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Quase-evento: esboço de uma ontologia da experiência literária1


(ou: o que é fazer um programa?)
Alexandre Nodari (UFPR/species)

For poetry makes nothing happen: it survives


In the valley of its making where executives
Would never want to tamper, flows on south
From ranches of isolation and the busy griefs,
Raw towns that we believe and die in; it survives,
A way of happening, a mouth.

Pois a poesia faz nada acontecer; ela sobrevive


No vale do seu fazer-se, onde executivos
Jamais gostariam de se meter, corre para o sul
Dos ranchos de isolamento e das mágoas agitadas
Cidades rudes em que acreditamos e morremos; ela sobrevive,
Um jeito do acontecimento, uma boca.
(W.H. Auden, “In memory of W. B. Yeats”)

1. Cinquenta anos atrás, concomitantemente à difusão do conceito e da prática da


performance artística, Barbara Smith (1968, 1971) chamava a atenção para um fato que,
talvez devido à sua obviedade, nunca foi plenamente explorado em toda sua
profundidade, a saber, que o que é fictício em um texto literário não são (apenas) o
narrador, os personagens, os cenários, os diálogos, em suma, os enunciados, mas a

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Texto (não-revisado e sem todas as referências) a ser apresentado no Seminário Performar a literatura.
Pesquisas para uma redefinição do literário (UFPR; 8 e 9 de dezembro, 2016). Um dos motores desse texto
foi certa divergência produzida no Simpósio homônimo que organizamos no XV Encontro da ABRALIC
(Rio de Janeiro, 2016), quando, nos debates, utilizei a expressão “quase-evento” para caracterizar a
experiência literária. Creio que a base da polêmica tenha sido certa confusão (possivelmente na minha
própria exposição) quanto ao que eu estava me referindo: os eventos narrados num texto literário (e o
próprio evento de sua narração – o que vale também para o que é dito e o dizer de um poema) não são
eventos situados historicamente, embora a leitura (que chamaremos também de performance) dos eventos
narrados e de sua narração sempre constitua um evento historicamente situado. Minha intenção era (e é)
entender a relação entre ambos, entre evento histórico e evento fictício, ou seja, o que constitui
ontologicamente uma performance, a experiência literária, sem ceder ao preconceito em favor da presença
(análogo ao preconceito em favor do atual de que falava Meinong), que a meu ver nos impede de ver a sua
especificidade. Para evitar ulteriores confusões, cabe salientar que no transcorrer do texto, utilizaremos
alternadamente, como sinônimos, os termos “acontecimento” e “evento” (e expressões derivadas, como
“quase-acontecimento” e “quase-evento”). O motivo, consciente, é a tentativa de cruzar a terminologia
adotada por Eduardo Viveiros de Castro em “A morte como quase-acontecimento” e a de Barbara Smith,
de quem tomo a distinção acima entre eventos historicamente determinados e historicamente
indeterminados (distinção que, não custa salientar, diz respeito não aos fatos em si, mas à relação que se
estabelece com eles – o evento ou acontecimento pode ser entendido como o efeito que um fato “objetivo”
ou “externo” produz sobre o sujeito e vice-versa, ou seja, uma relação – como o conhecido episódio da
transmissão radiofônica de A guerra dos mundos, de Orson Welles, deixa patente). Por fim, agradeço aos
meus alunos de graduação e pós-graduação do segundo semestre de 2016, com os quais formulei e debati
algumas das hipóteses e argumentos aqui esboçados, bem como a Lucius Provase pela interlocução profícua
e profunda.
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própria enunciação: “Tudo que o poeta ‘diz’ pode ser verdadeiro, mas o seu dizê-lo não
é” (Smith, 1968:15).2 Ao contrário daquilo que Smith chama de “enunciação natural”, a
enunciação fictícia (ou mimética), não constitui um evento histórico, ou seja, jamais
aconteceu enquanto uma ocorrência singular situada em um contexto espaço-temporal
determinado – o que a impede de ser inserida em uma cadeia unívoca de sentido.
“Historicamente indeterminada”, ou mesmo “a-histórica”, a enunciação literária se
assemelharia ao roteiro de uma peça ou a uma partitura musical (ou ao programa de uma
performance, poderíamos acrescentar): fora da história, ela demandaria, nas palavras de
Barbara Smith (1971:273), ser performada: “Um poema nunca é dito, nem mesmo pelo
próprio poeta. Ele é sempre re-citado”. Brás Cubas nunca enunciou suas Memórias
póstumas: estas constituem uma enunciação fictícia que demanda ser, a cada vez,
encenada pelos leitores, que demanda o que sugiro chamar de uma encenunciação. É por
jamais ter ocorrido de uma vez por todas que uma enunciação fictícia não cessa de
recorrer, de ocorrer a cada vez que é performada pela leitura: é por não ter acontecido em
nenhum espaço e em nenhum tempo que ela não cessa de acontecer em qualquer espaço
e em qualquer tempo – a suposta universalidade e eternidade dos textos literários deriva
disso.3 Mas o que acontece quando o não-acontecido acontece? O que acontece quando o

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Daí a equivocidade referencial inerente ao que convencionamos chamar de linguagem literária,
equivocidade tão bem descrita pelo ghost-writer de Parmênides no romance homônimo de César Aira:
“Escrevendo versos desde a infância, descobrira que não queriam dizer nada; e vivendo descobrira que a
linguagem servia para dizer coisas. (...) A poesia, ao não querer dizer nada com o instrumento que servia
para dizer coisas, dizia algo, que era ao mesmo tempo algo e nada.”
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Suposta porque não se trata de universalidade e de eternidade: as enunciações literárias não se situam em
todo espaço e em todo tempo, mas em nenhum espaço e em nenhum tempo – e, por isso, podem ser situadas
em qualquer espaço e qualquer tempo. Ou melhor, talvez se devesse dizer, em quase qualquer tempo. Pois
há pelo menos uma limitação temporal óbvia: um poema, por exemplo, não pode ser performado antes de
ser composto. É preciso primeiro o movimento de deslocamento contextual que caracteriza a experiência
artística (os “vocábulos peregrinos” de Aristóteles, o estranhamento Chklovsky, o mictório de Duchamp),
uma de-contextualização, para marcar um sentido forte, ontológico, do procedimento de
descontextualização, uma saída do espaço-tempo a partir de certo espaço-tempo, uma tomada de distância
em relação a ele. Esse movimento, sublinhe-se, não é necessariamente produzido pela figura do artista-
criador. Pode derivar do outro pólo, seus receptores, espectadores, leitores, mesmo (e muitas vezes por isso)
distantes no espaço-tempo daquele: é o que acontece com muitos textos que hoje tomamos como literários,
poéticos, fictícios, etc., mas que não eram concebidos como tais em seu contexto de origem. O essencial é
a experiência artística, não de mera descontextualização (uma distância espaço-temporal), frisemos, mas
de de-contextualizaçao, em que um deslocamento espaço-temporal se faz. Para além desses dois casos
extremos, podemos fazer uma generalização (e mitigar nossa anuência, à primeira vista total, com B.
Smith), afirmando que toda a-historicidade possui sua historicidade (motivo pelo qual, a seguir, iremos
preferir falar em estoricidade ou contra-historicidade). Isso em dois sentidos: 1) primeiro: as seguidas
performances, ao menos as públicas, de um texto (crítica, tradução, adaptação, etc.) vão mais ou menos (e
não sem conflitos) “aderindo” à ficção, ou seja, as inúmeras performances e contextos vão perfazendo o
texto, passam a ser fios que o compõem ou que o enovelam; 2) segundo: baseando-nos na teoria da
ressonância de Dimock (1997), segundo a qual o acúmulo de ruídos derivados das inúmeras leituras de um
texto pode nos fazer ouvir melhor, ler melhor, podemos dizer que a a-historicidade de um texto (o caráter
fictício da sua enunciação) muitas vezes é aumentada, potencializada ao longo da história da sua recepção
(mesmo involuntariamente), daí a sua ontologia variável ou instável, sobre a qual Lucius Provase tem se
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nem-aqui nem-agora a-histórico é performado aqui e agora, na leitura? O que acontece


quando a enunciação jamais dita é enunciada, ou seja, quando se dá a enunciação do não-
dito?

2. Talvez possamos, inspirando-nos em uma formulação de Eduardo Viveiros de Castro,


caracterizar a performance de uma enunciação literária como um quase-evento.4 Quase-

debruçado. Nesse sentido, se podemos concordar com a tese de Kate Hamburger (2013: 96, 115) de que as
ficções se passam em uma espécie de presente sem passado e sem futuro, isto é, estão sempre acontecendo
a cada vez que são lidas ou contadas, pois um texto ficcional “não narra sobre pessoas e coisas, mas narra
as pessoas e coisas (...), as produz pela narração”, a caracterização dessa temporalidade como um “presente
estacionário” parece ignorar que esse presente fora de toda linha temporal está também sempre mudando,
variando toda vez que é performado em determinada linha temporal – por isso, e por razões que serão
expostas a seguir, preferimos falar em temporalidade originária. Como já deve ter ficado evidente,
interessa aqui não uma visão dicotômica ficção e história, mas compreender justamente os seus encontros,
o que acontece quando elas entram em contato, a experiência que daí deriva.
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Como pretendo demonstrar em outra oportunidade, não se trata apenas de um empréstimo terminológico,
mas de uma afinidade mais estrutural entre a teoria do perspectivismo ameríndio e o conceito de ficção que
venho tentando construir. A proximidade se deixa ler nas entrelinhas da própria conferência de Viveiros de
Castro, da qual tomo emprestada a expressão (“A morte como quase-acontecimento”), quando ele afirma
que a “quasidade é o modo de existência por excelência da morte, a narrativa: a morte é algo sobre o que
você fala”. Partindo do mote ameríndio do encontro sobrenatural na floresta (por exemplo, o encontro de
um índio com uma onça que fala, que lhe dirige a palavra), em que duas perspectivas-de-um-sujeito (ou
seja, dois mundos) se sobrepõem, EVC explora as três possibilidades advindas de um tal contato: 1)
responder ao ser sobrenatural e ser capturado para seu mundo; 2) voltar para casa, mas manter-se em
silêncio, em choque, o que geralmente termina com a morte se não houver a agência xamânica de cura (essa
segunda possibilidade é uma variante da primeira, pois os seres sobrenaturais, onças que falam com
humanos por exemplo, soem ser espíritos de mortos atrás de seus parentes ainda vivos); 3) voltar para casa
e narrar para seus parentes o acontecido. Ou seja, um encontro sobrenatural na floresta é uma tentativa de
reconfiguração, de uma nova plasmação da realidade, de remoldá-la (e esse é o sentido originário de fingere:
dar forma, moldar, plasmar): a onça que fala está realizando uma finta ontológica ou perspectiva. O perigo
de levar o drible consiste em perder a própria subjetividade: passar completamente pela reconfiguração da
realidade é sofrer uma reconfiguração completa da própria natureza. Portanto, o sujeito que tem um
encontro sobrenatural deve torná-lo experienciável por meio da narrativa, ou seja, convertê-lo em uma
experiência, em um saber de quem passou por uma prova, um teste, um perigo, mas também um saber que
se arranca da morte (ex-perire). Mas porque a narrativa é essencial à sobrevivência do sujeito? Para além
de qualquer visada psicologizante, poderíamos arriscar dizer que ela permite vivenciar o acontecimento
tomando a distância mínima necessária em relação a ele, permite vê-lo e experimentá-lo ao mesmo tempo
de dentro e de fora. A disjunção temporal da narrativa, a duplicação entre presente da narração e o passado
da narrativa, transparece também em uma disjunção subjetiva, em que o sujeito se duplica em um pronome
reto (eu) que narra e um pronome oblíquo (mim) que é personagem ou objeto da narração. Ou seja, a
narrativa reduplica a estrutura do quase-acontecimento, mas invertendo-o: à visão de uma onça que ameaça
definir a subjetividade pela fala corresponde um sujeito que narra – fala – o que não deveria ter visto. O
sujeito que se depara com uma onça que fala deve ser capaz de abduzir desse encontro uma agência, ou
seja, tomá-lo como um artifício, e, depois disso, contra-inventá-lo por meio de uma narrativa em que o
artífice, quem ocupa a posição subjetiva, é o narrador. A quase-morte é uma forma de experimentar
obliquamente a morte: a narração dessa experiência é uma forma de responder obliquamente ao chamado
da onça, é uma forma de dizer não à morte. Se a narrativa é o modo de existência por excelência da
quasidade é porque ela tece a distância mínima e imperceptível com o acontecimento, sendo capaz, por sua
estrutura, de tornar experienciável e comunicável a consistência existencial da transformação da realidade,
da morte: é a narrativa que garante que o “quase acontecer algo [... seja] um modo de acontecer outra coisa
que aquele algo” – uma transformação em experiência da transformação da realidade, uma reconfiguração
da reconfiguração da natureza. E é aqui que o tema do encontro sobrenatural com a floresta pode permitir
uma reavaliação do estatuto ontológico das ficções, sua consistência existencial – o que deixarei, porém,
para desenvolver em outra ocasião.
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em dois sentidos, conexos entre si: 1) no sentido de uma proximidade ontológica que,
porém, importa uma distância ainda que infinitesimal, pois a performance jamais realiza
plenamente a enunciação fictícia, jamais a converte em um evento histórico determinado
e definitivo; e 2) também no sentido etimológico, de como se, de encenação, de algo que
está ao modo de outro: “Quando lemos ou ouvimos um poema, somos confrontados com
a performance de um ato de fala, não com o ato em si”, diz Barbara Smith (1968:16); o
“quase acontecer algo [... é] um modo de acontecer outra coisa que aquele algo”, diz
Viveiros de Castro. Agora, o que é essa outra coisa, ou coisa outra, o que diferencia a
performance de um ato do próprio ato? Dificilmente conseguiríamos achar uma distinção
formal, pois a diferença consiste na produção de uma diferença do evento em relação a si
mesmo, uma tomada de distância ontológica, que sugerimos chamar de de-
contextualização, advinda seja do polo criador seja do polo receptor, em geral, na
intersecção de ambos, isto é, do modo de experimentar o evento. Essa experiência
consiste em fazer o evento dobrar-se sobre si mesmo, produzir uma dobra no
acontecimento, de modo que ele não coincide plenamente consigo mesmo, pois, como
afirma Jankélévitch (1995:250-1), o filósofo que mais se deteve sobre o “quase”, esse não
designa um misto de ser ou não ser, “não é um terceiro princípio, mas ele próprio é a
suspensão do princípio e de sua consequência, o princípio da disjunção”. 5
Por isso,
poderíamos desfazer a dicotomia da frase acima citada de Barbara Smith, reescrevendo-
a do seguinte modo: Quando lemos ou ouvimos um poema, somos confrontados com a
performance de um ato de fala, que, ao mesmo tempo, é e não é o ato de fala em si. O
quase-evento nomeia esse evento que não coincide consigo mesmo, esse encontro oblíquo
que é também um desencontro, quando algo acontece e não acontece ao mesmo tempo –
em suma, uma distorção da eventualidade, um evento distorcido, pra usar a terminologia
do Lucius Provase. Sempre que um evento (um ato, um gesto, uma enunciação, uma cena)
é experimentado como não coincidindo consigo mesmo, com seu contexto, com seu
sentido (seja por excesso seja por falta), e que essa não-coincidência se torna a própria
matéria e a própria forma do evento, isto é, o (re)configure6, estamos diante de um quase-
evento, de uma experiência que na nossa cultura chamamos de artística – o que

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É preciso salientar que Jankélévitch (ibid.) equaciona o que chama de “quase-nada” (termo essencial da
busca narrada em A paixão segundo G.H.) com o acontecimento, tomando como referência o “metafísico-
poeta (...) Whitehead”: “o acontecimento é algo que não é nada, mas que acontece. Ou melhor, seu modo
de ser é o advir: ‘Advenit’, diz-se de alguma coisa que nunca é coisa, e que, contundo, não é nada visto que
advém ou sobrevém, e que é portanto intermediário entre ser e não-ser”.
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Ou seja, o que estamos descrevendo não é uma contradição performativa, mas, para retomar o tema de
uma das mesas do nosso Seminário, uma contradicção performada.
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transparece na expressão coloquial “Isso é arte”, que pode ser usada tanto para um drible
de Garrincha quanto para o Grande sertão: veredas, passando bagunça de uma criança
ou o monólogo de um “louco”.7 A de-contextualização permite colocar em cena outra
cena (ou, melhor, uma cena outra, o outro da cena): a do acontecer do próprio
acontecimento, a da sua feitura – pois a poesia, afirma Jankélévitch (1995:260), é a “arte
de apreender ou captar a flagrância oportuna do (...) fazendo-se em vias de se fazer”
(260).8 Assim, uma performer que se corta está, no gesto mesmo de se cortar, criando

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1) Poder-se-ia também caracterizar essa experiência como “êxtase”, ou chamá-la de mística ou
sobrenatural, o que, para nosso argumento, dá no mesmo: o lugar e a expressão que atribuímos a essa
experiência em nossa cultura recebe o nome de arte. 2) Para melhor marcar a distinção entre evento e quase-
evento, poderíamos dizer que, enquanto o paradigma daquele é a morte, o impossível (o Real lacaniano), o
que faz naufragar todo o regime de possibilidades, o paradigma desse é o nascimento, a transformação, ou
a sobre-vida (o “inreal” clariceano), e que poderíamos chamar, utilizando o neologismo de um filho de
Clarice Lispector, de “ex-possível”, um fora (ex-) do regime de possibilidades, que se dá a partir (ex-) de
possibilidades dadas (ou seja, uma possibilidade-limite que transforma o próprio regime de possibilidades).
Retomando o exemplo do drible de Garrincha: não se trata apenas de mais uma jogada possível, pois, se
esse possível fosse atualizado por todos os jogadores em todos os jogos de futebol, não teríamos mais jogos
de futebol, mas uma outra coisa que ainda não sabemos o que é, com outro conjunto e regime de possíveis,
cujo sentido desconhecemos, que está, justamente, fora da história e que vemos apenas como uma promessa
– de felicidade. O mesmo se dá com a literatura e a estrutura de enunciação, que curta-circuita a relação
entre possibilidade (ou virtualidade) e atualidade (ou efetividade). Pois, se Barbara Smith (1968:16)
argumenta (a partir de Valery, que afirma que falar do “poema em si (...) É falar de uma potencialidade”)
que o poema constitui “apenas uma enunciação possível, o que o poeta pode dizer”, trata-se de uma
possibilidade sui generis, pois nenhuma atualização (e nem mesmo a soma de todas as suas atualizações) a
esgota(m) – para não dizer que um romance escrito (como o roteiro de uma peça, o programa de uma
performance) possui alguma atualidade. Além disso, a questão se complica mais se lembrarmos que, se
para Benveniste (1995:278), “Cada instância de emprego de um nome refere-se a uma noção constante e
‘objetiva’, apta a permanecer virtual ou a atualizar-se num objeto singular, e que permanece sempre idêntica
na representação que desperta”, o mesmo não se passa com eu, os demais pronomes pessoais e os shifters
ou dêiticos, que não possuem existência virtual (“as instâncias de emprego de eu não constituem uma classe
de referência, uma vez que não há ‘objeto’ definível como eu ao qual possam remeter identicamente essas
instâncias”) apenas instâncias atuais. Como relacionar, assim, uma possibilidade que jamais se atualiza
plenamente, com a ideia de que o “eu” é sempre atual, sendo que a literatura se caracteriza por ser uma
enunciação fictícia, i.e., uma enunciação (um dizer eu) possível? A literatura parece, desse modo, constituir
uma ponto-limite da enunciação que permite repensá-la, e cuja compreensão demanda reavaliar as nossas
categorias de possibilidade e atualidade (lembremos do contorcionismo de Aristóteles, já nas origens da
reflexão ocidental da arte, para tentar fazer caber a poesia na metafísica da potência que nos legou: o
“impossível crível”, o “impossível que persuade”, etc.), para além de sua substituição pelas de virtual e
atual, que carece dos mesmos problemas, pois não estamos diante de movimentos de atualização ou
virtualização puros (e caracterizar a arte meramente como virtualidade, nem-aqui nem-agora, é, como
estamos argumentando, tomar só metade da laranja, ignorando o evento da performance, a outra metade,
que forma o quase-evento que caracteriza a experiência literária).
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“Seria preciso” diz Jankélévitch (1995:256) distinguir agora as formas variadas que podem assumir essas
fraturas na vida do homem: o fit, o fiat, o facere – cuja reunião forma fieri, isto é, devir; pois afinal fieri
quer dizer, ao mesmo tempo, devir e ‘fazer-se’: o homem que se torna se faz e, por lampejos de tempos em
tempos, ele faz; na maior parte do tempo ele se faz e mesmo se deixa fazer, sendo o devir, sobretudo, fieri
no passivo, ser feito pelos acontecimentos e modelado pelos outros. Ser feito o tempo todo, fazer-se de
tempos em tempos e fazer uma ou duas vezes na vida: essa é nossa parte”. Aqui, valeria postular uma
hipótese “psico-histórica” (pra usar uma expressão de Fabián Ludueña e Isaac Asimov – agradeço a
Fernando Bastos Neto, por me ter trazido ao conhecimento o uso que o último faz do termo) sobre o motivo
de, na antiguidade grega, uma parte da poiesis (do fazer, da produção), a poesia propriamente dita, ter
recebido metonimicamente o nome do conjunto, ainda mais tendo em vista o caráter pouco produtivo da
poesia. (Aliás, o mesmo fenômeno se deu com o termo latino ars nas línguas modernas: originalmente
indicando “técnica”, passou a designar um tipo específico apenas dentre as muitas técnicas, justamente
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uma distância (ontológica) em relação a ele, de-contextualizando o gesto no próprio ato


de sua realização: com sua performance, coloca em questão o que é um corte, o que é um
corpo, o que é a violência, o que é um gesto, o que é uma performance, e, obviamente, o

aquela que parece não ter uma finalidade definida como todas as demais, a não ser um dobrar-se sobre a
própria técnica: a arte, justamente). Lembremos uma das definições mais conhecidas de poiesis, dada por
Diotima, antiga mestra de Sócrates: “Toda criação ou passagem do não-ser ao ser [ou do inexistente ao
existente] é poesia [poiesis]; de modo que todas as obras/produtos [ergasiais] das artes/técnicas [technais]
são tipos de poesia [poiesis], e seus demiurgos [fazedores, artesãos] são todos poetas” (Sym. 205b). A
poiesis indicava um tipo de atividade específica, a produção, o fazer, distinto da práxis: enquanto a
finalidade (telos) da práxis se confundia com a própria atividade (por exemplo, comer), a poiesis tinha como
finalidade um produto (ergon) distinto da própria atividade (ex.: a construção de uma casa, em que a casa
construída, enquanto ergon, obra, difere da construção em si). Mas qual seria a obra da poesia? Não
necessariamente a ergon de uma poeisis teria que ser algum objeto (a obra do médico, nesse sentido, é a
saúde do paciente). Mesmo assim, como definir a obra da poesia? A escritura, o texto, a leitura? A escritura
ou elaboração de um texto não coincide totalmente com a obra, com o produto, porque há um hiato entre a
concepção e a feitura, e, além disso, falta ainda a leitura, que, se atualiza o texto, a poesia, não o esgota. E
o texto, que está entre os dois, pode ser uma obra, mas sem a leitura, a apresentação, não passa de um
amontoado de letras (isso para não falar da literatura oral). Arriscando certo anacronismo, poderíamos dizer
que a poesia, aos olhos dos gregos, consistia, antes de tudo, em certa experiência, em uma performance
(especialmente teatral). Mas além disso, e agora atentando (ainda mais grosseiramente) contra a filologia,
ousaríamos acrescentar que a linguagem literária produz (dá existência a) “coisas diante dos olhos” (pro
ommaton poiein, diz Aristóteles em uma passagem da Retórica sobre as metáforas que indicam vivacidade)
porque o a(u)tor que as declama (escreve) está com uma máscara (prosopon) justamente também “diante
dos olhos pra cobrir o rosto (para tou pros tous opas tithesthai)”, para que não exista enquanto pessoa. Para
ver o inexistente (um personagem), é preciso deixar de ver o existente (um a(u)tor), para que um inexistente
passe à existência, seja transportado a ela, é preciso que algo de existente passe por sua vez à inexistência,
seja transportado a ela: a desrealização do real e a realização do imaginário como Wolfgang Iser (1996)
define o fictício. Ou seja, a poesia talvez seja o paradigma da produção, do fazer, justamente porque ela
não produz uma obra definida, nunca se completa, mas faz o próprio fazer, a própria passagem entre
inexistente e existente: a sua “obra” é o caminho em si, o caminhar, ela o torna palpável, experienciável,
enquanto via de mão dupla, da inexistência à existência e da existência à inexistência. O fazer poético não
produz uma coisa independente, em absoluto (não-relativa), como uma casa, mas tampouco se exaure na
sua própria atividade: produz diante dos olhos do leitor, do ouvinte, a cada leitura, a cada performance, de
modo que ela está incessantemente produzindo, criando o inexistente e descriando o existente – e por não
ter um fim (uma finalidade e um final), ela é infinita em sua incessante finitude. A arte torna experienciável
não o nascimento de algo, mas o nascimento de algo, o vir-a-ser, o devir, a transformação de algo a partir
de outro. Por isso, retomando nossa epígrafe, Por isso é que a literatura não faz nada acontecer, nada se
realizar, mas sobre-vive – não por perdurar na forma de obras, mas por se situar (e nos situar a cada vez
que a performamos) no vale do fazer, correndo até desembocar no estuário (a nossa boca) como um modo
do acontecimento (um quase-acontecimento). Nesse sentido, o fazer poético não seria o paradigma do fazer
próprio ao humano moderno, da produção soberana de objetos por parte de um sujeito. Antes, estando muito
mais próxima da máxima de que na natureza nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma: não uma
creatio ex nihilo, criação a partir do nada, mas creatio ex possibile, criação que parte do possível, mas para
fora do possível. Assim, se a arte, o artifício, é algo como uma volta da natureza, a poesia, entendida como
arte verbal, dobra-se sobre o fazer ao dobrar-se sobre o dizer: “Poesia é fazer tudo falar – e depor, em
retorno, todo falar nas coisas” (Nancy, 2016:151). Falar é fazer, dizer é ter agência – e em literatura, tudo
fala, de extraterrestres à disposição de móveis numa sala. Nesse sentido, a figura de animação do inanimado,
de subjetivação do objetivo, conhecida como prosopopeia, é o modus operandi por excelência da
experiência literária (seja do autor, seja do leitor), na medida em que implica uma via de mão dupla, ou
seja, uma transformação ou sobreposição de dois sujeitos ou falas sobre uma voz (ou de duas vozes sobre
um corpo): “A voz”, afirma Paul de Man (2012:8) numa passagem sobre a autobiografia, mas que talvez
seja válido para a voz de todo eu literário, “assume uma boca, um olho e finalmente uma face, uma cadeia
que é manifesta na etimologia do nome do tropo, prosopon poiein, para conferir uma máscara ou uma face
(prosopon)” A literatura é, a seu modo, uma forma de animismo – como já sabia Aristóteles, ao insistir que
as metáforas eram capazes de tornar o inanimado (apsyche) em animado (eupsyche) –, ou melhor, de
transplante anímico.
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que é arte (ou seja, qual a relação entre o programa e sua realização, o que é fazer). O
mesmo se passa com a leitura de um texto literário, com a performance de uma
enunciação fictícia: a enunciação desta por meio dos leitores – a encenunciação – coloca
em cena, em questão, o que é uma enunciação, como se dá, quem e quantos falam, qual a
relação entre palavras e coisas, entre o dizer e o dito – e isso, no próprio gesto da
enunciação.
O quase-evento constitui, assim, uma posição espaço-temporal oblíqua, em que o
nem-aqui nem-agora (o fora do espaço-tempo) ficcional (ou o programa da performance
no infinitivo) se encontra, sem se confundir, com o aqui e agora do ato da leitura (a
performance propriamente dita). Nesse sentido, o que se torna presente na performance
de uma ficção não é apenas algo que está fora da história (do contexto) e que de repente
a adentraria, mas a própria exterioridade à história: o que se torna presente é a
extemporaneidade, um deslocamento, uma diferença em relação à presença plena de um
ato repleto de sentido, totalmente configurado historicamente. É essa diferença que marca
a diferença, que (re-)configura o evento em quase-evento. Trata-se, assim, de um
deslocamento ontológico em relação ao próprio presente, a presença do extemporâneo,
que jamais pode estar plenamente presente – pois a sua presença consiste naquele
deslocamento. Um exemplo talvez nos ajude a entender melhor. Os mitos, como se sabe,
se situam no começo dos tempos, explicam a origem do mundo, das coisas, e do próprio
tempo, o que transparece nos marcadores temporais míticos: no princípio, no começo,
antigamente. Todavia, apesar disso, os mitos – tanto os nossos, judaico-cristãos ou greco-
romanos, quanto os não ocidentais – não cessam de ser contados no presente não apenas
para explicar a gênese imemorial, mas para, como uma espécie de dobra espaço-temporal,
falar diretamente do momento atual e mesmo intervir nele (para o bem ou para o mal,
para além do bem e do mal). Um lugar comum consiste em encarar esse procedimento
afirmando que os mitos são parábolas, com o que podemos concordar, desde que não
tomemos as parábolas em sentido parabólico e sim como autênticas parábolas espaço-
temporais, em que o começo dos tempos (e do tempo) se encontra com o aqui-e-agora.
Os marcadores temporais míticos servem, assim, para produzir uma indeterminação
histórica, uma contra-determinação histórica, para de-contextualizar, colocar o mundo
atual entre parênteses (para falar de outra coisa, e fazer a coisa outra – eis o procedimento
parabólico), apenas para melhor incidir nele, co-incidir com ele. Ou, para dizê-lo de outra
maneira, os marcadores temporais míticos servem para marcar que o que está sendo dito
e o seu dizer não aconteceram de uma vez por todas, mas estão acontecendo agora, a cada
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vez que os mitos são performados. Os mitos são in-atuais, jamais foram atuais, mas estão
in-scritos em toda atualidade (cabendo ao gesto de contar o seu ex-crever, isto é, mostrar
a relação do atual com algo que difere de si). Por isso é que os mitos não se situam (só)
em um tempo original, mas em uma temporalidade originária, que não só é o começo dos
tempos, como também não cessa de originar o presente – de fora dele: a temporalidade
originária é aquela a partir da qual o presente está sempre se (re)fazendo, saindo fora dos
seus eixos. O mesmo tanto, creio, se poderia dizer das ficções literárias, não só porque
elas, como parábolas, incidem no presente dando a ver a sua sombra, a sua diferença
consigo mesmo (pensemos no uso – diagnóstico ou prognóstico – que fazemos dos
adjetivos kafkiano ou quixotesco, por exemplo), mas porque eles também se situam nessa
temporalidade originária que não cessa de se encontrar com o nosso tempo a cada vez que
são performadas. De modo semelhante aos marcadores temporais míticos, o “Era uma
vez” dos contos de fada constitui, assim, um performativo: não se refere a uma vez
passada, mas produz essa vez a cada vez que é enunciada. O tal vez é o dêitico temporal
da ficção: tanto aquela vez (a efetividade fática criada pelo pretérito na ficção) quanto a
instauração de uma dupla dúvida: em relação à plenitude do presente e da sua presença,
pois que chocado com uma sombra originária, e também em relação à distância daquilo
que está fora do tempo e não deveria nos afetar. Por isso, para dar conta da performance
literária, da encenunciação, os termos a-historicidade ou indeterminação histórica
parecem insuficientes, pois que remetem apenas só à enunciação fictícia e não à relação
entre essa e o evento da leitura. E, nesse sentido, talvez o melhor fosse, retomando um
famoso adágio de Guimarães Rosa (“A estória, em rigor, deve ser contra a História”),
falar em estoricidade ou contra-historicidade. Poisa ausência de contexto histórico das
enunciações literárias, sua a-historicidade implica uma transhistoricidade, sua
indeterminação histórica implica que elas podem ser sobre-determinadas pelas múltiplas
leituras, pelos múltiplos presentes. A estoricidade, ou contra-historicidade remete a uma
temporalidade da experiência literária, que consiste num encontro, a partir (ex-) da
história, com algo que está fora (ex-) da história, contra-histórico, no sentido de que não
é histórico, mas não cessa de se encontrar com a história.9

9
A escolha por abordar os mitos e aproximar deles o que convencionamos chamar de ficção literária,
passando por cima de certas diferenças essenciais, é uma estratégia consciente que já tentei justificar em
outros lugares, lançando mão e desenvolvendo o conceito de ficção de Juan José Saer, que a toma como
uma “antropologia especulativa” (cf., por exemplo, Nodari, 2015a). Apesar do que argumenta Lévi-Strauss
sobre a descontinuidade da passagem do mito ao romance, a meu ver, a máxima borgeana de que “en el
principio de la literatura está el mito, y asimismo en el fin” continua válida. Um romance recente que
9

3. Se o sentido de um evento histórico é o seu “contexto”, o sentido em que se insere e


mesmo modifica, o quase-evento, ao ser a performance (a eventualização) de algo que
não tem contexto, marca o encontro do sentido com o que está fora ou vai contra o sentido
da história e, portanto, coloca em cena e em questão a produção de sentido, o fazer
sentido10, demandando, para usar uma expressão de Ibã Huni Kuin (aqui
descontextualizada), um “pôr no sentido” (no duplo sentido de sentido: de significação e
material). Na medida em que a enunciação fictícia não tem um contexto histórico com o
qual pode formar uma cadeia de sentido, é preciso criar o contexto para que ela faça
sentido. Isso quer dizer que o fora da enunciação literária não é o seu contexto (que não
existe) mas justamente sua ausência, essa indeterminação do sentido que lhe atravessa,
lhe constitui e lhe abre, possibilitando a ela fazer sentido em qualquer contexto: o fora de
um texto literário está entre o texto, são seus furos, e demanda, por isso, que o leitor o
atravesse, seja atravessado por ele; são as suas entrelinhas, os buracos da tessitura, ou
seja, forma com ele, de modo imanente, uma texterioridade.11 Daí a equivocidade (e a
multivocidade) referencial e de sentido inerente à enunciação literária: o fora do texto
literário não seria algo de material, substancial, mas justamente os furos do tecido, ou
seja, não apontaria para algo de determinado, mas para uma abertura (as entrelinhas de
um texto parecem ser o dêitico espacial da literatura, o lugar em que se passa uma
ficção)12 Se, diante de uma enunciação qualquer, necessitamos sempre complementar o

demonstra (e mesmo tematiza) isso, bem como muitos dos argumentos expostos aqui (a contra-historicidade
dos mitos, os mitos falarem da gente, etc.) é Rio acima, de Pedro Cesarino.
10
Embora Barbara Smith afirme que os eventos históricos (não-fictícios) tenham seu sentido determinado
pelo contexto, isso, a nosso ver, não retira seu caráter de acontecimentalidade, ou seja, que todo evento (na
medida em que constitui um fato “exterior” que afeta o sujeito) não pertence a priori a uma cadeia de
sentido, mas des-encadeia o sentido, isto é, produz, faz sentido a posteriori. O que marca, para nós, a
especificidade do quase-evento é que esse desencadeamento do sentido passa a ser a sua própria forma e
matéria, a sua configuração. Uma hipótese, da qual não estou plenamente seguro, é que, enquanto o evento
des-encadeia o sentido do sujeito, o quase-evento des-encadeia o sujeito do sentido.
11
O texto literário não se confunde com a obra, mas é uma trama composta pelo texto propriamente dito,
suas várias versões, sua prosódia, seu enredo, sua materialidade (as diversas edições), sua recepção, sua
crítica, suas traduções, seu contexto, os outros textos do autor, a biografia do autor, a tradição em que se
insere, a própria leitura – tudo isso são fios que compõem o texto, e é tarefa da filologia, da crítica e da
hermenêutica puxar esses fios. O fora do texto, seus furos constituem, pelo contrário, o que não é dito – o
que abordaremos mais adiante.
12
A decontextualização implica, em termos lacanianos, uma perfuração do significante, que, deixando de
fazer parte de uma cadeia de sentido, torna-se uma letra; ou seja, uma passagem do dizível ao corpo da
linguagem – letra [lettre] que se envia aos corpos. Para retomar citações de Marcus André Vieira e Jacques-
Alain Miller feitas recentemente por Flávia Cera ao abordar a relação entre literatura e psicanálise: “O que,
então, está antes do sentido? A letra. Ela difere do significante, pois este, apesar de também não ter sentido
em si, nunca é igual a si mesmo, é pura combinatória; nunca existe sozinho, mas sempre em oposição. (...)
Se o significante produz qualquer verdade, a letra, para um dado falante, é o que impede que o jogo do
significante, a maquinaria da linguagem por ele mobilizada, não produza qualquer verdade, mas apenas
10

seu sentido (concatena-la a uma teia de significação), no caso de uma enunciação fictícia,
é preciso mais: é preciso suplementar o seu sentido – toda enunciação fictícia demanda
um suplemento de origem. Grosso modo, essa tarefa é infinita, pois exigiria criar um
mundo inteiro em que essa enunciação fizesse sentido. Mas é evidente que buscamos
realizar esse encargo, esse dar sentido ao que não tem sentido, a partir do nosso sentido,
do nosso contexto, da nossa experiência, embora isso não seja sem consequências: se à
enunciação fictícia transporta-se parabolicamente (metáfora) o nosso contexto, a
recíproca também é verdadeira, a saber, que a enunciação fictícia se transporta ao nosso
contexto: dar um contexto ao que não tem contexto implica retirar o contexto de nosso
ato. Dar sentido a partir do aqui e agora da encenação, da performance, implica que o
aqui e agora ganham outro sentido, mudam de sentido, na medida em que algo exterior
lhe perfura, lhe desloca.
Mas, além disso, é preciso também pôr o texto nos sentidos do corpo: ler, mesmo
que com os olhos, dizer e ouvir, mesmo que com a voz e os ouvidos interiores, em suma,
sentir, ser afetado fisicamente. O que conjuga os dois sentidos de pôr no sentido é o fato
de se performar não só o que é dito, mas o próprio dizer de todos aqueles que falam,
dizem “eu” num texto literário – e que para simplificar podemos reduzir na figura do
personagem. Caracterizado por Milan Kundera como “ego experimental”, o personagem
é um “quase-ser” (para tomar emprestado um termo de Meinong): assim como o quase-
evento, incessantemente encenado, nunca termina de se realizar. E, na medida em que,
para dizer “eu”, o personagem precisa (para simplificar em duas figuras) tanto do autor
quanto do leitor (precisa que ambos se obliquem), ele constitui uma espécie de terceira

uma ou outra, a sua”; “A interpretação como saber ler visa a reduzir o sintoma à sua fórmula inicial, isto é,
ao encontro material de um significante com o corpo, quer dizer, ao choque puro da linguagem sobre o
corpo.” Se transportamos essas reflexões para a literatura, poderíamos dizer que o que não muda num texto
literário, apesar de todas as suas leituras, ou justamente por elas, são as suas letras, no sentido mais material
possível. Mas estas mesmas são, como aventa Fabián Ludueña (2016:278-279), vestígios de gestos dos
corpos, envios dos corpos: “La lengua china clásica muestra una propiedad que, paradigmáticamente, habita
asimismo en todas las lenguas de Occidente. La lengua es la guarda de algunos gestos fundamentales del
ánthropos, de fórmulas de pathos que dejan su archi-huella en la escritura. Por tanto, lo primero no es la
escritura sino el gesto patético fundacional que deja su huella en la escritura. Existe, efectivamente, una
archi-huella pero se trata de un 'archi-pathos' que es gesto, voz y affectus condensados. La escritura, al
guardar la huella del gesto, atesora la marca del cuerpo en la escritura (y no solamente la marca de la
escritura en el cuerpo como sostiene una tradición que encuentra su camino entre Nietzsche y Kafka). La
metafísica occidental ha privilegiado lo escrito como signo frente a lo fónico como propiedad discerniente,
pero olvida así el elemento constitutivo de las articulaciones del Lógos: el cuerpo fono-poiético. El decir y
lo escrito se sostienen en y con el cuerpo. Por esta razón, la escritura como letra muerta es archi-huella del
cuerpo vivente que la engendró. En consecuencia, no hay hermenéutica verdadeira si ésta se plantea,
únicamente, como vivificadora del espíritu de la letra escrita y no como restitución del cuerpo atravesado
por la hiancia del pathos espectral.” Daí se poder falar não só de um corpo do texto, como de um corpo da
letra: corpos que remetem a outros, que demanda outros para fazer sentido, para dar sentido.
11

margem heterogênea a ambos, algo como um entre-sujeito equí-voco13, o ponto de


encontro entre subjetividades, entre contextos, estando ele próprio fora dos contextos. Se
o “eu” se constrói na linguagem, o “eu” de um personagem é uma construção recíproca
de mais de um “eu”: fora do ser, o personagem permite que se faça a experiência da
intersubjetividade. Portanto, aquilo que se coloca nos sentidos são os sentidos de outros:
ler ou escutar um poema é ser atravessado por outras vozes, por outros corpos: a per-
formance é um atravessamento da (ou pela) forma, uma forma da travessia. Mas não é a
voz dos personagens, do narrador, do eu lírico que escutamos14, mas as vozes que estas

13
Se formos fiéis não ao espírito da obra de Benveniste, mas ao corpo da letra de sua teoria da enunciação,
poderíamos extrair dela dois postulados importantes para nosso argumento: 1) o primeiro, de que o que
venho chamando de obliquação (Nodari, 2015b, 2015c) é inerente à estrutura da enunciação (e isso quer
dizer, da constituição da subjetividade): “eu é o ‘indivíduo que enuncia a presente instância de discurso que
contém a instância linguística eu”, ou seja, há, o que Benveniste (1995:279) chama de “uma dupla instância
conjugada: instância de eu como referente, e instância de discurso contendo eu, como referido”. Assim,
embora Benveniste afirme que a enunciação é sui-referencial, que o “eu” organiza a espaço-temporalidade
discursiva, sendo o seu ponto de referência, em certo sentido, a pessoa “eu” é uma máscara, uma persona,
em que se equivocam duas vozes (o referente e o referido, eu e mim, sujeito e objeto). Por isso, podemos
falar de nós mesmos, nos referirmos a nós mesmos (eu e mim): dizer “eu” é afirmar uma cisão subjetiva
que se inscreve na linguagem, a não-coincidência do sujeito consigo mesmo; 2) o segundo: de que o terceiro
excluído da relação intersubjetiva da enunciação, o “ele”, a não-pessoa, a referência, é na verdade não só a
condição da intersubjetividade, como a sua tangibilização. Pois, se o “tu” é o “eco” do “eu” (Benveniste,
1995:286), se há uma “reciprocidade” ou “reversibilidade” entre ambos, isso se dá pela possibilidade de
co-referenciação do objeto: “A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o
locutor [eu], a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro [tu], a possibilidade de co-referir
identicamente, no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor” (Benveniste, 2006:84).
Sabemos o quanto de dissenso todo consenso oblitera, e o uso cotidiano da linguagem nos revela que todo
nome “objetivo” é um heterônimo (no sentido que o termo tem em inglês, heteronym, e do qual obviamente
Pessoa estava consciente: uma palavra escrita do mesmo modo que outra, mas com sentido e pronúncia
diferentes), ou seja, que toda co-referenciação é equívoca (é só por isso, é só porque nos desentendemos
que podemos nos entender). E é no lugar de qualquer referência ou nome ou objeto que se usa a terceira
pessoa, a “não-pessoa”: “as formas como ele, o, isso, etc. só servem na qualidade de substitutos abreviativos
(...); substituem um ou outro dos elementos materiais do enunciado ou revezam com ele”; “a não-pessoa é
o único modo de enunciação possível para as instâncias de discurso que não devam remeter a elas mesmas,
mas predicam o processo de não importa quem ou não importa o que, exceto a própria instância, podendo
esse não importa quem ou não importa o que ser munido de uma referência objetiva” (Benveniste, 1995:.
Ou seja, a não-pessoa, na medida em que marca a co-referenciação (equívoca), que é um substituto vazio
de todo nome (“heterônimo”), é aquilo que está entre as pessoas e que permite a interlocução, está entre os
sujeitos. Todavia, na literatura, isso, ele não é falado por um “eu” e um “tu”; antes, a terceira pessoa, o
entre-sujeito (o personagem, o heterônimo em outro sentido) fala, ou melhor, nos fala, através de nós e
sobre nós (a enunciação se inverte, os seus sujeitos se tornam seus objetos e vice-versa). Por isso, se
Hamburger (2013:98) tem razão quando afirma que a ficção literária “é o único lugar linguístico ou
epistemológico onde as pessoas não são tratadas, ou apenas tratadas como objetos, mas também como
sujeitos, ou seja, é onde a subjetividade de uma terceira pessoa pode ser representada como de uma terceira
pessoa”, devemos acrescentar que isso só é possível por meio da obliquação do autor e do leitor, que,
inversamente, se tornam primeiras pessoas tomadas como terceiras.
14
Escolhi privilegiar o par voz-escuta por razões estratégicas, de modo a apontar para um corpo não-linear
que será tratado em uma mesa subsequente do Seminário. A voz, segundo Zumthor (s/d), é aquilo do corpo
que não se confina aos seus contornos, que sai do corpo e atravessa outros corpos, penetra outros corpos,
pois, por outro lado, a escuta, como lembra Nancy (2014), é o único dos sentidos que não pode se fechar
sozinho à sensação (não podemos fechar nossos ouvidos como fechamos nossos olhos – infelizmente,
muitas vezes –, precisamos dos auxílios, por exemplo, das mãos). Assim, o par voz-escuta só pode ser
tomado como índice da presença com dificuldade. Antes, ele parece apontar para a incompletude ou
suplementação, seja por exceder os limites do corpo (voz), seja por indicar sua abertura (escuta), implicando
12

ressoam (a do autor, daqueles que “inspiraram” o personagem, mesmo outros


personagens, a do tradutor, do editor, de todos os outros leitores – e seus contextos): a sua
voz é um eco dessas vozes, o seu corpo é um agenciamento desses corpos ao qual nós
damos corpo no ato da leitura. Ao lermos, ao performarmos um personagem que diz eu,
não assumimos a linguagem, como na teoria da enunciação de Benveniste, mas somos
assumidos por ela, não entramos numa relação, mas passamos a experimentar a própria
relação – não é que ocupamos a posição enunciativa do eu: nosso eu é ocupado.15 Trata-
se de experimentar não o caráter dêitico da linguagem, mas a deiticidade mesma – e no
nosso próprio corpo. O eu, o corpo do eu, se torna equí-voco, o palco de muitas vozes que
falam ao mesmo tempo, várias vozes de vários eus, de vários aqui e agoras, de vários
contextos, de vários espaço-tempos que ganham corpo, deslocando a nossa presença: uma
equivocologia, em que o nosso “eu” se torna “a gente”16, único pronome possível da
experiência literária.17

ademais um diferimento tanto temporal (o tempo que a voz leva para chegar ao ouvido de outro ou próprio)
quanto ontológico (a distorção que a voz sofre até chegar ao ouvido) – diferimento marcado pelo eco.
15
Usualmente (penso aqui mais em uma percepção difusa), a relação entre leitor e personagem é concebida
ou como uma identificação com este por parte daquele ou como uma projeção neste daquele. A esse
segundo caso, poderíamos chamar de deixificação: o “eu” do personagem é tomado como um dêitico que
pode ser ocupado livremente pelo leitor. Todavia, a experiência literária é mais complexa, na medida em
que envolve os dois procedimentos: o leitor precisa se identificar com o personagem, precisa dizer eu com
ele e por ele, mas, na exata medida em que o faz, o próprio leitor se torna um dêitico a ser ocupado por
outros eus – a isso sugiro chamar de indeixificação. Um exemplo banal pode ser encontrado na leitura de
uma ficção escrita: quem está lendo, quem está contando a estória é o mesmo sujeito que ouve, recebe –
situação esquisita em que o sujeito conta para si mesmo e vivencia uma estória de alguém que não existiu,
redigida por outro, cuja voz o leitor ecoa. Ao ler um romance, o leitor não está apenas recebendo, mas como
que escrevendo, embora não saiba o que escreve, como uma espécie de escrita automática. Daí a
similaridade formal entre literatura e sonho: no sonho, contamos para nós mesmos uma história, a
vivenciamos, mas não conhecemos o que vai acontecer, ou mesmo que saibamos, não podemos modificar.
Então, se escrever ficção é “lembrar-se do que nunca existiu”, como afirmou certa vez Clarice, então talvez
possamos dizer que ler ficção é lembrar-se do que nunca se escreveu.
16
O pronome do português brasileiro “a gente” é gramaticalmente anômalo: substituto da primeira pessoa
do plural (“nós”), mas conjugado na terceira do singular (“ele”, a não pessoa, segundo Benveniste), ele
pode ser usado tanto como sujeito indeterminado – como ainda é no português de Portugal, análogo nesse
sentido ao “one” americano ou ao “on” francês, derivado de “l’homme” – quanto no lugar do “nós”, tanto
inclusivo quanto exclusivo, bem como uma generalização do “eu”. Como uma espécie daquela quarta
pessoa do singular advogada por Lawrence Ferlinghetti, “em que a voz do poeta soa distante”, “a gente”
parece apontar para uma experiência da subjetividade equívoca, para uma equivocologia, em que dizer eu
ecoa muitas subjetividades, em que um texto ecoa muitos corpos e vozes ao mesmo tempo. Não se trata
apenas de um sujeito indeterminado, mas de uma indeterminação (e multiplicação) do sujeito, que se torna
um agenciamento coletivo.
17
Os dois sentidos de “pôr no sentido” se conectam ainda por meio de um terceiro, ao qual me alertou
Rondinelly Gomes Medeiros: o de pôr a enunciação fictícia naquilo que se sentiu, na cadeia de sentido da
experiência e das sensações. Agora, o que implica inserir subjetividades e corpos extra-históricos na
tessitura da vida do sujeito? Se retomarmos o que afirmamos acima sobre a ocupação do eu por meio de
outros que falam da experiência literária, poderíamos dizer que nela não falamos, mas somos falados. Se
não paramos de pensar em nós mesmos, na nossa vida, no nosso contexto quando lemos literatura, não é
porque nos comparamos aos personagens ou às situações; antes, nós é que estamos sendo comparados por
eles. Para retomar o exemplo dos mitos: se nestes, há uma condição de subjetividade plena, ou seja, em que
espíritos, homens, animais, coisas, tudo é sujeito, tudo diz eu, quem são o seu objeto, os “eles” a quem se
13

4. Ou seja, se o quase-evento é uma dobra do acontecimento, que coloca em cena a sua


própria feitura, a performance de uma enunciação fictícia põe em jogo o que é uma
enunciação, como se diz “eu”, ou seja, como se faz um sujeito. Uma abordagem por outro
ângulo pode esclarecer melhor. Como argumenta Wolfgang Iser (1999), o ponto de vista
do leitor não é dado, formulado, num texto literário (o que permitiria uma leitura unívoca,
ou uma referência para a correção e padronização da leituras). O que há nele são
perspectivas dos personagens, do enredo, do narrador (que faz o leitor estranhar o ponto
de vista do autor), do leitor fictício a quem esse se dirige (o que faz o leitor de fato
estranhar seu próprio ponto de vista), perspectivas que se cruzam, se chocam, se alternam
como figura e fundo, tema e horizonte umas das outras. E na medida em que não há um
contexto determinado, não há um fora do texto fixo de onde ver o objeto literário, isso
implica que o vemos desde dentro, que estamos dentro dele, do objeto, quando lemos –
ou seja, embora levemos nosso ponto de vista e contexto, estes são constantemente
desmentidos, sendo necessário que o estranhemos e assumamos as perspectivas do texto,
seus contrastes e enfrentamentos, num constante movimento de identificação e
estranhamento em relação a elas (ou seja, um movimento de obliquação). O ponto de vista
do leitor, enquanto não formulado pelo texto, seu não-dito, consiste na interação e
articulação feitas no gesto de leitura desses pontos de vista e suas variações (incluindo a
sua própria). Dar sentido ao atravessamento de perspectivas é o que faz o ponto de vista
do leitor: sua a perspectiva é a produção de uma relação, sempre instável, sempre se
modificando, de perspectivas: assim, afirma Iser (1999:93), “a leitura mostra quão pouco
o sujeito é algo dado”, de modo que “a literatura oferece a oportunidade de formularmos-
nos a nós mesmos, formulando o não-dito”. Se traduzirmos isso para a terminologia da
enunciação, não teremos apenas, como argumentam Deleuze e Guattari, que o “eu” é uma
posição determinada pelo agenciamento coletivo da enunciação, mas sim que o próprio
“eu” é em si mesmo um agenciamento coletivo da enunciação – o arranjo sempre precário,
que está sempre se fazendo, de muitos eus: um a gente poético.18 Na experiência literária,
o “eu”, enquanto ponto zero das coordenadas aqui e agora (ou seja, do contexto), é

referem, senão nós – seus receptores? Se os mitos (e o mesmo vale para qualquer ficção literária) sempre
nos dizem algo, é porque eles falam da gente. O efeito que isto possui sobre o sujeito será abordado a seguir.
18
Nesse sentido, é preciso conjugar, por meio da teoria da enunciação, duas hipóteses implícitas desse
trabalho: 1) a primeira, de B. Smith, de que a literatura mimetiza (num sentido forte de mímesis) não atos,
eventos, etc., mas o dizer, a enunciação; 2) e a segunda, de Jakobson, de que a função poética da linguagem
é um dobrar-se sobre a mensagem. Teríamos assim que o que a literatura mimetiza é um agenciamento
coletivo de enunciação.
14

ocupado por diversos eus, diversos aqui e agora, diversos contextos, sejam eles as
perspectivas do texto, sejam as vozes que nos atravessam quando lemos, tomando uma
distância em relação a si e ao contexto como a melhor forma de sair de si para se (re)fazer.
Mas não será isso que caracteriza a vida, tanto de um ponto de vista da subjetividade,
quanto de uma perspectiva “biológica”, a saber, uma transformação constante do arranjo
de multiplicidades que constituem nosso corpo e nossa alma? Pois, ao fim e ao cabo, o
ego é um oikos equívoco de muitos eus ecoantes que o ocupam. Todavia, se podemos
vivenciar essa transformação constante, não podemos contemplá-la, conhece-la em nós
mesmos, mas somente de fora, nos outros. Viver e conhecer, i.e., ao mesmo tempo fazer
e ter essa experiência do ego (“experimentar o experimental”) só é possível por meio de
experimentos como a arte. É como se fosse preciso sair da história para se encontrar com
ela; como se o artifício da ficção fosse necessário para adentrar a natureza (da mudança):
o quase-evento da performance literária nos permite, assim, experimentar a zona
ontológica da transformação, o espaço-tempo ontológico em que a gente se faz, em toda
a equivocidade da expressão.

5. Talvez fosse essa experiência da arte que os neoconcretos, Ferreira Gullar à frente,
tinham em mente quando diziam conceber “a obra de arte nem como ‘máquina’ nem
como ‘objeto’, mas como um quasicorpus”, vendo como símile da obra de arte os
“organismos vivos”: “[a obra] está sempre se fazendo presente, está sempre recomeçando
o impulso que a gerou e de que ela era já a origem. E se essa descrição nos remete
igualmente à experiência primeira - plena - do real [eu gloso: do nascimento], é que a arte
neoconcreta não pretende nada menos que reacender essa experiência.”
Que essa quase-presença, sempre em vias de se fazer, possa ser uma experiência
mais intensa que a própria presença, que o quase-ser possa ser mais vivo que o Dasein, é
uma lição que aprendemos com aquele engenhoso fidalgo que jamais esteve ciente de não
ser ao mesmo tempo um pequeno senhor de província, quase-Quixote, quase-Quijano,
que, pela boca de Cervantes, faz ecoar em nossos ouvidos a “epopeia do equívoco”
(Oswald), que é a nossa aventura na Terra.

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