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O senhor do Universo

Ele está em jornais, nos livros, no cinema e agora na TV. Ao traduzir as maiores
questões do cosmo de um modo que todos entendem, o físico Marcelo Gleiser se
transformou em um cientista pop
Foto: Claudia Kamergorosdky

Eliane Brum

Aos 19 anos, Marcelo Gleiser desejou deitar no divã


do psicanalista Hélio Pellegrino. Ele tinha sofrido
muitas perdas, todas em circunstâncias trágicas.
Achava que era hora de olhar para dentro. Hélio não
foi um dos intelectuais mais brilhantes de sua
geração por acaso. Ele ouviu os dramas do estudante
de Física e disse: "Você não precisa de psicanálise.
O mais importante na vida é a pró-cura. Você já O FENÔMENO GLEISER
Como cientista, ele ganhou prêmio na Casa Branca.
encontrou seu caminho, você procura por meio da Como escritor, recebeu dois Jabutis. Um roteiro de
Ciência". Foi assim que Gleiser teve alta do divã de cinema dele circula por Hollywood. Ele ainda faz
palestras em cruzeiros pelo mundo e inspira a nova
Hélio Pellegrino antes mesmo de experimentá-lo. E geração de brasileiros
seguiu procurando, como procura até hoje. Usou o
medo da morte para construir uma vida extraordinária.

Em sua procura, o astrofísico Marcelo Gleiser mergulhou nas grandes questões que
afligem a todos nós. Quem somos? De onde viemos? Como tudo começou? O mundo
pode acabar? Como? Gleiser consegue traduzir essas e outras grandes questões do
Universo de uma forma que todos entendem. Graças a isso, transformou-se no primeiro
cientista pop do Brasil. O que ele conta poderia ser resumido numa frase do poeta
romântico inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822): "Sou o olho com que o universo
contempla a si mesmo e sabe que é divino". Ou, como dizia Carl Sagan, o mais popular
divulgador científico do Ocidente, apresentador de Cosmos, uma série de TV de grande
sucesso nos anos 70: "Poeira de estrelas que somos, ao buscarmos a resposta para as
grandes questões é como se o universo estivesse olhando para dentro e tentando
entender a si mesmo".

A partir do domingo, 20, o cientista de 47 anos, olhos azuis e sorriso enigmático da


fotografia que ilustra essa página passará a participar do jantar de domingo de 40
milhões de brasileiros. Essa é a audiência média do Fantástico, onde Gleiser vai
apresentar uma série de 12 episódios, cada um deles com 10 minutos, batizada Poeira
das Estrelas. Nela, Gleiser vai responder às grandes questões que nos assaltam desde
que descemos das árvores. Uma amostra das respostas de Gleiser e da sua capacidade de
tratar de modo simples os problemas mais complexos da ciência você encontra nas
respostas que ele próprio preparou para esta reportagem.

A série do Fantástico é apenas uma das novidades de Gleiser. Ele é um cientista capaz
de escrever livros, fazer filmes, apresentar programas de TV e - sim - até de fazer
ciência e desvendar mistérios do universo. Não no mesmo espaço e tempo, mas quase.
Ganhou dois Jabutis, o prêmio mais importante da literatura brasileira, por seus livros
de não-ficção. O primeiro best-seller, A Dança do Universo, já vendeu quase 70 mil
exemplares. Os direitos do segundo, O Fim da Terra e do Céu, foram comprados pelo
diretor global Luiz Fernando Carvalho para virar uma minissérie. Neste domingo, ele
completa 457 colunas de ciência na Folha de S.Paulo. Ganha até US$ 10 mil por
palestra e é pago para falar para uma espécie muito particular de turistas - os caçadores
de eclipses - pelos mares do mundo. Colaborou na concepção de O Maior Amor do
Mundo, o novo filme de Cacá Diegues, e tem um roteiro de ficção científica de US$ 120
milhões circulando por Hollywood. É o professor mais popular do Dartmouth College,
uma das mais importantes universidades americanas, e já publicou 80 artigos em
revistas científicas. Suas descobertas como astrofísico foram tão relevantes que ganhou,
em 1994, um prêmio do governo dos Estados Unidos. O cientista que decifra o cosmos
para brasileiros e americanos lança na próxima semana seu sexto livro. Desta vez, um
romance.

O título - A Harmonia do Mundo - é o mesmo da


principal obra de Johannes Kepler (1571-1630), um
dos gigantes sobre cujos ombros a Ciência se apoiou
para enxergar ainda mais longe. É sobre a trajetória do
astrônomo alemão que Gleiser estréia na ficção, mas
fiel aos fatos históricos. Kepler é possivelmente o
gênio de caráter mais forte na história da Ciência.
NO QUINTAL DE CASA
Numa Europa em convulsão por guerras entre Marcelo Gleiser vive em Hanover. No estado de
New Hampshire. É como se morasse dentro de
católicos e luteranos, ele olhou para o céu em busca da uma paisagem de calendário. Na foto, está no
harmonia que não encontrava na vida. Com os pés pátio de casa
sobre o charco da intolerância religiosa - qualquer
comparação com o que vivemos hoje não é mera coincidência -, Kepler elevava a
cabeça até as estrelas. Para isso, jamais renegou nem sua fé nem sua ciência.

Depois de ler o livro, o anglo-americano Freeman Dyson, grande divulgador científico e


um dos maiores físicos do século XX, disse a Época: "Considero Skybound (o título em
inglês) uma obra-prima. Eu nunca havia lido um livro escrito para o público leigo que
retratasse de forma tão vívida o momento em que o pensamento científico se desprende
da religião". Outra estrela da Ciência, Roald Hoffmann, Nobel de Química de 1981,
afirmou a Época: "O livro é maravilhoso. Ele nos faz sentir como Kepler construiu sua
ciência, a tensão interna entre observação e imaginação. Quando indicar o livro aos
amigos, vou dizer que é o único que conheço que mostra o que significava ser cientista
durante o período histórico da Reforma."

Kepler sofreu - e não foi pouco - ao descobrir que as órbitas dos planetas não eram os
círculos que atestavam a perfeição divina. Mas, fiel ao que acreditava ser a "mente de
Deus", respeitou os resultados de seus cálculos. Com base nas medições do colega
dinamarquês Tycho Brahe, ele apresentou ao mundo as elipses (entenda mais no quadro
da pg 86). E as elipses mudaram o mundo. Apesar de ter sido perseguido, exilado e
excomungado, até a morte Kepler pregou a paz entre as religiões. É, porém, menos
popular que seu contemporâneo Galileo Galilei. Uma injustiça que Gleiser tenta corrigir
com seu romance.

"Uma nova maneira de fazer divulgação científica é usar os recursos da ficção", diz
Gleiser. Para construir o personagem de Kepler, Marcelo Gleiser usa o conhecimento de
suas próprias dores, seu precoce mergulho nas trevas. Como Kepler, ele precisou
indagar o universo para lidar com sua alma em convulsão. Caçula de três filhos, Gleiser
perdeu a mãe, Haluza, aos seis anos, de maneira trágica. Essa morte foi uma espécie de
big-bang pessoal. "Sou resultado dessa perda. Quando você se coloca como ser
cósmico, poeira de estrelas, a perda se transforma em algo mais aceitável porque é a lei
do universo. Quando você destrói alguma coisa, outra é criada", diz. "Existe um
mecanismo de constante compensação. Quando você perde algo muito importante,
passa o resto da sua vida tentando criar para equilibrar a balança. Eu crio para
compensar essa destruição."

Debaixo da cama, aos 11 anos Gleiser guardava uma mala preta abarrotada de páginas
sobre vampiros garimpadas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Era um menino
carioca que sonhava em se tornar um discípulo de Drácula para alcançar a imortalidade
onde acreditava encontrar a mãe. De certo modo, ao se tornar adulto, passou da busca
mágica para a científica. Seu novo livro é uma síntese desses dois mundos que o
habitam. "Quem conhece a história da minha vida vai entender porque escrevi esse
livro", diz.

A mãe de Kepler foi julgada por bruxaria e só escapou da fogueira porque foi salva pelo
filho. "Quisera eu ter podido salvar a minha mãe como o Kepler fez", diz Gleiser.
Katharina é descrita em todas as biografias do astrônomo como uma mulher terrível. No
romance de Gleiser, é mostrada com compaixão e ternura. Ao levar Kepler, então um
menino de seis anos, para ver a passagem do "grande cometa", em 1577, a mãe abriu
sua mente para os mistérios do universo. O episódio, real na vida de Kepler, também o
foi na de Gleiser. Ele recorda que, pouco antes de morrer, em 1965, Haluza o levou pela
mão até a calçada em Copacabana para ver um eclipse parcial do sol. "Minha busca pelo
significado oculto das coisas e pela origem da vida é uma forma de me aproximar da
minha mãe", diz. Foi Freeman Dyson que, numa passagem pelo Dartmouth College,
sugeriu a Gleiser que compartilhasse sua busca com o público escrevendo um livro. O
jovem astrofísico brasileiro dava um curso - Física para Poetas - que arrastava multidões
de estudantes das áreas mais diversas. Nele contava a história da Ciência em linguagem
sedutora. Dyson o desafiou a escrever o primeiro capítulo e mandar para ele. Gleiser
não resistiu ao convite. Assim surgiu Dança do Universo, em 1998, escrito primeiro em
inglês, como Gleiser costuma fazer, e depois traduzido para o português

. O senhor do Universo

Ele está em jornais, nos livros, no cinema e agora na


TV. Ao traduzir as maiores
questões do cosmo de um modo que todos entendem,
o físico Marcelo Gleiser se transformou em um
cientista pop

Eliane Brum

 
PAPAI GLEISER
Kari, à direita na foto, foi aluna de Gleiser em seu
O sucesso do livro em ambas as línguas mudou para curso mais popular - Física para Poetas. Lucian
Jacob, no colo do pai, nasceu há menos de três
sempre a vida do cientista. O Fim da Terra e do Céu meses. É o quarto filho dele e o primeiro dela
(The Prophet and the Astronomer), quatro anos
depois, recebeu excelentes críticas na imprensa americana. "Além de ampliar a visão
histórica do leitor, Gleiser o estimula a ir além, a continuar descobrindo por conta
própria", disse a Época Lauren Porcaro, editora da conceituada revista The New Yorker.

Física para Poetas não foi apenas o início da mais bem-sucedida carreira de divulgação
científica protagonizada por um brasileiro. Foi o começo de uma história de amor que
dura até hoje. Há 10 anos, uma das estudantes fascinadas pela fluência com que Gleiser
traduzia o universo era uma bela estudante de Literatura chamada Kari. Quando o curso
acabou, ela se ofereceu para opinar sobre o primeiro livro do ex-professor. Acabaram de
ter um bebê, o primeiro de Kari e o quarto filho de Gleiser. Lucian Jacob tem menos de
três meses de vida. Seu nome sintetiza a luz, de Lucian, e uma homenagem aos dois
avôs de Gleiser, ambos chamados Jacob - judeus ucranianos que desembarcaram no
Brasil fugindo da revolução bolchevique, de 1917. Para descrever no romance as feições
suaves de Susanna, a segunda mulher de Kepler, Gleiser se inspirou no rosto real de
Kari. "Foi uma declaração de amor", diz.

É o segundo casamento de Gleiser. O primeiro, com uma agente imobiliária, ele atribui
à solidão de um cientista brasileiro nos Estados Unidos. Os três filhos vivem em ponte-
aérea entre Chicago, onde vive a mãe, e Hanover, no estado de New Hampshire, onde
Gleiser mora. O mais velho, Andrew, de 17 anos, é fascinado pela cultura japonesa, fala
japonês e no momento faz um intercâmbio no Japão. Eric, de 13, mora com o pai e é
considerado por um ele "um geniozinho que inventa seus próprios jogos de videogame".
Tali, de 10, é vegetariana e costuma dizer que quer ser cantora de rock. Punk-rock, mais
especificamente.

Gleiser planejava voltar ao Brasil quando Tali entrasse na universidade. Sentia-se só na


cultura puritana de New Hampshire e tinha saudades de "sentar num bar com um amigo
e largar a alma na mesa". O projeto ainda existe, mas ele começa a pensar se é mesmo
uma boa idéia. "Estamos muito assustados com as notícias de violência, tiros, seqüestros
no Brasil", diz. "Temos uma grande qualidade de vida nos Estados Unidos."

Quando Gleiser fala em "qualidade de vida", não se refere apenas a sair de casa sem
medo de levar um tiro num sinal. Ele praticamente mora dentro de uma paisagem
turística. Sua casa é emoldurada por um bosque, e o rio passa no quintal, a menos de 20
metros de sua porta. Quando quer relaxar, pesca trutas no jardim - e as joga de novo na
água. "Pescar é uma terapia maravilhosa. Tem uma coisa meio misteriosa nessa linha
que conecta o seu mundo a um mundo submerso, completamente invisível para você.
Acho meio metafórico", diz. "Mas não quero matar os peixes, embora saiba que o anzol
sempre machuca. Tenho pensado em pincelá-lo com iodo, mas nunca coloco essa idéia
em prática."

Nos finais de semana, Gleiser conta que rema de


caiaque pelos rios e lagos da região, faz a manutenção
da casa, corta grama, lava roupa. Todas aquelas
atividades da vida bucólica de uma de pequena cidade
americana, comum os filmes de Hollywood. Afirma
ser um conhecedor de vinhos - não gosta de cerveja -
e, segundo amigos, "é um grande cozinheiro e faz o
UMA CASA NO BOSQUE
melhor café do hemisfério norte". Quase não come Este é o lar da família Gleiser. Nos fins de
carne vermelha. Para se manter em forma, corre oito semana, o cinetista cozinha, faz pequenos
consertos, lava roupa e corta a grama. Qunado
quilômetros três vezes por semana numa estrada de não está fazendo tudo isso, rema de caiaque no
rios
terra perto de sua casa, faz alongamento outras três vezes para amenizar um problema
congênito na coluna e tem duas aulas semanais de yoga numa academia. Campeão
brasileiro de vôlei em 1975, seu levantador era ninguém menos que Bernardinho, o
técnico de ouro do vôlei masculino. Desde a juventude, Gleiser se exercita
religiosamente. "Ele ficava maluco se não corria de manhã durante as viagens de
gravação da série", diz Frederico Neves, produtor e editor da série do Fantástico.

Gleiser costuma começar a manhã com um capuccino bem forte antes das 7h. Passa a
maior parte do dia sozinho. Divide o tempo em vários blocos para dar conta de todas as
atividades. Às quartas-feiras à noite, escreve a coluna de Ciência que mantém há nove
anos na Folha de S.Paulo. Quando deu a entrevista para essa reportagem, fazia mais de
30°C no verão de New Hampshire. Gleiser foi trabalhar na universidade de short
branco, camiseta cinza e sandálias. É comum ele tentar escapar de uma secretária do
departamento que usa um perfume que o cientista-escritor descreve como "uma
desgraça". Considera qualquer perfume uma "invasão do espaço". Usa desodorante e
loção pós-barba sem cheiro e compra suas roupas - básicas e "não caretas" - por
catálogo. Jura que não se importa de estar ficando careca, mas afirma ter saudades "do
tempo em que tinha um cabelo lindo".

O roteirista David Glass, um ex-aluno de Darmouth que virou amigo, conta que ele "é
provavelmente o mais respeitado e popular professor da universidade". "Gleiser pilotava
uma moto muito bacana", diz Glass. "Os alunos o amam." Deverá se tornar ainda mais
popular quando iniciar seu novo curso, em março do próximo ano, sobre alienígenas na
literatura e no cinema. "Os alienígenas são retratos do que somos, os bons e os ruins, os
sábios e os destruidores. Como nós, os sábios são as projeções dos santos e dos anjos,
que sabem mais do que sabemos. E os outros são os demônios, os colonizadores que
querem destruir tudo, como fizeram os europeus ao invadir as Américas e a África", diz
Gleiser. "O curso tem essa reflexão de como o retrato do alienígena através dos tempos
representava um retrato da sociedade na época em que as obras foram criadas."

O curso começa com Somnium (Sonho, em latim), considerado o primeiro conto de


ficção científica da História. Seu autor, Johannes Kepler. Nele, o astrônomo sonha que
os homens vão à Lua. Descreve um ambiente muito semelhante ao que Neil Armstrong
acabaria vendo com seus próprios olhos trezentos anos depois. Sua idéia, ao escrever,
era mostrar a Terra a partir de outro ângulo. Uma espécie de "A Terra é azul", a célebre
frase do cosmonauta soviético Yuri Gagarin ao se tornar o primeiro homem a ver o
planeta do espaço. Uma das acusações de bruxaria que quase levaram a mãe de Kepler à
fogueira era justamente que o filho tomava poções mágicas para sair do planeta
enquanto dormia. A vida de um cientista do século XVII decididamente não era fácil.

Na virada do terceiro milênio, Gleiser se diverte muito mais. Ele e Glass escreveram um
roteiro de US$ 120 milhões que tentam emplacar em Hollywood. Em Trindade de Fogo,
o sol ameaça a Terra. "Gleiser define o filme como um Armageddon com Ph.D", diz
Glass. Recentemente, a dupla conseguiu um admirador influente para ajudar a penetrar
no mundo fechado do cinema americano. "Malcolm Mc Dowell leu o roteiro e adorou",
afirma Gleiser. McDowell ficou conhecido como o protagonista de Laranja Mecânica,
de Stanley Kubrick
A relação de Gleiser com o cinema não pára aí. Em
setembro, o cineasta Cacá Diegues lança O Maior
Amor do Mundo, filme sobre um astrofísico que volta
ao Brasil depois de uma carreira de sucesso no
Exterior. Gleiser colaborou no roteiro e deu dicas
sobre a vida de cientista para José Wilker, que vive o
protagonista, Antonio Santalli. "O Marcelo nos ajudou
a compor sua biografia, seus costumes, seus hábitos e Gleiser compara o anzol lançado POBRES TRUTAS
ao desconhecido
seu conhecimento, mas a história de um não tem nada à investigação científica. Mas os peixes -
a ver com a do outro", diz Diegues. "Quando eu estava diferentemente dos resultados de seus cálculos -
ele devolve ao rio de onde vieram. Na foto, ele
escrevendo o roteiro de Deus é Brasileiro, ele já havia pesca do jardim

me ajudado com algumas falas de Deus, como quando


ele explica como criou o universo e de que matéria ele é feito. O Marcelo é um cientista
moderno, no sentido de que compreende a poesia, o carisma e sobretudo a carga
humana da Ciência que abraçou."

Gleiser e Glass também sonham em transformar em filme A Harmonia do Mundo, o


livro sobre Kepler. Gleiser acha que Kepler poderia ser vivido por Joseph Fiennes, de
Shakespeare Apaixonado. Glass prefere Johnny Deep, atualmente no cinema com
Piratas no Caribe II. Glass já iniciou uma abordagem - ainda distante - ao premiado
diretor tcheco Milos Forman. Ele dirigiu Amadeus, baseado na peça de Peter Shaffer,
sobre a relação entre Mozart e Salieri - este um compositor apenas regular, mas bom o
suficiente para reconhecer a genialidade de Mozart .

"Meu livro é o Amadeus da Ciência", diz Gleiser. Em A Harmonia do Mundo, a beleza


da criação de Kepler só é totalmente apreendida pelo olhar de seu mentor, o astrônomo
alemão Michael Maestlin. Foi ele que, na Universidade de Tübingen, introduziu Kepler
ao modelo de Copérnico, em que a Terra e os demais planetas giram em torno do Sol,
modelo conhecido como heliocêntrico. Esse fato foi determinante para o caminho que
Kepler seguiria. Maestlin também foi decisivo ao colocar Kepler na trilha de uma
carreira de astrônomo - e não de pastor luterano, como ele pretendia. Mas Maestlin, um
bom astrônomo, não era um gênio. É neste conflito entre mestre e discípulo que Gleiser
constrói o seu romance. Só ao terminar de escrever o livro, Gleiser descobriu, numa
nota de página, que Kepler tinha dedicado A Harmonia do Mundo a Maestlin. "Chorei",
diz Gleiser. "Eu tinha entendido a relação deles".

Como testemunho histórico dessa relação, as cartas de Kepler lamentam o "abandono"


daquele que chama "Mestre". Especialmente nos momentos de maior perseguição
religiosa, quando Kepler pediu e não recebeu nenhuma ajuda do antigo professor. O
restante é criação de Gleiser. Sabe-se muito pouco sobre o destino de Maestlin, exceto
que morreu um ano depois de Kepler, em Tübingen, e padecia de melancolia. "O livro
de Gleiser é muito preciso em uma série de detalhes. Os leitores terão um ótimo
panorama sobre Kepler, sua vida e seu tempo, mas é preciso lembrar que é um
romance", afirmou a Época Owen Gingerich, professor emérito de Astronomia e
História da Ciência de Harvard e um dos maiores especialistas em Kepler e Copérnico
do planeta. "Quando eu li, fiquei chocado com o final, uma interpretação psicológica
bastante legítima, mas totalmente a-histórica. Os leitores precisam ficar preparados para
uma surpresa no final."
Marcelo Gleiser teve a inspiração para o livro numa de suas corridas semanais perto de
casa. "Quando percebi o afastamento entre os dois, foi meio lampejante. Eu estava
correndo perto de casa e tive uma visão cinematográfica do velho octagenário sentado
numa poltrona, vestido num manto preto, com uma corda pendurada numa haste de
madeira para que ele pudesse se levantar", diz Gleiser. "O Maestlin é justamente o que
eu não quero que aconteça comigo. Não quero chegar ao fim da minha vida arrependido
por não ter tido a coragem de ter vivido. Escrever sobre um cara que fez muito e outro
que não fez tanto é uma maneira de ensaiar esse conflito na minha cabeça."

Não parece haver muito risco de que Gleiser compartilhe algum dia o sentimento desse
Maestlin literário. Mas o professor é o personagem mais denso do romance - e não
Kepler, o gênio. "Acho que sou mais Maestlin do que Kepler. Não consegui inventar as
leis de Gleiser. Sou um cientista com uma boa reputação, mas não posso dizer que vou
ganhar o prêmio Nobel ou que serei um imortal da Ciência", diz. "Se for lembrado
daqui a cem anos por alguma coisa, acredito que será mais pelos livros, pelo trabalho de
divulgação científica, do que pela minha ciência."

Como saber o que vai acontecer daqui a cem anos? Em 1994, as descobertas de Gleiser
sobre o Cosmo foram reconhecidas pelo governo americano. Gleiser, democrata que
contribuiu com a campanha de John Kerry na disputa com George Bush, recebeu o
prêmio Presidential Faculty Fellows Award na Casa Branca chefiada por Bill Clinton.
Como cientista, Gleiser se recusa a receber qualquer tipo de financiamento de órgãos
militares dos Estados Unidos, como Marinha ou Pentágono. "É uma questão de
princípios bastante difícil", diz. "Em 2005, fui bolsista da Nasa. Neste ano, tenho
financiamento parcial da National Science Fundation."

Kepler foi um dos poucos cientistas que deixou por


escrito, em minúcias, todas as dores vividas até
alcançar resultados que valessem à pena. Em resumo:
o gênio registrou para a História toda vez em que se
sentiu estúpido. "Hoje mesmo, quando lemos um
artigo científico, o cara diz: ' a idéia é essa, a gente fez
isso e o resultado foi esse'", diz. "O Kepler não era
assim. Ele começava, aí dizia: 'Errei porque sou burro, ATÉ ONDE ELE VAI
Para contar a milhões de brasileiros sobre os
não era para eu ter tentado assim, tinha de ter feito mistérios do Universo, Marcelo Gleiser e a equipe
do Fantástico viajaram pelos Estados Unidos e
outras coisas, aí mudei de caminho e também não deu Europa. Na foto à esquerda, ele está no Grand
certo, repeti meus cálculos 50 vezes...'" Esse longo Canyon para contar a evolução geológica da
Terra.
caminho de tormentos que pontua todo processo
científico é, segundo Gleiser, uma das grandes lições deixadas por Kepler. "Só aqueles
que trabalharam durante anos às escuras pra chegar à luz percebem a importância da
descoberta", diz.

Gleiser conhece esse sentimento. Sozinho em sua sala, em Dartmouth, ele foi o primeiro
a descobrir certas manifestações de energia muito importantes na infância do universo.
Ele as batizou de "oscillons". "Eu disse 'uau!'. E dei um pulo", conta ele. "Descobrir
algo pela primeira vez é como uma explosão de endorfinas. Durou 10 segundos, mas
foram os 10 segundos mais eternos da minha vida."

Depois deles, ligou para compartilhar a descoberta com Rocky Kolb, chefe da
Astrofísica do conceituado Fermilab (Fermi National Accelerator Laboratory), nos
Estados Unidos. Kolb, um cientista que adora Groucho Marx e tem um bigode muito
parecido com o do antológico comediante, foi orientador de Gleiser no pós-doutorado.
Hoje, não perde nenhum de seus livros. "Ele diz que eu o ensinei a pesquisar, mas não é
verdade. É impossível ensinar alguém a pesquisar", diz. "Você pode ensinar as técnicas,
mas jamais a criatividade e a imaginação necessárias para fazer pesquisa de alto nível. É
como ensinar alguém a jogar futebol. Você até ensina a driblar, chutar e dar cabeçadas,
mas você não ensina a mágica do esporte. Ela é inata. Marcelo aprendeu técnicas
comigo, mas a mágica veio de dentro dele."

Desde o ano passado, Gleiser está migrando de área na Ciência. Já publicou seus
primeiros artigos sobre Astrobiologia - o estudo da vida fora da Terra. "Há 20 anos falar
de vida extraterrestre na Ciência era uma coisa meio proibida. Não havia dados. Com o
desenvolvimento das metodologias de observação e com o avanço da Genética, da
Bioquímica e da Astrofísica, cada vez mais é possível falar sobre vida extraterrestre de
maneira científica", diz. "Acho muito provável que exista vida fora do nosso planeta. Já
vida inteligente, se existir, será muito rara. Como é rara na própria Terra."

Aluno apenas regular de Matemática na escola, Gleiser queria ser músico. Só tornou-se
cientista porque o pai, Isaac, garantiu que, dedilhando o violão para viver, ele morreria
de fome. Dentista de profissão, mas pianista e jardineiro sempre que sobrava tempo,
Isaac deu ao filho duas lições que Gleiser considera decisivas. "Meu pai me ensinou a
amar a beleza e me ensinou que na vida era preciso ralar muito para conseguir as
coisas", diz.

O primeiro vestibular prestou para Engenharia. Quando se encantou com Física, Gleiser
procurou o irmão mais velho, Luiz, que se recuperava de uma hepatite no hospital. Luiz,
hoje diretor de núcleo da TV Globo, tem nove anos a mais que o caçula. "Sempre
idolatrei meu irmão mais velho porque era ele o rebelde da família, o desbravador.
Perguntei se deveria passar da Engenharia para a Física. O Luiz me perguntou se eu
achava que era bom o suficiente. Eu disse que achava que sim", diz Gleiser. "Ele disse
então que eu fosse fazer o que gostava, porque, se não fizesse, jamais seria o que
poderia ser."

Marcelo toca violão até hoje. "Quando ele apareceu na minha porta interessado em
cosmologia, tinha um estojo de violão numa mão e uma pilha de livros de Física na
outra", diz Rocky Kolb. De certo modo, Gleiser, um amante de jazz e música erudita,
encontrou um caminho para unir Ciência e Música. "A idéia de que existe ritmo em
tudo sempre ressoou na minha cabeça de uma forma até inconsciente", diz. "Acho linda
essa idéia de que o universo canta, tem ritmos. Isso também me aproximou de Kepler. A
harmonia do mundo é uma metáfora belíssima."

O oposto da imagem clássica do cientista de óculos, trancado entre quatro paredes e


com cara de louco, Gleiser é aberto para o mundo. Astrologia, por exemplo. "O segredo
da Astrologia é a vaidade humana. Todo mundo adora ser o centro das atenções, e ela
coloca as pessoas no centro do Universo", diz. "Quando acertam, é por intuição."
Mesmo assim, o cientista, do signo de Peixes, com ascendente em Áries e lua em
Câncer, ficou impressionado com a previsão do astrólogo que desenhou o seu primeiro
mapa-astral. "Ele falou que um dia eu ia ficar famoso, mas não pela minha pesquisa em
Física, mas por algo ligado ao fato de ser cientista", diz. "Você vê que trabalhei durante
20 anos para satisfazer a previsão do cara."
Marcelo Gleiser recupera-se da
vertigem na Torre de Pisa, na Itália

O primeiro mentor de Gleiser, Jorge André Swieca, um dos maiores físicos teóricos do
Brasil, morreu de forma trágica quando ele se preparava para iniciar o mestrado. Três
meses depois, Gleiser e sua namorada encontrariam o pai dela morto também em
circunstâncias terríveis. Gleiser prefere não mencionar o que viu, mas a cena é usada no
final do romance sobre Kepler. O físico Francisco Antonio Doria, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, acolheu Gleiser. Foi seu primeiro Maestlin, mas sem as
dores. "O grande matemático Leopoldo Nachbin dizia que o professor só é bom quando
aceita ter alunos que o ultrapassem", diz Doria. "O Marcelo é a prova de que sou um
bom professor." Em agosto, Doria receberá Gleiser como membro da Academia
Brasileira de Filosofia. Ultimamente, Gleiser anda sonhando também com a Academia
Brasileira de Letras, onde, segundo ele, "falta um cientista".

Se Gleiser é um discípulo brilhante, é também um ótimo mentor. Esta talvez seja a


melhor notícia para o Brasil. Como divulgador científico, ele tem inspirado uma geração
de brasileiros. Ficou famoso - e deve ficar bem mais agora, com o romance e a série no
Fantástico - como um cientista que traduz a Ciência num país que investe muito pouco
em pesquisa. E onde boa parte das crianças quer crescer para virar jogador de futebol ou
modelo e atriz. O universo é bem mais amplo que isso. E se expande.

"Ele faz um trabalho magnífico, porque, além de tornar a Ciência mais acessível,
interpreta, vai além", diz o escritor e médico Moacyr Scliar, fã assumido de Gleiser.
"Durante muito tempo houve uma barreira na sociedade, a Ciência parecia ser feita por
pessoas que viviam em outra dimensão. Depois da bomba-atômica, percebeu-se a
necessidade de um controle social. Como a população vai exercer esse controle se não
entende o que está em discussão? Gente como o Marcelo Gleiser dá subsídios para que
as pessoas possam decidir o que querem."

Como cientista pop, Marcelo se tornou exemplo. Acompanhe essa história. Em 1998,
um garoto de 14 anos chamado Leonardo Motta leu um livro emprestado de um amigo.
Era A Dança do Universo. "Depois que eu li, o mundo ficou diferente. Fiquei fascinado.
Descobri que eu queria fazer Ciência", diz. Leonardo vivia em Belém do Pará, filho de
um bancário e de uma funcionária pública. Não sabia bem por onde começar a virar
cientista. Pesquisou na internet e descobriu o e-mail de seu ídolo. "Eu não tinha
ninguém para me orientar", diz. Escreveu, todo cheio de dedos, tremendo. "Se ele não
respondesse, eu não tinha nada a perder, ficava na mesma. Tentando, eu tinha uma
chance", afirma. Perguntava sobre como "seria possível criar matéria no modelo do Big-
Bang, a partir do vácuo". Marcelo respondeu, aberto e simpático como ele costuma ser.

Desde então, foram dezenas de e-mails entre os bosques de New Hampshire e a


luxuriosa Amazônia. O astrofísico orientou o garoto sobre quais livros devia ler, como
resolver problemas, que universidade seguir. "Papai Gleiser, passei no vestibular de
Física da USP", é o conteúdo de uma das mensagens. "O Marcelo foi fundamental. Os
livros dele mudaram minha vida", diz. "Não sei como eu seria hoje se não fosse ele."

Em setembro, Leonardo embarca para os Estados Unidos. O menino de Belém vai para
Yale, fazer doutorado em física de partículas e cosmologia. Yale é uma das melhores
universidades americanas - só aceita estudantes de carreira impecável e notas no topo.
Leonardo tem 22 anos. Depois de Yale, Leonardo já sabe o que quer: "Quero voltar ao
Brasil para retribuir o que eu recebi, ao estudar em universidade pública. Quero ajudar a
formar as novas gerações".

Quando começar Poeira das Estrelas, a nova série do Fantástico, a capacidade de


Gleiser para inspirar futuros cientistas vai se propagar. Especialmente se descobrirem o
quanto ele se divertiu em viagens pela Europa e pelos Estados Unidos. "Os primeiros
seis capítulos são mais ligados à história da Ciência e Big-Bang. Fomos a Cambridge,
onde trabalhou o (Isaac) Newton, e entrevistamos o astrônomo real da Inglaterra. Em
Praga, vimos tudo de Tycho (Brahe) e Kepler. Em Florença, falamos do Galileo
(Galilei) e, em Roma, de Giordano Bruno", conta Gleiser. "Subi na Torre de Pisa e
joguei as bolas de cima." Foi essa a experiência que Galileu teria feito. Ao atirar do alto
da torre inclinada objetos de mesma densidade, mas de pesos diferentes, ficou provado
que a densidade - e não o peso, como dizia Aristóteles - era proporcional à velocidade
de queda . No alto da torre, Gleiser conta que teve vertigem. "Ele não gosta muito de
altura, não", diz o editor Frederico Neves.

A história mais curiosa da série, porém, aconteceu no chão. No monumento de


Stonehenge, na Inglaterra, onde um círculo de pedras com cerca de três mil anos de
idade desafia a imaginação das pessoas, Gleiser ficou dentro do carro para não arriscar
as cordas vocais numa temperatura abaixo de zero. A idéia era gravar no nascimento do
Sol. Tudo, portanto, era breu, exceto pela iluminação garantida pelos equipamentos.
Volta e meia, Gleiser botava a cabeça para fora do carro e fazia algum comentário.
"Essas outras pedras aqui também são importantes", disse ele, apontando para alguns
pontos escuros. De repente, as "pedras" começaram a se mexer. Eram ovelhas. "Olha,
suas pedras acordaram", brincou Neves.

TOCANDO EM KEPLER
Em Praga, Gleiser visitou a biblioteca do
monastério de Strahov. Pôde então examinar um
original do astrônomo Johannes Kepler, gênio da
Ciência, sobre o qual escreveu seu primeiro
romance

É difícil acreditar, mas Gleiser se divertiu ainda mais nos seis últimos capítulos. Neles,
discorre sobre a origem da vida e até sobre alienígenas. Ao final da série, Gleiser
publicará o livro Poeira das Estrelas, pela Editora Globo. "Voamos de balão sobre uma
cratera enorme no Arizona e fomos ao Grand Canyon onde falamos da evolução
geológica da Terra. Depois vimos os vulcões do Havaí. Sobrevoamos de helicóptero um
vulcão em erupção. Estávamos a um metro da lava em uma casquinha de noz. O
helicóptero não tinha porta e eu sentia aquele calorão subindo. Tinha de gritar para falar
por causa do barulho", diz. "Chegamos a subir uma montanha de 4 mil metros onde
estão os maiores telescópios do mundo, chamada Mauna Kea."

Sofrer, só com o frio. A 2°C negativos, em Praga, seu maxilar congelou. "Ficava dando
tapas na minha cara para destravar e conseguir falar. Estava contando sobre a relação
entre Kepler e Tycho Brahe", diz. "Vou aparecer de nariz vermelho." O nome da série,
Poeira das Estrelas, resume nossa relação paradoxal com o universo. "Você é pequeno
porque o universo é tão grande e é grande porque faz parte dele", diz. "Eu acho muito
linda essa visão de que a matéria da qual somos feitos veio de estrelas quando estavam
morrendo. E que um dia nossa matéria vai fazer parte de outras estrelas que vão estar
nascendo. Não sei se serve de consolo para a realidade da morte, mas um dia o Sol vai
morrer, e nossa matéria vai se espalhar pelo universo e, quem sabe, voltar a gerar outros
planetas e até outras formas de vida."

Criado na religião judaica, Marcelo Gleiser nunca encontrou na fé as respostas para as


grandes questões que o assombravam. Ele acredita que "a Ciência leva a Deus". "Não ao
Deus judaico-cristão, mas à natureza", diz. "Sou o ateu mais religioso que você vai
conhecer na sua vida". Johannes Kepler, o homem que povoou sua mente durante os
três anos em que escreveu seu romance, dedicava-se à Astronomia para "decifrar a
mente de Deus". Sua fé o levava a Ciência, mas ao encontrar dados que desmentiam o
pensamento religioso de sua época, respeitava seu Deus o suficiente para ser fiel ao
Universo criado por ele.

Ao final, Kepler encontrou a harmonia do mundo. Gleiser, a imperfeição. Harmonia e


imperfeição são pensamentos cietíficos de duas épocas distintas. Imperfect Creation
será o próximo livro de Marcelo Gleiser. "Vou escrever sobre a importância da
imperfeição no universo. Todas as coisas fundamentais que existem dependem de um
desequilíbrio, o próprio universo se originou de um desequilíbrio. Quando o sistema
está equilibrado, ele não se transforma. Sem transformação não há criação, nada
acontece", diz. "Mas o que vemos é a organização, a simetria. Um dos grandes desafios
da Ciência é explicar como pode existir harmonia em um universo que tende à
desorganização. A idéia que eu quero trazer é explicar como imperfeição e harmonia
caminham juntas."

Pela primeira vez, Gleiser vai mesclar - deliberadamente - a Ciência com a própria
biografia. Ele quer mostrar qual foi o papel da imperfeição, do desequilíbrio e da morte
na criação da sua vida. Como ele acançou à sua pró-cura. E por que, para sorte nossa,
ele segue procurando.

Marcelo Gleiser responde às principais questões que nos desafiam

1 Como tudo começou?


Ainda não sabemos. Mas estamos cada vez mais próximos
de uma resposta, ao menos no que tange à Ciência. Desde
meados do século XX, quando o modelo do big bang foi
proposto, temos chegado cada vez mais perto do momento
inicial. Hoje, podemos dizer que compreendemos bem a
História do Universo desde o primeiro segundo de
existência. Nada mal. O problema começa com a noção de
tempo. Ela deixa de fazer sentido quando nos aproximamos
do "começo". Segundo a Física moderna, o tempo que flui
como um rio é um conceito que não se aplica ao início de
tudo. Tempo e espaço passam a flutuar aleatoriamente. O
início de tudo seria o início do tempo que nos é familiar. E
esse tempo, como havia dito Santo Agostinho, "surge com a
Criação".
2 O que é big bang?
Big bang é o nome dado ao evento que marca a origem do
Universo. Mais corretamente, é o nome dado ao processo
que marca o início do tempo, a data de aniversário do
Universo. O modelo do big bang, usado hoje em
cosmologia, descreve de modo preciso várias das
propriedades do Universo em que vivemos.
3 Qual é a origem da vida?
Essa é outra pergunta a que ainda não podemos responder.
Não sabemos como átomos inanimados organizam-se de tal
forma que, após atingir certo nível de complexidade, passam
a ser "vivos". Essa passagem do inanimado ao animado é
uma das questões mais fascinantes da Ciência moderna.
Entretanto, sabemos que a vida existia na Terra há pelo
menos 3,5 bilhões de anos. Se ela surgiu aqui ou se veio de
outro lugar do espaço é assunto de discussão. A maioria dos
cientistas acha que ela surgiu aqui mesmo. Experiências
mostram que aminoácidos, componentes das proteínas
necessárias para a vida, podem ser formados em condições
semelhantes às que existiam aqui no passado. É um primeiro
passo em direção à resposta. Em ciência, o não-saber é
fundamental; só assim geramos conhecimento.
4 O Universo está mesmo em expansão?
Está. Isso significa que as galáxias estão se afastando umas
das outras, sua velocidade de afastamento está aumentando
com a distância. Como passas num bolo, que se afastam à
medida que o bolo cresce no forno.
5 - Somos mesmo feitos de poeira das estrelas
Somos! A matéria que compõe nosso corpo, os átomos de
carbono, oxigênio, cálcio, ferro etc., foi toda forjada no
interior de estrelas no final de suas vidas. Estrelas geram
energia fundindo principalmente hidrogênio em hélio.
Quando o hidrogênio no seu interior acaba, elas entram em
colapso, forjando elementos químicos cada vez mais
pesados. Eventualmente, elas explodem e toda essa matéria
é espalhada pelo espaço interestelar. Foi o que ocorreu com
a nuvem de hidrogênio que acabou virando nosso sistema
solar: outra estrela, nossa vizinha, salpicou-a de átomos ao
morrer, criando então a possibilidade de vida aqui. Quando
o Sol explodir, será ele que espalhará sua matéria pelo
cosmo.
6 - O que é buraco negro?
Buraco negro é a fase final de estrelas com muito mais
massa que o Sol (oito vezes ou mais): a estrela entra em
colapso e não pára, sua gravidade vai ficando cada vez mais
intensa, feito um escorregador que fica cada vez mais
inclinado até que fique impossível escalá-lo. É o que ocorre
com a própria luz num buraco negro: nem ela consegue
escapar da força de sua gravidade. Daí o nome, uma região
do cosmo de onde nem a luz escapa.
7 - Existe vida extraterrestre?
Não sabemos. Mas tudo indica que a vida não deve ser
apenas algo que ocorre na Terra. Isso porque a química da
Terra não é tão única, outros planetas espalhados pelo
cosmo devem ter algo de parecido. Fora isso, a vida, mesmo
aqui, é extremamente criativa e persistente, existindo em
condições muito exóticas: altas temperaturas, no gelo, em
áreas contaminadas por radioatividade... A questão da
existência de vida extraterrestre "inteligente" já é bem mais
complicada. Aqui, podemos apenas especular. Em nosso
sistema solar, ao menos, sabemos que ela não existe. Dada a
ausência de "visitantes" -- não existem provas concretas
aceitas por cientistas sérios de que seres extraterrestres
tenham vindo até aqui --, devemos aceitar que, se vida
inteligente existir fora da Terra, deve ser muito rara. Mas
espero que não sejamos a única espécie capaz de produzir
tecnologia no Universo. Isso nos tornaria importantes
demais. E seria muito triste.
8 - O que é Física Quântica
A física quântica estuda o comportamento dos átomos e das
partículas subatômicas. Muito da tecnologia digital que
usamos hoje é produto de aplicações tecnológicas da Física
Quântica, desenvolvida nas três primeiras décadas do século
XX.
9 - Como os planetas se mantêm em órbita
Newton mostrou em 1686 que as órbitas dos planetas em
torno do Sol são como uma "queda livre", como quando um
elevador despenca e caímos devido à atração gravitacional
da Terra. A diferença é a velocidade horizontal: imagine um
canhão sobre uma montanha. Quanto mais forte o disparo,
mais longe viaja a bala. Até que, para uma certa intensidade
do disparo, a bala continua caindo, mas, devido à curvatura
da Terra, não encontra o chão. "Entrar em órbita" é estar
sempre caindo com o movimento adicional empurrando na
horizontal.
10 - O que é a teoria da relatividade?
Em sua teoria da relatividade especial de 1905, Einstein
mostrou que nossas noções de espaço e tempo como
entidades rígidas e imutáveis são ilusões causadas pelo fato
de que nossos movimentos são muito lentos, se comparados
à velocidade da luz. Se nos movêssemos a velocidades
comparáveis (mas menores), veríamos as coisas encolhendo
e o tempo passaria mais devagar para elas. Entre as
conseqüências, Einstein demonstra a equivalência entre
energia e matéria, algo que só é possível a altíssimas
energias. Na relatividade geral, de 1916, Einstein redefine a
gravidade como sendo a curvatura do espaço. A expansão
do Universo e buracos negros são descritos por essa teoria.
11 - É possível viajar no tempo?
Segundo a teoria da relatividade, se pudéssemos construir
um veículo capaz de viajar a velocidades próximas à da luz,
poderíamos viajar para o futuro. Mas jamais para o
passado...
12 - É preciso conhecer profundamente Matemática para
entender os grandes conceitos da Ciência?
Do mesmo modo que não precisamos ler uma partitura para
apreciarmos música clássica ou tocar guitarra para
apreciarmos rock, não precisamos de Matemática para
apreciarmos as idéias da Ciência. Mas uma compreensão
mais profunda da Física moderna precisa, sem dúvida, de
Matemática. Mas nem todo mundo quer ou deve ser
compositor ou músico. Ciência faz parte da cultura e precisa
de tradutores. Esse é o papel dos divulgadores de Ciência:
traduzir a Ciência para que o resto da sociedade possa
compartilhar suas descobertas e opinar sobre seu uso.
13 - Existe harmonia no mundo? E qual é o papel da
imperfeição?
E como! Basta ver a coreografia dos ciclos naturais, como a
vida coexiste e improvisa com o meio ambiente e como
padrões simétricos tendem a se repetir, a bifurcação dos
troncos das árvores e dos leitos dos rios, as espirais das
galáxias e das conchas, a simetria das asas de uma borboleta
e dos flocos e neve. Porém, se só houvesse harmonia e
simetria, se só houvesse equilíbrio, jamais haveria
transformação... Portanto, tudo o que ocorre e que se
transforma no mundo o faz devido a imperfeições, ao
desequilíbrio. É a tensão entre harmonia e imperfeição que
gera a criatividade do mundo natural, das formas mais
simples àquelas mais complexas.
14 - É possível a coexistência entre Ciência e Religião?
Sem dúvida. Basta que cada uma aceite suas limitações e
áreas de atuação. O conflito existe quando a Ciência tenta
agir como Religião -- o que não pode nem deve fazer -- ou
quando a Religião tenta agir como Ciência -- o que não pode
fazer também. As duas servem a propósitos diferentes, no
máximo complementares. Nunca mutuamente excludentes.
15 - Se houve um começo, haverá um fim?
A questão é que fim é esse? Da Terra? Certamente, quando
o Sol explodir em 5 bilhões de anos, levará nosso planeta
junto. Da vida? Difícil dizer, depende do quão criativos
seremos à medida que o Universo expande e resfria. Do
Universo? Talvez. Mas, pelo que sabemos hoje, continuará
sua expansão indefinidamente. O fim seria devido à morte
das estrelas e das fontes de energia: o cosmo termina no
escuro.

 
Foto: Claudia Kamergorodski
Aos 19 anos, Marcelo Gleiser desejou deitar
no divã do psicanalista Hélio Pellegrino. Ele
tinha sofrido muitas perdas, todas em
circunstâncias trágicas. Achava que era hora
de olhar para dentro. Hélio não foi um dos
intelectuais mais brilhantes de sua geração
por acaso. Ele ouviu os dramas do estudante
de Física e disse: "Você não precisa de
psicanálise. O mais importante na vida é a
pró-cura. Você já encontrou seu caminho,
você procura por meio da Ciência". Foi
assim que Gleiser teve alta do divã de Hélio
Pellegrino antes mesmo de experimentá-lo. O FENÔMENO GLEISER
E seguiu procurando, como procura até hoje. Como cientista, ele ganhou prêmio na Casa Branca.
Como escritor, recebeu dois Jabutis. Um roteiro de
Usou o medo da morte para construir uma cinema dele circula por Hollywood. Ele ainda faz
vida extraordinária. palestras em cruzeiros pelo mundo e inspira a nova
geração de brasileiros

Em sua procura, o astrofísico Marcelo Gleiser mergulhou nas grandes questões que
afligem a todos nós. Quem somos? De onde viemos? Como tudo começou? O mundo
pode acabar? Como? Gleiser consegue traduzir essas e outras grandes questões do
Universo de uma forma que todos entendem. Graças a isso, transformou-se no primeiro
cientista pop do Brasil. ä O que ele conta poderia ser resumido numa frase do poeta
romântico inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822): "Sou o olho com que o universo
contempla a si mesmo e sabe que é divino". Ou, como dizia Carl Sagan, o mais popular
divulgador científico do Ocidente, apresentador de Cosmos, uma série de TV de grande
sucesso nos anos 70: "Poeira de estrelas que somos, ao buscarmos a resposta para as
grandes questões é como se o universo estivesse olhando para dentro e tentando
entender a si mesmo".

A partir do domingo, 20, o cientista de 47 anos, olhos azuis e sorriso enigmático da


fotografia que ilustra essa página passará a participar do jantar de domingo de 40
milhões de brasileiros. Essa é a audiência média do Fantástico, onde Gleiser vai
apresentar uma série de 12 episódios, cada um deles com 10 minutos, batizada Poeira
das Estrelas. Nela, Gleiser vai responder às grandes questões que nos assaltam desde
que descemos das árvores. Uma amostra das respostas de Gleiser e da sua capacidade
de tratar de modo simples os problemas mais complexos da ciência você encontra nas
respostas que ele próprio preparou para esta reportagem.

A série do Fantástico é apenas uma das novidades de Gleiser. Ele é um cientista capaz
de escrever livros, fazer filmes, apresentar programas de TV e - sim -- até de fazer
ciência e desvendar mistérios do universo. Não no mesmo espaço e tempo, mas quase.
Ganhou dois Jabutis, o prêmio mais importante da literatura brasileira, por seus livros
de não-ficção. O primeiro best-seller, A Dança do Universo, já vendeu quase 70 mil
exemplares. Os direitos do segundo, O Fim da Terra e do Céu, foram comprados pelo
diretor global Luiz Fernando Carvalho para virar uma minissérie. Neste domingo, ele
completa 457 colunas de ciência na Folha de S.Paulo. Ganha até US$ 10 mil por
palestra e é pago para falar para uma espécie muito particular de turistas - os caçadores
de eclipses - pelos mares do mundo. Colaborou na concepção de O Maior Amor do
Mundo, o novo filme de Cacá Diegues, e tem um roteiro de ficção científica de US$
120 milhões circulando por Hollywood. É o professor mais popular do Dartmouth
College, uma das mais importantes universidades americanas, e já publicou 80 artigos
em revistas científicas. Suas descobertas como astrofísico foram tão relevantes que
ganhou, em 1994, um prêmio do governo dos Estados Unidos. O cientista que decifra o
cosmos para brasileiros e americanos lança na próxima semana seu sexto livro. Desta
vez, um romance.

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