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Prédica: Êxodo 3.

1-14
Autor: Milton Schwantes
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação:08/02/1987
Proclamar Libertação - Volume: XII
l - Considerações introdutórias
Na Bíblia, existem livros e textos que têm o dom da síntese. Neles, o todo está
presente de um modo bem especial. Ex 3-4 pertence aos textos com dom de
síntese. Nele confluem diferentes tradições. Pode-se observar que seus
primeiros versículos retomam o livro de Gênesis: A manifestação de Deus que
se dá em meio à sarça ardente lembra Abraão que ia aos carvalhais de Mamre
para prestar seu culto a Deus. O conteúdo de Êx 3-4 antecipa o que os demais
livros de Moisés esmiuçam em detalhes. Portanto, nossos dois capítulos
assemelham-se a um lago: para ele, confluem diferentes tradições e conteúdos.
Acrescente-se a isso mais outro dado: Êx 3-4 é parte daquela temática e
daqueles textos que são centrais no Antigo Testamento. Ó êxodo é um dos eixos
vitais da própria Escritura. No Antigo Testamento, constitui-se no evento
fundante. É o próprio coração do conteúdo vétero-testamentário. Esta não só é
a conclusão da teologia bíblica latino-americana, se bem que, por aqui,
cultivemos, com especial esmero, a centralidade do evento libertador para a
trajetória do povo de Deus. Esta também é a tese da teologia bíblica em outras
partes (cf. G. von Rad!). Por-tanto, nosso texto de prédica localiza-se no coração
do Antigo Testamento. Ao anunciar o evangelho de Jesus Cristo a partir de Êx 3,
havemos de tomar em conta o papel especial deste nosso texto.
Aliás, neste contexto maior do Antigo Testamento, Êx 3-4 assume mais outra
dimensão toda particular. Estes dois capítulos têm uma só temática: Deus.
Respondem à pergunta: Quem é nosso Deus? Fazem-no a partir de diversos
enfoques, como logo veremos. Não existem muitos textos na Escritura que dão
tamanha atenção à sistematização do falar de Deus. Lógico, todas as páginas da
Bíblia dizem respeito a Deus e dele testemunham. Mas, não são muitas as
passagens que se põem a organizar e sistematizar o testemunho sobre Deus. Êx
3-4 é uma delas, ao meu ver uma das mais significativas.
A pregação a partir deste texto assume, pois, de saída, contornos especiais.
Parte de uma perícope deveras densa, cujo interesse é teológico.
II - O texto
Nossa perícope somente prevê, para o sermão, alguns versículos dentre os caps.
3-4. Ao caracterizar agora o conteúdo desta nossa parcela de texto, devo estar
atento também para suas vinculações com seu contexto literário.
1. Verifiquemos inicialmente algumas peculiaridades literárias de nossa
perícope. Encontra-se naquele conjunto de capítulos que preparam a saída, a
libertação. Os caps. 7-15 descrevem o evento da libertação, preparado pelas
pragas e consumado no cântico de Moisés e Miriã, no cap. 15. Os caps. 1-6
delineiam a situação de opressão (caps. 1 +5), as tentativas e impasses para a
libertação (caps. 2) e, em especial, a preparação do líder Moisés (caps. 2+3-4+6).
Como se vê, há muito interesse em ressaltar a pessoa de Moisés. Contudo, os
textos de jeito nenhum o isolam. Vêem-se no contexto da resistência das
parteiras e mães (caps. 1 e 2). Apresentam-no como resposta ao clamor do povo
(2.23-25).
Os caps. 3-4 tematizam a vocação de Moisés. Enfatizam dois aspectos: a
superação das dúvidas de Moisés e o conteúdo da missão mosaica. Esta
temá¬tica vocacional é retomada no cap. 6, onde, após os primeiros insucessos
narrados no cap. 5, o comissionamento é reafirmado. Nossa perícope (3.1-14)
encontra-se, pois, no contexto do que se poderia chamar de diálogo vocacional.
Internamente estes caps. 3-4 têm uma estrutura complexa, que aqui não
poderá ser desdobrada. Ainda assim, não é difícil de perceber que no v. 15 inicia
nova sub-unidade. Acontece que no v. 14 é levado ao ápice e encerrada a
temática iniciada no v. 1. Além disso, no início do v. 15 aparece um ainda, o que
evidencia estarmos no começo de nova sub-unidade. É, pois, justo que se
conclua nossa perfcope no v. 14.
Nestes v. 1-4 percebo duas partes. Numa o assunto é a sarça. Na outra, o envio
de Moisés para a libertação dos hebreus. O tema de sarça predomina nos v. 1-6.
O da libertação nos v. 7-14.
Os v. 1-6 obedecem a uma sequência evidente. Moisés observa um fenômeno
que, inicialmente, lhe é incompreensível. Os versículos narram como Moisés
gradativamente passa a entender o que se passa: esconde o rosto (v. 6).
Os v. 7-14 diferem dos v. 1-6. Não se enquadram numa sequência narrativa
como aqueles. Sua lógica é mais bem discursiva do que narrativa. Os v. 7-8 são
repetidos nos v. 9-10. Nos dois conjuntos, Javé começa por afirmar haver visto e
ouvido o clamor dos hebreus (v. 7 e v. 9) e conclui com o anúncio da libertação
(v. 8 e v. 10). Os v. 11-14 constituem igualmente dois conjuntos, ambos
iniciados por perguntas. No primeiro (v. 11-12), Moisés põe em dúvida sua
capacidade para a tarefa. No segundo (v. 13-14), a pergunta tem o nome de
Deus por conteúdo. A resposta (v. 14) perfaz o auge destes v. 1-14. Nele é
constatado que Javé, aquele que verdadeiramente age na história, envia Moisés
para libertar os hebreus oprimidos.
2. É difícil determinar a origem destes nossos versículos, o que, aliás, vale para o
todo dos caps. 3-4. Os pesquisadores que adotam a teoria das fontes (cf. por
exemplo M. Noth e W. H. Schmidt) costumam atribuir os v. 1-14 ao javista e ao
eloísta. Tratar-se-ia de uma mescla de ambas as fontes. Na medida em que esta
teoria, mais e mais, deixa de ser consenso na ciência vétero-testamentária (cf.
R. Rendtorff) a definição da origem de nossos versículos ou, em geral, dos caps.
3-4, teria que ser buscada sem o pressuposto da existência do javista ou do
eloísta.
Constato que nosso próprio texto fornece algumas valiosas indicações para a
determinação de sua origem. Concentro-me em duas. Por um lado, este trecho
representa a junção de diferentes tradições. Para ele confluem conteúdos
oriundos das tradições dos patriarcas e do êxodo, da profecia e da criação.
Preserva memória histórica e interpretação posterior. Uma passagem com
tamanha multiplicidade de acentos e tradições não deve ser muito antiga. Foi
forjada quando as diferentes tradições do povo de Deus se haviam amalgamado
e interrelacionado. - Por outro lado, é patente que a vocação de Moisés é como
a de um profeta. Não só a dúvida do vocacionado se encontra em Jr 1, como até
mesmo a terminologia tem seu paralelo entre os profetas (observe o uso do
verbo enviar e compare com Is 6.8). Inclusive é provável que Os 1.9 aluda à
famosa fórmula aconteço como aquele que acontece (eu sou o que sou, em
Almeida) de nosso v. 14.
Portanto, parece-me provável que a origem do atual texto dos caps. 3-4 esteja
entre grupos proféticos. Há de se tratar dos círculos proféticos do 85 século, a
época dos grandes profetas (Amos, Oséias, Isaías e Miquéias).
3. Nossos v. 1-14 tematizam a vocação de Moisés. Contudo, nesta vocação o
interesse principal não recai sobre aquele que é vocacionado. Recai sobre o que
vocaciona. Nossos versículos não nos apresentam Moisés. Explicam, isso sim,
quem é Deus, aquele que vocaciona Moisés. O conteúdo de nossa perícope é,
pois, primordialmente teológico.
São três seus acentos teológicos. Testemunham sobre Deus sob três distintos
enfoques.
Primeiro: A manifestação de Javé está conectada a uma planta. Esta transforma-
se num lugar sagrado, pois com a sarça ocorrem dois fenômenos
extraordinários. Por um lado, queima sem se consumir. Por isto Moisés vai
verificar o que está sucedendo. Por outro lado, Deus fala com Moisés desde
dentro da sarça. É evidente que nosso texto está interessado nesta fala divina.
Sua atenção primordial não é a sarça em chamas. Esta tão-somente é
preparatória para aquela.
Tais epifanias divinas a partir de fenômenos da natureza também são
mencionadas em outros textos bíblicos. Penso, por exemplo, em Gn 28.10ss e
32.22ss. Aliás, relatos semelhantes existem, até hoje, em outras religiões.
Celebra-se aí que certos lugares ou fenômenos da natureza são transparentes e
propícios para o divino. Nestes casos, busca-se entender Deus a partir do
natural.
No Antigo Testamento, esta maneira de testemunhar de Deus não é rejeitada. A
natureza e a criação estão correlacionadas com Deus; não estão ã parte de Javé.
É o que lemos em Gn 1-2 ou em Dêutero-lsaías. Contudo, a criação de modo
algum tem um sentido teológico suficiente. Ainda não diz o principal sobre Javé.
Portanto, a cena da sarça diz algo importante, mas não diz tudo.
Segundo: Ao falar a partir da sarça, Deus se apresenta a Moisés como Deus do
teu pai, Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó. É muito evidente que
através desta fórmula são retomadas as histórias de Gênesis. Nelas, nosso Deus
nos vai sendo apresentado através da conexão a certas pessoas.
Em comparação à manifestação de Deus a partir de um fenômeno da natureza
(no caso a sarça), sua correlação a pessoas representa uma valiosa novidade.
Esta consiste em que se passa a compreender Deus à luz de sua relação com
pessoas. A fé bíblica justamente é este testemunho da atuação de Deus na vida
das pessoas e a partir delas.
A partir das histórias do livro de Gênesis, sabemos que o agir de Deus junto a
Abraão, Isaque e Jacó tem duas marcas principais. Por um lado, Deus
acompanha sua gente. Ele está onde estão os seus. Nosso Deus não está preso a
um lugar geográfico. Por outro lado, ele sustenta a vida. Ele abençoa. Sua
proximidade é salvífica. A vida obtém futuro.
Por mais valioso que seja este testemunho sobre o Deus pessoal, companheiro
de jornada e mantenedor da vida, ele ainda não diz tudo. Ainda não diz o mais
significativo sobre nosso Deus. Moisés ainda se esconde (v. 6) e fica sem saber o
nome. Portanto, a referência ao Deus dos Pais diz algo importante, mas ainda
não diz o decisivo.
Terceiro: O testemunho decisivo sobre nosso Deus está, em termos vétero-
testamentários, nos v. 7-14. Aí está o que verdadeiramente importa. Seu nome
é Javé (v. 14). Caracteriza-se por: ouvir e ver o clamor de seu povo, libertá-lo da
escravidão, conduzi-lo para uma terra boa. Além de agir no âmbito da natureza
(sarça ardente), no nível das pessoas (Deus dos Pais), nosso Deus atua no
contexto da história, transformando opressão em libertação. Esta última é sua
característica decisiva. Nela estão englobadas as duas anteriores, i.e., como
Deus histórico e libertador, Javé é Deus pessoal e é criador.
Moisés é vocacionado para concretizar uma tarefa histórica. A presença de Javé
é, pois, medida por uma pessoa. Em Êx 3-4, esta pessoa tem as marcas de um
profeta. Aqui a profecia aparece como mediadora privilegiada do Javé
libertador.
4. O testemunho, dado por Êx 3-4 sobre Deus, por certo-ainda não alcança a
plenitude do testemunho neotestamentário. Em Cristo, há uma radicalização de
nossa perícope. Em Jesus, nosso Deus não só transforma a dor em terra
prometida, não só liberta da opressão, ele mesmo assume dor e opressão.
Supera-as desde dentro. Antecipa, em definitivo, a derrota de dor e opressão.
Nossa perícope ainda não alcança tamanha radicalidade. Para ela, a superação
da opressão visivelmente só se dá no nível da promessa, na vida nova em terra
nova. Ainda não chega a pensar numa vida nova nas terras do faraó, em meio à
opressão. Neste ponto, por exemplo, se percebe que nossa perícope ainda não
é neotestamentária. Necessita da crítica e da complementação em Cristo.
Contudo, não se pode deixar de ver a continuidade entre nossa perícope e o
Novo Testamento. Isso vale de modo muito especial na medida em que nos
tivermos habituado a restringir a ação salvífica em Cristo à pessoa, a seu
coração e a suas dores individuais. Um texto como Êx 3-4 ajuda-nos a perceber
a dimensão pública, popular e coletiva da ação salvífica. Este acento não está
ausente no Novo Testamento, mas na história teológica dos últimos tempos
tem sido bastante negligenciado. Proponho, pois, que não se vá contrapor, de
modo simplista e inadequado, a libertação do indivíduo do Novo Testamento à
libertação do povo de Êx 3-4, mas que vejamos em nossa perícope e sua
teologia, tão preocupada com o social, um auxílio decisivo para o testemunho
de Cristo nos dias atuais. Portanto, recomendo que o pregador insista junto a
esta nossa passagem, evitando substi¬tuí-la por outros conteúdos bíblicos
eventualmente mais correntes.
Ill - Indicações para a prédica
A prédica poderia ser desenvolvida nos seguintes três itens:
1. Início com a localização do texto, na situação dos hebreus escravizados no
Egito e no contexto da perícope. Aí se deveria ressaltar a opressão faraônica e
as tentativas de resistência das parteiras, das mães e do jovem Moisés.
Contudo, todas estas iniciativas a nada levaram. Moisés acabara de fugir para
terras distantes. Esta situação desesperadora de contínua opressão muda de
perspectivas, quando Javé se lembrou de sua aliança (Êx 2.24). Começa o
caminho 'da libertação. A vocação de Moisés está no início.
2. Acentuo, depois, a teologia de nossa perícope. Nela obtemos um testemunho
sobre a característica de nosso Deus. Quem é nosso Deus? Este assunto - por
certo, nada fácil! - proponho desenvolver a partir da temática da libertação,
central em nossos versículos. Sem negar que Deus também se pode tornar
transparente através de fenômenos da natureza. Sem negar que Deus também
se empenha por cada pessoa, de modo direto e até individual. Sem negar estas
ou outras dimensões, a prédica deveria concentrar-se na proposta teológica de
Êx 3.1-14: a trajetória histórica da opressão à libertação constitui um dos
espaços particularmente privilegiados por Deus!
3. Este sermão não poderá descuidar-se da concretização. Na segunda parte
aparecerão conteúdos mais complexos e difíceis. Justamente por isso esta
última parte deverá ser concreta. Esta concreticidade evidentemente precisará
corresponder ao mundo da comunidade reunida. À luz de Êx 3-4 importa estar
atento para a história do povo e de suas lutas específicas. Nossa perfcope nos
convida a uma interpretação teológica das dores coletivas.
IV - Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Reina o Senhor. Regojize-se a terra, alegrem-se todas as ilhas.
Alegrai-vos no Senhor, ó justos, e dai louvores ao seu santo nome.
2. Confissão de pecados: Senhor Deus, nosso juiz e amigo. Confesso diante de ti
e de nossos irmãos que em meio a meu trabalho atuo como se tu não existisses.
Olho para o mundo com meus olhos. Confio integralmente neles. Restrinjo tua
ação, Senhor, à hora de culto, à igreja. Esqueci que és o criador. Não me lembro,
em meu dia-a-dia, que a história está em tuas mãos. Tem piedade de mim e de
nós, Senhor!
3. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus: damos-te graças por essa nossa
reunião. Louvamos-te por podermos estar congregados. Reúne-nos, agora, em
torno de tua palavra. Ajuda-nos a ouvi-la. Permite que ela germine e cresça em
nossos corações e em nossa vida. Nós Te invocamos em nome de teu Filho,
Jesus Cristo, que vive e reina contigo e com o Espírito Santo, um só Deus, pelos
séculos dos séculos. Amém.
4. Leituras bíblicas: Salmo 76 e Mateus 17.1-9.
5. Assuntos para a intercessão na oração final: pelas diversas formas de
organização de pessoas dentro da própria comunidade; pelos grupos de estudo
bíblico; pela organização das mulheres; pela organização dos jovens e das
crianças; pelas associações de vizinhos e de moradores; pelos sindicatos no
campo e na cidade; pela organização política e partidária; pelos movimentos
populares; pelo dom divino para sermos capacitados a testemunhar que nosso
Deus atua na história.
V – Bibliografia
- CROATTO, J. S. Yavé, el Dios de Ia presencia salvífica, Ex 3.14 en su contexto
literário y querigmático. In: Revista Bíblica, v. 43, fase. 3. Buenos Aires, 1981.
- CROATTO, J. S. Êxodo: uma hermenêutica da liberdade. In: Libertação e
Teologia, v. 12. São Paulo, 1981.
- GERSTENBERGER, E. Deus Libertador, Teologia e Sociedade no Antigo Israel e
Hoje. In: Deus no Antigo Testamento. São Paulo, 1981.
- PIXLEY, J. V. Êxodo, una Lectura Evangélica y Popular. México, 1983.
- NOTH, M. Das Zweite Buch Mose, Exodus. In: Das Alte Testament Deutsch. v. 5
Göttingen, 1968.
- RAD, G. von. El Problema Morfogenético del Hexateuco. In: Estúdios sobre el
Antiguo Testamento. Salamanca, 1976.
- RENDTORFF, R. Das überlieferungsgeschichtliche Problem dês Pentateuch. In:
Beiheft zur Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft. v. 147. Berlin,
1977.
-SCHMIDT, W. H. Exodus. In: Biblischer Kommentar Altes Testament. v. 2.
Neukirchen, 1974.
Prédica: 1 Reis 19.1-13a
Autor: Clemente J. Freitag
Data Litúrgica: Domingo Oculi
Data da Pregação: 26/02/1989
Proclamar Libertação - Volume: XIV

l - Preparando a perícope
Estes fizeram o mal aos olhos do Senhor e foram piores que os seus
predecessores. Esta é a perspectiva teológica oferecida pelo autor
deuteronomista acerca da monarquia em Israel, a partir do exílio babilônico. Na
perspectiva deuteronomista, o ciclo de Elias, que engloba l Rs 17-19; 21-2 Rs 1-
2, é uma retomada da questão do poder sob o prisma da antimonarquia
presente em Samuel e Nata. O relato não quer somente informar o povo sobre
o que os reis fizeram, mas, princi-palmente, ensinar o povo a ler a história dos
reis com os olhos de um profeta de Javé. Além disso, ele quer oferecer subsídios
teológicos para a leitura e compreensão da própria história do povo de Israel
dentro do remado. Para realizar a leitura da história, o relato parte da prática do
culto a Javé e de suas implicações sócio-políticas na vida israelita.
A perícope indicada para o Domingo Oculi (l Rs 19.l-13a) participa da postura
radical do deuteronomista sobre a monarquia de Israel. Para tanto, o autor-
redator insere os feitos de Elias no dia-a-dia do reinado e da vida cúltica de
Israel, como um todo, desmantelando uma prática religiosa que considerava
Javé igual aos outros deuses, e ainda, como deus exclusivo da monarquia. Um
deus que não percebia o sofrimento do povo e não interferia nas decisões reais.
Apenas ia abençoando o que estava sendo feito. Assim, Elias passa a atuar na
época da primeira dinastia real de Israel, em 860 a. C. Foi um tempo de
entreguismo, tempo de imposição dos modelos estrangeiros de convivência
social em Israel. No campo cultual, que é o determinante para o
deuteronomista, a monarquia foi submetendo os sacerdotes e o culto a seu
serviço, desvirtuando a liberdade da fé javista, aprisionando as revelações
divinas e confundindo a crença dos mais humildes. Segundo o deuteronomista,
isto resultou na manipulação da imagem de Javé, enfim, em idolatria.
Na ânsia de sua expansão, a monarquia em Israel não relutou em fazer alianças
político-militares com outros povos. Tal postura resultou em novas formas de
idolatria, que conduziram a nação à dependência e à instabilidade religiosa e
social. Sem a unicidade cultual javista, não havia critérios para a convivência
sócio-política em Israel. O culto javista não permitia a volta ao Egito. Esta
primeira dinastia de Israel fez, entre outras, uma aliança com os fenícios,
sacramentando-a por casamento. Daí brotou uma total liberdade para a prática
da religião fenícia em Israel, liberdade esta que se expressou na construção do
templo a Baal em Samaria (l Rs 16.32s) e a vinda de 450 profetas de Baal (l Rs
18.19) para a corte real. Não contando os outros 400 profetas já integrados aos
serviços religiosos da realeza. Por outro lado, ocorreu uma perseguição aos
profetas do javismo. A corte, a classe real, estava completamente paganizada.
Neste embalo real é que a figura de Elias, como profeta, entra em ação. Com
Baal como deus, a monarquia não se dedica precisamente a instaurar justiça no
país; antes concede poderes absolutos ao rei, ferindo o relacionamento social
em Israel. Esta troca de culto alterou os valores a tal ponto que, durante a seca,
o rei Acabe não se ocupa com a fome do povo. Os seus cavalos (poder) e burros
(riqueza) é que precisam de alimentação e proteção (l Rs 18,5). Baal não via
problema nisto. O deuteronomista, no entanto, percebia, nesta prática, uma
volta ao Egito.
Após estas rápidas escavações dentro do ciclo de Elias, estamos chegando mais
perto do texto indicado. Antes de descansar sob a mensagem de perícope, vale
ainda lembrar que, a partir de Elias, os profetas tomam o rumo da defesa da
aliança e da vida do povo, contra a prepotência e a idolatria do poder
monárquico exercido em Israel. Assim, o profeta do deuteronomista trava
diferentes lutas entrelaçadas, que marcarão o profetismo todo. Uma das
primeiras lutas desvendadas é o conflito em torno ao poder político, exercido de
forma absoluta. Seguindo, reforçando e dando legitimidade ao anterior, Elias
desmascara a suposta neutralidade do poder religioso, tão bem montado e
orquestrado em Israel. Poucas pessoas percebiam o serviço da religião em
camuflar a opressão econômica. E, por último, o profeta javista desce ao
fundamento do exercício cultual, desvendando a falsidade e a idolatria
acobertada no tocante ao poder sobre a vida. A luta pelo poder religioso e da
vida deixa brotar os elementos centrais da perícope indicada. Esta luta
aparentemente religiosa, sou aos ouvidos da monarquia como uma afronta
política. A interpretação teológica do mistério da seca, a morte consequente
dos profetas de Baal, mostram a falsidade e a idolatria reinante na monarquia.
Igualmente identificam que lave não está ligado a um sistema econômico
opressor, como este da dinastia de Omri. Baal, divindade com poderes sobre a
natureza e a fertilidade, fracassa. Javé não fracassa. Baal é mudo. Javé dialoga
com o seu profeta e age na natureza. Elias desvenda o falso poder absoluto do
reinado, alicerçado na fé baalista.
A luta desenrolada no palco da área cultual e do poder sobre a vida leva o
deuteronomista a perceber que o pecado da realeza atrai o povo por caminhos
que o levam a desrespeitar a lei de Deus. Como tal, a monarquia passa a ser um
entrave ao culto a Javé. Neste sentido, o profeta Elias entra em conflito com
todo o mundo. Precisa anunciar, de forma positiva, a vontade de Deus em
detrimento de qualquer outra vontade. Precisa denunciar, de forma negativa,
tudo aquilo que a ela se opor, exercitando, assim, o juízo e discernindo a
vontade de Deus na história humana. O confronto que Elias tem na área do
poder político-religioso e da vida levam-no a entrar em conflito consigo mesmo,
com os outros dirigentes, sábios, religiosos e até profetas, e até com Deus e
com o povo.
II — Comentários
O concurso cultual e, em especial, a morte dos 450 profetas de Baal chegam aos
ouvidos da rainha. Uma cena religiosa passa a ser usada como um trampolim
político. A conotação política resvala no pano de fundo da cena, que é a
economia exercitada no reinado. Cavalo abastecido e povo com fome. A ação de
Elias cheira a golpe do poder real constituído (v. 1). Jezabel não aceita as
conclusões e o veredito do concurso religioso e manda matar Elias (v.2). Com
medo, o profeta de Javé foge e parte em direção ao Sul (v. 3). Não permanece,
contudo, aí. Segue adiante, rumo ao deserto. Após longa caminhada pára e
pede a morte para si. Primeiro foge da morte, depois a chama para si (v. 4).
Cansado, faminto, com sede, desanimado com o povo, sem conforto divino,
entrega-se ao sono. Necessidade de descanso e de refúgio mostram a limitação
e a fraqueza dos servos de Deus (vv.5-8). A peregrinação denota uma volta às
origens do javismo (cf. Êx 3; Êx 19 e Dt 8) e um reencontro com Deus. Apesar de
sua caminhada em direção às origens da fé javista, a fraqueza humana do
profeta quase que impossibilita perceber a nova revelação de Deus (vv.10,12). O
profeta tenta enquadrar Deus nas revelações conhecidas (Êx 3), contudo Deus
não aparece. Deus foge do esquema conhecido (v.12) e aparece na brisa suave.
É preciso ter tempo para perceber a revelação de Deus, e para saber que a
conjuntura era outra daquela do tempo de Moisés. A monarquia conseguiu
complicar tanto a fé javista, que a imagem de Deus quase estava apagada.
Somente na suavidade da vida é que Deus fluía. Mais, a luta interior do profeta,
sua visão do problema e o fato de ser o único defensor vivo da causa (v. 10)
quase impediram o caminho da libertação. Ignorou a existência de muitos
adeptos de Javé (l Rs 17.3-15; 18.13; 19.18; 21.3; 2 Rs 2.3-5): sete mil ao todo.
Com esta inserção teológica na monarquia exercida na dinastia de Omri, o
deuteronomista mostra que urge buscar, na fonte da fé javista, o fortalecimento
e o reconhecimento real de Javé nesta época de transição e de crise profunda.
Até mesmo o profeta precisa ir ao deserto. Ou melhor dito, ele é obrigado,
forçado à reciclagem. Pois é necessário superar a concepção de Deus que o
povo teve no deserto. É necessário atualizar o passado da aliança e obter uma
nova visão de Deus. Visão esta que fizesse frente ao afastamento de Deus e a
aproximação dos ídolos, dentro de uma estabilidade económica momentânea,
propiciada pela monarquia, para a classe dominante e seus defensores. Para
redescobrir e fortalecer a imagem divina do javismo, nada melhor do que a
peregrinação ao e no deserto. A cidade cheira a idolatria e morte concentrada.
Enquanto que o deserto quer simbolizar a negação da civilização estática e
opressora. Na cidade apenas a opressão era dinâmica. Ainda mais que, nesta
civilização, impera o poder da manipulação religiosa que transforma Javé em
um ídolo, substituindo-o e, ao mesmo tempo, escondendo o rosto de Javé ao
povo. Mesmo sendo o deserto um dos locais prediletos da revelação de Javé,
conforme o deuteronomista, também não cabe ao profeta tentar aprisiona-lo
nas manifestações até ali conhecidas. Isto limita as fontes da revelação e da
libertação divina. Vale igualmente lembrar que o deserto é local de fortalecer e
clarear os propósitos de Deus, na vida do profeta e para o seu trabalho. Já a
atuação, a luta pública do profeta não ocorre no deserto, mas sim na cidade, na
civilização.
III - Meditação
Segundo a Bíblia, a manifestação de Deus através da história humana ocorre das
mais diferentes formas e maneiras. Ela está, em especial, ligada às
transformações globais da história humana. Em Cristo chegou ao ápice,
vencendo a morte e dando nova perspectiva ao mundo. Em cada época da
história universal a presença de Deus se fez de forma diferente. E cada
manifestação ou revelação inicia e determina uma nova perspectiva de vida, um
novo começo de Deus conosco, visando a busca, a aproximação da criatura com
seu Criador. Assim, Deus não observa e nem obedece fórmulas rijas e prontas
para se revelar. De acordo com a conjuntura global da vida, de acordo com o
sistema de governo e o regime, Deus se revela. Facilitando, desta forma, para
cada geração a descoberta, o reconhecimento e o discernimento de sua
revelação. Pois, em cada momento histórico a presença de Deus é venerada ou
afastada de forma inconstante, atendendo principalmente a interesses alheios.
Aí entra a ação da profecia. Em Israel, no tempo da monarquia, o país coxeava
entre dois pensamentos, Javé e Baal. Elias anunciou, discerniu e profetizou a
vontade divina. Lutou com a monarquia, com os profetas de Baal e com o povo
desorientado. Animou o povo a parar de coxear entre dois pensamentos. Ficou
só. Propôs concursos, desafios e milagres aos seus opositores, fiéis e
autoridades.
Cada milagre, cada desafio e concurso propiciava uma visão, uma leitura da
situação em que o país, o povo de Deus se encontrava. Diante da perseguição
ao javismo, Elias incentivava e mostrava ao povo a situação de pecado em que
viviam sob o reinado, através de diferentes métodos pedagógicos (holocausto-
seca-ressurreição-distribuição da comida e adoração).
A limitação da força, da vida do profeta, a força do pecado crescente na
monarquia, a desorientação do povo em relação à fé javista, a perseguição e o
não mais perceber da revelação de Deus resultam em peregrinação. Um
rebuscar da orientação na fé em Javé. Esta busca e peregrinação é
determinante para o olhar, enxergar e atuar futuro do profeta. Domingo Oculi
significa ir às origens e buscar, olhar o Deus que se manifesta hoje. Elias
peregrinou, foi ao deserto, entrou na caverna, foi alimentado e ouviu Deus. Não
ficou na caverna do individualismo. Saindo, pôs-se à entrada da caverna e
recebeu sua nova missão. Assim o deuteronomista nos leva a refletir acerca da
revelação, manifestação de Deus no tempo da crise brasileira e sob a nova
Constituição. O profeta esperou a revelação de Deus no vento forte.no
terremoto e num fogo forte. Contudo Deus não apareceu. Surgiu na brisa suave.
IV — Dicas para a prédica
1. Nível geral: Conhecer a realidade que nos cerca e identificar a quantas anda a
paganização do atual sistema brasileiro na direção da idolatria do capital, em
detrimento do ser humano, que é imagem e figura de Deus. (O reinado tinha
400 mais 450 profetas a seu serviço.) Como ver Deus na atual conjuntura
brasileira, regida pela nova Constituição? Quais os concursos, milagres e
desafios que nós lançamos aos profetas e seguidores do capital?
2. Nível comunitário: Nós, como comunidade, também coxeamos entre dois
pensamentos: ser cristão e apoiar o sistema opressivo (Deus e dinheiro-poder).
Deus nos convida para parar, pensar, ouvir e ver sua revelação na atualidade e
agir. Agir no sentido de planejar a vida da comunidade, sua missão.
3. Nível de liderança: Nós, como obreiros(as) e presbíteros(as), que pistas e
critérios teológicos oferecemos à comunidade com nossos concursos, milagres,
ofícios e outras realizações a nível de comunidade? Precisamos, com nossas
atividades, encaminhar o revelar de Deus e facilitar o ver a Deus por parte dos
fiéis. Hoje é dia de olhar e ver a Deus. Para isto é preciso peregrinar e parar para
clarear a visão de Deus, a compreensão da sociedade e a ação que Deus propõe
para a salvação da humanidade.
4. Que tal entender o templo como sendo o deserto que nos prepara para a
revelação de Deus? A ação acontecerá fora. Saindo na porta do templo estamos
a ver Deus.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nesta época que antecede Pentecostes,
lembramos e olhamos a vida de teu profeta de forma atualizada. Isto nos faz
reconhecer que, como Igreja, achamos que somos os únicos comprometidos
com a tua causa. Com isto escondemos tua face da vida de tuas criaturas.
Vivemos cansados, com medo, abatidos e cheios de atividades. Como Igreja não
paramos para abastecer nosso compromisso de lutar pela justiça na fonte que é
Cristo. Seguimos orientações, sacrifícios, penitências e outras práticas que
negam a purificação batismal. Corremos e lutamos sem mexer com uma série
de acontecimentos que dizem respeito à vida dos marginalizados, doentes,
velhos e crianças. Como Igreja não discernimos os fatos históricos, os
acontecimentos locais à luz da tua vontade. Perdoa-nos quando ajudamos a
esconder e camuflar a presença do pecado na economia, na política, no social e
na religião. Perdoa-nos quando o discernimento entre falsos e verdadeiros
profetas é acobertado pelos cristãos no atual regime. Perdoa-nos quando
achamos que somos tão puros e perfeitos que não mais precisamos de tua
revelação. Em nossa fraqueza, anima-nos a clamar por piedade, dizendo: Tem
piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, eterno e santo Deus. Preserva a tua Igreja e todos
os teus seguidores da idolatria e dos falsos profetas. Vivifica em nós o teu
Verbo, mediante a ação de teu Santo Espírito. Conduze nosso viver ao culto teu,
nesta época que antecede Pentecostes. Concede-nos olhos para visualizarmos a
lavoura da tua sementeira. E que a semente depositada em nossos corações
possa ser da tua cruz e ressurreição. Amém!
3. Oração final: Senhor e Deus, teu mundo está repleto de falsos profetas.
Repleto de guias que desviam o teu povo, enchendo-lhe os olhos com imagens
que não falam de tua salvação, com sacrifícios e promessas que escondem tua
face da vida do povo. Senhor, em humildade te pedimos: prepara-nos para
sermos teus profetas dentro desta situação de morte que nos cerca; envia-nos e
permite que saiamos daqui como tuas testemunhas; anima-nos a agirmos em
favor dos que sofrem, dos marginalizados, dos alcoólatras, dos menores e
demais brasileiros sem casa, sem terra e sem saúde. Concede aos fiéis aqui
reunidos a coragem de peregrinar até a tua presença, para ali renovar o
compromisso assumido no Batismo e na Confirmação. Aos que estão com medo
de serem profeta convida para presenciar tua revelação também no dia de hoje,
na vida dos que sofrem. Não nos deixes cair no abismo da omissão, mas renova
e purifica nosso agir para honra e glória tua. Amém!
VI — Bibliografia
- HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo, 1975.
- VELOSO DA SILVA, M. A. Profetas: ontem e hoje. In: Estudos Bíblicos.
Petrópolis, 1984 V. 4.
- RIVERA, F. L. Os Profetas e o conflito. In: Subsídios da Documentação. Centro
de Estudos Bíblicos. (S. 1.) 1987.
- MESTERS, C. O Profeta Elias. In: Centro de Estudos Bíblicos. (S. 1.) 1987.

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