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AULA 16: RENÉ DESCARTES E O RACIONALISMO

FILOSOFIA

René Descartes (1596 – 1650)

➢ Período medieval e o renascimento da filosofia


Muitos estudiosos e historiadores denominam o intervalo histórico do século V ao
século XV (leia-se Idade Média) como um período sombrio e terrível para a filosofia e para a
humanidade: “o momento das trevas”. Tal impressão manifestou-se por causa da extrema
violência com que eram punidos as pessoas que ousavam pensar por si mesmas. Nesse
sentido, é exagerado pensarmos nessa época como um momento de trevas, mas também,
não temos como sustentar que foi um período fértil a filosofia, haja vista que era muito
complicado pensar fora dos moldes esperados pela igreja católica. Nesse sentido,
podemos afirmar que haviam grandes pensadores e leitores dos filósofos clássicos, tais como:
Agostinho de Hipona (354 – 430) – responsável por uma das mais conhecidas releituras da
filosofia platônica, sempre adaptando-a ao pensamento cristão vigente na época –, Tomás de
Aquino (1225 – 1274) – leitor da filosofia aristotélica e responsável por elaborar as cinco
provas racionais da existência do deus cristão – e Plotino de Alexandrina (205 – 270) também
foi um grande intérprete da filosofia clássica renovando as discussões sobre Platão, antes
mesmo de Agostinho de Hipona. Entretanto, nenhum deles havia criado por si mesmo,
algo completamente novo, uma filosofia diferente de tudo que se havia produzido até
então, enfrentando de peito aberto o pensamento escolástico (leia-se filosofia cristã
católica vigente na Idade Média), pois todas as novas ideias eram imediatamente tachadas de
heresia e, posteriormente, condenadas pela inquisição1 a morte na fogueira. Galileu Galilei
(1564 – 1642) teve de afirmar que suas descobertas eram todas mentiras para não ser
condenado à morte e o padre e filósofo Giordano Bruno (1548 – 1600) não escapou da
pena capital, por causa de seu sonho de reformar os fundamentos da fé cristã, considerados
por ele como antiquados e irracionais.

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A inquisição católica condenava assassinos, ladrões, entre outras pessoas consideradas “foras da lei” (existiam
outros agentes sociais para fazer isso), no entanto, a maioria de suas vítimas eram aqueles que cometiam o assim
chamado crime de pensar diferente, de pensar por si mesmos.

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Contudo, é preciso conhecer os processos que desencadearam o fim do feudalismo,
edificando uma nova vivência histórica, ou seja: as Cruzadas2 (séculos XI – XIII). O
Renascimento Cultural (XIV – XV) responsável pela abertura de novas rotas comerciais
entre os antigos feudos, interligando regiões e formando as cidades modernas, bem como o
novo agente social desse período: o burguês. Em seguida, proporcionou a constituição dos
grandes centros urbanos industriais. E a formação dos Estados nacionais (a partir do século
XV), representando um movimento inédito de centralização do poder, universalização das
unidades de medida e da administração econômica, constituição de um idioma específico do
país, entre outras medidas de padronização e organização da vida social – crucial para a
realização das grandes expedições marítimas que colonizaram o “novo mundo”, ou seja, o
continente americano. Todos esses fenômenos contribuíram para a fundação de um
momento histórico completamente distinto da Idade Média, marcado pela liberdade
artística e de pensamento e pela ação criativa; referimo-nos ao Renascimento (a partir do
século XVI), período de muitas descobertas e inovações, dentre essas procuramos destacar a
nova filosofia que estava surgindo, estamos falando do cartesianismo (leia-se racionalismo),
criado pelo filósofo francês René Descartes. Vale ressaltar que mesmo durante o
renascimento, as mulheres foram proibidas de estudar e ter acesso a todas as conquistas
que foram desenvolvidas nesta época.

➢ Vida e obra
René Descartes foi o quarto filho de uma família nobre francesa. Quando
completou um ano de idade sua mãe faleceu, dando a luz ao seu quinto irmão. Como seu pai
era muito ocupado, Descartes acabou sendo criado na casa de seus avós e desenvolveu um
grande afeto pela sua babá, pois a tratava como se fosse a sua própria mãe, chegando ao ponto
de ajudá-la monetariamente até o fim de sua vida. Sua infância foi muito solitária e logo que
completou 8 anos de idade foi enviado para um famoso colégio interno jesuítico La Fléche.
O reitor do colégio era amigo da família de Descartes, por isso, dava à criança o direito de
acordar a hora que ela desejasse, assim, o nobre estudante acorda sempre ao meio-dia, só
depois iniciava sua maratona de aulas e de estudos e ainda era o estudante mais
inteligente da escola. O hábito de acordar tarde perdurou durante toda a vida do filósofo

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Expedições militares em direção as terras dos povos árabes, com intuito de expulsá-los da Europa, exploração
de novos territórios e expansão da economia, revestidos de uma ideologia religiosa que entendia essa empreitada
não como um investimento, mas como uma “guerra santa” contra o inimigo “herege” e contra os islâmicos.

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francês, até mesmo quando prestou serviço militar voluntariamente. Na verdade, se
analisarmos bem a vida de Descartes dificilmente encontraremos um momento em que ele
tenha realizado qualquer tipo de serviço útil ou remunerado, tendo em vista o fato dele ter
vivido sempre através da renda vinda das fazendas que herdou da família.
Como já mencionamos, era um aluno excepcional, mas não enxergava nas lições
escolares uma certeza que tanto ansiava em sua vida. Ele concluiu que existiam apenas
duas certezas em sua vida: a matemática e a existência do deus cristão. O pai de
Descartes desejava que seu filho seguisse uma carreira no mundo do Direito, no entanto, o
rapaz achava este caminho demasiadamente entediante. Com 16 anos foi mandado para a
universidade – uma das melhores da França, diga-se de passagem – e seu gosto pelas letras e
pela filosofia era evidente, embora ainda não havia escolhido trilhar o caminho do filósofo.
Devido ao fato de ser extremamente reservado e, de certa forma, até bastante
antissocial, Descartes acabou dedicando toda a sua vida as meditações solitárias em seus
gabinetes de estudo e às viagens pela Europa em busca de aperfeiçoar seus
conhecimentos.
Na maioria de suas viagens o filósofo francês alistava-se (voluntariamente) no exército
do país que desejava visitar, investindo seu tempo na reflexão e no costume de dormir até
tarde. Hoje, um hábito parecido com esse seria muito seria taxado como espionagem ou
terrorismo. Quando serviu na Holanda3 em 1618 acabou conhecendo o famoso filósofo e
matemático holandês Issac Beekman4. No ano seguinte serviu na Alemanha onde teve uma
epifania5 em forma de três sonhos que interpretou como uma espécie de sinal que
supostamente indicava a sua verdadeira: a filosofia. Os historiadores e biógrafos de
Descartes impressionavam-se com esse evento, pois como poderia o “pai do
racionalismo” apoiar-se em indicações tão irracionais? A “revelação” do filósofo francês
não só o direcionou ao caminho filosófico, mas também proporcionou-lhe uma inspiração
para criar a sua própria filosofia, tendo em mente um pensamento inquietante: o desejo de
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A Holanda, durante o século XVI, era entendida como o país mais liberal da Europa, haja vista que as pessoas
não eram condenadas a morte por pensarem diferente. Nesse sentido, tornou-se o local preferido (na maioria das
vezes como refúgio temporário) de todos os grandes pensadores dessa época, tas como: Descartes, John Locke,
Thomas Hobbes, Galileu Galilei, entre outros.
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Segundo dizem os biógrafos, Descartes era um jovem francês voluntário no exército holandês que acordava
tarde e passava despercebido, no entanto, ao ver uma intrigante expressão matemática pichada em um muro,
perguntou para um oficial do exército o que estava escrito (já que não sabia ler holandês). O oficial disse que
somente traduziria a expressão, caso ele promete-se resolvê-la. Por incrível que pareça esse oficial era Issac
Beekman e desse evento surgiu uma grande amizade entre eles.
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Revelação divina, geralmente uma sensação ou experiência que muda, para sempre, a vida de quem a sentiu ou
vivenciou.

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criar um sistema universal, baseado na matemática capaz não somente de englobar todo
o conhecimento humano (ciências exatas, naturais e humanas), mas também unificá-lo.
Estavam sendo dados os primeiros passos de Descartes rumo a elaboração do seu famoso
método.

➢ A dúvida hiperbólica6 ou dúvida metódica7


Em um dos seus momentos de solidão e autorreflexão Descartes começou a
colocar a prova tudo aquilo que havia aprendido em sua vida, nesse processo de
questionamento rigoroso, passou a descartar todos os juízos que lhe pareciam incertos e
duvidosos. Evidentemente, o filósofo francês não descartou todas as ideias e experiências que
vivenciou, pois tal procedimento perduraria por toda a sua vida. Em vez disso, costumava
analisar os argumentos fundamentadores das reflexões, teorias e verdades que eram
apresentadas a ele, procurando destruir todo o conhecimento edificado sobre bases fracas e
incertas. O primeiro alvo do seu intensivo questionamento foi os sentidos humanos, haja
vista que esses podem nos enganar. Descartes afirma que os sentidos são tão inseguros que,
por meio deles, não é possível distinguirmos se estamos acordados ou adormecidos, pois
dentro de nossos sonhos nós representando os objetos e as relações sociais compartilhados na
realidade do cotidiano. Contudo, isso não significa que não exista a verdade ou objetos e
relações existentes na realidade, porque, embora os sentidos não sejam capazes por si só
de distinguir entre a certeza e o sonho, através da nossa razão podemos perceber que os
sonhos são representações (modelos) de alguma coisa (seja uma relação social, um
objeto, uma cor, etc…) que existe de verdade. Mesmo que a nossa imaginação consiga criar
a mais diferente quimera8, ainda assim, alguma coisa nesta fantasia pode ser entendida como
representação de algo real (pelo menos as cores se mantêm como representações da
realidade). Além da ideia de verdade por representação explicada por Descartes, há
outro tipo de verdade, específica da matemática e da metafísica, a única capaz de cria
certas noções universais e indubitáveis, tais como todos os princípios da razão pura ou a
priori: 2 + 3 = 5; a soma do quadrado dos catetos será sempre igual ao quadrado da
hipotenusa, entre outros.
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Exagerada, no caso é uma dúvida que nega tudo que for entendido como incerto, buscando a certeza
racionalmente plena (a verdade alcançada pela razão).
7
Dúvida referente ao método específico criado por Descartes.
8
Um ser mitológico geralmente representado com um corpo híbrido entre leão, cabra e serpente ou dragão; ou
uma coisa resultante da imaginação (fábula, fantasia, ilusão); ou uma utopia irrealizável. Retirado de Dicionário
Priberam da Língua Portuguesa.

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➢ Cógito ergo sum! (Penso, logo sou!)
Durante o seu processo de profunda reflexão esta ideia inquietava muito a mente
de Descartes: e se existisse um gênio maligno capaz de enganar-nos a ponto de fazer-nos
acreditar na verdade da matemática e na verdade em oposição a representação dos
sonhos? Nesse sentido, o filósofo francês levou até as últimas consequências o seu processo
de dúvida metódica, chegando ao ponto de refutar a existência de quase tudo, restando-lhe
apenas a impossibilidade de refutar a existência de si mesmo. Descartes estava muito seguro
da sua própria existência, pois se há uma probabilidade de haver um gênio maligno capaz de
iludi-lo em tudo aquilo que diz respeito a verdade, isso só é possível porque existe, antes de
mais nada, um Ser capaz de ser ludibriado. Para além dessa conclusão, podemos perceber
que este Ser passível de enganação está refletindo – pensando – sobre a possibilidade de ser
iludido e sobre a verdade. Portanto, Descartes chega a seguinte conclusão: Penso, logo
sou! (no latim: Cogito ergo sum!). Para o filósofo francês, antes mesmo de sermos humanos,
de sermos o único animal dotado de racionalidade, somos antes de tudo isso, um ser que
questiona, um ser pensante. Em outras palavras, a existência de si em Descartes significa
chegar a autoconsciência da existência de si mesmo9.

➢ As regras do método cartesiano


Bem como já foi mencionado, Descartes possuía um sonho: construir um
conhecimento que fosse tão universal e abrangente quanto possível. Tal aspiração, embora
tenha surgido em forma de sonho para ele, enquanto servia no exército prussiano 10, não
apareceu por acaso, pois o filósofo francês tinha uma educação rica e ampla que abarcava a
ciência como um todo (desde as ciências naturais, aos estudos clássicos, a matemática e a
filosofia). A partir disso, os delírios fantasiosos que teve na Prússia representaram o
estopim para a sua grande descoberta: a necessidade da criação de um método que seja
capaz de produzir resultados nítidos e consistentes, independentemente da ciência para
o qual ele esteja sendo usado. Seu método foi constituído por diversas regras que
sintetizaram todo o conhecimento adquirido por ele em sua história e nas suas viagens.
Entretanto, Descartes simplificou as regras do seu método em apenas quatro passos

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Para o filósofo francês, as coisas e os animais não são capazes de constatar, por si mesmos, a própria
existencial, portanto são extensões da natureza, e totalmente limitados a suas leis e ditames. Os próprios animais
são consideradas como meras máquinas biológicas para Descartes.
10
Durante o período no qual de Descartes viveu, aquela região conhecida por nós, hoje, como Alemanha ainda
não existia, havia, no entanto, um império prussiano em seu lugar.

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fundamentais, não apenas visando simplificar o aprendizado, mas, principalmente, para
universalizá-lo, a fim de torná-lo a base de toda a produção de conhecimento humano:
I. A análise11: é crucial duvidarmos de tudo que é certo, portanto, nada deve ser
considerado como verdade, a não ser que, antes de mais nada, tenha sido devidamente
analisado e criticado para, finalmente, ser entendido de forma clara e objetiva.
II. A divisão: o conhecimento deve ser fragmentado em quantas parcelas for necessário
para facilitar o nosso aprendizado.
III. A ordem: durante o processo de aprendizado precisamos desbravar os conhecimentos
seguindo uma ordem específica, sempre começando pelos saberes mais simples,
depois mergulhando sobre os problemas mais complexos.
IV. A revisão: após respeitados as três primeiras regras do método, necessitamos agora
revisar tudo aquilo que aprendemos (eliminado qualquer erro que possa ter sido
negligenciado) antes de tomarmos tais conhecimentos adquiridos como verdade.

Referências bibliográficas

DESCARTES, René. Meditações. In: GRANGER, G. G. (Org.). Descartes (Coleção os


pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 1 – 12.

DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 1 – 87.

STRATHERN, P. Descartes em 90 minutos. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. 71p.

11
Descartes não nomeia as suas quatro regras básicas com nenhum nome específico, nossa opção por nomeá-los
consiste em fins didáticos para melhor entendimento das ideias do filósofo.

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