente com eles.
Depois de tomarmos o café, permanecemos somente nós três à mesa.
Clarver deu a notícia:
– Eu estou grávida.
Aquilo foi um choque, tanto para mim quanto para Boofeng. Nós não
soubemos o que dizer.
– Não posso voltar para meu mundo assim – explicou Clarver – se eu
estivesse grávida de um mago branco seria outra história. Mas meu povo
odeia os habitantes do Mundo Negro. Na verdade agora sei por quê.
Meu filho não tem culpa de nada, mas se eu voltar para lá serei vista
como herege e meu filho será terrivelmente discriminado. Então tenho
três alternativas: abortá–lo, criá–lo em outro mundo ou após ganhar o
bebê deixá–lo aos cuidados de outra pessoa e voltar ao Mundo Branco.
– O que você sente que deve fazer, Clarver? – perguntou Boofeng – A
decisão é sua. Somente você poderá decidir.
Clarver ficou em silêncio, apenas fitando a mesa. Por fim disse:
– Eu odeio tudo isso. Quando descobri sobre a gravidez tive vontade de
me matar.
– Escute – falou Boofeng – nós sabemos que isso não ocorreu por
vontade sua, então não se sinta culpada se quiser abortar. Você tem esse
direito e nós a apoiaremos em qualquer decisão que tomar.
– Eu a apoiarei também – falei – não foi sua culpa.
– Então eu escolho me matar – falou Clarver.
– Não, essa decisão eu não apoio – riu Boofeng – eu entendo que você
não se veja no direito de matar esse ser que não tem nada a ver com a
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fazer o mesmo com Clarver, pois ela já tinha uma base muito forte de
magia branca para abandoná–la facilmente.
Tanto Panl como Clarver tinham 17 anos naquela época. Agora eu
também estava com 17 anos. Se Mustse tivesse me capturado com essa
idade e eu tivesse estudado magia verde durante esses quatro anos e
meio... eu me pergunto o que eu teria feito. Teria lutado até a morte e
resistido, como Panl? Caso fosse capturada, eu iria me negar a estudar
magia negra para manter minhas convicções sobre o mundo, como
Clarver?
Ora, já não adiantava falar sobre o passado. O estrago estava feito, se é
que foi realmente um estrago. Ao menos eu tinha consciência da minha
situação. Ainda era tempo de consertar.
Mas consertar o quê? Tive um dos maiores mestres de magia negra
como instrutor e já havia conseguido uma conjuração de um demônio
maior. Eu poderia deixar tudo aquilo para trás para retomar o meu
contato com a natureza. Mas em troca de quê? De um poder que só se
manifestava em sua forma máxima nos períodos de fúria da natureza?
Novamente, eu estava raciocinando como Mustse: medindo as
qualidades das magias com base no poder que davam ao operante. A
magia verde era poderosíssima, à sua maneira. Nas épocas de fúria eles
provavelmente se tornavam os maiores mestres do mundo. Mas no dia a
dia tinham um poder regular e controlado.
E por que o poder era tão importante? Talvez houvesse conquistas
muito mais especiais numa prática de magia.
Naqueles primeiros meses após meu retorno ao meu mundo, li muitos
grimórios de magia verde e realizei pequenas práticas de magia básica
para experimentar. Só que eu não estava dando tudo de mim por causa
da minha dúvida.
Eu não queria assumir responsabilidades como entrar para uma ordem
ou realizar uma conexão com um novo animal totem. Aquilo não era
brincadeira. Se eu resolvesse entrar para a ordem e depois saísse, além de
ser um grande desrespeito, eu não seria admitida facilmente na ordem de
novo se um dia eu decidisse praticar a sério.
Quanto ao animal de poder, talvez fosse ainda mais grave. Aquela era
uma conexão para toda a vida. Você não pode simplesmente abandonar
seu animal depois que o momento da conexão de almas é selado. Os dois
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resposta final.
Eu concordei. Nesse dia nós duas decidiríamos nossos caminhos.
Para tirar as dúvidas da minha cabeça de uma vez por todas, pedi para
que Boofeng me conseguisse livros sobre todas as linhas da magia. Claro
que não era a mesma coisa conhecer uma linha apenas superficialmente
pela leituras de poucos livros. Eu sabia disso, pois mesmo depois de
quatro anos de leitura e prática intensa da linha negra, eu ainda não sabia
de muitas coisas. Eu não me consideraria qualificada para ensinar essa
linha para alguém, por exemplo. Eu saberia responder às perguntas
básicas de um leigo, mas não ensinar todos os passos para um praticante
interessado.
Já o meu conhecimento de magia verde era meio diferente. Baseava–se
mais na intuição do que no conhecimento de fato. Eu podia sentir a
proposta da magia de meu mundo pelas experiências que tive por toda
vida: pela educação dada por meus pais, pelas aspirações de minha irmã,
pela visão dos poderosos sacerdotes. E talvez eu pudesse dizer que sabia
o básico de teoria e prática, mas nada além disso. Eu não saberia
trabalhar com elementais, por exemplo. E tive uma experiência curta
com o animal de poder.
Na magia negra eu conhecia até a magia avançada, mas somente de uma
subdivisão. Eu não sabia muito de outras áreas como maldições,
necromancia, possessões, entre outras. Foquei–me numa área muito
específica.
Como eu havia passado quatro anos lendo livros de magia negra e os
últimos três meses lendo sobre magia verde, pedi para que Boofeng me
conseguisse livros de magia branca, vermelha e octarina.
Meu exemplo de magia branca era Clarver, que já havia me dado algumas
pinceladas sobre o caminho da mão direita, conselhos baseados nessa
linha e também me proporcionado a visão de seu magnífico anjo
guardião.
O pouco que eu sabia sobre magia octarina era somente o que Boofeng
me mostrou; basicamente a visão de seu servidor naquele dia. Eu sabia
também que tinha a ver com tecnologia e técnicas heterodoxas.
E sobre magia vermelha eu só sabia que eles não realizavam evocações,
mas seguiam o caminho da meditação.
Boofeng concordou em me conseguir alguns livros. Mas havia um
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problema:
– Você sabe a língua do Mundo Branco, do Mundo Vermelho e do
Mundo Octarino?
– Não, mas Clarver pode ler os livros de magia branca para mim –
decidi, sem nem consultá–la – e você poderia fazer a gentileza de ler os
de magia octarina. Quanto à magia vermelha, vou assumir que você é
poliglota e pode ler esses livros para mim também.
– Na verdade eu sou, mas já que não poderá ler os livros por si mesma,
não acha mais interessante simplesmente conversarmos sobre as linhas
da magia? Posso ensinar os aspectos principais e estarei aberto a
perguntas.
– Você quer dizer que conhece a fundo todas as linhas da magia? –
perguntei, impressionada.
– Passei pelo treinamento completo de sacerdócio do seu mundo duas
vezes – riu Boofeng – cada uma delas foi memorável.
– E nas duas vezes você tirou a nota máxima e tornou–se papa – falei –
está certo, esqueci que estou falando com um superdotado. Perguntei
sem pensar.
– Não sou superdotado. Da primeira vez tirei 99! Eu falhei! – Boofeng
riu ainda mais ao dizer isso – eu realmente adoro a magia verde, ela é
incrivelmente linda. Se eu tivesse o privilégio de ter nascido nessa terra,
como você, eu teria muito orgulho da minha raça.
– Então você é um mago octarino inclinado à magia verde? Assim como
sou uma maga verde inclinada à magia negra... ou melhor, acho que
nunca soube o suficiente para me considerar uma maga verde.
– Não exatamente – observou Boofeng – também passei pelo
treinamento completo de magia octarina no meu mundo. Eu a dominei
como nenhuma outra e até hoje a considero a cor da magia mais
suprema. É somente nela que atinjo meu poder máximo.
– Então por que veio estudar magia no Mundo Verde? – perguntei,
curiosa.
– Pelo mesmo motivo que todos visitam outros mundos: devido a uma
evocação. Geralmente são evocações equivocadas. O pobre mago verde
que me evocou desejava chamar um servidor do Mundo Octarino e nem
mesmo sabia que servidores são criaturas criadas pelo próprio mago.
Dessa forma, não há meios de evocar o servidor de outra pessoa. A
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criatura que você formou é sua para sempre. Tive a bondade de explicar
isso ao mago e ele teve a bondade de me falar um pouco mais sobre
magia verde. Fiquei interessado. Eu não consegui retornar ao meu
mundo imediatamente, então resolvi usar meu tempo aqui para estudar a
magia de vocês e gostei muito.
– Então você é um mestre dessas duas linhas – constatei – e sobre as
outras cores?
– O pouco que aprendi sobre magia negra foi Mustse quem me ensinou.
Mas sei só o básico. Apenas um pouco mais que você. Sem querer
ofender.
– Tudo bem – eu não me ofendi realmente – sei que tenho muito que
melhorar. Mas se você sabe mais que eu, o que eu não duvido, já deve ter
conjurado um demônio maior. Isso é magia avançada. Como você pode
dizer então que sabe só o básico? Eu mesma conheço minhas limitações,
mas tenho orgulho de dizer que sei mais do que o básico de magia negra.
– Mas magia negra não envolve apenas evocações, embora a maioria se
foque aí – explicou Boofeng – há uma área muito forte de necromancia.
Eu a estudei um pouco também, mas fui mais autodidata, já que Mustse
ficava de frescura para falar de necromancia.
Achei engraçado ele dizer que Mustse “ficava de frescura”. Em parte era
verdade. Toda vez que eu mencionava “necromancia” ele fazia a mesma
expressão de quando eu mencionava “magia branca”, o que era bem
impressionante.
– Como vocês dois se conheceram? – resolvi perguntar – Como ficaram
amigos?
– Na vida passada nós nascemos como irmãos no Mundo Vermelho –
respondeu Boofeng.
Fui pega de surpresa. Levei um susto!
– Vocês se lembram de suas vidas passadas?
– Esse é um poder sobrenatural – respondeu Boofeng – os magos
vermelhos são especialistas neles. Eu principalmente desenvolvi–me
muito na área de premonições com as meditações do Mundo Vermelho,
razão pela qual até hoje guardo esse poder. Quando eu era criança,
descobri em uma de minhas meditações que tanto eu quanto Mustse
morreríamos muito jovens. Não temíamos a morte, pois sabíamos que o
mundo era apenas dor, de acordo com a filosofia vermelha. Mas
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– Você o fez rir?! – ver Mustse rindo seria algo surreal demais para eu
tentar imaginar – Quero ouvir essa piada!
– Ela é meio infame – avisou Boofeng – qual a diferença entre magia
negra e magia verde?
– Não sei.
– Na magia negra o mago mata o animal e na magia verde o animal mata
o mago.
Eu não achei graça.
– Para Mustse rir de uma piada, só sendo de humor negro mesmo – falei.
– Ele bateu em mim depois que eu contei – disse Boofeng – mas acho
que eu mereci.
– Qual de vocês é o mais poderoso, afinal? – perguntei – Vocês duelaram
de igual para igual naquele dia.
– Não ganha uma batalha necessariamente quem for o mais poderoso e
sim o mais sábio. Ele tinha mais poder que eu por causa de Lamue. Mas
tenho muitos truques na manga. Por conhecer várias magias, entendo os
pontos fracos e fortes de cada sistema.
– E o que sabe sobre magia branca?
– Teve um momento na minha vida em que achei todos os objetivos da
magia superficiais comparados a existência de Deus – respondeu
Boofeng – portanto, o caminho mais nobre para um ser humano seria
abandonar todas as coisas, incluindo a própria magia, somente para orar
a Deus, adorá–lo e seguir o caminho da evolução da alma por intermédio
da bondade divina. Esse foi um período em que fiquei por muitos anos
no Mundo Branco. Até que eu percebi que não era forte o suficiente para
seguir esse caminho por toda a vida.
– Pensei que o caminho da mão direita fosse relativamente fácil, já que
exige somente a purificação da alma e nenhum sacrifício.
– A purificação já é um sacrifício suficiente. Havia outras coisas no
mundo que eu amava e que não consegui abandonar por Deus. Uma
delas era o desejo por investigação, criação e descobertas do Mundo
Octarino. Na magia branca você apenas adora as criações de Deus e o
mundo é tido como perfeito da forma que foi criado por Ele. Na magia
octarina você é um criador. Você não é “Deus”, mas é criativo, ativo,
molda novos formatos nas nuvens no céu em vez de simplesmente
tentar desvendar os desenhos que as nuvens formam.
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– Sei – falei – nessa magia você até mesmo cria o ser evocado. Parece
incrível. São interessantes as relações de cada magia com os poderes de
Deus. Na magia octarina você adquire o aspecto criador. Na magia negra
há o aspecto de julgamento; para julgar o bem e o mal e aplicar bênçãos
e maldições de acordo com sua vontade. Na magia branca você venera o
Deus. Na magia verde se compreende o todo, o equilíbrio da natureza,
então acaba se fundindo com certas criações de Deus e com o mundo,
como os elementais e os animais. Quero dizer... partindo do pressuposto
de que Deus existe. Mustse não acreditava.
– Eu mesmo sigo uma linha mais utilitária – explicou Boofeng – se Deus
precisa existir para que tal operação dê certo, você simplesmente se
convence de que Ele existe enquanto precisar.
– Mustse já me falou sobre isso – lembrei – é a oração científica. Mas
qual seria o aspecto divino da magia vermelha?
– Nela você se torna o próprio Deus. Para a magia vermelha “Deus”
significa um ser que atingiu a libertação pelo abandono do corpo e da
mente, por intermédio da meditação. Você se libera do ciclo de
nascimentos e mortes. Embora a existência da reencarnação seja um fato,
mesmo eu não tendo certeza se ela ocorre em todos os tipos de seres
vivos, a existência da alma, de Deus ou mesmo da libertação pode ser
questionada. Palavras muitas vezes são inapropriadas para expressar a
realidade espiritual.
– Sobre a reencarnação, seria possível a existência de uma
metempsicose? – perguntei – Humanos reencarnando em animais,
elementais, demônios, anjos, plantas...?
– Boa pergunta. Não sei – ele riu – em resumo, essas são as cores de
magia que sei mais, na ordem: octarina, verde, branca, vermelha e negra.
Sendo que creio ter dominado as duas primeiras, possuo um
desenvolvimento médio na terceira e básico nas duas últimas.
– Quanto a mim, tenho um desenvolvimento básico em magia negra e
verde. Sobre as outras três não sei quase nada – por um momento fiquei
pensativa – mas começo a sentir que a magia verde não é o meu
caminho. Então ou eu prossigo com o treino de magia negra ou busco
outra via. Se eu escolher magia octarina, você pode ser meu mestre?
– Acredito ter qualificações apenas para ensinar magia verde e octarina –
respondeu Boofeng – no caso de escolher outra linha, você terá que
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Pisar novamente nos divinos altares de ouro. Tocar nas águas abençoadas
pelo próprio Deus. Entendo que todos os mundos são divinos e Deus
protege a todos que nele sinceramente acreditam. Mas sinto falta da
minha terra natal. A presença de todos aqueles crentes em Deus, de
todos aqueles magos que se dedicam ao amor absoluto... é incrivelmente
inspiradora. Desejo sentir uma vez mais essa atmosfera de paz e luz.
– Entendo perfeitamente – falei – você decidiu morar com seu filho no
Mundo Branco?
– Sim. Nós dois seremos fortes para suportar a discriminação. Claro que
as outras crianças irão zombar dele por ser diferente. Mas um dia irão
entender que somos iguais diante de Deus. Se ele se esforçar no estudo
do caminho branco, irá se purificar e adquirir o respeito de todos. Ele
provará que até mesmo um ser com sangue do mundo negro pode ser
bom e aceito por Deus. Talvez dessa forma nosso povo passe a ser mais
tolerante, não discrimine tanto o povo negro, já que teremos um
exemplo vivo. Não me entenda mal, não quero usar meu filho como
instrumento de disputa política. Desejo apenas que ele seja feliz ao meu
lado, num mundo que julgo lindo e que será o ideal para seu
desenvolvimento espiritual.
– Fico feliz que tenha tomado uma decisão tão sábia – eu sorri – você
deseja ganhar seu filho no seu mundo? Talvez ainda dê tempo de
Boofeng levá–la.
– Tenho medo que a evocação faça mal ao bebê – falou Clarver – não
quero que nada de mal aconteça a ele. Já esperei até agora, então vou
esperar mais um pouco. Depois que nascer e estiver saudável, viajarei o
quanto antes.
– Você já sabe o nome? – perguntei, curiosa.
– Se for menino, seu nome será Kolwnebu; o nome do meu avô,
reconhecido em nossa família como um grande pacifista. Se for menina,
será Kiwala; o nome da minha bisavó, famosa em nosso mundo como
uma das mais poderosas magas brancas da história.
– Então desde o nome até a educação que receberá e o mundo que
viverá, seu filho terá todo o potencial para tornar–se bom – falei – desejo
um excelente desenvolvimento espiritual para ele.
– Mas não vou obrigá–lo a nada – ela avisou – ele será livre para escolher
o seu caminho. E sobre a sua decisão? Qual caminho da magia você
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decidiu aprender?
– Estava pensando em visitar o Mundo Branco com você e Boofeng –
confessei – você fala com tanta paixão desse lugar que só posso crer que
é o mundo mais próximo do paraíso. Se me for permitido, seria uma
honra conhecer um pouco mais sobre magia branca.
Clarver ficou feliz com minha decisão. A partir daquele momento, nossas
vidas prometiam ser guiadas ao rumo da felicidade.
Eu acreditei firmemente nisso. No entanto, meus sonhos foram
quebrados no dia em que Clarver entrou em trabalho de parto. Nós a
levamos ao hospital. Coisas fora de nossos planos e além de nosso poder
aconteceram.
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– E sobre a cor?
– Existem somente três cores possíveis para asas: brancas, prateadas ou
douradas. A cor prata significa potencial para magia da lua. A cor
dourada é potencial para magia do sol. A cor branca simboliza a pureza
absoluta e potencial misterioso. É raro um ser com asas assim tão
brancas, pois mesmo os que as possuem tendem a um tom cinza claro.
– Clarver tinha asas brancas – lembrei – e o que são essas asas negras?
– Não faço ideia. Talvez a cor estranha seja pelos genes do pai. Mas
estou apenas adivinhando, pois nunca vi um mestiço de ser do Mundo
Branco e do Mundo Negro antes. E olha que já vi muita coisa. Conheci
outros mestiços, mas o Mundo Branco e o Mundo Negro são rivais. A
união dos dois seria quase impossível.
– A não ser nas circunstâncias em que ocorreu – lembrei – na verdade eu
me pergunto por que ele fez isso, já que ele sempre odiou magos brancos
e magia branca. Deve ter feito só para torturar Clarver.
Eu me sentia muito triste quando dizia o nome dela. O que aquilo tudo
significava? A criança havia matado a mãe de propósito ou foi um
acidente? Por que ela possuía no corpo tantos indicativos de poder?
Obviamente ela havia recebido aquele poder tremendo do pai. Mas
Clarver tinha mencionado sobre uma bisavó na família que havia sido
uma das maiores magas brancas da história. Clarver também possuía
genes poderosos.
– Kiwala – lembrei – Clarver me disse que, se fosse menina, se chamaria
Kiwala; o nome da bisavó dela.
– Então assim será – falou Boofeng.
Retornamos para preparar o enterro de Clarver. Meus pais ficaram muito
tristes com a notícia. Em nossa pequena cerimônia também
compareceram alguns vizinhos nossos que descreveram Clarver como
“uma moça adorável”. Foi muito especial recebermos esse apoio e
agradecemos a todos.
Alguns dias depois, o hospital nos informou que a pequena Kiwala já
estava pronta para retornar à família. Nós fomos buscá–la.
Já havíamos decorado todo o quarto de Clarver, que fora o antigo quarto
da minha irmã, com enfeites para bebês, incluindo berço, brinquedos e
roupinhas. Tivemos que mandar as roupas para a costureira, que cortou
sob medida um espaço para as asas. Acho que minha irmã jamais
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iremos junto.
Pelas horas seguintes ficamos próximos ao servo, até que Betah
percebesse sua falta e nos evocasse. Para a minha surpresa, surgimos no
quintal florido do castelo de Mustse. Betah nos saudou com alegria.
Achei que o castelo estaria trancado ou que todas as coisas dentro dele
seriam dadas a parentes, com o desaparecimento de Mustse. No entanto,
Betah informou que estava tudo como sempre foi, que ela continuava
cuidando do jardim e o resto dos criados limpavam a casa. Estavam
todos aguardando pela volta do patrão. Todos sabiam que ele voltaria um
dia, como sempre fazia.
– Ele já passou anos ou até décadas fora de casa – explicou Betah – é
normal ele ter ficado seis anos fora. Mas vejo que ele não está com você.
Tive que dar a notícia sobre a morte de Mustse. Todos os servos ficaram
tristes. Organizaram tudo para preparar um enterro simbólico e um
memorial. Decidimos participar.
Eu estava participando de muitos enterros nos últimos tempos. E para
todas as centenas de corpos empilhados na sala 2 jamais teve enterro
algum. Enquanto a pessoa que os matou seria recordada com saudades e
honrarias.
Quando perguntamos a Betah sobre os parentes de Mustse, ela informou
que não havia ninguém vivo. Eu já sabia que Mustse havia matado os
pais, mas talvez houvesse um tio, irmão, primo... mas não havia ninguém.
E havia uma boa razão para isso: Mustse havia realizado uma magia para
viver centenas de anos. Portanto, não haveria mais ninguém vivo mesmo,
a não ser os descendentes; talvez os tatatataranetos de algum parente.
Mas Betah não sabia nada sobre isso.
De qualquer forma, seria estranho contatar um tataraneto de décimo
grau que nem sabia sobre a existência de Mustse e dar–lhe a guarda de
Kiwala. Até porque a maioria das pessoas comuns nem mexia com magia
e Kiwala desejava ser treinada nisso. Ela precisava ficar sob a guarda de
alguém forte, para controlá–la.
– Lembrei que Mustse alegava ser um ditador vitalício do Mundo Negro
ou algo assim – comentei – quem está no governo agora e quem assumiu
a direção da firma?
– Como sempre, o nosso patrão é prevenido – explicou Betah – nós
temos ordens para proceder da maneira correta em todas as situações.
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disse que precisava retornar ao Mundo Verde, já que ele era o papa,
então não poderia se ausentar por muito tempo. Ele disse que quando
retornasse iria informar à ordem que não mais permaneceria na função
de papa. Ele tinha planos de retornar ao Mundo Octarino depois disso.
– Se precisar de mim, basta evocar–me ou a um de meus amigos magos
do meu mundo – explicou Boofeng – Betah tem a lista de nomes. Ela
também tem as listas dos meus contatos em todos os outros mundos;
com exceção do vermelho, é claro. Então qualquer questão relativa à
evocação entre mundos, basta consultá–la ou pedir para que realize. Mas
Betah está proibida de levar Kiwala sozinha a outro mundo. E somente
usem esse sistema quando essencial.
– Você está indo embora, tio Boo? – perguntou Kiwala, tristemente –
Não vá. Há espaço no castelo para todos nós. Se morar conosco
poderemos brincar juntos todos os dias!
– Sinto muito, Kiki, mas tenho negócios a resolver nos outros universos
paralelos – Boofeng sorriu – o tio Boo vai passar por um longo período
de retiro para obter a maestria de uma importante linha de magia do
Mundo Octarino. Caso não precisem de mim urgentemente, voltarei aqui
para uma visita no dia do seu aniversário de 12 anos. É uma promessa.
Nesse dia trarei a você muitos presentes bonitos com a tecnologia do
meu mundo.
– Não quero presentes. Quero você. Vai ficar fora por seis anos? É tão
longo como minha vida!
– Espero escutar muitas novidades e histórias sobre a vida da pré–
adolescente Kiwala quando eu retornar. Comporte–se, ouviu, pequenina?
Se quando eu retornar souber que você foi uma menina exemplar, irá
ganhar a torta de ameixa original, fabricada pelos confeiteiros do meu
mundo. É a mesma receita que uso para os docinhos de ameixa.
Kiwala sorriu. Boofeng abraçou–a. Depois disso, ele levantou–se e me
abraçou.
– Boa sorte com a Kiki. Sei que será uma boa mãe.
Alguns minutos depois, ele foi evocado por algum sacerdote do Mundo
Verde e partiu.
– Agora somos só nós duas, Kiwala – eu sorri para ela.
Ela sorriu de volta para mim.
– Ah... tia Wain...
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– Fale, querida.
– Desculpe por matar seus pais. Também sinto saudades deles. Nunca
mais vou matar alguém com quem realmente me importo.
Já era um começo. Eu torcia para que ela mantivesse essa opinião por
muito tempo.
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Decidi matricular Kiwala numa escola de magia negra. Achei que seria
melhor ela ter contato com outras crianças da idade dela, já que era raro
encontrar crianças naquele mundo. Os habitantes do Mundo Negro
costumavam ter uma vida bem longa; pelo menos mais de cem anos e a
maioria optava por não ter filhos para evitar os gastos. Devido à
longevidade, à prática de magia e aos poucos que optavam por ter filhos,
era possível manter a quantidade da população estável. Embora a magia
fosse um fator que aumentasse a expectativa de vida, devido a certos
métodos de cura incríveis que curavam doenças graves e acidentes
violentos, a magia também causava muitas mortes devido aos sacrifícios
exigidos em magia avançada. A maioria usava animais, mas de vez em
quando surgia um Mustse... não era incomum.
A ideia da escola era boa, porque eu não queria manter Kiwala apenas
trancada em casa. Eu e Betah poderíamos ser suas mestras de magia, mas
eu ainda não me considerava tão qualificada para ensinar. Por isso a
existência dos professores seria muito positiva.
– Escute Kiwala, você sempre deve respeitar seus professores e colegas –
avisei – e se algum colega seu implicar, falar mal das suas asas ou
qualquer coisa assim, não ataque. Comunique aos professores. E caso
considere muito negativo o ambiente da escola e seus colegas, me avise.
Em último caso tiro você da escola, matriculo–a em outra ou me
encarrego de sua educação.
Mas Kiwala estava muito entusiasmada e ansiosa para conhecer sua nova
escola. No Mundo Verde as escolas não ensinavam magia. Para aprender
era necessário entrar para a ordem. Por isso era algo novo e Kiwala tinha
muita vontade de ter aulas de magia negra. Segundo ela, seriam “aulas de
verdade”, já que ela considerava a magia verde muito leve...
Após o primeiro mês de aula, eu fui chamada para conversar com os
professores. A própria diretora conversou comigo. Ela me avisou que
Kiwala se portava de forma muito arrogante com os colegas. Ela estava
sempre se gabando que era muito rica e poderosa. Que era filha do
grande mago negro Mustse, um dos mais famosos da história do Mundo
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Negro, e que também possuía um sangue nobre por parte de sua mãe,
que fora uma maga branca. Ela havia evocado um demônio no meio da
sala de aula, somente para mostrar que era capaz, e ameaçava a todos
com chantagens se não fizessem o que ela queria. Ela tratava alguns
colegas como escravos, ordenando–lhes a comprar lanches para ela ou
limpar sua mesa, alegando que ela possuía servos em casa que faziam
essas coisas.
Kiwala ia e vinha da escola com motorista particular, naquele carro de
luxo. Quando ela chegou em casa naquele dia dei–lhe uma bronca,
contando tudo o que a diretora tinha dito a mim.
– Mas eu não ataquei ninguém com meu demônio! Só mostrei.
– Eu a proibi de evocar outros demônios até ter dominado todos os
procedimentos de magia básica. A diretora me avisou que você não usou
círculo ou triângulo.
– Mas meus colegas que começaram – defendeu–se ela – eles caçoam de
mim porque ainda não sei falar direito o idioma desse mundo. Contei a
eles que sou estrangeira e que minha família é influente e poderosa. Tive
que provar, mostrando meu demônio. Você devia ter visto a cara deles!
Morreram de medo diante do meu poder.
– Você está proibida de evocar esse demônio de novo, de se gabar ou de
tratar seus colegas como escravos. Peça desculpas e tente fazer amizades.
Seus colegas não são inimigos. Podem ser aliados, contatos. Você precisa
de contatos no mundo da magia.
Dessa vez ela se convenceu. Bastou que eu mencionasse sobre a
possibilidade de ela ter aliados e contatos. Ela parou de evocar o
demônio por um bom tempo. Não ouvi mais nenhuma reclamação da
escola e um dia ela me contou que tinha feito uma amiga.
Ela tinha gostado da escola. Sempre me contava com entusiasmo as
coisas que estava aprendendo. Nos anos seguintes, ela evoluiu muito
rápido no caminho da magia. Ela frequentemente se trancava no próprio
quarto para realizar suas experiências, até o dia em que liberei para uso a
sala de evocação número 10. Kiwala ficou muito feliz.
Aos nove anos ela já havia dominado a língua local. Crianças aprendem
novas línguas muito rápido, mas no caso dela foi bem impressionante.
Ela tinha pouco sotaque, falava até melhor do que eu.
Ela era particularmente fascinada por línguas. Sempre mantinha um
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colegas de escola. Mas aos domingos vamos a uma festa num bar de
ocultismo para jovens. Lá aparecem jovens de todas as partes da cidade,
inclusive de outras escolas de magia. Sou extremamente famosa por lá.
Compartilhamos conhecimento de ocultismo com os alunos das outras
escolas e algumas vezes até certas práticas, como magia sexual.
– Magia sexual? – perguntei, desconfiada – Você está fazendo sexo com
um monte de desconhecidos que vão a essas festas? Você tem apenas
onze anos.
– Tenho quase 12 anos e já menstruei – justificou Kiwala – quando uma
menina menstrua significa que seu corpo já está preparado para gerar um
bebê. Portanto, também significa que ela está apta para a prática sexual.
Mas não se preocupe, porque por enquanto a nossa “magia sexual”
envolve apenas beijos e toques. Tentamos drenar a energia do outro
através do beijo. Já fiz dezenas de meninos desmaiarem, porque sou
mestra nesse tipo de prática de vampirismo. Eu sou temida, desejada,
famosa. Eu sou a musa daquele lugar. Sou conhecida em todas as escolas
de magia. Alguns dariam qualquer coisa apenas pela oportunidade de
conversar comigo. A maioria não tem coragem, pois sabem que sou
perigosa.
– Não quero interferir na sua vida pessoal – resolvi deixar claro – e
parece interessante relacionar práticas mundanas com magia nobre.
Entendo que você está entrando na adolescência e deseja ter experiências
novas, diferentes, intensas, perigosas. Mas vá com calma. Tente... se fazer
de difícil para deixar seus pretendentes ainda mais loucos.
Kiwala riu.
– Faço isso o tempo todo. Na verdade o bar só permite a entrada de
maiores de 18 anos. Obviamente os donos do bar pensam que eu e
minhas amigas temos a idade mínima. A maioria dos frequentadores tem
menos que isso. E eu odeio todos os garotos; são idiotas. Ainda não
encontrei um oponente à minha altura. As melhores magas da minha
escola obviamente fazem parte do meu grupo de amigas e somos
temidas.
A vida dela parecia estar se tornando muito emocionante.
Como Kiwala previu, uma semana antes de seu aniversário de 12 anos
ela obteve uma conjuração de um demônio maior. Ela anunciou que esse
era apenas o primeiro passo de uma vida repleta de conquistas mágicas
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sublimes e que ela se tornaria a mais poderosa maga negra que o mundo
já conheceu.
Kiwala já tinha acesso a todas as salas de evocação e também a sala
secreta de possessões. Ela já havia começado a sacrificar alguns animais
grandes como coelhos, gatos, galinhas e cabras. Preferi não interferir,
pois sabia que sacrifício era essencial. Mas eu a proibi de realizar
sacrifícios humanos. E eu a ameacei: se eu descobrisse que ela andava
fazendo algo do tipo, seria severamente punida.
No entanto, eu já não me via com tanta autoridade. Era verdade que eu
era a dona do dinheiro e a proprietária da casa, mas eu previa que em
poucos anos Kiwala provavelmente seria uma maga mais poderosa que
eu. Ela estava avançando muito rápido. Por frequentar a escola, ela
possuía conhecimento intermediário em todas as principais áreas da
magia negra. E em suas experiências pessoais mexia com necromancia,
goécia, maldições e até vampirismo psíquico. Ela se tornaria uma mestra
completa, com maestria em todas as áreas.
Se continuasse naquele ritmo, em algumas décadas ela superaria o
próprio Mustse. Senti um frio na espinha ao pensar nisso. Na verdade eu
tinha tanto receio que isso acontecesse que também comecei a escrever
testamentos. Escrevi que se Kiwala me assassinasse ou tivesse qualquer
envolvimento direto ou indireto na minha morte, ela não receberia nada
de herança; ficaria tudo para Boofeng, que era praticamente a única
pessoa de confiança que eu tinha em mente, embora eu soubesse que ele
não precisasse daquele dinheiro. No caso de eu morrer por outros meios,
tudo ficaria para Kiwala.
Já Mustse me permitiu ficar com tudo, mesmo sabendo que eu
possivelmente teria alguma relação com sua morte. Mas isso porque ele
sabia que havia me maltratado de várias formas. No meu caso, eu havia
criado Kiwala com amor e sempre dei a ela tudo o que queria. Ainda
assim, eu sentia que ela me via apenas como a fonte de dinheiro, que
possuía conhecimento médio de magia. As amigas de Kiwala, quando
vinham visitar o castelo, pareciam me ver como um ser exótico. E Kiwala
realmente me introduzia como sua mãe adotiva do outro mundo. Ela
tinha certo orgulho de me mostrar para as pessoas, simplesmente porque
minha aparência era diferente e aquilo era visto com curiosidade pelas
amigas dela.
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Kiwala não me tratava mal e nem me desrespeitava. Mas sua atitude era
meio indiferente. Ela raramente falava comigo e quando falava era para
pedir dinheiro ou pedir autorização para usar algum aposento secreto.
Dificilmente falávamos sobre magia, já que ela devia julgar que meu
conhecimento era limitado. Quando ela era menor me perguntava
algumas coisas, mas acho que hoje em dia ela pensava que eu não tinha
capacidade de responder às suas dúvidas. Ela nunca me disse isso
diretamente, mas eu desconfiava.
Um dia ela me chamou para conversar. Nos sentamos e ela começou a
falar.
– Depois de amanhã será meu aniversário de 12 anos – começou ela – e,
assim como fiz em todos os anos anteriores, quero dar uma grande festa.
Nosso castelo é grande e maravilhoso, não acharemos um local melhor
para a celebração. Então quero pedir para que os criados façam uma
decoração divina no pátio e em todos os aposentos; especialmente na
sala central. Quero uma montanha de comidas e bebidas, tudo da melhor
qualidade, servidos em taças e recipientes de cristais. Dessa vez vou
convidar muita gente. Vários colegas meus, assim como alguns
estudantes de outras escolas de magia negra que já ouviram falar do
nosso castelo lendário. Também quero pedir autorização para usarmos as
salas de evocação, porque convidarei somente magistas sérios. Será uma
festa exótica, com operações de magia. Quero me certificar que tudo seja
perfeito. A festa vai durar até o amanhecer. Também quero que os
quartos de hóspedes estejam liberados e belamente decorados para que
alguns casais os utilizem para magia sexual. Vai haver gente mais velha e
é possível que role sexo de verdade.
Eu não gostava muito da ideia de um monte de gente desconhecida no
castelo, todas aquelas exigências, o fato de durar até o amanhecer,
pessoas aleatórias entrando nas salas de evocação e era totalmente contra
transformar nosso castelo nobre numa espécie de prostíbulo, mesmo que
fosse para a prática de magia.
Já estava me preparando para me opor, ouvir diversos contra–
argumentos e iniciar uma discussão que duraria provavelmente a noite
toda. No entanto, eu tinha a cartada mágica que resolveria a situação de
uma vez por todas:
– Boofeng retornará em breve – informei – lembra dele? Há seis anos ele
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negro jorraram.
Todos a fitaram impressionados; tanto diante da ousadia de fincar a
adaga no pulso sem vacilar com perante a cor extremamente negra do
sangue.
– Espero que aproveitem a festa, cavalheiros – comentou Kiwala – e
lembrem–se que certos dons pertencem somente a uns poucos
merecedores.
– Certamente, senhorita Mustse – comentou o rapaz de olhos vermelhos
– eu jamais me esquecerei da cor desse sangue.
Quando ela se retirou, um olhava para o outro, impressionados.
– Você disse que se sacrificaria para Bernadsi, Meifajin? – perguntou o
mesmo rapaz – pois eu aceitaria ser sacrificado como alimento de
Xsossa; o demônio de 22º grau da Mustse.
Outros rapazes expressaram desejos semelhantes. Certamente Kiwala era
não somente respeitada e temida, mas também desejada. E especialmente
naquela noite ela estava mais linda do que nunca.
Era estranho ouvir chamarem Kiwala de Mustse. Acho que aquilo
sempre me soaria estranho.
Em certo momento da festa, Kiwala me perguntou:
– Onde está o tio Boo? São mais de onze horas. Ele disse que viria aqui
hoje, para minha festa.
– Ainda tenho esperanças de que ele chegará antes da meia–noite – eu
disse a ela – fique tranquila.
Kiwala fez questão de controlar o acesso às salas de evocação para não
virar bagunça. Ela anotava a lista de aspirantes num bloco de avisos.
Chamava cada candidato quando chegasse sua vez e destrancava a porta,
para que o ambiente de evocação fosse utilizado por um tempo
determinado.
Havia muitos convidados vestindo mantos cerimoniais, máscaras e
portando espadas rituais. Esses certamente desejavam ter acesso às salas.
Havia outros vestidos formalmente de terno, gravata e sobretudo; ou, no
caso das garotas, vestidos de gala. Também havia os de trajes
completamente extravagantes: roupas coloridas, cabelos pintados,
piercings, moicanos, cortes de cabelo exóticos. E, por fim, havia alguns
que se vestiam como se estivessem numa festa à fantasia do dia das
bruxas, com trajes macabros e criativos.
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O Retorno
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– Fico honrado em saber – falou Boofeng – que tal você mostrar seu
laptop e seu multi mini para seus amigos? Eles parecem curiosos, alguns
deles estão olhando para cá até agora.
– Estão olhando para você, é claro. Você não passa despercebido. E falei
muito sobre você para meus amigos. Mas vou mostrar meus presentes a
eles outro dia. Agora quero aproveitar o máximo possível o tempo que
você está aqui. Conte–me sobre a nova linha de magia octarina que
aprendeu! Ah, você não pode, é segredo...
– Não temos muitos segredos – confessou Boofeng – era basicamente
um treinamento para a evocação de múltiplos servidores
simultaneamente através de sigilos. Você inventa um símbolo mágico
para cada criatura e desenha num pedaço de papel. Quando você o
movimenta no ar ou o ativa com o poder de um elemento, o servidor é
automaticamente evocado. É possível evocar até dezenas de servidores
com esse método.
– Uau! Não sei muito sobre servidores, mas parece incrível. Você mesmo
cria o ser?
– Sim, você o inventa exatamente como quer: características físicas,
psicológicas, elemento de poder, pontos fortes, pontos fracos, símbolo,
sigilo, correspondência com ervas, metais, pedras...
– Por que alguém iria querer colocar fraquezas num servidor? –
perguntou Kiwala, curiosa.
– Pode ser útil. Se o servidor ficar muito teimoso ou se voltar contra seu
mestre, você o conhece melhor que ele mesmo e sabe como domá–lo.
Houve gritos no pátio. Dois magos negros tinham iniciado um duelo.
Eles formaram círculos de proteção e triângulos. Evocaram demônios
maiores.
Corremos até lá. Eu não queria que os alunos se matassem no pátio da
minha casa! Alguém precisava parar aquilo.
Um dos desafiantes era um menino de uns 14 anos, usando terno, que
evocou um demônio intermediário. O outro era um menino de uns 11
anos, usando manto de magia cerimonial, que evocou um demônio
maior. Era impressionante ver um menino daquele tamanho dominando
aquela fera.
O menino de manto derrotou rapidamente o de terno. Tinha intenção de
matar o demônio do outro, mas Kiwala entrou no meio. Ela rapidamente
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O Diário de Mustse
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que importava. Mas ele fazia questão de ter acesso a grimórios raros e
valiosos e para ter tudo o que queria precisaria sim de muito dinheiro.
Até que ele adquiriu o hábito de multiplicar mais e mais os seus ganhos,
pois a ideia de um dia querer comprar alguma coisa e não ter dinheiro
não lhe agradava.
Isso porque os pais dele raramente lhe davam as coisas que ele queria. E
nunca tinham comprado a ele nada referente à magia, que ele praticava
escondido. O dia que matou os pais foi quando os dois o flagraram
praticando magia e se enfureceram.
Havia outra história intrigante: ele contou que aos 17 anos havia se
interessado por uma maga negra, que era sua amiga. Como ela não
correspondeu ao interesse, ele a matou. Típico. Pelo jeito Mustse fazia
questão que o mundo inteiro girasse ao seu redor e que todos
satisfizessem suas vontades; se sua vontade não fosse satisfeita
imediatamente, quando e como ele queria, ele matava. Aquilo me soava
muito infantil; recordou–me o episódio em que Kiwala matou meus pais
aos seis anos somente porque eles não puderam levá–la ao parque
porque estava chovendo. Pensando dessa forma, Kiwala foi sim mais
precoce que Mustse: matou os pais adotivos aos seis anos enquanto
Mustse o fez aos quinze.
Eu sempre desconfiei que se Mustse pisasse no Mundo Verde
novamente, ele mataria meus pais. Isso porque ele me via como sua
posse exclusiva e não queria que eu mantivesse laços com outras pessoas
ou fosse influenciada por outras visões de mundo que não fosse a que
ele me ensinasse. Mas como Mustse não teve contato direto com meus
pais, a filha dele fez o serviço.
Ainda havia dezenas de diários para ler até chegar aos últimos anos.
Pensei em ler do começo para ficar mais emocionante, mas eu não
aguentaria esperar. Resolvi folhear logo os últimos diários para ver o que
ele tinha falado de mim naqueles quatro anos que vivi no Mundo Negro
com ele.
Como esperado, ele me xingava bastante. No diário ele me chamava de
burra, insolente, fraca. Particularmente no primeiro ano em que fiquei
trancada na prisão, ele não tinha a menor expectativa a meu respeito e
disse que me ensinava magia negra por ensinar, pois seus esforços
certamente seriam em vão.
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No diário do terceiro ano ele confessou que estava satisfeito com meu
progresso, que eu não era um caso perdido. Mas que eu jamais seria
capaz de me tornar uma grande maga, porque não tinha foco. Que eu
provavelmente comecei a praticar somente porque achei os presentes
bonitos; os grimórios e utensílios. E que eu fingiria interesse na prática
para ganhar a confiança dele. Mas ele também disse que não era assim
tão ingênuo e que continuaria a me tratar mal para sempre. Afinal, se um
dia eu o traísse ele já estaria vingado. E que, de qualquer forma, ele era o
assassino da minha irmã, então eu sempre teria um motivo para odiá–lo
e uma justificativa para desejá–lo morto.
Aquilo parecia ser praticamente tudo o que ele escreveu sobre mim.
Fiquei meio desapontada por não ter encontrado nenhum trecho
surpreendente, com alguma revelação. Ele só me via como uma
prisioneira e não se importava comigo de verdade. Ele deixou isso
completamente claro nos escritos.
Bom, eu também devia confessar que não me importava com ele de
verdade. Algumas vezes eu tinha simpatia só pelo fato de ele ter sido
meu mestre de magia, mas eu não conseguia deixar de vê–lo como uma
pessoa cruel e sem emoções. Sendo assim, somente a existência de várias
anotações ao meu respeito naqueles quatro anos já era suficiente. E o
fato de ele ter deixado a herança para mim era quase lógico: ele não tinha
mais ninguém para quem deixar. No próprio testamento ele mencionou
que havia pensado em queimar tudo, mas que havia se tornado um
materialista no final das contas e somente por isso não mandou queimar.
As anotações sobre Clarver eram ainda mais raras e muito esparsas.
Somente quando eu lesse os quatro diários, do início ao fim, conseguiria
encontrar todas elas. Até ali eu estava apenas dando uma olhada.
Ele a considerava uma prisioneira ainda mais detestável do que eu.
Afinal, ela o havia evocado diretamente e tentado fazê–lo seu servo,
assim como o papa do meu mundo. Nas palavras dele, os magos
ignorantes dos outros mundos mereciam a morte. Ele se perguntou
muitas vezes em diferentes partes dos diários porque não matara ainda a
maga branca. A explicação mais razoável que ele encontrava era que ele
queria ver os limites dela e fazê–la sofrer antes de tirar–lhe a vida.
Achei a parte em que ele contou que decepou as asas da maga branca
quando ela realizou uma “tentativa estúpida” de escapar. E que aquele
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anjo, fruto de uma magia fraca e ingênua, mereceu a morte. Ele também
mencionou que quando se trancou com ela no calabouço realizou uma
tortura diferente, que não havia tentado antes, como parte da
experiência. E ele descobriu que aquele era o tipo de tortura que ela mais
abominava. Sempre indiferente, dessa vez a maga branca expressou
medo, tristeza e fúria. E que essas sensações reunidas, embora
expressassem alguma beleza, poderiam ser capazes de destruir a pureza
do coração dela.
Era impressionante vê–lo falar de algo horrível com tanta leveza.
Ele revelou o dia que a trancou na sala 1 do castelo. E que, como a partir
desse dia se dedicaria à experiência denominada “destruição da pureza
do coração”.
Em todas as páginas seguintes a partir desse dia, sempre havia uma
anotação curta sobre isso na última linha, nesse formato:
“DPC 2: satisfatória; vítima mostra traços de medo”
“DPC 3: insatisfatória; vítima desmaia devido ao espancamento”
“DPC 4: bela; vítima expressa terror, aos gritos”
Resolvi que eu não queria descobrir até que numeração iria a DPC. Ele
jamais mencionava exatamente do que se tratava. Era sucinto e vago.
Mas no último diário houve um único dia em que ele resolveu contar.
Ele disse que naquela única ocasião, e ele jamais repetiria esse tipo de
anotação novamente, ele iria descrever em detalhes cada coisa que ele
fazia nas operações de DPCs.
Parei de ler o diário nesse momento e refleti com cuidado se eu
realmente queria ler as próximas páginas. Após alguns minutos de
reflexão, tomada de coragem, abri o diário novamente. Mas quando olhei
de novo descobri que as páginas tinham sido arrancadas.
Então Mustse havia voltado atrás. Escolheu não contar. De certa forma
eu me sentia aliviada.
Já estava na hora do almoço. Levantei–me e guardei os diários. Talvez
fosse melhor eu não ler mais aquilo. Eu me sentia mal e estranha quando
lia. Era melhor esquecer o passado e viver o presente.
Quando entrei na sala para o almoço, a mesa já estava completamente
posta. Boofeng e Kiwala também chegavam naquele momento.
– Tia Wain, eu acordei cedo para fazer uma surpresa para o tio Boo –
contava Kiwala, com entusiasmo – eu pretendia acordá–lo e levar–lhe
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café na cama, mas ele já estava acordado! Isso não foi justo.
– Eu aceitei a bandeja com o café que ela preparou – explicou Boofeng –
ela disse que foi feito por ela mesma e não pelas cozinheiras, então eu
não poderia recusar.
Sentamos à mesa e nos servimos. Kiwala estava extremamente feliz e não
parava de falar com Boofeng. Mesmo nos breves segundos em que tudo
ficava em silêncio ela continuava olhando para ele, sorrindo como uma
boba alegre. Kiwala havia reprimido suas emoções durante os últimos
seis anos para descarregar toda a alegria que sentia de uma vez só desde
que Boofeng retornara.
– Experimente os bolinhos de arroz! – falou Kiwala, alcançando a
bandeja para Boofeng – estão maravilhosos! E esses tomates também
estão divinos!
– Obrigado – Boofeng sorriu, aceitando a bandeja – vou provar um
pouco de cada prato para me certificar de que não perdi nada. Já abriu
todos os seus presentes?
– Claro! Mas, como eu disse, os seus foram os melhores.
– Talvez você tivesse gostado mais de um utensílio de magia – lembrou
Boofeng – em meu mundo existem varinhas metade metal e metade
madeira, além de espadas cerimoniais com sigilos de servidores inscritos
em toda a lâmina. Mas eu não tinha certeza se você seguiria ou não o
caminho da magia. Então resolvi comprar coisas que serviriam para uma
garota da sua idade que tivesse qualquer área de interesse.
– Bem, você acertou. As tecnologias do seu mundo são impressionantes.
Encontrei algumas músicas incríveis no multi mini! O gosto musical de
seu povo é extremamente refinado!
– Eu mesmo selecionei as músicas que gravei no seu aparelho, então vou
tomar isso como um elogio – riu Boofeng – então, quais os planos para
hoje à tarde? Querem ir para algum lugar? Você gosta de cinema,
Kiwala? Tem algum lugar que deseja me mostrar? Ou talvez você não se
interesse por diversões mundanas e esteja focada no seu estudo de
magia.
Kiwala não soube o que dizer. Pelo jeito ela toparia qualquer coisa,
contanto que estivesse com o tio Boo. Se fosse eu a propor algo do tipo,
ela diria que estava muito ocupada com suas pesquisas e se trancaria na
sala de evocações.
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– Depois que você se formar, aos 18 anos, caso decida adiar a sua pós–
graduação posso levá–la ao meu mundo se desejar – propôs Boofeng –
pode ser uma boa experiência.
– Sério? – Kiwala sorriu – Eu adoraria! Terei seis anos para pensar.
Parece que você somente faz visitas a cada seis anos, então pensarei bem,
pois só terei outra oportunidade como essa aos meus 24.
Boofeng riu.
– Não se preocupe – ele tranquilizou–a – se eu não estiver num
treinamento fechado de retiro e você mudar de ideia em algum
momento, basta me contatar. Para Kiwala e para Wain eu sempre tenho
tempo.
– Você tem amigos no seu mundo? – perguntou Kiwala.
– Eu tenho, mas muitos já morreram e outros estão velhinhos, pois nem
todos são imortais.
– É mesmo, você é imortal, assim como meu pai – lembrou Kiwala – ou
melhor, vocês não morrem por velhice e ficam sempre na mesma idade,
mas podem morrer com acidentes, certo?
– Os acidentes em questão provavelmente seriam mágicos – explicou
Boofeng – é necessário algo realmente violento para matar um imortal:
ou morte instantânea ou algo que não possa ser curado imediatamente
com magia.
– Como se faz para virar imortal? – perguntou Kiwala, interessada – Se
tiver um elixir da longa vida aí com você, só tomarei daqui uns 10 anos,
porque não quero ser criança para sempre.
– Não foi fácil. Eu e Mustse conseguimos esse feito quando ambos
tínhamos 33.
– Ensine–me!
– Como você mesma disse, ainda não é a hora – comentou Boofeng – e
há algumas consequências e responsabilidades para quem escolhe esse
caminho. Assim como magos negros devem realizar um pagamento pelo
pacto, os magos verdes estão sujeitos à vulnerabilidade ou à morte
instantânea com o falecimento de seu animal totem, etc. Nesse mundo
poucas coisas são de graça.
– Amizades são de graça – observou Kiwala.
– Algumas vezes é necessário pagar um preço muito alto por uma
amizade – comentou Boofeng – mas eu acredito que geralmente esse
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e mal são ferramentas que somente a natureza manipula, não nós. Resta–
nos apenas descobrir como funciona o jogo da natureza e dessa forma
não seremos afetados.
– Correto – falou Boofeng – acho que pulei algumas etapas e apressei a
explicação. Vamos passo a passo. Já falamos da magia verde, então fale–
me suas impressões sobre magia negra.
– Como eu disse, me identifico mais com a magia negra, pois ela me
permite mais liberdade de fazer escolhas. Apenas deixo as coisas
acontecerem, não nado contra a correnteza. Se eu fico com raiva não
controlo; uso–a para adquirir poder. Se eu fosse uma maga verde teria
que me perguntar se aquela raiva teria relação com o equilíbrio da
natureza antes de me permitir ter raiva. No caso da magia branca eu teria
que conter minha raiva, pensar em perdão e amor. Mas isso não me deixa
satisfeita! Se eu estou com raiva não tenho o direito de explodi–la? Por
que vou me conter apenas para sofrer se a raiva pode ter lados bons, me
proteger, me trazer poder?
– Você não conseguirá ficar satisfeita em todos os momentos – observou
Boofeng – em troca da sua satisfação em expressar a sua raiva você pode
ferir pessoas emocionalmente, fisicamente ou até mesmo
espiritualmente. Se você pudesse obter poder sem esforço também não
ficaria mais satisfeita?
– Talvez – respondeu Kiwala, pensativa – provavelmente.
– Na magia branca o único esforço que você precisaria fazer é conter a
raiva. Não seria necessário se debruçar em muitos livros, realizar
sacrifícios e passar noites sem dormir dedicando–se a rituais. Deus te
daria tudo o que você precisa. Então, como vê, cada linha da magia
proporciona satisfação em certas coisas, mas em outras não. Em outras
cores os aspectos negativos da magia negra não existem. Os aspectos
negativos dos outros sistemas são diferentes.
– Na magia verde você precisa ser paciente e seguir o fluxo de todas as
coisas – falou Kiwala – na magia branca você precisa de amor e fé. São
caminhos leves e tranquilos, mas em compensação você não pode fazer
o que quer, quando e como deseja. Só por esse fator, acredito que são
caminhos falhos e fracos. De que adianta ter poder se você não tem
liberdade para usar?
– Eles não são falhos – falou Boofeng – você está realizando um pré–
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como magia pura, pois é a magia que se inicia com uma folha de papel
em branco. Você deve ser como um bebê que vê o mundo com olhos
curiosos e desbravadores. Trata–se de uma magia experimental e
investigativa. Contanto que funcione, é um sistema válido. Isso tem
muito a ver com a particularidade de cada indivíduo. Se alguém ama
sorvetes, basta criar um sistema de magia que envolve manipulação de
energia através do sistema das cores das bolas do sorvete, combinar com
a magia do gelo, iniciar uma alquimia de emoções baseada nas sensações
sublimes que sente ao provar o sorvete e direcionar a carga de energia
para um feitiço com um fim específico.
– Que loucura! É genial! – riu Kiwala – Tem tudo a ver com você: um
gênio louco. Você me deixou com vontade de comer sorvetes, seu
malvado! Vou lá na cozinha servir três taças para nós e você vai
aproveitar e me mostrar a magia dos sorvetes.
Em poucos minutos Kiwala estava de volta e nos trouxe as taças.
– Obrigado, Kiki – falou Boofeng – achei que não notaria que essa era
uma indireta porque eu estava com fome.
Kiwala riu e sentou–se para comer seu sorvete.
– A festa já passou mesmo, então não preciso mais de regime para caber
no vestido – justificou–se ela – você pode mudar a cor das bolas de
sorvete, fazê–las flutuar ou congelar?
– No momento eu estou mais interessado em comê–las – sorriu
Boofeng.
Kiwala achava graça em tudo o que Boofeng dizia. Mas depois que
terminamos o sorvete, Kiwala disse que queria descansar um pouco, pois
a conversa sobre magia a deixou exausta. Ela disse que teve que pensar
demais para acompanhar as explicações e o cérebro dela precisava de um
descanso.
Nós tínhamos ido dormir quase sete da manhã. Acordei antes das onze e
os dois deviam ter acordado mais cedo ainda. Então decidimos ficar no
sofá para tentar dormir.
Eu cochilei apenas por alguns minutos. Num momento em que entreabri
os olhos, vi Boofeng e Kiwala sentados num dos sofás. Kiwala apoiava a
cabeça no ombro de Boofeng e estava de olhos fechados.
– Tio Boo – sussurrou Kiwala.
– Hm? – perguntou ele, com voz de sono.
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– Te amo.
– Também te amo, Kiki.
– Mas eu te amo de uma maneira diferente – explicou Kiwala.
– Que maneira diferente? – perguntou ele, mais dormindo do que
acordado.
– Do jeito que uma mulher ama um homem.
– Hm... – ele nem parecia estar prestando muita atenção. Estava quase
cochilando de novo.
– Os meus colegas são todos idiotas, mas você é diferente. Você é
maduro, poderoso, engraçado, divertido, criativo, diferente, inteligente...
aliás, muito inteligente. E tem uma beleza exótica.
– Você também é uma menina extraordinária, Kiki. Mas agora o tio Boo
está com sono.
– Eu notei que todos os membros do seu corpo têm cores diferentes –
prosseguiu ela – é a mesma coisa com o que está debaixo das suas
roupas?
– Hã...?
– Qual a cor da parte do seu corpo que está entre as suas pernas? –
perguntou Kiwala.
Dessa vez Boofeng acordou. Ele fitou Kiwala desconfiado. Na verdade
ele parecia não acreditar no que tinha ouvido. Franziu a testa.
– Você está bem? – perguntou Boofeng, preocupado – está estranha.
Você tomou alguma bebida com álcool ou se intoxicou de alguma
forma?
Boofeng estava falando sério, mas Kiwala riu, pois achou que ele estava
brincando.
– Não vai responder minha pergunta? – insistiu Kiwala – Você é tímido?
– Acho melhor você ir ao seu quarto para dormir um pouco – sugeriu
Boofeng – quando acordar estará se sentindo melhor.
– Quer ir ao meu quarto comigo? Assim você pode me mostrar a cor...
– Kiwala, por favor, escute o que estou dizendo: você não está bem.
Você começou a dizer essas coisas do nada...
Kiwala abraçou Boofeng.
– Eu estou bem. Mais do que nunca. Você disse que também me ama.
Vamos ficar juntos para sempre? Não vou deixar você ir embora nunca
mais. Não quero perdê–lo de novo. Esperei muito tempo para que
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voltasse.
Kiwala tentou dar–lhe um beijo na boca, mas Boofeng virou o rosto.
– Kiwala, pare com isso – Boofeng ficou sério – não faça isso de novo.
Você está...
Ela tentou fazer de novo e o agarrou com força. Dessa vez Boofeng teve
que reagir. Ele deu um empurrão tão forte em Kiwala que ela foi jogada
no chão.
Eu parei de fingir que estava dormindo e me levantei.
Kiwala sentou–se no chão. Ela fitou Boofeng com tristeza e começou a
chorar.
– Por que fez isso? Seu mentiroso! Você me odeia! Tia Wain, o tio Boo
está me maltratando! Ele está estranho, estou com medo!
Kiwala me abraçou. Mas se ela pensou que eu ia defendê–la, estava
enganada.
– Eu ouvi o que você disse antes, Kiwala – eu disse a ela – peça
desculpas a Boofeng e prometa que jamais vai agir assim de novo.
Ela me soltou e fitou–me com raiva.
– Por que está defendendo ele? Eu odeio vocês dois! Como podem ser
tão cruéis assim com uma criança?
Ela saiu correndo da sala, ainda chorando. Foi para o quarto e trancou–
se lá.
Eu e Boofeng voltamos a sentar nos sofás.
– Não queria tê–la empurrado tão forte – justificou Boofeng.
– Não precisa se desculpar – eu disse – Kiwala que está errada.
– Isso é normal? – perguntou Boofeng – Ela costuma fazer isso quando
um homem visita o castelo?
– Nunca a vi agir assim antes – confessei – também fiquei chocada.
Nunca imaginei que ela faria isso com alguém que ela estima e respeita.
Por outro lado, ela está entrando na adolescência, com os hormônios
fervilhando. Ela vai àquelas festas nos domingos e não sei o que ela faz
lá além de beijar os meninos. Espero que seja apenas uma fase.
Boofeng não fez nenhum comentário. Apenas continuou sentado no
sofá e apoiou uma das mãos na testa, pensativo. Ele estava sério, meio
triste.
Uma hora depois, Kiwala retornou à sala. Sentou–se num dos sofás.
Decidiu que era melhor não sentar no mesmo sofá de Boofeng dessa
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vez.
– Desculpe. Não sei o que deu em mim. Eu sinto muito.
Ainda assim, não falamos nada.
– Tio Boo, você me perdoa?
Ele pensou um pouco antes de responder.
– Acho que não tenho escolha, senão perdoá–la – foi a resposta.
– Obrigada. Prometo que nunca mais agirei assim de novo.
– E acho que já vou arrumar minhas coisas para voltar ao meu mundo
amanhã – acrescentou Boofeng.
Kiwala levou um susto.
– Por quê? Só por causa do que eu fiz? Já pedi desculpas e prometi não
fazer de novo. Você não acredita em mim?
– Kiwala – resolvi intervir – você precisa entender que as coisas não
podem ser sempre do jeito que você quer. Quando entender isso,
conseguirá respeitar mais as pessoas, não tentará forçá–las a fazer algo
que não querem, não dirá coisas ofensivas e não insistirá quando as
pessoas tiverem outros assuntos a resolver e não puderem te dar atenção.
Kiwala ficou quieta. Apenas fitou o chão. Seu rosto se encheu de
lágrimas de novo. Desde que Boofeng voltara, ela passou a agir como
uma criancinha mimada outra vez. A transformação era impressionante.
Um dia antes de Boofeng aparecer, Kiwala usava um tom de voz mais
grosso, me fitava com seriedade e agia com frieza e indiferença.
Embora estivesse chateado, percebi que em parte Boofeng estava com
um pouco de pena dela, porque ele era assim mesmo. Não importava o
que acontecesse, ele sempre estava disposto a perdoar e a ajudar.
Era assustador ver o quanto ela estava ficando parecida com Mustse.
Embora ele fosse sério e reservado, as coisas tinham que ser sempre
exatamente como ele desejava, senão ele ameaçava, torturava, matava.
Kiwala só não tinha chegado a esse ponto porque ela nem sempre tinha
poder para isso. Ela não teria poder para forçar Boofeng a nada, já que
ele era incomparavelmente mais poderoso que ela. Mas se ela tivesse o
poder, eu não duvidava que ela fizesse.
No fundo Boofeng sabia disso. Ele conhecia bem Mustse, até melhor do
que eu. Ele mesmo previu o que Kiwala se tornaria. E teve esperanças.
Naquela situação ele ainda via saída, mas era difícil dizer por quanto
tempo.
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A Sala Número Um
Felizmente e surpreendentemente, no dia seguinte as coisas voltaram a
ser como antes. Boofeng e Kiwala já estavam conversando alegremente e
ele anunciou que decidiu adiar a viagem por mais alguns dias.
Kiwala passou o dia usando o laptop de sapinhos. Boofeng a auxiliava
em tudo o que ela precisava, principalmente com as traduções. Ela já
tinha começado a ler o livro que ensinava a língua do Mundo Octarino.
– Nossa! Eu posso acessar os sites do Mundo Octarino! – constatou
Kiwala, surpresa.
– Mas eles estarão estáticos – avisou Boofeng – você somente pode
acessar os sites do jeito que eles estavam no momento em que saí do
meu mundo. Não será possível ver atualizações ou conversar com
pessoas de lá.
– Mesmo assim é incrível. Vou levar anos para ler e investigar todos esses
sites. Será maravilhoso. Eu irei surpreendê–lo quando retornar, pois já
saberei tudo sobre a magia octarina. Vou aprender sua língua e ler o
máximo que eu puder sobre essa magia na internet.
– Boa sorte em sua jornada. Sei que você é capaz desse feito. Aproveite e
descubra como os magos octarinos enxergam as demais linhas da magia.
Pode ser divertido. Obviamente, muitos possuem opiniões equivocadas
sobre magia negra, mas infelizmente você não poderá enviar uma
mensagem de texto para xingá–los.
– Também estou curiosa sobre o multi mini. Você disse que ele é
diferente de outros celulares porque faz algumas “coisas misteriosas”.
Do que se trata?
– É um multi mini para praticantes de magia. Ele pode sentir a aura das
pessoas baseado num programa desenvolvido pelos nossos magos. É um
computador, então não funciona perfeitamente. Também há um sistema
completo de divinação baseado na energia das pessoas. Você pode criar
até mesmo uma forma–pensamento usando isso. Trata–se de um
pequeno servidor; um servidor júnior, desenvolvido por iniciantes.
Kiwala morreu de rir. Ela experimentou desenhar um servidor na telinha
do multi mini. Traçou um círculo de proteção e concentrou–se para
tentar evocá–lo. Mas não obteve resultado.
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pipoca.
– Não quero estragar a tradição – explicou Boofeng – quando eu e
Mustse vínhamos ao cinema sempre pedíamos metade pipoca e metade
manteiga. Ele é como eu, odeia pipoca, mas sabe que não pode existir
cinema sem pipoca. Os que odeiam precisam improvisar.
– Mustse já me disse uma vez que odiava pipoca – lembrei – e que
odiava cinema também. Ele nunca quis assistir a um filme comigo.
– Bem, isso foi há cem anos – explicou Boofeng – os cinemas agora
estão meio diferentes. Nos velhos tempos era mais divertido quando eles
faziam um intervalo no meio do filme para trocar o rolo. Nesse
momento eu ficava lançando pipocas melecadas de manteiga nas outras
pessoas.
– Como você o convenceu a ir ao cinema? – perguntei.
– Minha capacidade de persuasão pode ser terrível. Basicamente ele
aceitava minhas propostas quando eu as mencionava mais de cinquenta
vezes num único dia. Ele sentia–se um pouco sob pressão.
Isso explicava a paciência com que Mustse lidou comigo naquele dia que
entrei secretamente no quarto dele de manhã e insisti várias vezes para
irmos às salas secretas. Perto das insistências de Boofeng, aquilo não era
praticamente nada.
Sempre que Kiwala saía comigo, o que raramente acontecia, ela ficava em
silêncio, olhando as vitrines calmamente, pedindo para não irmos muito
rápido porque ela estava de salto alto. E a cada meia hora ela pedia para
ir ao banheiro para retocar a maquiagem.
Mas com Boofeng era bem diferente. Ela tinha que correr para
acompanhá–lo e conversava com ele em voz bem alta, animadamente.
Praticamente dançava com ele enquanto caminhava e ria muito.
Era algo novo poder conhecer outra face de Kiwala. Ela agia de um jeito
diferente dependendo de quem estivesse perto. Quando ela estava com
as amigas, tornava–se uma bruxa terrível e assustadora; seu olhar
impunha respeito e seu porte era admirável.
– Podemos ir ao fliperama? Podemos? Podemos? – perguntou Boofeng,
inspirado pelo seu papel de garotinho – Deixa, tia Wain, deixa!
Kiwala morreu de rir. Eu “deixei”, é claro, e joguei junto. Jogamos vários
jogos.
– Estão vendo a pontuação máxima desse aqui? – ele mostrou um
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joguinho de luta – foi Mustse quem fez. Mesmo até hoje, depois de cem
anos, ninguém conseguiu superar.
Eu estava descobrindo um pouco mais sobre o passado sombrio de
Mustse. Dei um sorriso de triunfo. Jogou tantas vezes fliperama que fez
a pontuação máxima?
“Mago negro sério, completamente aplicado em seus estudos de magia?
Sei”. Essas coisas ele não contava no grimório. Só queria que ele
estivesse vivo para eu poder rir da cara dele por causa daquilo. Kiwala
também ficou impressionada em saber.
– Querem que eu revele todo o passado negro dele? – brincou Boofeng
– Eu provavelmente estive junto na maior parte das atividades lúdicas
que ele fez parte. Isso inclui até a ida a uma festa. Ele não dançou,
infelizmente. Tive que dançar sozinho. Mas ele bebeu muito e falou umas
coisas estranhas que acho melhor manter no arquivo confidencial.
Aquele foi um dia muito divertido. Mas a partir do dia seguinte, Kiwala
precisaria estudar para as provas. Eu e Boofeng a ajudamos. Eu ainda me
lembrava da teoria de magia intermediária que eu havia lido nos
grimórios da biblioteca. Acho que pelo fato de eu ter sido capaz de
auxiliá–la tão bem, subi no conceito de Kiwala.
Uma semana depois, as provas estavam terminadas. Então Kiwala
convidou as cinco amigas para o castelo. Elas ficaram muito
impressionadas com o conhecimento de Boofeng.
– Ele é tão extraordinário quanto você nos contava, Kiwala – comentou
uma delas, de cabelos metade castanhos e metade loiros.
– Vocês ouviram sobre Mendeth? – perguntou outra, de cabelos negros
encaracolados e pele escura – Foi semana de provas na escola dele
também. Ele faltou a semana inteira. Ele jamais tinha faltado um só dia
de aula. Será que o que você disse a ele na sua festa fez com que ele
desistisse da magia?
– Provavelmente foi devido à nossa luta – respondeu Kiwala, indiferente
– ele deve ter percebido claramente que era inferior. Se eu fosse ele,
jamais teria pisado numa escola de magia na vida. Fico aliviada em saber
que ele abandonou os estudos e viverá a vida medíocre que merece.
Havia algo estranho ali. Kiwala não expressou a menor surpresa ao saber
que aquele garoto havia faltado a semana inteira. Era como se ela já
soubesse, embora afirmasse o contrário. E ela parecia ter certeza de que
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seu demônio? Ele deve ter te abandonado por ter ficado uma semana
sem pagar o preço do pacto. Lamentavelmente também perdeu a semana
de provas, mas nem faz diferença. Acho que nesse ponto você já
percebeu que é um fracasso completo em magia.
– Sempre tirei notas mais altas que você, sua vaca.
– De que adianta se é um fracasso no aspecto empírico, tolinho?
– Trabalhei duro para obter a conjuração daquele demônio e você me fez
perdê–lo.
– Você mal conseguia controlá–lo. Quase matou meus convidados pela
sua fraqueza extrema. Tentou matar o demônio do seu amigo e vivia
desafiando outros idiotas só para provar que era o melhor. Você sabe que
é um lixo e que mereceu sua punição.
– Chega! – falei – Ele precisa descansar. Ainda está em processo de
recuperação. Vamos sair. E você ficará de castigo, Kiwala.
Saímos de lá e fechamos a porta. Kiwala ficou trancada no quarto.
Depois disso, fiquei na sala com Boofeng.
– Encontrei no quarto dela folhas arrancadas de um dos diários de
Mustse – contei a Boofeng – em que ele descreve as torturas que
realizou em Clarver. Ela deve ter se baseado nisso. Ela conhece Mustse
muito bem. Já leu os diários dele e os grimórios que ele escreveu. Ela o
admira e vai acabar se tornando exatamente como ele. E agora? O que
eu faço? Não vou conseguir segurar essa fera. É um demônio num corpo
de criança.
– Mustse não podia ser controlado tampouco, mas mesmo assim ficamos
amigos – observou Boofeng – claro que em parte isso se devia a nossa
conexão na vida anterior. Mas mesmo assim Mustse conseguia mostrar
traços humanos numas raras ocasiões. É o jeito dele de fazer as coisas;
seu jeito de ser. Não posso julgá–lo. Embora nunca tenha concordado
com as coisas que ele fazia, apenas me restava contar as minhas piadas e
ficar ao seu lado. Sinto o mesmo em relação à Kiwala. Ela vai fazer
coisas piores daqui para frente. Mas eu sou o tio dela. Até mesmo
tecnicamente, já que Mustse foi meu irmão de sangue um dia. Não vou
matá–la.
– Não acho que ela deva morrer. Mas as coisas não podem continuar
como estão.
Mais tarde, o garoto começou a se sentir mal. Ele vomitou. Voltou a
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o recinto.
Surpreendentemente Lamue ainda não tinha atacado. Até porque
Mendeth ainda não fizera o próximo movimento. Ele não tentou
conjurá–lo. Acho que no fundo ele sabia que qualquer tentativa nesse
sentido resultaria em morte imediata.
– Você quer morrer?! – gritou Kiwala, quando entrou – Se quiser, vá em
frente. Lamue não terá piedade.
– Cale a boca – retrucou Mendeth – apenas assista quietinha. Vou
realizar um feito com o qual você jamais sonhou. Não posso perder essa
oportunidade.
– Já te dei uma oportunidade de morrer. Se quiser tanto assim, deixe–me
usá–lo como sacrifício para obter essa conjuração. Assim sua morte não
terá sido em vão. Sou mais forte que você, tenho mais chances de
dominá–lo. Vou entrar nesse círculo e oferecê–lo como sacrifício.
– Você está tirando minha concentração! E não ouse entrar no meu
círculo! Eu não vou permitir.
Mas como Kiwala era mais poderosa, pegou uma segunda espada e abriu
um portal no círculo. Entrou lá. Ela colocou a lâmina da espada na
garganta de Mendeth.
– Ó, imponente e respeitável demônio de alta hierarquia! – bradou
Kiwala – Eu te vejo e te reconheço como o grande Lamue, o mais
poderoso dentre as potências infernais existentes! Solicito que te tornes
o meu servo absoluto até o fim de minha existência no pacto sagrado
que nesse momento eu e tu travaremos! Ofereço esse imprestável mago
negro como sacrifício, que possui energia mágica suficiente da qual tu
poderás te servir. Diz–me os termos de teu pacto que os aceitarei, não
me importa quais forem. Sou Kiwala Kynhei Mustse, primogênita do
poderoso Jodu Feybar Mustse, seu antigo senhor, e exijo meu direito à
sua posse como descendente.
Era verdade que o fato de ela ser a primogênita pesaria muito, já que
havia o sangue de Mustse em suas veias. Mas ela não era Mustse e eu
nunca ouvi falar de demônios que passassem através das gerações apenas
pelo sangue. Não deveria ser tão fácil. Mesmo que aquilo contasse,
Kiwala teria que provar que possuía poder para dominá–lo.
Lamue atacou. Kiwala protegeu–se com a espada ritual. Uma enorme
quantidade de sangue negro caiu de seu braço direito.
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Ela ficou tonta e caiu no chão. Ela não teria mais condições de se
concentrar para uma conjuração daquele porte, ferida como estava.
Ainda assim, ela queria insistir.
– Pare, Kiwala! – falou Boofeng – Você vai morrer! Volte imediatamente.
Sabe que ainda não está preparada, então não entregue sua vida. Aguarde
com paciência e treine com diligência que um dia chegará o seu
momento.
Acho que Kiwala escutou somente porque foi Boofeng quem disse. Ela
compreendeu. Boofeng era forte e se nem mesmo ele era capaz de
comandar Lamue, Kiwala entendeu que ainda não era hora de tentar algo
daquele porte.
Ela abriu o portal no círculo e saiu. Eu e Boofeng ajudamos a tratar a
ferida dela. Boofeng amarrou um pedaço de pano com força no braço de
Kiwala para estancar o sangue.
– A enfermeira do castelo irá tratá–la – informei a ela – eu te levo até lá.
– Não – falou Kiwala, determinada – só sairei daqui depois que eu ver
Lamue estraçalhar Mendeth em mil pedaços. Vou usar meu multi mini
para filmar. Só não vou mostrar para meus colegas porque senão eles vão
babar pela evocação dele e irão tratá–lo como mártir.
Mendeth não teria condições de tentar uma conjuração, pois estava se
sentindo mal. Ele caiu no chão. Estava tonto, possivelmente com dores
de cabeça fortes. A febre devia estar ardendo. Ele não devia ter saído da
cama naquelas condições.
– Já é o bastante – falou Boofeng, por fim – eu mesmo vou entrar no
círculo e tentar fazer Lamue retornar.
Quando Boofeng ia abrir um portal, Mendeth não permitiu.
– Ele está falando comigo – explicou Mendeth – Lamue está causando as
dores de cabeça. Ele disse que isso é necessário. Deixe que ele faça.
– Ele dificilmente falaria com você, já que a conjuração não foi concluída
– explicou Boofeng – Lamue raramente fala e se ele está realmente
realizando uma comunicação por intermédio de sua mente, será para
enganá–lo. Ele irá gerar dores cada vez maiores no seu corpo até matá–
lo.
Lamue saiu do triângulo e entrou no círculo de proteção! Soltei uma
expressão audível. O menino era fraco demais para manter Lamue
lacrado no triângulo. Mendeth estaria morto nos próximos segundos.
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para ter pressa, a não ser que você seja como eu e não tema colocar–se
diante da morte, garotinha ingênua.
– Presumo que uma das pessoas seja eu. E quem seria a outra?
– Sempre acreditei que sua capacidade de dedução seria genial,
considerando de quem você é filha – comentou Mendeth – a outra
pessoa é aquele palhaço logo ali.
– O tio Boo não interferiu na sua brincadeira.
– O tio Boo? – perguntou Mendeth, fitando Boofeng com curiosidade –
Então agora você é o tio Boo. Parabéns. Deve ter muito orgulho pela
sobrinha. Mas pensando bem, acho que a “tia Wain” também merece ser
morta. Você jamais foi apenas uma espectadora passiva.
– Pare com seus joguinhos – resolvi dizer – diga o que quer. O que
Lamue te contou?
– Ah – falou Boofeng – entendo.
– Então faça a gentileza de explicar a elas – solicitou Mendeth.
– Lamue deve ter revelado minha participação direta e sua participação
indireta, Wain, na morte de Mustse – sugeriu Boofeng – mas se Lamue
queria se vingar, podia ter nos matado naquele dia.
– Você me compreendeu de forma errada – falou Mendeth – estou
desapontado. Lamue não busca vingança alguma, pois ele já encontrou o
que procurava. Ele me revelou fatos surpreendentes. Claro que não
acreditei quando ele disse. Ele teve que me mostrar. Durante esses dois
dias que estive em coma, tive visões extraordinárias.
– Ele está blefando – avisou Kiwala – não diga que agora pode ver o
futuro?
– Ao contrário – respondeu Mendeth – ele me mostrou o passado. Mais
especificamente, minhas duas vidas passadas. Na primeira vida eu me
chamava Kadolo Bopei e fui um monge do Mundo Vermelho até morrer
com meu irmão devido a uma tragédia quando ambos tínhamos 14 anos.
Na minha segunda vida, fui um mago negro chamado Jodu Feybar
Mustse, mestre de Lamue, que junto do mago octarino Hei Qwob
Boofeng e da maga branca Priela Krist Knossa adquiriu a imortalidade
para ironicamente falecer aos 386 anos. Nesses últimos dois dias recordei
cada detalhe da minha vida e cada conhecimento que adquiri.
– Então acho que nesse instante eu deveria dizer: bem–vindo de volta,
Mu! – riu Boofeng – Eu estava com saudades!
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– Não me abandone, tia Wain, por favor! Preciso de você! Não quero
viver com aquele monstro!
Kiwala era extremamente contraditória.
– Acho que a nossa janta esfriou – observou Boofeng.
Eu já tinha até esquecido disso. Nós três voltamos para a sala de jantar.
No caminho passamos pela sala de estar e encontramos Mendeth deitado
num dos sofás. Ele devia estar dormindo, mas acordou quando nos viu.
– Quer se juntar a nós para jantar? – ofereci.
– Suponho que sim – ele respondeu.
Mendeth levantou–se e nos acompanhou. Boofeng fez questão de
comunicar aos cozinheiros a verdadeira identidade de Mendeth. Os
empregados conheciam Boofeng há muito tempo e confiavam no que ele
dizia. Logo a notícia começou a se espalhar pelo resto do castelo e
empregados de todos os setores foram à sala de jantar para
cumprimentá–lo e dar–lhe as boas–vindas, alguns entre lágrimas. Betah
até mesmo abraçou Mendeth.
Desse jeito ele não ia conseguir jantar. Solicitei que os empregados
esperassem que ele terminasse antes de vir mais gente para vê–lo, mas
naquele ponto a maioria já o tinha cumprimentado. Mendeth retribuía os
cumprimentos de maneira formal com um aceno de cabeça ou aperto de
mão.
Era muito esquisito saber que aquele menininho era Mustse. O jeito de
falar, de agir, de fazer as coisas, era o mesmo. Mas a voz dele, embora
não fosse fina, era voz de criança. Era estranho ver uma criança agindo
com toda aquela autoridade e polidez. Eu não levaria a sério se não
soubesse quem havia por trás daquele corpo.
As taças de cristal eram extremamente finas e fazia mais de onze anos
que Mustse não as usava. Devia estar acostumado com copos de vidro
ou plástico. Por isso, quando ele foi segurar acabou pegando com muita
força e quebrou–a. O suco de uva derramou e a palma da mão dele
sangrou um pouco.
– Desculpe... por que estou pedindo desculpas? Fui eu que comprei essas
taças – acrescentou Mendeth, pensando melhor.
– Você se machucou? – perguntei.
– Não foi nada.
Uma das cozinheiras levou a ele um pano, com o qual Mendeth removeu
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repentina.
– Mas a maior surpresa foi quando minhas amigas me viram chegar ao
colégio acompanhada de Mendeth no meu carro particular – contou
Kiwala – disse que descobri que ele era meu primo e que ele moraria no
meu castelo por enquanto devido a uns problemas familiares. E foi a
primeira vez que elas te viram usar uma roupa que não fosse o uniforme
do colégio.
– Já realizei a encomenda de algumas roupas e sapatos do meu tamanho
pela internet – explicou Mendeth – vai levar um bom tempo até que
minhas roupas antigas caibam, infelizmente.
– Por que não foi à loja de roupas? – perguntou Kiwala – Eu poderia ter
ido com você e lhe ajudado a escolher. Teria sido mais divertido.
– Teria sido o inferno. Odeio loja de roupas. E não preciso da sua
opinião.
– Eu sei o que está na moda hoje em dia – justificou Kiwala – você não
deve saber nada sobre a moda entre os jovens, porque sempre usou a
mesma roupa.
– E quem disse que eu quero estar na moda? – perguntou Mendeth – No
fim, mesmo sendo praticante de magia, você tornou–se uma adolescente
fútil e superficial. Estou desapontado. É isso que dá sair de casa e ter
contato com esse tipo de gente. Wain não teve esse problema, pois eu a
mantinha trancada no castelo, como deve ser.
– Em parte eu concordo que a maioria das pessoas daquela escola são
seres fracos e inferiores, que sou melhor, mais poderosa, mais inteligente
e mais bonita que todos eles – observou Kiwala.
– Já é um começo. Mas por se importar tanto com a opinião dos outros,
você faz questão de concluir essa escola fraca de método questionável
somente para obter um diploma inútil que a torna qualificada para
ensinar uma suposta magia negra para a próxima geração de infelizes.
– O tio Boo estava certo – comentou Kiwala – ele sempre disse que,
embora fosse muito sério, meu pai também era engraçado. Agora entendi
o motivo.
– Não estou tentando ser engraçado – esclareceu Mendeth – é a mesma
coisa quando as pessoas dizem que riem em algumas partes dos
grimórios que escrevo. Como as pessoas podem rir lendo um livro sério
como aquele, em que revelo segredos milenares? É um absurdo.
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– E daí que elas tivessem morrido? Todos vão morrer um dia. Elas
deviam se sentir honradas por serem assassinadas por um demônio de
alto grau.
Se esses eram os argumentos de Mendeth, não era difícil concluir o
motivo de a professora tê–lo enviado para a direção.
– Tive vontade de evocar Lamue para matar aquela diretora desgraçada.
Ela me fitava como se eu fosse um inseto. Maldita arrogante.
Para Mendeth, todos eram arrogantes, menos ele...
– Arrogante é quem se eleva acima de sua condição – explicava Mendeth
– e eu já estou acima de todos, então não há meios de eu me elevar mais.
– Está acima de todos, menos de Knossa – lembrou Boofeng – e de
alguns magos vermelhos.
– Poupe–me de seus comentários – falou Mendeth – os melhores magos
vermelhos já atingiram a iluminação e não existem mais em nenhum
mundo. Não há como eu estar abaixo de alguém que não existe.
Como de costume, ele tinha resposta para tudo.
– Mas você sabe que não pode superar Knossa – insistiu Boofeng – foi
para evitar um duelo que te revelaria a verdade que você se escondeu
aqui no Mundo Negro.
– Quando eu for solicitar a ela um elixir de envelhecimento te provarei
que não estou me escondendo de ninguém.
No outro dia, Kiwala convidou as cinco amigas para o castelo, para
tomar um chá. Mendeth queria matá–la.
– Eu te avisei que eu não permitia que aquelas suas amigas pisassem
aqui! Você é surda?!
– Não é só porque você é anti–social, odiado e não tem amigos que eu
preciso ser assim também – justificou Kiwala – eu sou uma jovem bonita
e saudável e quero mostrar minha beleza para o mundo.
– Então vá mostrar a sua beleza bem longe do meu castelo! O mundo
está lá fora e não na minha sala.
– Mas aqui tem chá de graça. Wain cortou minha mesada, não posso
ficar saindo de casa.
– É dinheiro que você quer? Se eu te der dinheiro você some com suas
amigas?
– Agora eu já as convidei. Seria indelicado remarcar.
– Sim, eu sei que você é super delicada – ironizou Mendeth – quando me
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nojo de Mendeth ao fitar a decoração da sala. Acho que ele estava com
vontade de arrancar cada um daqueles laços, queimar os ursinhos e
torturar os empregados que fizeram aquilo à sua preciosa sala.
– Mendeth fará a gentileza de se juntar a nós – contou Kiwala.
– Não. Essa gentileza eu não faço.
– Vamos falar sobre magia. Não ligue para a forma. É a essência dessa
reunião que importa.
Kiwala falou o que precisava para convencê–lo a ficar.
Ela não mentiu. Elas falaram sobre magia e começaram o assunto
tentando inventar uma definição para a magia rosa.
– Eu acho que é a magia das coisas doces e meigas; a magia das fadinhas
mágicas – sugeriu Lilipaw – minha boneca, que também é minha filha,
será uma maga rosa. Ela terá um manto cerimonial rosa, uma espada
ritualística enfeitada com pom–pons e irá vestir o demônio que evocar
com um vestido de bailarina cor–de–rosa.
Imaginei que Mendeth já estaria se enforcando a esse ponto, mas ele
apenas mantinha–se sentado na poltrona, extremamente sério.
A partir daí a coisa foi ficando ainda pior, se é que isso seria possível. As
meninas conversavam animadamente, dando risinhos e em alguns
momentos imitavam uma voz fininha, como se fosse a própria boneca
falando. Uma delas tentou dar chá para a própria boneca e derramou
metade do chá de morango no tapete, que ficou com uma grande
mancha cor–de–rosa.
Mendeth fez força para fingir que não viu aquilo e apenas tomava seu
chá de morango em silêncio.
– Uma coisa veio à minha mente agora – comentou Lilipaw.
– Incrível – observou Mendeth – achei que sua mente fosse um vácuo.
– O que é um vácuo? – perguntou Lilipaw – É o marido da vaca?
Todas as meninas deram risinhos. O rosto de Mendeth tornou–se
mortalmente sério. Acho que ele havia decidido permanecer em silêncio
até o fim do chá. Era incrível que ele estivesse aguentando até ali.
Eu e Boofeng também estávamos participando do chá, mas sentados em
sofás um pouquinho mais afastados. Os sete estavam num conjunto de
sofás mais próximos à mesa de docinhos e ursinhos. Pelo menos eu e
Boofeng podíamos sussurrar um com o outro sobre outros assuntos,
enquanto Mendeth estava cercado de garotinhas vestidas de rosa que não
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paravam de tagarelar.
– O que veio à minha mente é que eu nunca escutei que Mustse tivesse
irmãos – prosseguiu Lilipaw – já li a biografia dele. Ele afirma ser filho
único. Então como você poderia ser o primo de Kiwala?
– Ele é meu primo de segundo grau – explicou Kiwala, muito
naturalmente.
– Então ele é um parente distante – observou Zeikei, a amiga de cabelos
metade marrons, metade loiros, presos em duas chiquinhas – você
poderia usá–lo para experiências de magia sexual. Ele está na sua casa de
favor, então ele pode retribuir sendo útil.
– Já fiz isso, mas foi péssimo – confessou Kiwala – ele só ficava me
encarando com uma expressão de leite azedo. Estraga totalmente o
clima.
– Nesses casos que se aplica tortura – comentou Zeikei – você pode
eletrocutá–lo ou golpeá–lo na cabeça com uma marreta. Se você não o
está usando, tenho interesse em alugá–lo.
– Claro, podemos negociar o preço – falou Kiwala – minha mesada foi
cortada por tempo indeterminado, como sabem. Se o pagamento for em
dinheiro será muito útil.
Antes de elas irem embora ocorreu o batismo da boneca de Lilipaw,
batizada de Lilipipa. Todas elas deram um beijo na boneca para
comemorar. Boofeng aceitou ser o padrinho, já que Mendeth negou–se.
Quando elas foram embora, houve uma briga feia entre Mendeth e
Kiwala.
– Você está achando que é minha cafetina? – perguntou Mendeth – O
que foi aquela atitude desrespeitosa de suas amigas? Elas estavam
falando de mim como se eu fosse um objeto, um pedaço de lixo.
– Você as trata assim também. Nenhuma delas gosta de você.
– É óbvio que elas não gostam. Você tem as jogado contra mim desde
sempre.
– Sua atitude não ajuda – observou Kiwala – você queria expulsá–las do
castelo assim que chegaram e xingou a minha amiga de cabeça–de–
vento.
– Fui extremamente educado, considerando as circunstâncias. Para mim
hoje foi a gota d'água. A partir de amanhã não mais irei frequentar aquela
escola cheia de ignorantes. Não irei treiná–la em magia negra tampouco.
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Se vire. Boofeng, eu vou embora com você para qualquer lugar que você
for. Vamos nos mandar daqui. Achei que a sua companhia era ruim, mas
isso foi antes de conhecer Kiwala.
– Eu não acredito que por causa do seu egoísmo você vai levar o tio Boo
embora também – queixou–se Kiwala – retire–se sozinho se quiser, não
envolva os outros.
– Kiwala, agora que Mustse mencionou, me dei conta que eu já fiquei
tempo demais – observou Boofeng – bem além do que eu pretendia.
Preciso retornar ao Mundo Octarino para retomar meus retiros. Mas
antes de ir lá podemos dar uma passada rápida no Mundo Branco para
conversar com Knossa.
– Feito – falou Mendeth – partiremos amanhã, então.
– Se é assim, quero ir junto – decidiu Kiwala.
– Você não pode – falei – e a escola?
– Faltam só duas semanas para as férias – explicou Kiwala – e já fiz as
provas finais. Não vai fazer mal eu faltar só nesses dias, já que raramente
falto.
Acabei concordando. Dessa forma eu poderia ir junto. Seria uma grande
oportunidade conhecer outros mundos.
Kiwala começou a arrumar sua mala alegremente. No entanto, Boofeng
avisou:
– Não leve muita coisa. É difícil transportar muita bagagem na evocação
entre mundos.
Kiwala telefonou para as amigas para contar as novidades. Ela fechou a
porta do quarto, mas entreouvi algumas coisas. Ela se exibia, dizendo
que iria conhecer dois fantásticos mundos lindos e que compraria
lembrancinhas de lá para todas as amigas.
– Não viajaremos para turismo – expliquei a ela – e sim para um
treinamento sério de magia. No Mundo Branco iremos conhecer uma
grande mestra. Você conhecerá a terra natal de sua mãe e talvez sua
família materna. E Boofeng poderá nos introduzir completamente ao
Mundo Octarino, já que ele conhece tudo lá. Todos os amigos dele são
magos, então acredito que iremos aprender muito.
A evocação foi realizada logo de manhã cedo. Abriu–se um enorme
portal. Kiwala ficou maravilhada, pois pouco recordava de sua viagem ao
Mundo Negro.
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teria se unido numa ação única com a certeza de seguir o caminho certo.
– Acredito que as pessoas também se dividam em relação aos habitantes
do Mundo Negro – comentou Boofeng – alguns aqui devem achar que
estão fazendo o bem ao não sorrir para alguém que eles consideram um
assassino, pois eles acreditam que Deus não deseja que eles ajudem ou se
envolvam com pessoas que realizam atos que eles consideram errados. Já
outras pessoas sorriem para todos por simplesmente acharem que todos
merecem sorrisos, sem serem julgados. Que mesmo as pessoas ruins
possuem alguma bondade em seus corações.
– Exatamente, Boofeng! – Knossa sorriu, com entusiasmo – Achei lindo
o que você falou!
– Obrigado – Boofeng riu – eu me esforço, mas não sou tão bom nisso
quanto você.
Knossa sorria e se alegrava com pequenas coisas. Acho que Kiwala se
convenceu e não teve mais nenhum argumento para rebater a filosofia
do Mundo Branco.
– Você tem sorte, pois já é naturalmente bonita – observou Kiwala – no
meu caso, preciso me esforçar e me enfeitar para isso. Se eu vivesse num
mosteiro e usasse apenas um manto, sem maquiagem, sem arrumar o
cabelo, eu ficaria com uma aparência comum e sem graça.
– Acho que você é uma menina adorável – sorriu Knossa.
– Mas não basta ser adorável – comentou Kiwala – você é uma musa.
Meu pai e o tio Boo praticamente a devoram com os olhos quando te
olham. Acredito que você esteja ciente disso.
– Kiwala, isso foi... – começou Boofeng.
– Isso foi a verdade – interrompeu Kiwala – quando me ofereci para o
tio Boo, ele não quis e me empurrou. Se você se oferecesse para ele,
senhora monja, eu tenho certeza de que o tio Boo te possuiria aqui
mesmo.
– Kiwala, você tem doze anos! – explicou Boofeng – Eu não podia fazer
aquilo. Não achei certo. Eu não me neguei por achar você feia ou
qualquer coisa assim. Foi por respeito a você.
– Então você tem preconceito com a minha idade – falou Kiwala – por
ser criança ainda não tenho um corpo sensual, então você não gosta.
Não sente atração sexual.
– Você não entendeu – Boofeng tentou explicar de novo – eu não disse
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que não sinto atração por você. Bom, eu também não posso dizer que
sinto... Knossa, salve–me, por favor! Estou numa situação difícil.
– Hã... Kiwala – começou Knossa, também pensando em como
explicaria – o seu tio acredita que se tivesse aceitado a sua proposta, ele
sentiria como se estivesse se aproveitando de você. Da sua confusão e
desejo por afeto naquele momento. Ele sabe que crianças na sua idade
estão apenas começando a descobrir a paixão e algumas vezes a
confundem com outros sentimentos. E é bastante provável que você
tenha confundido o grande amor e afeto que sente por Boofeng com
paixão.
– Você é sábia, senhora monja – falou Kiwala – quando eu fizer 18 anos
vou me declarar de novo para o tio Boo e ele não terá nenhuma desculpa
para me rejeitar, pois já terei um corpo de mulher e serei maior de idade.
Eu entenderia Boofeng se ele rejeitasse Kiwala quando ela fizesse 18
anos. Afinal, Boofeng a via como a sobrinha querida, com quem ele
brincava e para quem ele trazia presentes desde que ela era pequena.
Acho que para ele era difícil juntar isso com desejo sexual.
Como ninguém fez nenhum comentário, Kiwala continuou a falar:
– Monja, você é belíssima, inteligente e deve ser extremamente poderosa
e famosa no Mundo Branco e na ordem. Para você que já tem tudo isso,
é muito fácil desejar somente o amor... além disso, você é simpática,
agradável, educada e parece não ter nenhum defeito. Entendo porque
você é feliz. Não é por causa do amor.
– Eu já vivi mais de 400 anos – respondeu Knossa – e jamais saí do
Mundo Branco, por toda a minha vida. Nasci aqui e pretendo morrer
aqui. Apesar de eu não envelhecer, sei que chegará um momento em que
a minha vida deverá acabar, pois todas as coisas possuem um fim. Já
passei por várias experiências. Mesmo aqui no meu mundo, somos
apenas humanos cheios de falhas. Então posso te garantir que minha
vida nunca foi um mar de rosas. Foi extremamente difícil tentar ser boa
para receber a bênção de Deus. Eu tive que lidar com muitas partes
minhas que eu tinha dificuldade de me libertar. Boofeng sabe como eu
era no passado.
– É verdade – confirmou Boofeng – quando eu e Mustse conhecemos
Knossa nós dois tínhamos 22 anos e ela tinha 26. Éramos mortais. Até
então Mustse havia se dedicado à magia negra e eu praticava magia
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demais.
– Então tente não ser tão direta a partir de agora para não nos
constranger, Kiwala – brincou Boofeng – para mim é difícil falar desses
assuntos na sua frente, já que você é criança. Algumas vezes eu esqueço
que as novas gerações já estão bem avançadas. Viver 400 anos é um
problema porque você vive tempo demais para fazer muitas besteiras e
também para jamais esquecer as besteiras que seus outros amigos de 400
anos fizeram.
Aquela história era bem impressionante. Ao olhar para Knossa eu jamais
imaginaria nada daquilo. Ela aparentava ter sido uma monja pura e
bondosa a vida inteira, como se tivesse nascido perfeita e fosse
eternamente perfeita. Eu não a imaginava vivendo numa casa com dois
homens, evocando anjos, demônios e servidores em meio a perversões
sexuais.
Os três juntos deviam resultar numa mistura de extraordinária
inteligência e poder para gerar o elixir da longa vida. Uma visão estranha
e divertida surgiu em minha mente: Knossa com um chapéu de bruxa
enorme – com sua auréola a enfeitá–lo – mexendo uma poção verde e
borbulhante num enorme caldeirão enquanto os jovens Mustse e
Boofeng alcançavam a ela todo tipo de ingrediente nojento.
Minhas visões foram interrompidas quando Mendeth entrou na sala. Ele
estava completamente mudado.
Ele vestia um manto branco. Estava bem alto; mais alto do que Mustse
foi, mas não tão alto quanto Knossa. Tinha a mesma pele levemente
morena, os cabelos cinzentos desarrumados e os misteriosos olhos
cinzentos, meio puxados para o negro ou azul escuro. O rosto dele
estava muito adulto. Havia algo de sensual naquela maturidade. Com
certeza ele estava muito melhor do que o Mendeth de onze anos, que era
apenas um menino magrelo e desengonçado.
Os três chifres dele estavam enormes e imponentes.
– Uau – comentou Kiwala – você está sexy, pai.
– Silêncio – requisitou Mendeth – um dia eu vou te ensinar a ter respeito.
Eu vou te bater tanto que você irá fazer uma reverência e se ajoelhar a
cada vez que me vir. E irá se dirigir a mim somente por “senhor”.
Certamente Kiwala teria mais respeito por um pai de 41 anos do que por
um de 11.
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cama. Knossa nos encheu de fios e monitorou nosso estado físico por
um aparelho.
– Isso vai doer um pouco, mas aguentem firme.
Ela começou a nos aplicar uma compressa enrolada numa espécie de
aparelho eletrônico que alternava de muito gelado para muito quente.
Outras vezes eram apenas pequenos choques elétricos.
Senti uma enorme pressão na minha cabeça e no peito. Ela devia estar
tentando coisas estranhas como parar nosso cérebro ou nosso coração.
Algumas vezes doía muito. Eu estava ficando nervosa. Tive medo de
morrer.
Os testes continuaram por um tempo considerável. O mais horrível de
tudo foi meu medo de morrer de repente, de ter um colapso. Até que
Knossa retirou os aparelhos e anunciou:
– Está tudo certo. Vocês são imortais a partir de agora. Ficarão
eternamente com a idade que tinham hoje. Não envelhecerão nem
mesmo um dia, mesmo que se passem mil anos ou 100 mil anos. Vocês
sobreviverão à maioria dos acidentes graves de natureza não mágica. Mas
há certos tipos de magia que podem matá–los, especialmente aquelas
geradas por potências, que não possuem natureza humana.
Era assustador demais para ser verdade.
Quando voltamos à sala de antes, Kiwala se pronunciou:
– Também quero envelhecer! Desejo ser imortal! Posso fazer isso? Pai?
Tia Wain? Tio Boo?
Cada um de nós disse “não”; um por vez.
– Por que vocês podem e eu não posso? – perguntou Kiwala, irritada.
– Seja paciente e espere mais alguns anos – eu disse a ela – quando
estiver com a idade apropriada, você poderá tomar o elixir da
imortalidade. Mas antes dos seus 18 eu não permito.
– Basta eu tomar agora uma bebida para que eu envelheça seis anos.
– Eu prefiro que você desfrute cada etapa do seu crescimento de forma
natural – falei.
– E por que meu pai não desfrutou?
– Porque eu já tive a paciência de passar por isso uma vez – respondeu
Mendeth – e não desejo passar pelo processo de novo.
Por fim, Kiwala se convenceu. Ela aceitou o sacrifício de esperar mais
seis anos.
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– Ei, monja – chamou Kiwala – tia Knossa. Posso ficar esses seis anos
aqui no mosteiro para aprender a voar e a evocar um anjo?
– Você deseja seguir o caminho de amor da magia branca com
sinceridade? – ela perguntou.
– Olha, tia, eu só quero voar e ter um anjo – respondeu Kiwala,
simplesmente – se eu precisar de amor para conseguir isso, que seja.
– Mas e seus estudos, Kiwala? – perguntei – Você não queria tanto se
formar?
– Eu terei a eternidade para fazer isso – falou Kiwala – no momento
estou com vontade de estudar magia branca. Acho que isso é algo raro
que só ocorrerá uma vez em toda a minha eternidade, então tenho que
aproveitar.
Claro que eu não seria contra. Achei que aquilo seria super positivo para
Kiwala. O coração dela poderia se transformar totalmente naqueles seis
anos e apagar todo o seu passado negro. Clarver ficaria feliz se soubesse
que Kiwala finalmente seguiria a via branca.
Eu confiava totalmente em Knossa. Se havia alguém qualificada para ser
uma excelente instrutora, era ela. Eu não tinha medo de manter–me
longe de Kiwala enquanto ela estivesse com Knossa, pois eu sabia que
ela estaria em boas mãos.
Combinamos o seguinte: enquanto Kiwala ficaria por seis anos no
Mundo Branco, eu, Mendeth e Boofeng estudaríamos a magia octarina.
Antes até pensei em ficar no Mundo Branco, mas a possibilidade de tirar
férias de Kiwala e ter momentos agradáveis com meus dois amigos era
mais interessante.
Dali a seis anos, exatamente no dia do aniversário de 18 anos de Kiwala,
retornaríamos ao Mundo Branco para a festa. Prometemos que nesse dia
também seria travada uma batalha simbólica entre todos nós, para
demonstrarmos o que cada um de nós aprendeu durante esse período.
Em especial, eu estava ansiosíssima para testemunhar as habilidades
lendárias de Knossa, que era possivelmente a maga mais poderosa de
todos os mundos – com exceção, talvez, do Mundo Vermelho, do qual
pouco sabíamos.
Nos despedimos e desejamos boa sorte para Kiwala. Eu ia ficar com
saudades daquela pequena diabinha e eu esperava que quando eu
retornasse me deparasse com uma moça angelical. Eu não duvidava da
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Acho que Mendeth só tolerava esse tipo de coisa porque sabia que ele
era poderoso. Para ser o mestre de Boofeng, aquele cara, que
praticamente tinha uma casa na cabeça no lugar do chapéu, devia possuir
um poder tremendo. Um imortal, obviamente.
– Onde está Qirimot? – perguntou Mendeth.
– Ah, sim, o seu amiguinho! – observou Djroll – Ele está na sala de
operações explosivas; pesquisando, como sempre. Vamos lá falar com
ele.
– Se ele está ocupado, não há necessidade de interrompê–lo – observou
Mendeth.
– Ora, é claro que podemos interrompê–lo! – riu Djroll – Se ele estiver
realizando uma experiência de dez horas e interrompermos no meio,
basta ele retomá–la do começo tudo de novo!
Nós retornamos por alguns corredores. Entramos numa das salas. O tal
Qirimot era o mago octarino sério que eu havia visto antes, de relance. O
corpo dele também era colorido, como de costume. O olho direito era
branco e o esquerdo negro. Os cabelos eram roxos. Ele aparentava ter
quase 50 anos e eu não tinha certeza se ele era imortal. Provavelmente
não. Algumas partes do cabelo dele estavam se tornando violeta, como
se estivessem embranquecendo. Ele usava vestes de cores discretas,
cinzentas.
– Senhor Djroll – cumprimentou Qirimot, em sinal de respeito, parando
o que estava fazendo – em que posso ajudá–lo?
– Boofeng está de volta e com ele recebemos uma visita muito
inesperada: a reencarnação de Mustse. Lembra–se dele?
Qirimot fitou Mendeth com curiosidade.
– Mustse é imortal. Como você pode ser a reencarnação dele? Sofreu um
terrível acidente mágico ou se matou?
– Fui condenado à morte no Mundo Verde devido a uns pequenos mal
entendidos – esclareceu Mendeth.
– Eu acho que foram alguns grandes “bem entendidos” – sorriu
Boofeng.
– É fantástico você ter relembrado de sua vida passada – observou
Qirimot – possivelmente devido ao seu passado no Mundo Vermelho, eu
presumo.
– Talvez, em parte – confessou Mendeth – mas foi minha potência que
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diversas coisas esquisitas que eu nem sabia o que era. Dteya afirmava que
tudo aquilo seria utilizado como utensílio de magia. Eu não entendia
como. Mas se a magia octarina era a junção de magia com tecnologia e
ideias malucas, era bem possível.
Fiquei satisfeita por ter sido considerada qualificada para iniciar aquele
treinamento. A magia octarina era tida como uma magia interessante para
magos mais avançados, que já possuíam certa base em outras linhas.
Isso porque aquela era uma via para se desapegar de certos conceitos e
vícios da magia. Mas primeiro você precisa dos conceitos e vícios para
poder abandoná–los. Na maior parte das operações de magia cerimonial
clássica há uma grande ênfase no aspecto ritualístico: aprender para que
serve cada utensílio e só poder usar certo instrumento específico para
determinado fim. Mas na magia octarina você sequer precisa de uma
espada para evocação; pode evocar um servidor até com um patinho de
borracha.
É verdade que espadas e varinhas são o ideal, já que madeira e metal
canalizam energia de forma bastante satisfatória e cada cristal cravejado
possui uma energia específica para determinada operação e tudo mais.
Mas o que conta mais na magia é o aspecto psicológico. Portanto, se
você convencer seu cérebro de que um patinho de borracha tem a
mesma eficácia de uma espada, assim será.
Há ocasiões em que magos de diversas linhas se encontram de mãos
vazias e precisam improvisar, realizando suas operações, até mesmo
evocação, através da energia projetiva emanada da mão direita. A magia
octarina é a magia clássica do improviso e mostra como é possível a
geração de energia e inspiração através de praticamente qualquer fonte,
com base na personalidade do mago.
A magia clássica se baseia em nossa confiança nos séculos de experiência
e tradição dos grimórios antigos, que têm funcionado desde sempre, de
geração em geração. A magia moderna tem como base a nossa lógica,
quando aceitamos a possibilidade de realizar magia com instrumentos
inusitados, e também o nosso conhecimento sobre as coisas que mais
gostamos. Por isso é muito importante conhecer a si mesmo para saber o
que te inspira mais. Se você é apaixonado por bolo de chocolate, adora
jogos de videogame de corrida, ama a cor azul, aprecia uma música
eletrônica específica, é fascinado pelo cheiro do milho amanteigado
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servido numa praia calma em um dia de sol claro, basta usar tudo isso
como fonte de inspiração: objetos, cenários, cheiros, sons... vale tudo.
Dteya explicou–me tudo isso no primeiro dia e me deu uma tarefa: nos
próximos dias eu teria que explorar todos os objetos que havia no meu
quarto. Eu devia descobrir quais deles eu mais gostava. Então eu faria
algumas listas: numa delas haveria todas as coisas que eu mais amava
dentre tudo o que encontrei naquele quarto. Na outra eu escreveria as
coisas que não gostei. E numa terceira lista eu mencionaria objetos,
cores, sons, aromas ou qualquer outro fator do qual eu sentia falta, que
não pude encontrar no meu quarto.
Dei início à minha desafiadora e divertida tarefa. Resolvi começar
observando o ambiente ao redor. Sentei na minha cama. Ela era macia e
confortável. Não era nem pequena e nem grande; do tamanho ideal. Era
uma cama bonita, de madeira. Os lençóis e cobertores eram confortáveis.
No entanto, o cobertor que cobria a cama era completamente colorido e
quadriculado, com cores vivas. Achei que aquilo me distraía demais e
escrevi na lista que preferia lençóis brancos e cobertores com um
desenho menos chamativo, como algo azul com flores brancas salpicadas
pelos cantos.
O guarda–roupa era ideal, também feito de madeira. Havia bastante
espaço, muitas gavetas. Encontrei diferentes roupas lá dentro. Gostei
mais de umas do que de outras. Na verdade provei todas as roupas.
Algumas ficaram pequenas, outras grandes. Então separei a lista das
roupas que eu mais gostei e que me serviram e a outra das roupas feias e
que eram de tamanho inadequado para mim.
Sobre o banheiro não tive muitas reclamações, pois tudo estava
funcionando muito bem, era limpo e higiênico. Só escrevi que não gostei
dos sabonetes, que tinham cheiros muito fortes. Eu preferia um aroma
mais suave, como flor de laranjeira. A toalha era bonitinha, com
desenhos de bichinhos.
Voltei para o quarto. Havia um tapete no chão, que não achei
maravilhoso, mas também não achei feio. Na verdade fiquei um bom
tempo filosofando sobre o tapete, se ele precisaria ser trocado ou não.
Por fim, resolvi deixá–lo lá.
Nas paredes havia três quadros. Anotei que gostei de dois, mas de um
deles não gostei muito. O que eu não gostei tinha um desenho meio
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questão de fazer uma troca com ele por dinheiro do Mundo Negro. Eu
me sentia feliz por ter aceitado, pois o Mundo Octarino era repleto de
tentações para todos os lados. Muita tecnologia, muitas maravilhas. Havia
até espadas e varinhas feitas com aparelhos eletrônicos, que eram
caríssimas. Optei pelas clássicas, pois além de serem mais baratas tinham
mais a ver comigo. Imagina se eu quebrasse uma varinha eletrônica, que
desperdício.
De volta ao meu quarto, concentrei–me em consagrar meus novos
utensílios. Dteya também me ensinou umas magias estranhas com
comida. Peguei a mania de praticar magia em todas as horas das
refeições, mas como minha comida acabava esfriando no processo,
resolvi abandonar a prática.
Era divertido energizar a comida. A prática de experiências mágicas com
comida e bebida, como as poções mágicas, existia em todos os mundos.
Mas cada uma delas empregava técnicas específicas. Por essa razão, a
junção das fórmulas das poções dos mundos negro, branco e octarino
tinham levado àquelas fantásticas descobertas.
Nos últimos anos, a prática de evocação entre mundos havia aumentado
consideravelmente. E não falo daquela prática antiga de evocar potências
dos outros mundos, pois isso sempre existiu. Falo de viajantes que
visitam outros mundos para conhecer a magia local. Até então, somente
magos avançados mexiam com viagens entre mundos com a intenção
clara de aprender mais sobre magia. Eu esperava que esse maior contato
entre os povos fortalecesse as relações entre eles e diminuísse os
preconceitos. Mas era difícil dizer se aquilo resultaria numa era com troca
de conhecimentos de forma saudável ou numa guerra.
E lá estava eu, com meus utensílios energizados, traçando formas
geométricas de proteção para minhas primeiras tentativas de evocação de
servidores. Decorei os dizeres da evocação, mas aquele processo era
difícil. Demorei muito para criar um servidor e materializá–lo pela
primeira vez.
Foi muito emocionante quando vi minha arvorezinha espinhosa que eu
inventei surgir pela primeira vez diante de mim, piscando seus olhos
amarelos curiosos. Dei–lhe um nome: Wooii. Era um nome bonitinho.
Era parecido com meu nome e na língua octarina aquele termo tinha a
ver com árvore.
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Foi realizada a evocação entre mundos. Com pouca bagagem nas mãos,
nós retornamos.
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Poderes
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flor comum, como aquelas que Boofeng havia dado a Kiwala. Tinha algo
de diferente nela: um perfume estranho; uma energia incomum.
– Essa flor chama–se “lírio da alma” – explicou Mendeth – ela precisa
ser regada apenas uma vez por semana: com lágrimas ou com sangue. E
somente com suas lágrimas e com seu sangue. A cada vez que regá–la ela
ficará de uma cor diferente, dependendo de seu estado de espírito mais
profundo. Outra pessoa jamais deverá derramar seus fluídos na flor, ou
ela morrerá. Essa flor te aceitará como guardiã após sua primeira lágrima
derramada.
– Nossa – Kiwala fitou Mendeth – é tão... poético. Inacreditável. Não
sabia que existia algo assim.
Kiwala havia derramado algumas lágrimas de saudade ao nos rever.
Portanto, ela enxugou os olhos e tocou a ponta do dedo com a gota de
lágrima nas pétalas da flor. Imediatamente o lírio assumiu um tom cor–
de–rosa. Ela consultou o livreto que acompanhava para descobrir o
significado.
– Amor, ternura, carinho – leu ela – é belíssimo! Aqui diz que algumas
vezes ela pode assumir duas ou mais cores ao mesmo tempo.
Embora tenha sido o presente mais simples, talvez fosse o mais
profundo.
– Muito obrigada, pai – sorriu Kiwala – você me fez ficar emocionada
agora.
Kiwala acabou derramando ainda mais lágrimas. Quando uma delas caiu
sobre a flor diretamente, as pétalas se abriram ainda mais e o lírio
tornou–se mais belo.
– Obrigada a todos vocês por fazerem parte da minha vida – prosseguiu
ela.
Kiwala parecia realmente mudada. Ela estava mais sensível. E, ao mesmo
tempo, parecia ter adquirido uma grande vitória sobre certos medos,
incluindo algo que Mustse nunca conseguiu: não temer expressar
emoções.
Knossa também deu um presente a Kiwala: um bracelete dourado, que
possuía poder e canalizava a energia. Se Kiwala erguesse a varinha ou a
espada com a mão do bracelete teria uma energia ainda mais forte.
– Aprendi a voar! – revelou Kiwala, com emoção – E depois de muito
tempo de dedicação, fui capaz de realizar o contato e conversação com
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fazer será tentar proteger minha própria vida e sugiro que corram.
– E se vocês três se empolgarem, o Mundo Branco será destruído –
constatei – controlem–se, por favor! Querem tomar um calmante antes
de começar?
– Vamos de uma vez – apressou–se Mendeth, traçando o círculo com a
espada – não tenho o dia todo.
Cada um deles traçou o círculo de proteção. Meu coração acelerou.
Agora sim ficaria interessante. Eu estava com um pouco de medo, mas
desde quando ter medo é uma coisa ruim? Desde os primórdios do meu
treinamento de magia negra, eu já conhecia o grande poder do medo e
do terror.
Bem previsíveis, cada um utilizou o seu próprio sistema. Mas eu estava
prestes a testemunhar as últimas técnicas conquistadas pelos maiores
mestres de magia branca, negra e octarina que eu conhecia.
Mendeth evocou Lamue e até hoje eu ainda sentia um frio na espinha ao
fitar aquela criatura de ar espectral. Boofeng evocou o seu servidor mais
poderoso: um palhacinho colorido antropozoomórfico que eu já tinha
visto outras vezes. E chegou a vez da evocação de Knossa.
O SAG de Knossa era gigantesco. O anjo de aparência feminina possuía
nada menos que dez asas douradas e uma auréola flamejante! Tinha
cabelos brancos e lisos, com duas tranças, e olhos laranjas intensos.
– Heielaia! – Knossa bradou o nome do próprio SAG; a seguir,
pronunciou um monte de dizeres numa língua antiga do Mundo Branco.
Lamue atacou as potências com lâminas de gelo. O servidor soprou
bolhas de sabão. As bolhas coloridas causavam uma explosão quando
estouravam. O anjo, portando uma espada faiscante, partiu para cima
dos outros dois.
O anjo nem precisou atacar. Bastou o bater daquelas asas gigantes para
que o servidor e o demônio fossem jogados longe. Nem mesmo Lamue
parecia ser páreo para aquele anjo. Foi preciso apenas poucos segundos
para Boofeng e Mendeth compreenderem com clareza que Knossa era
muito mais poderosa que eles. Por isso, os dois se juntaram para atacar
apenas o anjo.
Lamue assumiu sua forma de dragão vermelho. O servidor de Boofeng
tornou–se um dragão azul. Então o dragão vermelho e o azul partiram
para cima do SAG.
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seu mestre.
Mendeth apenas fitava o nada, com o corpo coberto pelo sangue de
Lamue.
– Knossa – Boofeng estava muito sério – você tentou nos matar?
– Eu não imaginava que havia tanta diferença entre nossos poderes –
respondeu Knossa –realizei um ataque normal e achei que suas potências
dariam conta do recado.
– Desculpe, Knossa, mas essa explicação não colou – retrucou Boofeng
– você usou uma evocação na língua nobre. O que tinha em mente?
– A língua nobre é completamente aceitável em batalhas. Mustse deixou
claro que queria lutar para matar.
– Você ainda leva a sério as coisas que ele diz? Você o conhece tão bem
quanto eu. Nem sempre ele mata quando ameaça.
– Ele me mataria se tivesse o poder – falou Knossa.
Mendeth estava em estado de choque. Acho que ele preferia jamais ter
recordado o seu passado ou recuperado Lamue para presenciar aquilo.
Eu sabia como Mendeth se sentia naquele momento: completamente
impotente. Ele havia focado todo o seu treinamento em Lamue. Tinha
dedicado toda a sua vida para fortalecê–lo e era completamente
dependente dele. Sem Lamue, o próprio Boofeng era capaz de matar
Mendeth em poucos segundos.
Todos fizeram suas potências desaparecer. Mendeth continuava
ajoelhado no chão, fitando o nada e tremendo.
Kiwala correu até Mendeth. Ajoelhou–se ao lado dele. Eu, Boofeng e
Knossa também fomos até lá.
– Pai? – perguntou Kiwala, com urgência – Fale alguma coisa, por favor.
– Isso aconteceu porque você não evocou outras potências para auxiliar
Lamue – falou Boofeng – mas você sempre faz questão de usar apenas
Lamue para tudo e nenhum outro. Aí está o resultado.
– Isso aconteceu porque você me levou para seu mundo idiota, para
estudar a magia octarina imbecil! – gritou Mendeth – Se eu tivesse
passado esses seis anos treinando minha própria linha da magia, como
vocês dois fizeram, o resultado dessa batalha seria diferente.
– Mustse, aceite: seis anos não teriam feito diferença – falou Knossa –
Lamue estava destinado à morte quando me enfrentasse. Só evoquei 50
demônios maiores. Eu poderia ter evocado cem ou mil. Mas eu tinha
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metade do meu antigo poder. Não posso aceitar isso. E você será
eternamente mais forte que eu. Isso é inadmissível.
– Acredito que cada um de nós deverá pensar qual caminho deseja seguir
a partir de agora – falou Boofeng – eu já decidi há muito tempo que a
minha linha de magia é a octarina e permanecerei no meu mundo para
prosseguir meus estudos. Convido Kiwala para conhecer o Mundo
Octarino também, a não ser que queira continuar aqui ou talvez retornar
com seu pai ao Mundo Negro. E se Wain desejar poderá vir comigo para
dar continuidade ao seu desenvolvimento promissor na área de
servidores.
– Aceito retornar ao Mundo Octarino – falei.
Afinal, eu estava bastante entusiasmada com meu servidor. Podia ser que
no futuro eu escolhesse treinar outra linha, mas eu não queria
interromper meu treinamento de magia octarina justo quando eu estava
empolgada e interessada.
Eu já tinha estudado e visto coisas suficientes de magia negra para
considerá–la uma linha perigosa e infeliz. Cheguei a empolgar–me com a
possibilidade de ter um SAG, mas de certa forma saber que a operação
mais avançada de magia branca exigia envolvimento com magia negra
não me agradava. Portanto, talvez fosse melhor eu descartar tanto a
magia negra quanto a branca.
Sendo assim, eu teria duas opções: aprofundar–me na divertida magia
dos servidores ou simplesmente fazer a coisa mais óbvia possível:
retornar ao meu mundo, como eu sempre senti que deveria fazer,
embora ainda não me sentisse preparada.
Kiwala já tinha 18 anos. Ela não dependia mais de mim. Portanto, eu
estava livre para ir aonde desejasse. Mas se cada um fosse para um canto
diferente seria triste. Por isso eu torcia para que Kiwala optasse pelo
caminho octarino como eu, para ficarmos todos juntos. Já Mendeth eu
duvidava muito que tivesse interesse em se aprofundar em servidores,
pois para ele seria insuportável ser sempre inferior a Boofeng.
Kiwala parecia com uma dúvida cruel. Quem ela seguiria? Boofeng?
Mendeth? Knossa?
Kiwala foi na direção de Boofeng e abraçou–o.
– Não me importa qual caminho eu quero – ela disse – só quero ficar
junto de você.
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situação.
Mendeth também olhava sem acreditar, embora já estivesse ficando
entediado com aquela novela. Acho que ele não sabia sobre aquela
história de Kiwala gostar de Boofeng.
– Sendo assim, eu vou dizer, mas você não vai gostar – falou Boofeng –
eu gosto de uma namorada que não seja insistente e que as coisas
aconteçam naturalmente, sem forçar a barra.
– Você só está dizendo essas coisas para me humilhar! – gritou Kiwala –
Eu te odeio! Você matou meu pai! Você merece morrer!
Kiwala tinha a mania de colocar no assunto coisas que não tinham nada
a ver.
– Esperei por todos esses anos, ansiosamente, para chegar até uma idade
em que você me aceitasse – prosseguiu Kiwala, dramaticamente – te
ofereci todo o meu amor, te ofereci a minha vida, e você negou! Eu
jamais me esquecerei disso! Pai, eu vou voltar com você para o Mundo
Negro. Eu vou ficar mais poderosa que você, tio Boo. Eu prometo. E
quando isso acontecer, darei um jeito de te trancar nas salas de tortura e
fazer tudo o que eu quiser com você.
Boofeng parecia não acreditar que a “Kiki” estivesse dizendo aquelas
coisas.
– Kiwala, você é uma imbecil – falou Mendeth – poderia ter ido ao
mundo dos palhaços e ter dado um jeito de conquistar o seu tio trouxa
lá, já que ele é a ingenuidade em pessoa. Bastava enganá–lo até obter o
que queria. Mas eu não estou nem aí. Se quiser viver no meu castelo, terá
que obedecer às minhas regras. Já te aviso: você vai sofrer. Eu sei que eu
sou um desgraçado e sua vida comigo estará fadada à infelicidade; esse
foi o único destino daqueles que já viveram sob o mesmo teto que eu.
Essa é sua última chance de pedir desculpas ao “tio Boo” e voltar atrás.
Kiwala ficou assustada com todas aquelas ameaças. Mas Boofeng falou
antes dela.
– Eu não vou aceitar desculpas – Boofeng estava sério – e jamais vou me
esquecer do que me disse. Se desejava ter um inimigo forte, acabou de
arranjar um. Eu não vou mais interferir na sua vida. Se um dia você me
procurar pedindo ajuda, eu não vou dar. Antes você era criança, então eu
admitia que dissesse coisas absurdas. Mas agora é diferente. Esqueça que
me conheceu.
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Fraquezas
Ainda bem que eu estava ao lado de Boofeng para ajudá–lo. Ele ainda
chorou por algum tempo, mas depois conseguiu se acalmar.
– Wain – falou Boofeng, de repente – eu estou errado?
– Não sei mais o que é o certo e o errado – confessei – mas acho que
você fez o melhor que pode.
– Obrigado. Eu precisava ouvir isso. Estou muito confuso. Se eu
simplesmente tivesse aceitado namorar Kiwala, nada disso teria
acontecido.
– Você não podia ter feito algo contra a sua vontade – falei – não pense
mais nisso.
Antes de ir embora, resolvi convencer Boofeng a irmos conversar com
Knossa uma última vez. Ele não estava muito a fim, mas devido ao meu
pedido ele aceitou.
Knossa nos recebeu. Ela estava cheia de curativos, devido aos
machucados produzidos por Mendeth.
Ela pediu muitas desculpas a Boofeng e disse que estava arrependida do
que tinha feito. Boofeng disse que ia pensar no assunto, pois não estava
em condições de dar uma resposta agora.
Contei superficialmente o que havia acontecido. Não dei detalhes, apenas
mencionei sobre uma briga feia e que Mendeth e Kiwala tinham
retornado ao Mundo Negro.
– Lamento por Kiwala – falou Knossa – ela tem talento para magia
branca. É realmente uma pena ela ter se desviado do caminho.
Ainda conversamos mais algumas coisas. No entanto, percebi que
Boofeng estava com vontade de sair de lá. Por isso, despedi–me de
Knossa e avisei que iríamos partir. Ela disse que nós dois seríamos
sempre bem–vindos no Mundo Branco. Kiwala também poderia
retornar, mas Mustse estava proibido de pisar no templo.
Eu e Boofeng voltamos ao Mundo Octarino. Boofeng propôs algo
diferente dessa vez. Ele ofereceu–se para me treinar em magia octarina.
Quando ele resolvesse prosseguir em seus próprios estudos com Djroll,
Qirimot voltaria a ser a minha mestra.
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Passei a viver com ele na sua residência, que também tinha muitos
aposentos, embora não fosse tão imponente quanto o castelo de Mustse.
Ainda assim, eu tinha certeza de que eu seria muito mais feliz lá do que
no Mundo Negro.
A casa dele era completamente colorida e feliz. Havia quadros de arte
abstrata por todos os lados, assim como móveis e decorações de todas as
cores. Era estonteante caminhar ali dentro.
Arrumei um emprego como garçonete. As garçonetes no Mundo
Octarino não ganhavam tão mal quanto no Mundo Negro e eu fazia
questão de trabalhar para ajudar com as despesas da casa. Boofeng
trabalhava com criação de jogos, alguns dos quais tinham feito muito
sucesso no Mundo Octarino. Os jogos que ele criava eram totalmente
voltados à prática de magia. Na verdade ele tinha um curso completo de
magia octarina no formato de jogos. Ele fez questão que eu jogasse
todos. Beneficiei–me muito com o que aprendi e me diverti demais.
E sempre quando eu tinha momentos de grande diversão, eu pensava em
como Kiwala adoraria estar conosco. Eu nunca mencionava nada, pois
não queria deixar Boofeng triste. Mas eu sabia que ele também devia
estar pensando nela de vez em quando. Ela devia estar sofrendo na
companhia de Mendeth.
Eu melhorei muito no desenvolvimento do meu servidor. Wooii tornou–
se consideravelmente poderoso e já sabia fazer várias magias. Boofeng
adorava criar servidores do meu nível para duelar comigo. Nessas
batalhas sempre ocorriam coisas engraçadas, como evocação de flores,
disputas de criatividade, guerra de cores e tudo mais que pudéssemos
pensar. Tudo terminava em muitas risadas, pois fazíamos nossos
servidores evocarem coisas completamente sem sentido e totalmente
inúteis para uma batalha real, como abajures, sapatos, cabides, comidas e
ursinhos de pelúcia.
Alguns anos mais tarde, depois de muito treinamento, meu servidor
tornou–se um auxiliar real. Ele já estava quase tão poderoso quanto
Garfdie, o que era muito impressionante. Então decidi libertar–me
completamente do pacto que me unia a ela.
No dia em que fiz isso me senti muito leve. Era como retirar um peso
das costas. Eu só precisava de Wooii agora. Mesmo assim, Boofeng
alertou–me para num futuro próximo começar a desenvolver outros
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“Não queria precipitar–me em dar o anel para Wain, mas já adiei demais essa
decisão. Posso arrepender–me e ela pode me odiar. No entanto, se ela aceitar penso no
futuro maravilhoso que nos aguarda. Ficaremos mais próximos, faremos mais coisas
juntos, sairemos mais para jantar e nos divertiremos na cidade. Tenho muitas ideias
para belíssimos presentes que Wain gostaria de ganhar, mas que não dou agora para
não constrangê–la, já que ela não gosta que eu gaste demais com ela. No futuro talvez
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tenhamos filhos... poderemos dar a eles os nomes dos pais de Wain. Eles poderão
estudar a magia octarina e conhecer os outros mundos”
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cobra que eu vi um dia nas florestas, aos meus 12 anos. Ela não me
aceitara.
Essa cobra veio na minha direção. Finalmente, eu obteria a minha
companheira mágica. Abaixei–me para dizer–lhe que estava tudo bem.
Que ela estava segura.
Ela abocanhou a minha mão e escondeu–se por dentre os arbustos.
Deitei–me no chão. Eu estava me sentindo mal. Sentia dores, febre,
náuseas. Era uma cobra venenosa. Mas aquele veneno não poderia me
matar, pois eu era imortal.
Eu sofri. Meu corpo não sabia se morria ou se vivia. Eu desejava
desesperadamente viver. Não entendia o motivo. Talvez não houvesse
um significado. O meu corpo simplesmente me impelia para a vida.
Naquele momento eu compreendi. A natureza me dizia que já estava na
minha hora. Aquele era meu povo; eis meu mundo.
No Mundo Negro deparei–me com um ambiente violento de morte,
sangue, tortura e sede pelo poder. Tudo o que importava era o
primoroso poder. O coração acelerado frente ao êxtase do perigo. O
empunhar de uma espada para dominar feras bestiais. E, quando o bravo
herói, preenchido por um poder tremendo e banhado em sangue, chega
ao cume da montanha, contempla a humanidade perdida. Descobre, em
sua fúria violenta, que ele também é humano. Ele está vivo e tem tanto
medo quanto o coelho morto no altar do sacrifício. Os olhos vermelhos
do coelho branco...
Vi um coelho branco cruzar pela floresta. Não sei se foi sonho ou
pesadelo.
No Mundo Branco de doces anjos emanava o amor. Mas eu nada sabia
sobre amor, paz e bondade.
Que é o amor?
O coelho branco balançou os bigodes.
No Mundo Octarino havia a diversão, a alegria, o divertimento, a
amizade.
Vamos ser amigos?
O Mundo Vermelho era da cor do sangue.
“O coelho branco quer ser meu amigo. Aproxime–se, coelho branco”.
E, finalmente, eu entendia o que era meu mundo. A natureza era sábia
por inventar a morte. Era a invenção mais genial do mundo.
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O Mundo Vermelho
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FIM
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