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Políticas para a Primeira Infância:

notas sobre experiências internacionais

Brasília, janeiro de 2005


©UNESCO 2005 Edição publicada pelo Escritório da UNESCO no Brasil.
Políticas para a Primeira Infância:
notas sobre experiências internacionais
Edições UNESCO
Conselho Editorial
Jorge Werthein
Cecilia Braslavsky
Juan Carlos Tedesco
Adama Ouane
Célio da Cunha
Comitê para a Área de Educação
Alvana Bof
Célio da Cunha
Candido Gomes
Katherine Grigsby
Marilza Machado Gomes Regattieri

Revisão e diagramação: Eduardo Perácio (DPE Studio)


Revisão técnica: Angela Rabelo Barreto, Alvana Bof e Julia Buarque
Assistente editorial: Rachel Gontijo de Araújo
Projeto gráfico: Edson Fogaça e Paulo Valério
Tradução: Patrícia Zimbres
Desenho infantil da capa: Maria Augusta Botafogo Proença
©UNESCO, 2004

Políticas para a primeira infância : notas sobre experiências internacio-


nais. – Brasília: UNESCO, 2005.
114p.
1. Educação infantil–Políticas Educacionais. 2. Políticas Governa-
mentais–Crianças. I. UNESCO
85-7652-025-7 CDD: 372

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura


Representação no Brasil
SAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6,
Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar.
70070-914 – Brasília – DF – Brasil
Tel.: (55 61) 2106-3500
Fax: (55 61) 322-4261
E-mail: grupoeditorial@unesco.org.br
SUMÁRIO

Apresentação à edição brasileira.....................................................................7


Apresentação........................................................................................................ 9
1. Primeira infância – cuidados? desenvolvimento? educação?........... 11
2. A integração da primeira infância na educação:
o caso da Suécia......................................................................................... 17
3. Relação entre mulheres, trabalho e primeira infância:
países desenvolvidos e em desenvolvimento..................................... 23
3.1 – Trabalho feminino e serviços para a primeira infância........ 23
3.2 – Situação empregatícia das mulheres nos países em
desenvolvimento e implicações para políticas para a
primeira infância................................................................................... 30
4. Serviços de Base domiciliar para a primeira infância:
o caso da Nova Zelândia........................................................................ 37
5. O programa de pré-escola na língua vernácula de
Papua-Nova Guiné................................................................................... 43
6. As transformações sociais e suas implicações para a demanda
global de cuidados e educação para a primeira infância................ 49
7. A coordenação intersetorial nas questões da primeira infância:
lições a serem aprendidas.........................................................................55
8. As crianças em idade escolar em famílias com filhos pequenos:
risco para as oportunidades educacionais............................................ 61
9. A aprendizagem ao longo da vida e a política social
para a primeira infância............................................................................ 67
10. A reforma da força de trabalho da educação e cuidado
na primeira infância na Inglaterra, na Escócia e na Suécia..............75
10.1 – A integração de serviços de educação e cuidado................ 75
10.2 – A reforma da força de trabalho de educação e cuidado..81
11. O impacto da Aids sobre os cuidados e a educação
da primeira infância................................................................................... 87
12. A reforma dos cuidados e da educação para a primeira
infância na República da Coréia.............................................................93
12.1 – “A escola para a primeira infância”............................................ 93
12.2 – A lei da educação para a primeira infância............................ 100
13. O papel da educação e do cuidado para a primeira infância
na promoção da igualdade de oportunidades................................ 107
APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA

A expansão e o aprimoramento da educação e cuidado na primeira


infância constituem uma das seis metas fixadas no Marco de Dacar,
cujos compromissos foram assumidos por 189 países, incluindo o Brasil,
reunidos no Fórum Mundial de Educação para Todos, realizado no
Senegal, em 2000. O destaque dado à educação nessa faixa etária,
tornando-a objeto de uma meta específica, decorre do reconhecimento
da importância das experiências vividas nos primeiros anos para o
desenvolvimento e a aprendizagem ao longo de toda a vida.
Evidências apresentadas em estudos internacionais a respeito dos
impactos positivos da participação das crianças em programas de
educação infantil justificam a relevância atribuída a tais programas como
instrumento de promoção de eqüidade educacional e de melhoria da
qualidade de vida das crianças de classes socioeconômicas menos
favorecidas. Além disso, programas de educação e cuidado na primeira
infância têm contribuído para oportunizar às mulheres condições para
uma participação mais eqüitativa no mercado de trabalho.
No Brasil, a área do cuidado e educação infantil apresenta um marco
importante na Constituição de 1988, que reconheceu, como um direito,
a educação das crianças de zero a seis anos de idade, em creches e pré-
escolas. Entretanto, apesar dos avanços ocorridos na legislação, com a
inclusão da educação infantil como primeira etapa da educação básica
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), e o
estabelecimento de metas e objetivos de ampliação e melhoria dessa
etapa educacional no Plano Nacional de Educação (2001), um grande
esforço deverá ser realizado nos próximos anos para que as diretrizes
e objetivos definidos nesses instrumentos legais sejam de fato
concretizados.

7
Considerando a importância da educação e cuidado na primeira
infância como meta fundamental da Educação para Todos, a UNESCO
vem empreendendo esforço especial de cooperação internacional nesse
campo. No Brasil, tem apoiado e prestado colaboração nas ações
empreendidas pelos Poderes Executivo e Legislativo, nos âmbitos
federal, estadual e municipal, apoiado e realizado debates, estudos, e
produzido publicações sobre temas de interesse da área.
Dando continuidade a esta colaboração, a Representação da
UNESCO no Brasil coloca à disposição da comunidade brasileira a
tradução para a língua portuguesa destas notas internacionais sobre
Políticas para a Primeira Infância, publicadas pela Seção de Educação
para a Primeira Infância e para a Família, da Divisão de Educação
Básica, da UNESCO-Paris. Elaboradas por consultores de instituições
de grande expressão ou pela própria Seção de Educação para a Primeira
Infância e para a Família, as notas tratam de realidades diversas, incluindo
ora países desenvolvidos, ora países em desenvolvimento, ora ambos.
Os temas abordados referem-se a questões presentes no cenário
internacional, incluindo debates sobre a diversidade de termos utilizados
na área, a integração e a coordenação intersetorial de políticas e
programas para a primeira infância, as transformações sociais e suas
implicações para a primeira infância, as relações entre o trabalho
feminino e a educação e o cuidado na primeira infância, o papel das
políticas de educação e cuidado da primeira infância na igualdade de
oportunidades, e o impacto da Aids sobre a educação e o cuidado na
primeira infância. Nesta edição brasileira, algumas notas sobre o mesmo
tópico que originalmente foram veiculadas separadamente são agrupadas
em um único capítulo, visando a facilitar a leitura.
Espera-se, com esta iniciativa, contribuir para o debate das questões
relativas à educação e cuidado na primeira infância que perpassam os
cenários nacional e internacional, bem como oferecer subsídios aos
que, direta ou indiretamente, estejam relacionados à formulação de
políticas públicas no setor.

Jorge Werthein
Diretor da UNESCO no Brasil

8
APRESENTAÇÃO

As Notas sobre Políticas para a Primeira Infância, da UNESCO, são uma


série de breves textos sobre questões relativas às políticas direcionadas
à primeira infância e à família. Seu objetivo é responder às dúvidas
mais freqüentes entre as instâncias de formulação política, com respei-
to ao planejamento e à implementação de políticas para a primeira
infância e a família. Para maiores informações e também para a versão
eletrônica das Notas, dirigir-se a http://www.unesco. org/education/educprog/
ecf/index.htm
Para comentários e informações, favor entrar em contato com:
UNESCO, Seção de Educação para a Primeira Infância e para a
Família, 7, Place de Fontenoy, 75352 PARIS 07 SP, França Fone: 33 1
45 68 08 12 Fax: 33 1 45 68 56 26 b.combes@unesco.org

9
1. PRIMEIRA INFÂNCIA – CUIDADO?
DESENVOLVIMENTO? EDUCAÇÃO?*

A área da Primeira Infância1 é conhecida por diversos nomes, tanto


entre países quanto dentro de um mesmo país, uma vez que as diferentes
partes interessadas usam referenciais diversos. Nem mesmo os
organismos internacionais empregam um termo* escolhido de comum
acordo, o que provoca debates quanto a qual termo usar, sempre que
um documento é redigido conjuntamente por mais de uma instituição.
Os pesquisadores vêm tentando unificar a área sob uma mesma
denominação, mas ainda sem sucesso.
O “ensino primário” também é designado por diferentes nomes
(ele é chamado de ensino elementar ou básico)2, mas, ao contrário do
que ocorre com o termo Primeira Infância, há uma compreensão
relativamente consensual quanto ao que ele se refere e às maneiras de
praticá-lo. Os termos associados à Primeira Infância vão além de sim-
ples rótulos: eles implicam diferenças em termos dos objetivos, das
práticas pedagógicas e das modalidades de prestação desses serviços,
sem falar nas grandes disparidades de situação social e econômica das
equipes de profissionais em questão. A diversidade de termos é tão

* Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early
Childhood) número 1, de março de 2002. Elaborada e publicada pela Seção de
Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO,
Paris (http:/www.unesco.org/education/educprog/ecf/index.htm).
1
Primeira Infância é aqui grafado com maiúsculas para fazer distinção entre a acepção de
área profissional ou disciplina e a acepção de estágio inicial do ciclo da vida.
2
Em alguns casos, ensino elementar refere-se unicamente às primeiras séries do ensino
primário, enquanto que este último é reservado às séries mais avançadas. Do mesmo
modo, educação básica pode abranger outros níveis de educação abaixo ou acima da
educação primária, bem como outros programas não formais.

11
ampla, que, muitas vezes, a própria identidade da Primeira Infância
como disciplina distinta é questionada.
Um dos termos comumente usados, Educação para a Primeira Infância
(Early Childhood Education – ECE), tem a preferência das autoridades
educacionais e de outros que tendem a ver a primeira infância a partir
de uma ótica educacional. O aprendizado é um tema de importância
central, nessa tradição. Cuidado e Educação na Primeira Infância (em inglês,
Early Childhood Care and Education – ECCE) é uma ampliação da
ECE, com o acréscimo do componente “cuidado”. A ordem pode
ser alterada para Educação e Cuidado na Primeira Infância (Early Childhood
Education and Care – ECEC), a fim de manter a ênfase na educação.
Há, também, o Cuidados para a Primeira Infância (Early Childhood Care
– ECC), sem o componente educacional. No mundo em desenvolvi-
mento, os Cuidados para a Primeira Infância tendem a ser associados à
atenção dada a saúde, nutrição e higiene da criança, ao passo que, nos
países desenvolvidos, eles, freqüentemente, são entendidos como um
serviço social prestado às mães que trabalham e têm filhos pequenos.
Em termos históricos, os Cuidados para a Primeira Infância sempre foram
associados às instituições de assistência social para crianças carentes ou
deficientes, enquanto a Educação para a Primeira Infância foi vista como
um serviço voltado às etapas iniciais do processo de aprendizagem da
criança.3 Numa tentativa de reafirmar que os Cuidados para a Primeira
Infância e a Educação para a Primeira Infância são conceitos inseparáveis,
os pesquisadores cunharam o termo Educare (em inglês, Education e
Care). Esse termo, entretanto, permaneceu confinado à comunidade
acadêmica, não tendo ingressado no discurso político dos governos.4
Desenvolvimento da Primeira Infância (Early Childhood Development –
ECD) é um outro termo que vem ganhando popularidade. Ele dá
ênfase a um enfoque holístico, voltado para o desenvolvimento físico,

3
Ver HADDAD, L. An integrated approach to early child education and care. Paris : UNESCO,
2002. (Early childhood and family policy series.)
4
Uma exceção pode ser encontrada na África do Sul, onde o termo Educare é usado
juntamente com Desenvolvimento da Primeira Infância. (http:/www.isisa.co.za/isisa/
default.htm).

12
emocional, social e cognitivo da criança. Embora sua amplitude o tor-
ne de difícil definição, e apesar de ele colocar o foco na criança, e não
no agente social ou no processo de cuidado ou educação, o ECD vem
ganhando terreno como um dos termos mais genéricos para designar
essa área. Uma variante comum desse termo é Cuidados e Desenvolvimento
da Primeira Infância (Early Childhood Care and Development – ECCD),
que também tenta reintegrar num mesmo conceito os cuidados, por
um lado, e o desenvolvimento/educação, por outro. Há ainda uma outra
variante, os Cuidados para o Desenvolvimento da Primeira Infância, que dá ênfase
aos cuidados que afetam o desenvolvimento e o aprendizado.
Muitos outros termos são usados, mas eles são ou variações ou
recombinações dos três conceitos básicos – cuidados, desenvolvimento
e educação para a primeira infância – ou programas específicos
formulados para eles (por exemplo, educação pré-escolar, para Educação
para a Primeira Infância).
Da perspectiva do desenvolvimento da criança, esses três conceitos
não podem ser tratados independentemente. O desenvolvimento da
primeira infância abrange uma série de processos de aprendizagem, ao
longo dos quais a criança aprende sobre seu ambiente e sobre ela própria.
É desnecessário dizer que a sobrevivência e o crescimento da criança
têm de ser assegurados, por meio do fornecimento de uma boa
assistência à saúde e à nutrição. Mas o crescimento físico da criança
pequena tem também de ser acompanhado de um processo de
aprendizagem de qualidade adequada. Aprendizado e crescimento não
podem ocorrer de forma seqüencial, sendo, ambos, partes integrantes
do processo de cuidar do desenvolvimento integral da criança.
Na verdade, nem sempre os Cuidados na Primeira Infância, o De-
senvolvimento da Primeira Infância e a Educação na Primeira Infância
são institucionalizados e praticados separadamente. Por exemplo, não
é difícil encontrar um Departamento de Educação para a Primeira
Infância que tenha sob sua responsabilidade todo o espectro de
programas para a primeira infância, incluindo creches para crianças
menores de três anos e jardins de infância para crianças de idade um
pouco superior. Na maioria dos países desenvolvidos, o ensino nos

13
jardins de infância é centrado na criança, dando ênfase a seu desenvol-
vimento integral. Nesses casos, não haveria necessidade de distinguir a
Educação para a Primeira Infância do Desenvolvimento da Primeira
Infância. Em alguns países em transição5, educação pré-escolar é um
termo genérico para os programas destinados à primeira infância, in-
clusive para as crianças menores de três anos, que, em outros países,
seriam classificados como Cuidados na Primeira Infância.
Na política institucional, a questão das diferentes denominações acaba
por se converter em um ponto de controvérsia. Os organismos dão
preferência a um termo ou a outro dependendo das funções
institucionais que lhes são atribuídas. Essas discrepâncias encontradas
entre os diferentes organismos – e não a maneira de encarar a psicolo-
gia ou o desenvolvimento infantil – não raro são difíceis de conciliar.
No nível nacional, é possível que o Ministério da Educação dê preferência
ao termo Educação para a Primeira Infância, uma vez que é mais fácil
justificar a participação e os investimentos em educação que na assis-
tência a crianças pequenas. Caso o Ministério estabeleça uma distinção
entre Educação para a Primeira Infância, Cuidados com a Primeira
Infância e Desenvolvimento da Primeira Infância, isso talvez se deva à
sua intenção de atribuir responsabilidades diferentes a diferentes setores.
Nesse particular, não é mera coincidência que, em alguns países em
desenvolvimento, o Desenvolvimento da Primeira Infância freqüen-
temente venha acompanhado de estratégias de mobilização comunitária
e de arrecadação de contribuições voluntárias, enquanto as verbas
públicas são prioritariamente direcionadas à Educação para a Primeira
Infância. Os educadores que trabalham fora do campo da Educação
para a Primeira Infância têm menores possibilidades de ser chamados
de professores, uma vez que essa denominação implicaria um certo
nível de remuneração, a ser paga pelo governo, para a qual, na maioria
dos países em desenvolvimento, não haveria disponibilidade
orçamentária.
Dada a natureza multifacetada da primeira infância, a existência de
diversas denominações talvez seja mesmo inevitável. O âmbito dos

5
Na antiga União Soviética.

14
interesses institucionais é de tal amplitude que, talvez, chegar a um termo
único seja de fato uma tentativa vã. Além disso, o mesmo termo pode
ser interpretado de formas diferentes em diferentes contextos sociais,
culturais e lingüísticos, e o conceito de primeira infância, ou “primeira
infância” como um construto da formulação de políticas, varia,
dependendo da idade de ingresso na escola. Comparar esses diferentes
conceitos, para não falar em unificá-los, portanto, talvez seja uma tentativa
infrutífera. Nesse sentido, insistir na necessidade de um termo consensual
talvez não represente um esforço construtivo, uma vez que o que realmente
precisamos é compreender o âmbito geral da Primeira Infância. Nas
comparações internacionais, o mais importante seria uma definição
operacional capaz de caracterizar as políticas adotadas pelos diferentes
países, independentemente dos termos em uso. E mais importante ainda,
esse foco na terminologia da Primeira Infância pode desviar nossa aten-
ção de outras questões igualmente importantes, tais como a maneira pela
qual os serviços destinados à primeira infância, seja qual for a denominação
dada a eles, se relacionam a outros serviços educacionais e sociais desti-
nados a crianças em idade escolar.
Mesmo deixando de lado as rotulações, alguns pontos fundamentais
devem ser ressaltados.
Em primeiro lugar, o principal objetivo de qualquer programa volta-
do para a primeira infância deve ser o bem-estar e o desenvolvimento
integral da criança e, independentemente do contexto institucional, o
programa deve incorporar uma prática adequada, em termos de de-
senvolvimento, que trate da saúde, da nutrição, da segurança e da apren-
dizagem. Na verdade, contanto que esse enfoque holístico seja posto
em prática, o contexto físico ou institucional de um programa é de
pouca importância. Em segundo lugar, à medida que as crianças crescem,
elas podem passar de um programa a outro, programas esses que
podem receber nomes diferentes e pertencer ao âmbito de ministérios
diferentes. Mas esses programas têm de manter entre si continuidade e
integridade pedagógica, embora não necessariamente institucional. Em
terceiro lugar, deve haver o máximo de coordenação possível da
superposição de programas direcionados para a mesma faixa etária,
que recebem nomes diferentes. Uma tal superpo-sição pode vir a

15
provocar ineficiência administrativa e desperdício de recursos. Por últi-
mo, mas não menos importante, é que, independentemente do nome
que lhe for dado, o programa para o estágio que precede o ensino
primário deve ser formulado de modo a facilitar a preparação da
criança para o ingresso na escola e sua transição para o ensino formal.
A continuidade pedagógica entre o último ano do programa voltado
para a primeira infância e o primeiro ano da escolaridade formal é da
maior importância.
A questão das denominações não é puramente conceitual, nem
limitada às discussões teóricas sobre o desenvolvimento infantil. Ao
contrário, ela está inseparavelmente vinculada, entre outras coisas, às
responsabilidades institucionais e às atribuições das partes interessadas,
que não podem ser tratadas de forma eficaz sem uma clara postura
política com relação às questões da Primeira Infância.
A formulação de uma posição que envolva todos os setores do
governo, ou que possa ser subscrita por todas as partes interessadas,
com relação às denominações a serem usadas, talvez seja um bom
ponto de partida para o desenvolvimento de políticas voltadas para a
Primeira Infância.

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2. A INTEGRAÇÃO DA PRIMEIRA NFÂNCIA
NA EDUCAÇÃO: O CASO DA SUÉCIA*

Em 1996, a responsabilidade governamental pelo Cuidado das


Crianças1, na Suécia, foi transferida do Ministério da Saúde e Assuntos
Sociais para o Ministério da Educação e Ciência. Durante esse processo,
turmas de Pré-Escola foram criadas para crianças de seis anos, passando
a fazer parte do sistema de ensino compulsório2 e usando o mesmo
currículo das escolas primárias. As pré-escolas, que antes da transição
atendiam a crianças de um a seis anos, converteram-se no nível inicial
do sistema educacional do país, atendendo a crianças de um a cinco
anos,3 tendo seu próprio currículo nacional.4 O governo, além disso,
ampliou o direito à educação pré-escolar, oferecendo-a a todas as cri-

* Notas sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early
Childhood) número 3, de maio de 2002. Elaborada e publicada pela Seção de
Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO,
Paris (http:/www.unesco.org/education/educprog/ecf/index.htm). Este texto
baseou-se no estudo sobre o sistema integrado para a primeira infância da Suécia,
realizado por Hillevi Lens Taguchi, Instituto de Educação de Estocolmo, e Ingmarie
Minkammar, da Universidade de Tecnologia de Lulea.
1
O Cuidado das Crianças, na Suécia, refere-se tanto às atividades pré-escolares para
crianças de um a cinco anos quanto a serviços de cuidados para crianças em idade
escolar, entre seis e 12 anos.
2
Essa decisão representou mais uma renomeação da educação pré-primária existente
que a criação de um novo programa. Nos termos da Lei Nacional das Pré-Escolas,
de 1975, foi exigido dos municípios que oferecessem a todas as crianças de seis anos
de idade pelo menos 525 horas anuais de atividades pré-escolares. A maioria das
crianças de seis anos, na Suécia, freqüentou esse programa de educação pré-primária
nas pré-escolas. A partir dessa decisão, o programa foi convertido nas Turmas de
Pré-Escola e desmembrado das pré-escolas. As Turmas de Pré-Escola já não fazem
mais parte do ensino pré-escolar, termo esse que hoje é reservado para os cuidados
e a educação da primeira infância, destinado a crianças de um a cinco anos.

17
anças, independentemente da situação empregatícia de seus pais.5 Uma
outra reforma compensou as disparidades entre as diferentes categori-
as de professores, fornecendo uma estrutura unificada de treinamento
para professores de pré-escolas, de escolas e para pedagogos de horas
de lazer.6 As normas e regulamentos do cuidado das crianças, na Suécia,
são hoje regidos pela lei educacional (School Act).
A transição foi relativamente simples e aconteceu sem maiores difi-
culdades em seus estágios finais.7 Os estágios preliminares, contudo,
provocaram debates e apreensão. Uma das fontes de resistência foi o
medo de que a pré-escola viesse a se tornar formalizada, como ocor-
reu em outros países. Os acadêmicos se preocupavam que a pedagogia
da pré-escola viesse a perder sua ênfase no brincar, nas estratégias natu-
rais do aprendizado infantil e no desenvolvimento integral. As pessoas
que trabalhavam no setor de cuidados temiam que o foco das ativida-
des pré-escolares poderia ser maciçamente transferido para a educa-
ção e interpretaram a integração como uma ameaça à sua profissão.

3
Na Suécia, os serviços de cuidados para crianças, fora de casa, começam com um ano
de idade, sendo que as mais novas são cuidadas em casa, por seus pais, que se
beneficiam da licença-maternidade/paternidade patrocinada pelo governo.
4
As atividades pré-escolares, na Suécia, também são fornecidas em Creches Familiares e em
Pré-Escolas Abertas. Mas esses serviços não fazem parte do sistema educacional e não
seguem as diretrizes do Currículo Nacional para as Pré-Escolas.
5
A partir de 2001, os filhos de pais desempregados também passaram a ter direito a três
horas diárias de educação pré-escolar. Anteriormente, apenas os filhos de pais que
trabalhavam ou estudavam tinham acesso à educação pré-escolar. As crianças
portadoras de necessidades especiais sempre têm direito prioritário.
6
Anteriormente, os professores de pré-escola e os pedagogos de horas de lazer recebiam
treinamento de três anos de duração em universidades, enquanto o período de
treinamento dos professores de escola era de três anos e meio. Hoje, todas essas
categorias recebem treinamento universitário de três anos e meio.
7
No nível central, a transição envolveu a transferência do departamento da primeira
infância do Ministério da Saúde e Assuntos Sociais para o Ministério da Educação e
Ciência, que ocorreu sem grandes conflitos. No nível local, a mudança foi ainda mais
tranqüila, uma vez que os municípios já haviam integrado suas estruturas administrativas,
tais como conselhos conjuntos para escolas e pré-escolas. Diz-se que o processo de
descentralização, no qual o município tornou-se o empregador dos professores, tanto das
escolas como das pré-escolas, facilitou essa integração.

18
Elas temiam também que o cuidado das crianças, que no Ministério da
Saúde e Assuntos Sociais recebia alta prioridade, como uma política de
apoio à família, viesse a perder sua primazia e ser relegado a uma
posição marginalizada, no setor da educação.
As observações feitas até o presente sugerem resultados mistos. Algum
tipo de formalização de fato ocorreu, mas há também sinais de que os
temores eram exagerados. No que diz respeito à turma de pré-escola para
crianças de seis anos, hoje funcionando nas escolas, a influência da pedago-
gia escolar foi evidente. Um estudo de avaliação, realizado em âmbito
nacional, revela que os professores organizam suas atividades de maneira
formal, com base em seus conceitos do que a escolarização formal é ou
deveria ser. Em alguns casos, suas idéias sobre escolarização formal são
mais rígidas do que as dos próprios professores das escolas primárias. As
autoridades educacionais do país vêm fazendo recomendações no sentido
de corrigir esses problemas, incentivando os professores de pré-escola a
dar maior atenção ao desenvolvimento holístico das crianças. No entanto,
essa formalização não foi observada nas pré-escolas para crianças de um a
cinco anos. Ao contrário, com a transferência das crianças de seis anos para
as turmas de pré-escola, as pré-escolas, liberadas da responsabilidade pela
educação pré-primária, puderam se concentrar mais em enfoques de de-
senvolvimento, nas atividades voltadas para as crianças de um a cinco anos.8
Com relação aos investimentos, além de liberar as pré-escolas da res-
ponsabilidade pelas crianças de seis anos,9 o governo, em tempos recentes,
anunciou duas medidas importantes para reduzir as mensalidades das pré-
escolas10 e oferecer ensino pré-escolar gratuito para todas as crianças de

8
O novo currículo nacional para pré-escolas dá ênfase ao aprendizado, o que é visto
pelos professores de pré-escola como algo “novo”. Mas há poucos indícios de que
essa ênfase na aprendizagem tenha prejudicado os enfoques e as práticas pedagógi-
cas embasados no desenvolvimento infantil.
9
A participação nas turmas de pré-escola é voluntária, mas os municípios são obrigados a
oferecer vagas gratuitas para as crianças que desejam se matricular. As crianças cujos pais
trabalham ou estudam ou as que exigem cuidados especiais têm direito às vagas gratuitas.
10
Ao estabelecer um teto para a taxa a ser cobrada pelas pré-escolas para crianças de um
a cinco anos, o governo uniformizou as diferentes taxas cobradas pelos municípios.
Essa medida reduziu de fato as mensalidades de pré-escola para todas as famílias.

19
quatro a cinco anos, a partir de 2003, confirmando seu compromisso de
universalizar o ensino pré-escolar. Essas medidas aplacaram os temores de
que o ensino pré-escolar, ao ser transferido para o setor de educação,
receberia baixa prioridade em termos de investimentos. Pelo contrário,
com a integração do ensino pré-escolar no sistema educacional, o argu-
mento de que ele deveria estar disponível a todas as crianças, como direito
da criança, mais que como direito dos pais, conferiu-lhe maior legitimida-
de, resultando em um aumento dos investimentos públicos.
Além do mais, as escolas primárias vêm-se tornando mais semelhantes
às pré-escolas, e mais voltadas para o desenvolvimento integral dos alunos.
Embora o conceito convencional de escolarização ainda prevaleça, é
consenso geral que as escolas suecas de hoje sejam vistas como lugares
onde as crianças de idade escolar são cuidadas de forma integral enquan-
to seus pais trabalham. Cada vez mais, as escolas vêm-se tornando
substitutas do ambiente familiar para as crianças de idade escolar, como
as pré-escolas já eram para as crianças mais novas, onde os professores e
os profissionais de cuidados infantis colaboram para assegurar seu de-
senvolvimento integral. No passado, as escolas tendiam a se omitir quanto
aos problemas emocionais, sociais, de comportamento e de saúde dos
alunos, que não eram vistos como atribuição dos professores, cuja prin-
cipal tarefa era a de cuidar das questões “educacionais”. Mas, hoje em
dia, os professores começaram a falar da situação e do progresso do
“desenvolvimento” dos alunos, e não apenas de seu desempenho
acadêmico, e, cada vez mais, vêm dando atenção à necessidade de coo-
perar de maneira mais estreita com os pais.
Essa integração ascendente, na qual as pré-escolas vêm influenciando
as escolas, é surpreendente para as pessoas de fora, uma vez que o que
costuma ser esperado é exatamente o oposto. Ela também é significativa,
na medida em que sinaliza o início de mudanças há muito esperadas nas
escolas, em favor de uma estrutura de aprendizado ao longo de toda a
vida, que coloque forte ênfase no aluno. Na mesma medida em que são
inesperadas e significativas, essas mudanças também são complexas, em
termos de como elas ocorreram. Elas são o resultado de um conjunto
de políticas que têm origem não apenas no setor educacional, mas tam-
bém nos setores sociais e econômicos, para não mencionar os fatores

20
financeiros e ideológicos. As reformas e suas conseqüências têm de ser
vistas nesse contexto mais amplo. Mas é significativo que essa integração
ascendente tenha sido, afinal de contas, uma meta política, estabelecida e
perseguida de forma explícita pelo governo, como ilustrado a seguir.
Na década de 80, quando o governo tentou reduzir a idade de in-
gresso na escola, as pessoas objetaram, vendo essa idéia como uma ten-
tativa de encurtar a primeira infância, que os suecos vêem como a fase
áurea da vida. A proposta foi rejeitada, e o enfoque adotado, desde
então, foi o de importar para as escolas a pedagogia da pré-escola, mais
do que ampliar o ensino escolar para abranger as crianças mais jovens.
Em 1991, quando foi votado o projeto de lei sobre a Flexibilização da
Idade de Ingresso na Escola, permitindo que crianças de seis anos de
idade iniciassem sua escolarização, caso fosse da vontade de seus pais, o
ministro da educação ressaltou que o desenvolvimento integral das crian-
ças deveria ser uma preocupação de todos os professores, enfatizando
que esse desenvolvimento integral era importante não apenas para os
alunos mais jovens, mas também para seus colegas mais velhos. Em
1996, quando o primeiro-ministro divulgou sua idéia de educação ao
longo de toda a vida, para a Suécia, ele afirmou que o ensino pré-escolar
deveria ser parte dessa visão da educação, e que ela deveria exercer influ-
ência sobre o ensino escolar, ao menos em seus primeiros anos.
Essas declarações públicas foram acompanhadas de ações políticas
concretas, visando a levar a pedagogia da pré-escola para as escolas
primárias. Um estudo nacional, realizado em 1994, “As Bases do
Aprendizado por Toda a Vida: Uma Escola Voltada para a Maturidade
das Crianças”, incentivava as escolas suecas a se tornarem mais sensíveis
às necessidades e estilos de aprendi-zagem de cada criança,
individualmente. Seu argumento era que a integração das pré-escolas nas
escolas permitiu que as primeiras transformassem as últimas. Esse ponto
foi devidamente levado em consideração na revisão dos currículos esco-
lares11, que incorporaram muitas das práticas pedagógicas das pré-esco-

11
Essa revisão foi necessária para abranger as turmas de pré-escola para crianças de
seis anos e os Centros de Horas de Lazer, uma das principais formas de serviços de
cuidados infantis para as crianças de idade escolar integradas às escolas em 1991.

21
las. O aprendizado veio a substituir o ensino, transferindo o foco sobre os
professores para o foco nos alunos. As atividades artísticas e o brincar,
de importância central nas atividades pré-escolares, foram reconhecidos
como meios importantes de aprendizagem e comunicação para as crianças
de idade escolar. Estabelecendo essas atividades como metas pedagógicas
da escola, o currículo revisado facilitou a integração ascendente.
Os cuidados e a educação para a primeira infância muitas vezes são
vistos como a última fronteira a ser conquistada, para que completemos
o quadro de um sistema educacional capaz de promover o aprendizado
permanente,12 que deve começar a partir do nascimento. Desse ponto
de vista, a primeira infância é um elo que falta, uma vez que, na maioria
dos casos, ele não faz parte do sistema educacional dos países, ou do
enfoque do aprendizado por toda a vida. A experiência sueca mostra
que esse elo faltante tem o potencial de galvanizar os esforços de um país
no sentido de tornar as escolas mais centradas no aluno, de modo a
provocar uma mudança de paradigma, na qual cuidados, desenvolvimento e apren-
dizagem não mais serão conceitos alheios ao conceito de educação. Mas
essa integração não implica, necessariamente, que tenhamos de encontrar
esse elo faltante e encaixá-lo na estrutura existente, ou que um setor tenha
de absorver o outro – principalmente, as escolas absorvendo as pré-
escolas. É perfeitamente possível que escolas e pré-escolas venham a
construir uma visão comum dos cuidados, do desenvolvimento e do
aprendizado das crianças.
O mais importante é que a reforma sueca dos cuidados para as
crianças representa para nós um desafio, incitando-nos a ir além da
primeira infância e a desenvolver uma abordagem nova e holística do
trabalho com crianças, que irá abranger seu desenvolvimento e sua
aprendizagem segundo um conceito unificado de infância, indo do
nascimento aos 18 anos de idade,13 do qual a primeira infância é parte
integrante e indispensável.

12
O sistema educacional (formal) é um subconjunto do sistema de educação contínua,
que envolve não apenas o aprendizado formal, mas também o não formal e o
informal.
13
A definição da infância, segundo a Convenção dos Direitos da Criança.

22
3. RELAÇÃO ENTRE MULHERES,
TRABALHO E PRIMEIRA INFÂNCIA:
PAÍSES ESENVOLVIDOS E EM
DESENVOLVIMENTO*

O tópico é tratado em duas partes. A primeira parte cobre a relação


entre as mulheres trabalhadoras e as políticas governamentais voltadas
para a assistência aos filhos pequenos de pais que trabalham. A hipóte-
se apresentada é que essa relação talvez não seja tão pronunciada nos
países em desenvolvimento quanto o é nos países desenvolvidos, em
razão da diferença entre as situações empregatícias das mães que
trabalham, nessas duas regiões. Dados relativos aos países desenvolvi-
dos são apresentados e discutidos, e os dados sobre o emprego femi-
nino nos países em desenvolvimento, bem como uma discussão sobre
suas implicações no tocante à primeira infância e às políticas de assis-
tência à família, são tratados na segunda parte.

3.1 – TRABALHO FEMININO E SERVIÇOS PARA A


PRIMEIRA INFÂNCIA
Tanto os cuidados e a educação para a primeira infância quanto os
benefícios e serviços1 direcionados aos pais com filhos pequenos, nos

* Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early
Childhood) número 4, de junho de 2002, e número 5, de julho-agosto de 2002.
Elaboradas pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de
Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www.unesco.org/education/educprog/
ecf/index.htm). O material de referência foi fornecido pela Dra Val Podmore, da
Victoria University, da Nova Zelândia.
1
Licenças-maternidade, paternidade ou parental; benefícios fiscais; auxílio financeiro
às crianças; etc.

23
países industrializados, se desenvolveram pari passu com o aumento da
participação das mulheres no mercado de trabalho. Na medida em
que um número maior de mães trabalha fora, coloca-se a questão de
como cuidar das crianças pequenas deixadas em casa.
Nos países desenvolvidos, as respostas dos governos à necessidade
e à demanda de cuidados e educação para a primeira infância e de
benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças, nem
sempre foram uniformes. Os países com fortes convicções relativas
à igualdade entre os gêneros e à democracia social (os países nórdicos,
por exemplo) reagiram de maneira rápida e positiva, com medidas
destinadas a reconciliar as neces-sidades do trabalho e da família.
Porém, os países caracterizados por ideologias liberais e orientadas
para o mercado (os Estados Unidos, o Reino Unido e a Austrália,
por exemplo) tenderam, até tempos recentes, a deixar a questão a
cargo das famílias, minimizando a participação do governo. Os
enfoques também variam. Alguns países concentraram-se na assis-
tência aos pais (tanto pais quanto mães) e, outros, em oferecer serviços
voltados para as crianças.
Nos países industrializados, o emprego feminino decerto que não
foi o único fator a exercer influência sobre o desen-volvimento dos
cuidados e da educação para a primeira infância e dos benefícios e
serviços destinados às famílias. A proteção às crianças foi uma
preocupação que ganhou importância em inícios do século XX,
juntamente com o aprimoramento do desen-volvimento das crianças
e a necessidade de prepará-las para a escola primária. Em tempos mais
recentes, a crescente valorização da educação, como base para o
aprendizado permanente da criança, levou muitos países desenvolvi-
dos a voltar sua atenção política a esses temas.
No mínimo, a presença de um maior número de mães trabalhadoras
conscientizou os governos quanto às questões relativas aos cuidados e
à educação para a primeira infância e aos benefícios e serviços destinados
às famílias, que, anteriormente, eram vistos como assuntos da alçada
particular das famílias. Em muitos casos, o crescimento da força de
trabalho feminina levou os governos a examinar esses temas de maneira

24
mais minuciosa, em todos os setores das políticas públicas.2 Não há dúvida de
que a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho é
uma das razões mais freqüentemente mencionadas para justificar a
participação dos governos nesse setor.3
Com o envelhecimento e o decréscimo de suas populações, a
expansão de seu setor de serviços e o aumento do nível educacional
das mulheres, é provável que os países desenvolvidos assistam a um
crescimento ainda mais rápido do emprego feminino, e as políticas
para reconciliar as responsabilidades do trabalho e da família continuarão
a ser de importância crítica para suas estratégias econômicas e sociais.4
A causalidade entre o emprego feminino e a expansão dos cuidados e
da educação para a primeira infância e dos benefícios e serviços
destinados às famílias dessas crianças é de difícil quantificação, mas a
inter-relação é indiscutível.
Será possível esperar que o mesmo venha a ocorrer nos países em
desenvolvimento, com o crescimento do emprego feminino estimu-lando
a preocupação e o apoio dos governos ao desenvolvimento dos cuidados
e da educação para a primeira infância e dos benefícios e serviços desti-
nados às famílias com filhos pequenos? Antes de responder a essa per-
gunta, temos de entender um aspecto particular do vínculo entre o
emprego feminino e as políticas dessa natureza. O fato é que a demanda
explícita por esses serviços e benefícios não se manifesta em todos os tipos de
emprego feminino, mas, principalmente, naqueles que exigem que a mãe
se ausente de casa, impossibilitando-a de desempenhar o papel de cuidar
da casa e da família em tempo integral. Falando em termos de situação

2
CALLISTER, P.; PODMORE, V. N. Striking a balance: families, work and early
childhood education. Wellington: New Zealand Council for Education Research,
1995.
3
OLMSTED, P.; WEIKART, D. (1989). How nations serve young children: profiles of
child care and education in 14 countries. Michigan: The High/Scope Press, 1989.
OECD. Early Childhood education and care policy in the Netherlands, Portugal,
the US, and Sweden. OECD Country Notes, 1999. Disponível em <http://
www.oecd.org>. STARFIELD, B. Starting strong: early childhood education and
care. (2001). Paris: OECD, 2001.
4
OECD. OECD employment outlook, 2000 (2001). Paris: OECD, 2001.

25
empregatícia, o trabalho assalariado tem maiores probabilidades de au-
mentar a demanda por cuidados e educação para a primeira infância e
por benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças do que o
trabalho de colaboração familiar não-remunerada.5
Isso, obviamente, não significa que as mães que trabalham em
atividades não-assalariadas, ou que trabalham em casa ou na vizinhança,
não tenham necessidade de cuidados e educação para a primeira infância
e de benefícios e serviços destinados à família. Na verdade, qualquer
mãe trabalhadora, independentemente do tipo de trabalho exercido
por ela, arca com a sobrecarga de acumular as duas responsabilidades,
no mínimo mais do que ocorreria com um pai, na mesma situação. E,
tendo em vista as maiores dificuldades muitas vezes enfrentadas pelos
trabalhadores não-assalariados (por exemplo, jornada de trabalho mais
longa e irregular, trabalho intensivo de mão-de-obra, sazonal e de baixa
remuneração), sem falar do fator da pobreza, é possível que, no caso
das mães não-assalariadas, a necessidade de cuidados e educação para a
primeira infância e de benefícios e serviços destinados às famílias seja
equivalente, se não maior que a das mães assalariadas.

5
Estas são as três grandes categorias da situação empregatícia reconhecidas pela OIT:
“Empregados são todos os trabalhadores que têm empregos definidos como trabalho
assalariado, onde os funcionários em questão têm contratos empregatícios explícitos
ou implícitos que lhes dão uma remuneração básica que não seja diretamente dependente
dos rendimentos da unidade para a qual eles trabalham.” Os trabalhadores autônomos
são “aqueles cuja remuneração depende diretamente dos lucros derivados da produção
de bens e serviços e, como tal, podem contratar uma ou mais pessoas para trabalhar
para eles”. Os que trabalham em regime de colaboração familiar são “aqueles que têm
um trabalho autônomo em um estabelecimento voltado para o mercado, administra-
do por um parente que mora na mesma casa”. O trabalhador familiar não-remunerado
trabalha “sem remuneração em um negócio administrado por um parente que mora na
mesma casa”. Uma alta proporção dos trabalhadores que operam ndependentemente,
administrando sua própria empresa, indica um crescimento lento do setor formal e um
crescimento rápido do setor informal do mercado de trabalho. Uma alta proporção de
pessoas que trabalham em atividades familiares não-remuneradas está associada a
desenvolvimento lento, mercado de trabalho fraco e economia rural. Uma economia
que apresenta um setor informal de grandes proporções tende a ter uma maior
proporção de trabalho autônomo e de trabalho familiar não-remunerado. ILO. Key –
indicators of the labour market, 2001-2002. Geneva: OIT, 2003.

26
Mas uma distinção tem de ser feita entre a demanda e a necessidade
de cuidados e educação para a primeira infância e de benefícios e ser-
viços destinados a suas famílias. Uma necessidade não se traduz, neces-
sariamente, em demanda, a não ser que o agente responsável pela oferta
seja levado a perceber essa necessidade e sinta-se obrigado a atendê-la.
Quanto a isso, o trabalho assalariado é mais vantajoso que o trabalho
autônomo ou o trabalho de colaboração familiar não-remunerada, no
sentido de que ele tem maiores probabilidades de ser reconhecido como
trabalho. Além disso, ele acontece em ambientes onde a ação coletiva e
as negociações visando ao bem-estar dos trabalhadores é possível e
mais freqüente. Desse ponto de vista, se a mãe tem um emprego que
ela exerce em casa ou na vizinhança, a demanda explícita por cuidados
e educação para a primeira infância e por benefícios e serviços destina-
dos à família não seria tão grande quanto se ela trabalhasse fora de
casa, apesar de a necessidade não ser menor.
Da perspectiva única da situação empregatícia da mulher6, a ques-
tão de se os países em desenvolvimento seguirão o padrão estabeleci-
do pelos países desenvolvidos, em termos de cuidados e educação
para a primeira infância e de benefícios e serviços destinados às famí-
lias dessas crianças, parece admitir respostas tanto positivas quanto ne-
gativas. As pesquisas de mercado de trabalho prevêem que os países
em desenvolvimento tendem a, futuramente, adotar um padrão de
mudanças na participação da força de trabalho semelhante ao dos pa-
íses desenvolvidos.7 Os dados mostram que as trabalhadoras dos paí-
ses em desenvolvimento estão, de fato, se afastando do setor informal
(por exemplo, na agricultura), indo para a indústria, os serviços e o
comércio, e passando do trabalho de colaboração familiar não-remu-

6
A demanda explícita por cuidados e educação na primeira infância e benefícios e
serviços para a família também pode ser influenciada pela existência de outras
pessoas da família dispostas a tomar conta das crianças enquanto os pais estão
trabalhando fora, pelas atitudes culturais e pelas tradições com relação às mulheres
e à sua participação social, e também pelo grau de percepção que as mulheres têm de
que sua situação é função de sua condição de ser mães, para não falar do sistema
ideológico e político do país.
7
ILO. Op. cit..

27
nerada para o trabalho assalariado.8 Prevê-se, desse modo, que, nos
países em desenvolvimento, o número de mulheres que trabalham fora
de casa virá a crescer, com um aumento correspondente das necessida-
des explícitas e, o que é mais importante, da demanda por cuidados e
educação para a primeira infância e por benefícios e serviços destina-
dos às famílias dessas crianças.
No entanto, o vínculo entre o emprego feminino e o apoio
governamental a esses serviços e benefícios, nos países em desen-
volvimento, tende a se solidificar de forma mais lenta. Esse prog-
nóstico pouco tem a ver com o tamanho real da força de traba-
lho feminina nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, uma
vez que não há diferença particular entre eles. Por exemplo, em
1998, a força de trabalho feminina, como percentual da força de
trabalho total nos países de baixa renda, de renda média, de renda
baixa e média e de alta renda era de 40,6%, 38,6%, 40,1% e 42%,
respectivamente.9
Considerando a situação do emprego feminino, entretanto, uma grande
disparidade é verificada entre norte e sul, o que, ao que se supõe, explicaria
a diferença entre a demanda explícita por cuidados e educação para a
primeira infância e por benefícios e serviços destinados às famílias dessas
crianças, nessas duas regiões. Nos países desenvolvidos, a maioria das
mulheres trabalha em empregos assalariados, ao passo que, nos países
em desenvolvimento, principalmente na Ásia-Pacífico e na África, a
maioria delas, ao que tudo indica, exerce trabalhos não-remunerados
de cooperação familiar. Nos países desenvolvidos, a participação das

8
Essa tendência é particularmente pronunciada na América Latina e no Caribe.
9
Indicadores Mundiais de Desenvolvimento (2002). Banco Mundial. Quando são comparados
os índices de participação das mulheres entre 24 e 54 anos na força de trabalho, os
países em desenvolvimento apresentam um índice ainda maior que o dos países desen-
volvidos: a média dos 21 países em desenvolvimento com relação à situação de Baixo
Desenvolvimento Humano, identificada no Relatório sobre Desenvolvimento Hu-
mano de 2001 (PNUD) para os anos de 1995-2000 foi de 78.4%, ao passo que, nos
países desenvolvidos, em 1999-2000 (com exceção da Grécia, cujos dados são de
1998) a média foi de 72%. Dados calculados com base em ILO. Op. cit..

28
mulheres no mercado de trabalho começou com empregos remune-
rados em fábricas, escritórios e atividades de serviços, que surgiram à
medida que a industrialização se disseminava pela maior parte da Eu-
ropa Ocidental e da América do Norte, em inícios do século XX.
Como mostrado na tabela 1 a seguir, a maioria das mulheres trabalha-
doras, nos países desenvolvidos, já alcançou condição assalariada.

Tabela 1: População Feminina Economicamente Ativa por Setor em


Países Desenvolvidos Selecionados (1946-1960), como % da
totalidade do setor10
Discriminação setorial
País Ano Empregadores/ Empregados Trabalhadores Sem
trabalhadores assalariados familiares não- classificação
autônomos 11 remunerados
Finlândia 1960 8,9 64,7 26,2 –
França 1954 13,8 58,0 25,9 2,1
Alemanha 1961 7,3 70,6 22,0 –
Itália 1951 11,0 58,0 24,2 6,7
Noruega 1946 11,5 88,4 – –
Suécia 1950 10,6 83,8 5,1 0,4
Fonte: OIT. Anuário de Estatísticas do Trabalho: edição retrospectiva sobre
censos populacionais. 1945-1989. Genebra: OIT, 1990.

No caso da Noruega, 88,4% das mulheres economicamente ativas,


em 1946, eram assalariadas, e esse índice foi alcançado apesar de a
participação total das mulheres na força de trabalho ser de menos de
25%,12 o que sugere que o trabalho assalariado foi o que, desde o início,
atraiu as mulheres para o mercado de trabalho. Também é interessante
destacar que a Noruega e a Suécia, dois dos países mais desenvolvidos
em termos de apoio governamental aos cuidados e à educação para a

10
Calculados a partir de dados fornecidos no Anuário. Dados sobre outros países
desenvolvidos que não estão incluídos na Tabela apresentam o mesmo padrão.
11
Empregador/trabalhador autônomo é a pessoa que administra seu próprio negócio,
ou pratica de forma independente uma profissão ou negócio.
12
Os índices da população feminina economicamente ativa como porcentagem do
total nos outros países, nos anos mencionados. foram: 39,3% (Finlândia), 34%
(França), 37% (Alemanha), 25,4% (Itália) e 29,7% (Suécia).

29
primeira infância e aos benefícios e serviços destinados às famílias des-
sas crianças, tinham os maiores índices de mulheres trabalhando em
atividades assalariadas. Em 1985, na Suécia, a população de mulheres
economicamente ativas trabalhando em base assalariada já alcançava
96,5%. Segundo dados recentes da OCDE, a proporção do trabalho
feminino em atividades familiares não-remuneradas tem caído de for-
ma constante, em 11 de seus 13 países-membros.13

3.2 – SITUAÇÃO EMPREGATÍCIA DAS MULHERES NOS


PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO E IMPLI-CAÇÕES
PARA POLÍTICAS PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA
A maior parte das trabalhadoras mulheres, nos países em desenvol-
vimento, particularmente na região Ásia/Pacífico e na África, não tem empregos
assalariados. Nessas regiões, as mulheres trabalham principalmente na agri-
cultura, na condição de trabalhadoras em atividades familiares não-remune-
radas. Na África Subsaariana, a maioria da população feminina economica-
mente ativa trabalha na agricultura (68%).14 Na Ásia e no Pacífico, essa tendência
é tão mais pronunciada quanto mais baixo for o nível de renda do país,
sendo que, nos países menos desenvolvidos da região, cerca de 78% das
trabalhadoras mulheres estão empregadas na agricultura (tabela 2).
Segundo os dados disponíveis sobre a situação empregatícia em alguns
países em desenvolvimento, as trabalhadoras com empregos assalariados
perfazem menos de 10% do total (tabela 3). A preponderância das
trabalhadoras mulheres nos empregos não-assalariados, contudo, não é
uniforme em todos os países em desenvolvimento. Na América Latina e
no Caribe, a proporção de mulheres que trabalham sem remuneração
em atividades familiares caiu consideravelmente, sendo que, hoje, a maioria
das mulheres é ou assalariada ou autônoma. Mas o florescimento do

13
Em dados de séries temporais, cobrindo o período de 1990 a 1997, com valor médio
de 1,3% (Austrália), variando entre 0,2% (Estados Unidos) e 24% (Grécia). Referência:
ILO. World Employment Report: life at work in the information economy (2001).
Genebra: OIT, p. 21. In: OECD. OECD: employment outlook 2000. Op. cit. p. 21.
14
WORLD BANK. African Development Indicators (2002). Washington, DC: World Bank, 2002.

30
Tabela 2: Força de Trabalho Feminina por Divisão Industrial na Ásia e
no Pacífico (1990), como % da totalidade dos setores15

Grupo de Renda Setor Econômico


Agricultura Indústria Serviços
Menos desenvolvido 77,8 13,5 8,6
Baixa renda 73,7 14,2 11,9
Renda média 65,7 15,3 18,8
Alta renda 9,9 26,4 63,5
Total para a Cesap 16 64,6 15,7 19,6
Fonte: UNITED NATIONS. Statistics on women in Asia and the Pacific, 1999.
ILO. Economically active population, 1950-2010. Genebra: OIT, 1996. UNFPA.
World population prospect: the 1998 revision, New York: UNFPA, 1999.

setor informal nessa região17 sugere que muitas mulheres contadas como
assalariadas talvez não tenham situações empregatícias regularizadas, mas
se encontrem em situações marginais, como as que trabalham em casa
ou são trabalhadoras domésticas ou eventuais.

Tabela 3: Emprego de mulheres por situação empregatícia em


países em desenvolvimento selecionados (1991-97), como % da
situação empregatícia total
Situação de Emprego
País Ano Trabalhadoras em
Assalariadas Autônomas Colaboração
Familiar
Bangladesh 1991 5,,2 6,4 83,3
1996 8,7 7,8 77,3
Benin 1992 2,6 63,8 28,6
Etiópia 1994 4,0 25,4 69,6
1999 6,8 33,1 59,5
Uganda 1991 4,6 25,4 53,3
1994 6,7 39,1 54,0
Fonte: OIT. Key-Indicators of the labour market, 2001-02. Op. cit..

15
Calculados com base nos dados apresentados na referência citada.
16
CESAP – Comissão Econômica e Social para a Ásia e o Pacifico, o braço regional do
Secretariado das Nações Unidas para a região Ásia/Pacifico, com 52 estados-membros
(e nove membros associados).
17
De 47,4%, em 1990, para 50%, em 1998. ILO. World employment report: Life at work
in the information economy. Op. cit.

31
Nos países em desenvolvimento, supõe-se que a proporção de
mulheres que trabalham em situação não-assalariada seja maior que a
sugerida pelos dados disponíveis. Na maioria dos países, as estatísticas
sobre o setor informal provêm unicamente das áreas urbanas, e muitas
mulheres rurais, que trabalham informalmente, não são contadas. Além
do mais, a maioria das mulheres dos países em desenvolvimento dedica-
se a atividades que geralmente não figuram nas estatísticas trabalhistas,
ou sequer são reconhecidas como trabalho, como a agricultura de sub-
sistência e o trabalho doméstico. Embora essas atividades sejam de
importância vital para a sociedade e para a economia doméstica, elas
não têm reconhecido seu valor de mercado.
As principais conclusões a serem extraídas dessas observações
são, em primeiro lugar, que não se pode ter como certo que as
mães, nos países em desenvolvimento, estejam disponíveis para
cuidar das crianças em tempo integral e, em segundo lugar, que,
nesses países, a demanda por cuidados e educação para a primeira
infância e por benefícios e serviços destinados às famílias dessas
crianças é enorme, entre as mães que trabalham. Essa demanda,
contudo, não é explícita.18 Para que os governos se sintam motivados
a intensificar sua participação e seus investimentos nos cuidados e
na educação para a primeira infância e nos benefícios e serviços
destinados a suas famílias, essa demanda oculta tem de ser tornada
manifesta. Para tal, as estatísticas sobre a força de trabalho têm de
se tornar mais sensíveis às questões de gênero, mais especificamen-
te, conferindo valor de mercado aos trabalhos de tipo não-assalariado
e ao trabalho familiar não-remunerado – aos bens produzidos em
casa pelas mulheres (Myers, 1992).19
Também deve haver disponibilidade de dados que demonstrem
que as mães que desempenham trabalhos não-assalariados não têm
condições de cuidar de seus filhos em tempo integral. A ironia é que,
apesar de suas dificuldades, as mães que trabalham em situação não-

18
Nas áreas rurais, a presença de parentes e avós também contribui para mascarar a
demanda por esses serviços e benefícios.
19
MYERS, R. The twelve who survive. London: Routledge, 1992.

32
assalariada, principalmente as que possuem baixa escolaridade e
trabalham na agricultura, em áreas rurais, tendem a acumular as res-
ponsabilidades pelo trabalho e pela família, geralmente com maior fre-
qüência que as assalariadas.20 Muitas dessas mulheres simplesmente não
têm alternativa, mas essa carga dupla só faz perpetuar o mito de que as
“mulheres que ficam em casa” têm disponibilidade para cuidar dos
próprios filhos, não necessitando de cuidados e de educação para a
primeira infância e de benefícios e serviços destinados a suas famílias.
Nos países em desenvolvimento, essas observações trazem
implicações quanto às políticas que tratam dos cuidados e da educação
para a primeira infância e dos benefícios e serviços destinados às famílias
dessas crianças.
Em primeiro lugar, não há grande probabilidade de as medidas de
assistência à família, tais como licença parental, concedidas nos países
desenvolvidos a pais e mães de filhos menores de dois anos,21 virem a
ser adotadas nos países em desenvolvimento, pelo menos em um futu-
ro próximo. A razão para tal é que, além dos obstáculos óbvios, como
as limitações de recursos, os governos dos países em desenvolvimento
têm dificuldade em fornecer esses serviços de assistência à família à
população-alvo, devido ao problema técnico de mapear a presença de
mães e pais que trabalham no setor informal, uma vez que inexistem
instrumentos contratuais. Os sistemas de licença parental exigem uma
estrutura administrativa sofisticada de acompanhamento das condições
e da situação empregatícia dos pais.
Em segundo lugar, dado o custo por criança relativamente alto, os
serviços institucionais para crianças de menos de três anos também
estão fora das possibilidades da maioria dos países em desenvolvimento.
No que diz respeito aos cuidados e à educação de crianças pequenas
em seus primeiros anos de vida, uma alternativa possível seria educar
os pais para as tarefas básicas de higiene, alimentação e interação com

20
ZAMBIA. Statistics Centre of Zambia. Zambia demographic health survey, 1996. Zambia:
Statistics Centre of Zambia.
21
Ou, no máximo, de três anos de idade.

33
a criança. A educação dos pais, que não exige um sistema administrativo
sofisticado, uma vez que pode ser oferecida por meios não formais,
pode vir a ter um impacto significativamente positivo no desenvolvi-
mento da primeira infância, aumentando a eficiência dos pais como
educadores de seus filhos pequenos. A educação parental não ajuda a
resolver o problema da ausência dos pais, mas faz com que eles se
tornem mais eficientes na educação de seus filhos pequenos nas horas
em que estão presentes.
No entanto, como afirmado acima, as mães em situação carente, o
principal grupo-alvo dos programas de educação parental, não têm muito
tempo livre para assistir a essas aulas. Por essa razão, foram formulados
programas domiciliares, a fim de mobilizar mães para atuar como educa-
doras coletivas de primeira infância para grupos de crianças que moram na
vizinhança. Essa solução permite que as mães trabalhem, enquanto seus
filhos estão sendo cuidados por alguém que recebeu um mínimo de trei-
namento. No entanto, os programas domiciliares e os de educação parental
não devem ser vistos como alternativas permanentes, não devendo substituir,
em base definitiva, os investimentos governamentais em cuidados
profissionais e educação para crianças carentes. Além disso, para que uma
maior qualidade seja alcançada, esses programas também exigem apoio e
participação governamental, a fim de montar a necessária infra-estrutura
administrativa.
Por fim, no longo prazo, os investimentos na educação de meninas e
mulheres exercerá um efeito sinérgico sobre o desenvolvimento dos
cuidados e da educação para a primeira infância e dos benefícios e serviços
destinados às famílias. Já foi demonstrado que o nível educacional das
mães guarda uma correlação negativa com suas taxas de fertilidade: as
mães de maior nível educacional têm menos filhos. Famílias pequenas, por
sua vez, permitem que o governo aumente seus gastos com cada criança,
nos investimentos em serviços voltados para a primeira infância, aumen-
tando assim o acesso a eles e sua qualidade. As mães com maior
escolarização não necessitam de educação parental extensiva, e tampouco
precisam ser convencidas da importância dessa educação, o que já não
ocorre com as mães de menor nível educacional. Essas mães mais educadas,
além disso, têm maiores probabilidades de estar empregadas no setor

34
formal22, e a maior visibilidade de sua presença na economia aumenta a
demanda explícita por cuidados e educação para a primeira infância e por
benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças, levando o
governo a fornecer esses serviços.
Os investimentos governamentais representam uma decisão política,
resultante do estabelecimento de prioridades. Para desencadear esse
processo, a demanda tem de ser claramente explicitada. As lúgubres
estatísticas sobre o desenvolvimento infantil (por exemplo, as taxas de
mortalidade infantil) talvez revelem a necessidade de cuidados e educação
para a primeira infância e de benefícios e serviços destinados às famílias,
mas, infelizmente, a necessidade, por si só, não basta para conquistar
investimentos públicos. Embora as mães não sejam as únicas beneficiárias
dos serviços e benefícios voltados para a primeira infância, elas são as
beneficiárias estratégicas, no sentido que é delas a voz capaz de manifestar
essa demanda. Nesse particular, incentivar as mulheres, por meio de uma
melhor educação, a ter uma participação mais ativa no mercado de trabalho
formal, não é apenas uma estratégia econômica acertada, mas também
uma boa estratégia para o fomento dos cuidados e da educação para a
primeira infância e dos benefícios e serviços destinados às famílias. Da
mesma forma, os investimentos nesses serviços e benefícios representam
um reforço para o desenvolvimento positivo das crianças, o que, por sua
vez, é uma estratégia econômica acertada, uma vez que esses investimen-
tos, no longo prazo, se traduzirão em economia, em termos de progra-
mas sociais e educacionais de natureza corretiva.

22
Nos países-membros da União Européia, as mães de maior nível educacional têm
probabilidades duas ou três vezes maior de trabalhar, mesmo tendo filhos pequenos,
do que as mães de menor escolaridade.

35
4. SERVIÇOS DE BASE DOMICILIAR
PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA: O CASO
DA NOVA ZELÂNDIA*

O principal objetivo desta nota é fornecer breves informações so-


bre os serviços para a primeira infância existentes na Nova Zelândia,
ressaltando a importância do papel desempenhado pelo governo no
apoio à qualidade dos serviços oferecidos às crianças em creches do-
miciliares. Pretende-se que essas informações sejam de utilidade para
outros países que estejam desenvolvendo políticas de cuidados e de
educação de base domiciliar. Cada vez mais, as creches domiciliares, na
Nova Zelândia, orientam-se para a educação e buscam oferecer
diversidade. Esta nota resume os principais detalhes e as impli-cações
importantes, em termos de participação e administração (financiamen-
to, avaliação, regulamentação, qualificação da equipe profissional,
currículos etc.).

DEFINIÇÃO
As creches domiciliares oferecem cuidados e educação a um pe-
queno grupo de crianças, na casa de uma “mãe-crecheira”. Esses servi-
ços (também conhecidos como “creches familiares”) são definidos pelo
Ministério da Educação como “um conjunto de casas de família funci-

* Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early
Childhood) número 6, de setembro de 2002. Elaborada por Valerie N. Podmore,
Instituto de Estudos sobre a Primeira Infância, Victoria University, Wellington,
Nova Zelândia. Publicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Famí-
lia. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www.unesco.org/education/
educprog/ecf/index.htm). A autora agradece à Dra Anne Meade e à Jane Couch,
que foram de grande auxílio na revisão de uma versão anterior desta nota.

37
onando sob a supervisão de um coordenador de base domiciliar. Esse
coordenador distribui as crianças entre as diversas creches familiares
previamente aprovadas, onde elas permanecerão por um número
preestabelecido de horas semanais”1. Diferentemente do serviço privado
oferecido na casa da própria criança (babás ou empregadas), acessíveis
apenas às classes mais privilegiadas, as creches domiciliares atendem a
famílias de diferentes faixas de renda.

DESENVOLVIMENTO E PARTICIPAÇÃO
Em fins do século XX, na Nova Zelândia, como também em outros
países industrializados, o aumento dos índices de participação das
crianças em serviços de educação para a primeira infância desenvolveu-
se simultaneamente a uma maior participação das mulheres no mercado
de trabalho. Em 2001, uso mensurado dos serviços voltados à primei-
ra infância por crianças de zero a cinco anos atingiu 60%. No período
1990-2000, o percentual de crescimento das matrículas nos serviços de
creches domiciliares foi maior que os dos demais serviços de
atendimento à primeira infância (ver tabela 1). A principal razão para
esse aumento das matrículas nesses serviços (e em serviços de “educação
e cuidados”), e para a diminuição das matrículas nos “centros de lazer”
(centros criados e administrados por cooperativas de pais) foi o
crescimento do trabalho assalariado entre as mães. Os pais de bebês e
crianças pequenas muitas vezes preferem uma creche domiciliar a um
centro de lazer, por optarem por um ambiente familiar.2
Em 2001, havia 184 creches domiciliares funcionando na Nova
Zelândia, atendendo a 8.546 crianças de zero a cinco anos. A principal
clientela dessas creches domiciliares são crianças neozelandesas de origem
européia e de origem maori (7.015 e 1.012, respectivamente).3 Um
número ligeiramente maior de meninos que de meninas estava matri-

1
Disponível em: <http://www.minedu.govt.nz/webment_page.cfn?id=6189&p=1037.3832.
6120/>.
2
CALLISTER, P.; e PODMORE, V. N. et al. Striking a balance: families, work and early
childhood education: Wellington:Educational Research Council of New Zealand, 1995.

38
Tabela 1: Número de matrículas de Crianças Pequenas, na Nova
Zelândia, por Tipo de Serviço, com Percentual de Mudança entre
1990 e 2001
Tipo de serviço 3 1990 2001 % de
mudança
Serviços licenciados para a primeira infância
ƒ Jardins de infância 43.792 45.439 3,8
ƒ Centros de lazer 22.668 14.786 -34,8
ƒ Serviços de educação e cuidados 29.786 73.192 145,7
ƒ Creches domiciliares 1.611 8.546 430,5
ƒ Escolas por correspondência* 861 947 10,0
ƒ Te Kohanga Reo 10.108 9.594 -5,1

Serviços para a primeira infância isentos de


licenciamento
Financiados pelo Desenvolvimento para a Primeira
Infância
ƒ Grupos de brincadeiras 5.565 15.457 177,8
ƒ Nga Puna Kohungahunga** ... 209 ...
ƒ Grupos de PI para as Ilhas do Pacífico 2.729 2.545 -6,7
ƒ Centros de lazer .. 404 –
ƒ Kohanga Reo isento de licenciamento .. 214 –

Total 117.120 171.333 46,3


.. não-disponível / ... não-aplicável /*inclui matrículas duplas / ** incluídos nos
grupos de brincadeiras nos anos anteriores.
Fonte: Unidade de Administração de Dados do Ministério da Educação da Nova
Zelândia, julho de 2002.

3
Uma definição sumária desses serviços seria: Jardins de infância: estabelecimentos
independentes, gerenciados pela comunidade e funcionando em turnos (adminis-
trados por associações regionais) para crianças de três e quatro anos. Centros de
lazer: cooperativas de pais, funcionando em turnos (administrados por associações
regionais) para crianças a partir do nascimento até a idade de ingresso na escola. Os
educadores e administradores são os pais das crianças matriculadas. Centros de
educação e cuidados: centros de cuidados infantis, com diversos regimes de proprie-
dade e administração, em tempo integral ou turnos distintos. Creches domiciliares:
as crianças são cuidadas em casas de família e, nas últimas décadas, muitas vezes,
sob os auspícios da Barnardo’s NZ. Escolas por correspondência: as primeiras etapas
do ensino são ministradas a distância, sendo oferecidas pela escola por
correspondência do estado. Te Kohanga Reo: total imersão das crianças, do nasci-
mento até o ingresso na escola, na cultura, na língua e nos valores maoris. Os
estabelecimentos são administrados por um venerável conselho de anciãos maoris.
Os educadores e administradores são os pais ou os membros mais velhos da
comunidade maori.
4
Disponível em: <http:www.minedu.govt.nz>.

39
culado em 2001 (4.405 meninos e 4.141 meninas). Nesse mesmo ano,
havia 282 coordenadoras de creches domiciliares, todas elas mulheres.

ADMINISTRAÇÃO, FINANCIAMENTO, REGULAMEN-


TAÇÃO E QUALIFICAÇÕES
Anteriormente a 1986, na Nova Zelândia, o Departamento de Bem-
Estar Social era o principal responsável pela administração dos serviços
de creches domiciliares para a primeira infância. Em 1986, a responsa-
bilidade pela assistência às crianças (inclusive os serviços de base domici-
liar) foi oficialmente transferida do Departamento de Bem-Estar para o
Departamento de Educação.5 Atualmente, o Ministério da Educação é
responsável pela administração e pelo financiamento (parcial) dos serviços
de cuidados e educação oferecidos nas creches domiciliares. Todos os
estabelecimentos domiciliares recebem o mesmo nível de financiamento,
por criança e por hora, que o destinado aos serviços oferecidos em
instituições. Os níveis de financiamento, portanto, estão atrelados aos
índices de participação. Uma vez que as matrículas nas creches
domiciliares cresceram com relação aos demais serviços (tabela 1), o
mesmo ocorreu com os níveis de financiamento.
O crescimento dos serviços voltados para a primeira infância, inclusive
os domiciliares, foi acompanhado de pesquisas, de pressão exercida por
lobbies e de ações governamentais destinadas a elevar a qualidade desses
serviços. As pesquisas norte-americanas sobre creches domiciliares con-
firmam a importância de: licenciamento e regulamentação dos serviços,
qualificação dos provedores e disposição, por parte desses provedores,
de cuidar das crianças e aprender sobre desenvolvimento infantil e sobre
os cuidados dispensados às crianças.6 Foram poucos os estudos realizados
na Nova Zelândia que enfocaram, especificamente, a qualidade dos

5
Meade, A. e Podmore, V. N. (2002) Early childhood education policy co-ordination under the
auspices of the Department/Ministry of Education: A case study of New Zealand. UNESCO
Early Childhood and Family Policy Series nº 1. Paris, França.
6
P. ex., GALINSKY, E. et. alii. The study of children in family childcare and relative care.
Nova York: Families and Work Institute, 1994.

40
ambientes domiciliares,7 embora alguns estudos aprofundados, de pe-
quena escala, estejam atualmente em fase de execução. As iniciativas do
governo da Nova Zelândia no sentido de fomentar e monitorar a
qualidade dos serviços incluem exigências quanto a acompanhamento,
regulamentação e qualificação.
Os serviços de base domiciliar, como também outros serviços para
a primeira infância subsidiados por verbas públicas, são objeto de
acompanhamento externo pela Divisão de Acompanhamento
Educacional (Education Review Office – ERO), o departamento do governo
responsável pela divulgação da qualidade da educação oferecida pelos
serviços/escolas para a primeira infância. O ERO avalia a segurança
das crianças, os programas de aprendizagem e o desempenho da
administração. Os serviços de base domiciliar para a primeira infância
são regulamentados nos termos do Decreto da Educação (Cuidados
de Base Domiciliar) de 1992. Esse decreto especifica os requisitos quanto
a instalações e equipamentos, e exige que todos os coordenadores
tenham suas qualificações aprovadas pelo Secretário (o titular do
Ministério da Educação). No entanto, até o presente, não foram espe-
cificados requisitos de qualificação formal em questões de primeira
infância para os responsáveis pelas creches domiciliares. Estão sendo,
atualmente, implementadas mudanças nessas qualificações, no sentido
de exigir dos coordenadores dos serviços de base domiciliar um
diploma em licenciatura em educação infantil ou grau equivalente.8
Um relatório de plano estratégico, recentemente elaborado para o
Ministério da Educação, recomenda que o sistema de qualificações
para os educadores domiciliares necessita de maior desenvolvimen-
to. As novas exigências de qualificação para os coor-denadores dos
serviços domiciliares são idênticas às requeridas para os responsáveis
pelas instituições de atendimento à primeira infância. A estrutura cur-

7
EVERISS (1999), Bringing it back to mind: two decades of family day-care development
in New Zealand. Wellington: Institute for Early Childhood Studies, Victoria
University, 1999. (Occasional articles; 5).
8
Uma qualificação desse nível de diploma exige, no mínimo, dois anos de estudos em
tempo integral (ou equivalente), em uma instituição credenciada de ensino superior.

41
ricular (Te Whaariki) adotada e todos os serviços para a primeira infân-
cia são biculturais e uniformes em todo o país. O Te Whaariki foi
desenvol-vido em parceria com os maori (o povo nativo) e é pratica-
do também nos serviços de base domiciliar. Foram adotadas, ainda,
iniciativas políticas visando a incentivar o aperfeiçoamento dos servi-
ços por meio da auto-avaliação dos educadores.

IMPLICAÇÕES
Quais são as implicações para os países onde os programas de base
domiciliar estão em mãos de indivíduos, sem receber qualquer tipo de
supervisão ou financiamento por parte do governo? Na Nova Zelândia,
como também em outros países onde os governos vêm acatando os
resultados das pesquisas sobre os benefícios educacionais e sociais dos
serviços de educação e cuidados de alta qualidade para crianças pequenas,
as prioridades são o aumento da participação e a elevação da qualidade
de um amplo espectro de serviços. O atendimento dessas prioridades
pode vir a incluir:
• o desenvolvimento de infra-estruturas administrativas adequadas, de
regulamentação, de currículos e de sistemas de apoio;
• o fomento da qualidade por meio da educação (qualificação dos
coordenadores e das pessoas responsáveis por cuidar das crianças, com
treinamento profissional permanente).
Esses requisitos são importantes, a fim de evitar os problemas de
fragmentação administrativa e, principalmente, para elevar a qualidade
dos serviços. Uma das principais razões para o apoio e a regulamentação
por parte do governo é que a qualidade dos serviços para a primeira
infância, das creches domiciliares inclusive, está associada a benefícios
educacionais e sociais de longo prazo para as crianças e as famílias.

42
5. O PROGRAMA DE PRÉ-ESCOLA NA
LÍNGUA VERNÁCULA DE
PAPUA-NOVA GUINÉ*

A diversidade cultural e lingüística ocorre por diversas razões. Nos


países desenvolvidos, dentre essas razões, freqüentemente encontra-se
o ingresso de imigrantes, de refugiados e de estudantes estrangeiros,
enquanto um grande número de países em desenvolvimento sempre
conteve, dentro de suas fronteiras, uma diversidade de grupos lingüísticos.
Dentre os desafios colocados pela educação de crianças pequenas em
ambientes dessa natureza estão: promover a identidade nacional,
incentivar a participação na vida nacional, lidar com a globalização, a
língua e outras questões culturais, fornecer serviços, tanto nas áreas
rurais quanto nas urbanas, e distribuir os recursos fiscais.
Alguns países vêm tentando enfrentar esses desafios com uma política
de educação bilíngüe, estratégia essa que estende a educação básica a todos.
Esse objetivo não pode ser alcançado, a não ser que as línguas minoritárias
ou vernáculas sejam incluídas no sistema de educação formal.
Papua-Nova Guiné, uma nação insular situada no Pacífico Sul, ao
norte da Austrália e a leste da Indonésia, é um dos países em
desenvolvimento que possui uma política educacional bilíngüe. A
reforma do sistema educacional, que anteriormente usava
exclusivamente o inglês, teve início em 1995, após o movimento a

* Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early
Childhood) número 7, de outubro de 2002. Elaborada por Diane Wroge, do SIL
Internacional (anteriormente Instituto Summer de Lingüística), Papua-Nova Guiné.
Publicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de
Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www.unesco.org/education/educprog/
ecf/index.htm).

43
favor de pré-escolas não formais e de base comunitária usando a lín-
gua vernácula ter-se espalhado por todo o país. A partir de então, a
política governamental passou a exigir que o sistema nacional de ensino
formal incorporasse o ensino da língua vernácula nos primeiros anos
da escolarização das crianças e implementasse uma transição gradual
para o uso do inglês como uma das línguas de instrução.
Papua-Nova Guiné é um caso único em diversos sentidos, se com-
parada a outros países em desenvolvimento, sendo o país de maior
diversidade lingüística em todo o mundo, com 823 línguas vivas faladas
por uma população de 5,2 milhões de habitantes (Censo de 2000).
Apenas 50 mil pessoas falam inglês como primeira língua. A popula-
ção de cada grupo lingüístico é pequena, se comparada com outras
línguas nativas faladas no mundo, e 80% da população de Papua-Nova
Guiné reside em áreas rurais. Uma vez que o maior grupo lingüístico
possui apenas 165 mil pessoas, nenhum deles é numérica ou politica-
mente dominante. O multilingüismo é comum, e muitas pessoas falam
sua língua materna, uma ou ambas as línguas francas, o pidgin melanésio
e o hiri motu e/ou a língua oficial, o inglês. É importante observar que,
na Papua-Nova Guiné, o inglês é aprendido num contexto de língua
estrangeira, em grande parte por meio do sistema educacional, e não
em um contexto de segundo idioma. A maioria das pessoas tem pouco
contato com o inglês, exceto aquelas que moram nas proximidades
dos centros urbanos.
De 1870 até 1950, a maioria das escolas em Papua-Nova Guiné foi
fundada por missões, e as línguas vernáculas eram usadas como a língua
de instrução. Uma política dando exclusividade ao inglês foi adotada
na década de 50. Por ocasião da independência de Papua-Nova Guiné,
em 1975, essa política passou por uma revisão, embora tendo sido
mantida no Plano de Educação de 1975. A instrução nas línguas
vernáculas foi restabelecida em 1995.1

1
LITTERAL, R. Basic Education in Papua New Guinea: past, present and future. In: First
Faculty of Humanities Conference Bridging Borders: Moving Boundaries: Defining/
Redefining the Humanities into the New Millenium, Goroka, 30 Oct.-3 Nov. 2000
Report. Goroka, Papua New Guinea: University of Goroka, 2000.

44
Em 1979, pais de alunos moradores da ilha de Bougainville, na pro-
víncia de North Solomons, manifestaram sua preocupação de que o
sistema escolar exclusivamente de língua inglesa estava alienando seus
filhos de sua própria língua e cultura. As crianças que não passavam nos
exames de admissão à escola secundária tinham de retornar a suas aldei-
as, mas, então, não eram capazes de se reintegrar na vida de sua comuni-
dade. A proposta dos habitantes da ilha de Bougainville era oferecer a
seus filhos dois anos de educação pré-escolar em sua própria língua,
antes do primeiro ano da escola primária, na qual a língua oficial era o
inglês. O sistema das Vile Tok Ples Skul (VTPS) (escolas na língua da
aldeia) surgiu, então, como uma alternativa de ensino pré-escolar não
formal e de base comunitária. Mais tarde, essas escolas passaram a ser
chamadas de Tok Ples Pri Skul (TPPS) (pré-escolas de língua vernácula).
O governo da Província de North Solomons alocou uma grande
quantidade de profissionais e de recursos orçamentários nesse programa,
com o auxílio de uma organização não-governamental (ONG), que
elaborou o material necessário para a alfabetização nas línguas vernáculas.
Na década de 80, três outros governos provinciais e quatro outras
comunidades lingüísticas seguiram o exemplo de North Solomons. As
pré-escolas em língua vernácula rapidamente se espalharam pelo país,
sendo que as ONGs desempenharam um papel de importância vital
na maioria desses programas. Os membros da comunidade e as ONGs
promoveram pré-escolas vernáculas até mesmo nas províncias cujos
governos, inicialmente, não apoiaram a idéia. A participação das
comunidades, dos governos provinciais e das ONGs no movimento
das pré-escolas de línguas vernáculas, posteriormente, foi incorporada
à política de Reforma Educacional do governo. Esses grupos investi-
ram tempo, dinheiro e pessoal no planejamento e na implementação
dos programas em suas respectivas áreas.
De 1979 a 1995, os programas de pré-escolas de língua vernácula
permaneceram na área da educação não formal. Eles não estavam
sujeitos a exigências padronizadas quanto a currículos, critérios de seleção
de professores ou cursos de treinamento de pessoal docente. Os alunos
poderiam concluir um programa de pré-escola em um ou dois anos.
Os professores recebiam menos treinamento que os professores das

45
escolas primárias certificadas. Muitos deles trabalhavam em base vo-
luntária, principalmente nas comunidades ou nas províncias que não
ofereciam apoio financeiro.
Uma análise dos programas de VTPS concluiu não apenas que as
crianças que haviam freqüentado uma pré-escola vernácula de aldeia
antes de ingressar na primeira série se beneficiavam de nítidas vantagens
educacionais, mas também que suas comunidades auferiam benefícios
sociais e culturais (Delpit e Kemelfield, 1985).2 Os professores de escola
primária notaram que a transição para as turmas de língua exclusiva-
mente inglesa era muito mais fácil para as crianças que haviam freqüen-
tado as pré-escolas vernáculas, se comparadas com as que não haviam
tido qualquer experiência educacional prévia. Os membros e anciãos
da comunidade, mesmo os que, eles próprios, não sabiam nem ler
nem escrever, foram convidados para passar às crianças, em sala de
aula, conhecimentos e informações importantes.
Em julho de 1991, após a proliferação das pré-escolas vernáculas
em Papua-Nova Guiné, funcionários dos departamentos nacionais e
provinciais de educação concordaram, de forma unânime, que o sistema
de educação formal necessitava de reestruturação. Esse consenso le-
vou, posteriormente, à Lei da Educação de 1995. A Reforma Educa-
cional, formulada para aumentar o acesso à educação e sua igualdade e
qualidade, incentiva a instrução em língua vernácula nos três primeiros
anos da escolaridade da criança (elementar-prep., elementar 1 e ele-
mentar 2). O inglês oral é introduzido como parte do currículo da série
elementar 2. As séries primárias iniciais (3-5) são ensinadas na língua
vernácula e em inglês. A partir daí, ocorre uma transição gradual para o
inglês e, na medida em que as séries avançam, mais tempo é dedicado
ao inglês como veículo de instrução (3ª série, 60% vernáculo, 40% inglês;
4ª série, 40% vernáculo, 60% inglês; e 5ª série, 30% vernáculo, 70%
inglês). Em 1997, todas as vinte províncias já haviam começado a

2
DELPIT, L.; KEMEFIELD, G. (1985). An evaluation of the Viles Tok Ples Skul scheme
in the North Solomon Province. Goroka, Papua New Guinea: University of Papua New
Guinea, 1985.

46
implementar um Plano Provincial de Educação, aprovado nacional-
mente.
A política de Reforma da Educação reconhece a importância dos
papéis desempenhados pela comunidade, pelas ONGs e pelo governo,
no desenvolvimento, na disseminação e na implementação dos
programas de língua vernácula na pré-escola. Esse plano incentiva todas
essas partes interessadas a dar continuidade à sua participação. O De-
partamento Nacional de Educação estabelece as diretrizes curriculares
e os critérios para a seleção de professores e para formadores de
professores. Por seu lado, o Departamento Provincial de Educação
tem a tarefa de implementar a Reforma Educacional de conformidade
com seu próprio plano. Os responsáveis pela formação dos professo-
res, no nível provincial e distrital, planejam e organizam esses cursos de
treinamento. Quando uma nova escola primária é aprovada e registrada,
e seus professores já passaram por treinamento, eles têm permissão
para começar a dar aulas nas línguas vernáculas. Os membros da
comunidade são incentivados a construir as salas de aula para as escolas
primárias, indicar professores e colaborar com eles no desenvolvimento
de currículos culturalmente relevantes.
Ocorreram conflitos, quando membros de algumas comunidades
e ONGs colocaram a objeção de que estava havendo intervenção do
governo nos programas que eles próprios haviam desenvolvido. Um
exemplo desses conflitos ocorreu na província de East New Britain, a
última a dar início à implementação da Reforma Educacional. O go-
verno provincial e as comunidades locais, que haviam obtido êxito no
desenvolvimento de pré-escolas com seus próprios esforços, reluta-
ram em ceder o controle dessas escolas ao governo nacional. Uma vez
que a política da Reforma Educacional permite, embora não exija, a
inclusão das línguas vernáculas nas pré-escolas pertencentes ao sistema
de ensino primário, algumas províncias incorporaram esses idiomas e
os professores que os lecionavam, ao passo que outras não o fizeram.
Os principais elementos da Reforma Educacional de Papua-Nova
Guiné são o incentivo ao ensino nos anos iniciais nas línguas vernáculas
e uma aproximação gradual ao inglês, como fonte de comunicação
mais ampla. Ela inclui também o desenvolvimento de currículos e ma-

47
teriais que possuam relevância cultural, e a oferta de nove anos de edu-
cação básica, em vez de seis, em ambiente mais próximo à aldeia nativa
da criança. Em fins de 2000, a Reforma Educacional abrangia 380
grupos lingüísticos. Na experiência de Papua-Nova Guiné, um movi-
mento a favor de uma educação não formal, em língua vernácula,
oferecida nas próprias aldeias, lecionada por professores com treina-
mento mínimo, acabou por fazer com que o país, como um todo, se
lançasse à ambiciosa empreitada de oferecer educação na língua que as
crianças de início dominam melhor: a sua própria. Elas, então, estarão
mais bem preparadas, em termos cognitivos, acadêmicos e de desen-
volvimento, para transferir sua capacidade de aprendizado, de sua língua
materna, para o inglês.

48
6. AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E SUAS
IMPLICAÇÕES PARA A DEMANDA GLOBAL
DE CUIDADOS E DUCAÇÃO PARA A
PRIMEIRA INFÂNCIA*

Na medida em que as instâncias de formulação de políticas planejam,


para a próxima década, o desenvolvimento dos programas de cuidados
e educação para a primeira infância, será de fundamental importância
poder contar com informações sobre as tendências que, com grande
probabilidade, irão afetar de forma drástica a demanda por cuidados
e educação para a primeira infância, a fim de que os planos que estão
atualmente sendo formulados sejam capazes de aumentar a oferta de
serviços viáveis, disponíveis, acessíveis e de qualidade. A demanda por
serviços para a primeira infância, em todo o mundo, vem passando
por grandes transformações, provocadas por uma série de forças
demográficas de grande impacto. Dentre essas forças estão a
urbanização, a transferência de homens e mulheres do trabalho agrícola
para o não-agrícola e do setor informal para o formal, bem como a
necessidade de desenvolver uma força de trabalho de maior nível
educacional, capaz de competir com sucesso na economia globalizada.
Estimativas das Nações Unidas prevêem que, no ano 2030, mais de
56% da população do mundo em desenvolvimento estará morando
em cidades. Em inícios do século XX, apenas 18% da população
mundial vivia em áreas urbanas. Mas, ao final daquele mesmo século,

* Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early
Childhood) número 8, de novembro de 2002. Elaborada por Jody Heymann, Ph.D.,
Universidade de Harvard. Publicada pela Seção de Educação da Primeira Infância
e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www. unesco.org/
education/educprog/ecf/index.htm).

49
quase metade dessa população já morava em cidades. No mundo em
desenvolvimento, as grandes transformações ocorreram nos últimos
cinqüenta anos. Por que a urbanização é importante para as crianças de
menos de cinco anos? É comum que, ao se mudarem para as cidades,
os adultos se separem de suas famílias mais amplas. Ao mesmo tempo
em que deixam de poder contar com a ajuda de suas famílias, os pais
que moram em cidades geralmente fazem parte da força de trabalho
formal – e mesmo aqueles que trabalham no setor informal geralmente
exercem atividades nas quais é difícil ou impossível trazer crianças
pequenas para o trabalho com um mínimo de segurança. As transfor-
mações que afetaram o local de moradia das famílias com filhos
pequenos foram acompanhadas por uma transformação igualmente
marcante no local de trabalho dos adultos. Os homens vêm, com
freqüência cada vez maior, abandonando a agricultura para ingressar
nas economias industriais e pós-industriais. A transferência dos pais de
tipos de trabalho onde seus filhos podiam acompanhá-los para
empregos situados longe de casa e da família ocorreu simultaneamente
à participação crescente das mulheres na força de trabalho assalariada.
Embora essas tendências demográficas relativas à força de trabalho
estejam documentadas em dados, os estudos atualmente disponíveis
não chegaram a examinar o número de crianças menores de cinco
anos que vivem hoje em famílias onde, em conseqüência dessas
tendências, todos os adultos trabalham. Há vários anos, eu fundei o
Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras, sediado na Universidade
de Harvard, mas que possui uma equipe de campo espalhada por
todo o mundo, com o objetivo de dar partida a um processo de
responder a essas perguntas, e outras do mesmo teor, sobre crianças e
adultos que vivem em famílias trabalhadoras em todo o mundo.1 Dentre
outros projetos, a equipe de pesquisa e eu analisamos diversos
levantamentos de situação familiar, executados em países da América
Latina, da África, da Ásia, da América do Norte e da Europa. Maiores
detalhes sobre os resultados dessas pesquisas serão apresentados em

1
Para maiores informações sobre o Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras, ver
<www.globalworkingfamilies.org>.

50
outras ocasiões.2, 3 A presente nota enfocará apenas os resultados iniciais
diretamente relacionados à disponibilidade de membros da família que
possam cuidar das crianças pequenas.
No México, analisamos os dados recolhidos em um levantamento de
nível nacional abrangendo mais de 14 mil famílias, a Encuesta Nacional de
Ingresos y Gastos de los Hogares. Embora um número significativo de crianças
estivesse sendo criada em casas de famílias mais amplas, em 38% das
famílias com filhos pequenos, todos os adultos trabalhavam como
assalariados. Em 21% das famílias com um ou mais filhos de zero a
cinco anos, pai e mãe trabalhavam e não contavam com parentes para
auxiliá-los no cuidado dessas crianças; em 3% das famílias, as crianças
pequenas viviam com um único genitor que trabalhava e em 14% das
famílias, os pais viviam com suas famílias mais amplas, mas todos os
adultos de idades entre 25 e 55 anos faziam parte da força de trabalho.
Nos estudos realizados por nós em outros países, encontramos
percentuais ainda maiores de famílias com filhos pequenos onde todos
os adultos faziam parte da força de trabalho. Usando o Levantamento
de Indicadores Múltiplos, realizado pela Agência Central de Estatística,
examinamos a experiência de 6.188 famílias, em Botswana. Em 44%
das famílias com filhos de zero a cinco anos, todos os adultos
trabalhavam. Embora ainda fosse bastante comum crianças de zero a
cinco anos morarem com famílias mais amplas, em quase metade dos
casos, todos os adultos entre 25 e 55 anos, tanto da família nuclear
quanto da família ampla, estavam empregados. No Brasil e na Rússia,
os números eram igualmente altos. No Brasil, em 42% das famílias
com filhos pequenos, todos os adultos entre 25 e 55 anos trabalhavam.
O mesmo ocorria em 52% das famílias russas nas quais havia crianças

2
Os resultados detalhados dessas entrevistas aprofundadas serão divulgados na íntegra
num livro a ser publicado em 2004, pela Oxford University Press.
3
Os resultados iniciais foram também apresentados em HEYMANN, S. J.; FISCHER,
A.; ENGELMAN, M., Labor conditions and the health of children, elderly and
disabled family members, In: (Ed.) Global inequalities at work: the impact of work on
the health of individuals, families and societies. New York: Oxford University
Press, 2003.

51
pequenas. No Vietnã, as cifras eram ainda mais elevadas. Em 88% das
famílias com filhos pequenos, todos os adultos trabalhavam.
Ainda existem diferenças regionais importantes, que são de inte-
resse para a situação de assistência às crianças. Dentre elas, estão o
crescimento muito mais rápido da população de idosos nos países
industrializados e a enorme pressão colocada sobre os serviços à
primeira infância no Cone Sul da África, em razão dos índices mais
altos de doenças como o HIV/Aids.4 Mesmo assim, apesar dessas
diferenças regionais significativas, existem ainda claros fatores
demográficos comuns a todo o mundo, que, fundamentalmente, irão
dar forma às necessidades de cuidados e educação para a primeira
infância. Em todo o espectro de ambientes nacionais, uma percenta-
gem significativa de crianças pequenas está hoje crescendo em famílias
nas quais todos os adultos trabalham.
A fim de entender melhor como as transformações do trabalho
dos pais vêm afetando os cuidados e a educação para a primeira infância,
nosso Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras realizou entrevistas
detalhadas com cerca de 1.000 pais e com prestadores de serviços de
cuidados e de saúde a crianças, em cinco regiões. Os primeiros resultados
são aqui apresentados.5
Nas situações onde as famílias trabalhadoras não tinham acesso a
centros de atendimento a crianças, verificamos que os cuidados e a
educação de um número significativo de seus filhos sofriam prejuízos
de, no mínimo, três tipos. Primeiro, as crianças menores de cinco anos

4
Uma futura nota sobre políticas tratará da intersecção da epidemia da Aids e da
necessidade de cuidados e educação para a primeira infância.
5
Em todos os países discutidos nesta nota, pais que usavam serviços ambulatoriais de
saúde, em cidades selecionadas, foram entrevistados de forma detalhada. Os índices
de resposta foram superiores a 80%, em todos os locais. Os resultados enfatizam
claramente a existência de um problema de dimensões significativas. Embora as
amostras tenham sido tanto incomumente representativas e razoavelmente subs-
tanciais para entrevistas aprofundadas, será importante realizar levantamentos ob-
jetivos mais amplos, de nível nacional, a fim de estimar com maior precisão as
freqüências.

52
eram deixadas em casa, ou sozinhas ou sob os cuidados de crianças de
idade escolar. Em algumas famílias, essa situação era de rotina, ao pas-
so que, em outras, era intermitente. Em muitos casos, o resultado eram
doenças evitáveis e ferimentos graves. Segundo, essas crianças eram
levadas para o local de trabalho dos pais, mesmo quando as circuns-
tâncias, nesses locais, eram nocivas a seu desenvolvimento. Terceiro, as
crianças eram deixadas sob os cuidados informais de pessoas
despreparadas, em ambientes inadequados. Entrevistas detalhadas mos-
traram que esses cuidados informais, pelos quais os pais de baixa renda
podiam pagar, eram, geralmente, de qualidade extremamente precária.
No México, 23% das famílias que entrevistamos, que tinham filhos
em idade pré-escolar, deixavam essas crianças em casa sozinhas ou sob
os cuidados de irmãos mais velhos. Em Botswana, 29% das famílias
que tinham pelo menos um filho de cinco anos ou menos, já haviam
deixado seus filhos em casa, ou sozinhos ou sob os cuidados de outras
crianças. No Vietnã, onde uma alta percentagem das famílias (56%)
tinha acesso e fazia uso de serviços formais de cuidados infantis, apenas
9% dos pais que tinham pelo menos um filho de menos de cinco anos
já haviam deixado seus filhos sozinhos em casa, ou sob o cuidado de
irmãos mais velhos. Avós e outros parentes em geral moravam longe
demais dos pais trabalhadores para poder ajudar a cuidar dessas crianças.
Mesmo aqueles que moravam perto de sua família mais ampla,
acabavam tendo de deixar seus filhos pequenos sem a supervisão de
um adulto, uma vez que os avós tinham saúde precária, precisando, eles
próprios, de cuidados, enquanto outros também precisavam trabalhar
para seu próprio sustento. No México, 45% dos pais entrevistados por
nós, que tinham filhos entre zero e cinco anos, viam-se obrigados a
levá-los regularmente para o trabalho. Em Botswana, embora esse
número fosse menor, 9% dos pais de crianças pequenas também tinham
de levar seus filhos para o trabalho, todos os dias. Embora sejam
necessários estudos mais detalhados, incluindo grandes levantamentos
de nível nacional, para fornecer maiores detalhes tanto sobre as cir-
cunstâncias nas quais as crianças são deixadas quanto estimativas precisas,
discriminadas por país, esses resultados preliminares documentam
claramente a existência de problemas importantes.

53
São diversas as implicações do cruzamento dos dados dos levanta-
mentos nacionais e dos resultados das entrevistas detalhadas. Em pri-
meiro lugar, as transformações que vêm ocorrendo em termos da
natureza e da localização do trabalho dos pais têm como efeito limitar
a capacidade de pais e mães de cuidar de seus filhos pequenos. Em
segundo lugar, os membros da família estendida, muitas vezes, não
estão disponíveis para ajudar no cuidado das crianças, porque a
urbanização vem separando as famílias nucleares das famílias mais
amplas, em termos de local de residência, e porque os membros adul-
tos das famílias amplas geralmente também trabalham. Em terceiro
lugar, na ausência de serviços direcionados a elas, a saúde e o desenvol-
vimento das crianças de idade pré-escolar são colocados em risco,
quando elas são deixadas sozinhas, sob os cuidados de outras crianças
ou levadas para o local de trabalho dos pais, onde não podem ser
devidamente assistidas. Tomadas em conjunto, nossas conclusões do-
cumentam uma grande e crescente necessidade de melhor assistência às
crianças pequenas e a suas famílias trabalhadoras. Essa assistência deveria
tanto possibilitar que os próprios pais cuidem de seus filhos, por meio
de licença remunerada para pais e mães – que são de particular impor-
tância nos casos de bebês e crianças doentes –, quanto oferecer serviços
de cuidados e educação para a primeira infância. Não apenas as
tendências demográficas ressaltam a demanda, já grande e cada vez
maior, por serviços de cuidados e educação para a primeira infância,
como também pesquisas de grande âmbito demonstram os enormes
benefícios trazidos por serviços de qualidade para o desenvolvimento
cognitivo, social e emocional das crianças. Além do mais, em razão
tanto de seu papel de suporte ao trabalho dos pais quanto de sua capa-
cidade de melhorar os resultados educacionais das crianças, os serviços
de alta qualidade de cuidado e a educação para a primeira infância
desempenham papel fundamental no aumento da capacidade dos países
de competir na economia global.

54
7. A COORDENAÇÃO INTERSETORIAL
NAS QUESTÕES DA PRIMEIRA INFÂNCIA:
LIÇÕES A SEREM APRENDIDAS*

Os cuidados e a educação para a primeira infância são da responsabi-


lidade de muitos setores do governo, principalmente das áreas de
educação, assuntos sociais e saúde. A coordenação entre esses setores,
no desenvolvimento e na implementação das políticas, é essencial para
garantir o desenvolvimento integral da criança e o uso eficiente dos
recursos públicos. A coerência na regulamentação, na concessão de verbas
e nas questões de recursos humanos, como também uma visão comum
a todos os setores, a respeito do que vêm a ser esses cuidados e essa
educação, são os principais fatores que determinam a qualidade dos
programas para a primeira infância.1, 2
A coordenação intersetorial é difícil, entretanto, principalmente no
nível nacional. Ela é uma das grandes tarefas a serem enfrentadas por
muitos governos, tanto de países desenvolvidos quanto de países em
desenvolvimento, que querem promover um enfoque holístico da
primeira infância. As respostas a esse desafio têm variado de um país a
outro. Alguns tentaram eliminar o problema no nível estrutural,
integrando toda a área num ministério único. Essa é uma das tendências
verificadas nos países desenvolvidos. Outros tentaram demarcar as res-

* Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early
Childhood) número 9, de janeiro de 2003. Elaborada e publicada pela Seção de
Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO,
Paris (http:/www. unesco.org/education/educprog/ecf/index.htm).
1
STARFIELD. Op. cit. Starting strong: early childhood education and care (2001).
Paris: OCDE. / Education Policy Analysis (2002). Paris: OCDE, 2002.
2
A falta de coordenação entre os setores públicos e privados, bem como entre as
autoridades centrais e locais, também provoca prejuízos à qualidade.

55
ponsabilidades setoriais segundo a faixa etária (por exemplo, as crian-
ças de zero a três anos no ministério da previdência/assuntos sociais e
as de quatro a cinco anos no ministério da educação). A maioria dos
países, entretanto, vem optando por um enfoque menos radical nessa
busca de coerência entre as políticas e a administração, lançando mão
dos mecanismos de coordenação.
Em termos gerais3, os mecanismos de coordenação têm eficácia
quando sua função é coordenar um programa específico para a primeira infância.
Por exemplo, em 2000, o governo de Cingapura, tentando coordenar
os programas de educação pré-escolar oferecidos, tanto pelo Ministério
da Educação quanto pelo Ministério do Desenvolvimento Comunitá-
rio e dos Esportes, montou uma Comissão Organizadora da Educação
Pré-Escolar, confe-rindo a liderança ao Ministério da Educação. Com
base nas contribuições dessa Comissão, foi criada uma estrutura ampla
de currículos de jardins de infância, a ser usada por ambos os ser-viços,
e uma Lei dos Jardins de Infância encontra-se, atualmente, em elaboração.
Por intermédio de uma outra comissão mista, os dois ministérios
conseguiram também desenvolver uma estrutura comum de capacitação
de professores de pré-escola e credenciar cursos de treinamento e os
profissionais responsáveis por eles, duas medidas de grande importância
para o desenvolvimento de um sistema nacional de formação de
professores de pré-escola, visando a melhorar a qualidade desses
docentes.
Um mecanismo de coordenação que focalize a mesma população-alvo
também parece ser útil no incentivo à convergência e à cooperação entre
os diferentes setores. Um caso dessa natureza é a Comissão Nacional de

3
Uma vez que há grandes variações entre os processos políticos e administrativos por
meio dos quais os Mecanismos de Coordenação são criados e postos em operação, é
difícil generalizar quanto aos fatores funcionais desses Mecanismos. Mas algumas
observações consistentes, embora episódicas, nos permitem compreender melhor o
que funciona e o que não funciona nesses mecanismos. Esta nota pretende resumir
essas percepções iniciais, a fim de atrair a atenção dos formuladores de políticas para
os riscos e as promessas dos Mecanismos de Coordenação que, atualmente, parecem
estar proliferando, na esteira dos esforços governamentais de promover um enfoque
holístico à primeira infância.

56
Coordenação e Assuntos Técnicos do Programa Oportunidades, do Mé-
xico. Esse mecanismo foi de grande utilidade no fornecimento, a famílias
extremamente pobres, de um programa integrado de assistência social que
incorpora elementos de educação, saúde e nutrição. “O fornecimento de
serviços específicos continua sendo da responsabilidade de cada setor, mas
um esforço conjunto é feito para que esses serviços atinjam a mesma po-
pulação, tentando assim tirar partido dos efeitos sinérgicos, como concen-
tração e conver-gência”.4 O sucesso dessa Comissão foi atribuído ainda ao
fato de seus membros, originários de todos os setores afetos à questão,
estabelecerem as normas de funcionamento e aprovarem as novas iniciati-
vas de forma conjunta.
Os Mecanismos de Coordenação, ao que tudo indica, são também
eficazes na execução de uma tarefa específica por um determinado perí-
odo de tempo. A Equipe de Projeto da Unidade de Estratégia, do
Gabinete do Reino Unido, que efetuou a Revisão Interdepartamental
dos Cuidados Infantis, é um bom exemplo. Os membros dessa equipe
foram convocados nos diversos setores do governo, e também na
iniciativa privada e nos setores voluntários. A pedido do Departamen-
to de Educação e Capacitação, o principal órgão do governo na área
da primeira infância, a equipe realizou uma ampla revisão intersetorial
dos assuntos da primeira infância, produzindo um relatório cujos resul-
tados foram usados pelo governo em processos orçamentários impor-
tantes, relacionados à área da primeira infância.
Embora os Mecanismos de Coordenação tenham funcionado bem
na coordenação dos setores que tratam de programas e tarefas especí-
ficas5, eles não foram muito bem-sucedidos na promoção de uma política
ampla e coerente, nem na coordenação administrativa entre esses seto-
res. Isso, em parte, tem relação com sua situação ad hoc. Numa tentativa

4
MYERS, R. (em elaboração). Early childhood policy and program coordination: a Mexican
case study, Paris: UNESCO, (no prelo). (UNESCO early childhood working paper).
5
Os Mecanismos de Coordenação também são úteis para reunir diversos setores, para
troca de informações e para compartilhar e divulgar atividades e material de defesa
(advocacy). Eles, freqüentemente, são criados para esses fins.

57
de manter a neutralidade setorial, o mecanismo de coordenação, mui-
tas vezes, é criado como um órgão ad hoc, externo à estrutura do minis-
tério e sem poder decisório. Esses Mecanismos de Coordenação po-
dem, na melhor das hipóteses, fazer recomendações aos ministérios, mas
a maioria deles mostrou ter pouca influência, principalmente no que diz
respeito a decisões relativas a mudanças políticas e aplicação de verbas, a
não ser que, como no exemplo britânico, as recomendações feitas pelo
Mecanismo tenham sido solicitadas pela principal autoridade do setor.
Para contrabalançar essa falta de autoridade, os Mecanismos de
Coordenação, com freqüência, são vinculados ao gabinete de uma figura
política importante (por exemplo, presidente, primeiro-ministro,
primeira-dama). Não há dúvida de que essa vinculação política contribua
para aumentar a visibilidade e a capacidade de comandar a cooperação.
Mas esse patrocínio político pode ter seu preço: quando muda o governo,
o Mecanismo pode também passar por uma “transformação”. Na
maioria dos casos, ele é extinto. Se ele permanece em operação, suas
funções e suas atribuições são alteradas ou reduzidas, prejudicando sua
continuidade.
Da mesma forma, sugere-se, ainda, que o Mecanismo de Coorde-
nação ocupe uma posição de alto nível na hierarquia do governo, como
reforço a sua autoridade.6 A participação de autoridades dotadas do
necessário poder de decisão e da capaci-dade de assumir compromissos
é, obviamente, de importância crucial. Mas quando se solicita dessas
altas autoridades que elas participem de um Mecanismo que não lide
com temas ou decisões que exijam seu nível de autoridade, a tendência
é elas delegarem a responsabilidade a membros menos graduados de
sua equipe. A experiência mostra que esse processo de delegar
participação é dispendioso em termos de tempo, e que as pessoas
indicadas para a tarefa, em geral, não se engajam por completo e
costumam comparecer às reuniões com menor freqüência que os
membros de um Mecanismo criado como um órgão técnico compatível
com seu nível de operação. Pode até mesmo acontecer de esse proces-

6
Cf. TORKINGTON, K. (2001) WGECD policy project: a synthesis report. s. I.:
ADEA Working Group on Early Childhood Development, 2001.

58
so de delegar participação ser a causa do fracasso do mecanismo, em
razão da dificuldade de agendar reuniões.7
Uma estratégia de natureza estrutural, visando a assegurar que os
Mecanismos de Coordenação contem com poder decisório, é inseri-
los na estrutura de um ministério técnico.8 Essa estratégia exige que a
liderança do processo seja conferida a um dos setores do governo, o
que consiste num desafio, quando se trata de serviços para a primeira
infância.
Em primeiro lugar, caso o governo já não tenha estabelecido um
claro vínculo entre as questões da primeira infância e esse setor específico,
a escolha de um setor pode representar um risco, por mais necessária
que ela seja, uma vez que essa decisão pode, inadvertidamente, vir a
diminuir os papéis dos demais setores.9
Em segundo lugar, a escolha de um setor representa uma decisão
que depende de muitos fatores. Como é compreensível, ela varia
segundo o contexto ideológico, e também segundo as prioridades
relativas à primeira infância, naquele país. Não há uma solução
universalmente aplicável, cada país tem de passar por seus próprios
processos consultivos, de reflexão e de aprendizado.
Por fim, uma vez designado um setor, ele tem de estar aberto
a um enfoque amplo, que abra espaço aos interesses de todos os
setores envolvidos e que seja capaz de mobilizar os pontos fortes
e competências desses outros setores. Mas, em muitos países, esse
equilíbrio entre liderança e parceria não é fácil, e poucos são os
que dominaram essa arte, principalmente entre os países em de-

7
JOB, H. (em elaboração) Early childhood policy co-ordination mechanisms in Namibia. Paris:
UNESCO, (no prelo). (UNESCO early childhood working paper).
8
Essa também é uma das maneiras estratégicas para que os Mecanismos de Coordena-
ção garantam verbas para sua operação.
9
A predominância de um setor específico, se necessária, pode ser em certa medida
minimizada, se for designada para chefiar o Mecanismo uma pessoa ou organização
externa ao setor governamental que assumiu a liderança, mesmo se o Mecanismo
permanece no âmbito desse setor do governo.

59
senvolvimento, onde a primeira infância nunca foi objeto das po-
líticas públicas do governo.
Apesar de todos esses desafios, para que um Mecanismo de
Coordenação funcione de fato, é necessário designar um setor para
assumir a responsabilidade por essa coordenação, principalmente se
o Mecanismo tiver como objetivo provocar mudanças nos níveis
político e administrativo. Diferentemente das outras funções
esperadas de um Mecanismo de Coordenação, o desenvolvimento
e a implementação de um sistema político e administrativo tratando
da primeira infância exige mais do que a reunião de diferentes setores.
Tem de haver uma clara compreensão de onde se localiza o centro
dessa coordenação e, o que é ainda mais importante, o líder
reconhecido deve ser capaz de exercer a autoridade necessária e, ao
mesmo tempo, agregar em torno de si uma parceria que inclua todos
os setores envolvidos.
Isso, por fim, significa a importância de uma decisão nacional quanto
ao setor que irá liderar as questões da primeira infância, sem o que
nem mesmo uma solução conciliatória moderada, como a criação de
um Mecanismo de Coordenação, virá a surtir efeito.

60
8. AS CRIANÇAS EM IDADE ESCOLAR
EM FAMÍLIAS COM FILHOS PEQUENOS:
RISCO PARA AS OPORTUNIDADES
EDUCACIONAIS*

A disponibilidade e a acessibilidade financeira a serviços de cuidados


e educação para a primeira infância afetam, bastante, os resultados
educacionais das crianças em idade escolar. Quando as crianças recebem
cuidados e educação para a primeira infância de alta qualidade, elas, mais
tarde, chegarão à escola mais bem preparadas para aprender e com mai-
ores probabilidades de vir a completar a escola primária e secundária.
Esse importante fato foi bem documentado em diversas fontes. Esta
nota trata de um segundo tópico, ao qual muito menos atenção foi dada:
as formas pelas quais a disponibilidade de cuidados e educação para
crianças de zero a cinco anos pode afetar o fato de as crianças de seis a 14
anos poderem freqüentar a escola e prosseguir seus estudos.
Esta nota examinará as conclusões preliminares de uma série de
estudos atualmente em andamento, que fazem parte do Projeto Global
sobre Famílias Trabalhadoras, que vêm trazendo novas informações acerca
do impacto, sobre as crianças em idade escolar, da precariedade dos
cuidados e da educação para a primeira infância.1 Como parte desse

* Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early
Childhood) número 10, de fevereiro de 2003. Elaborada por Jody Heymann, Ph.D.,
Diretora-fundadora do Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras, Universidade
de Harvard. Publicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família.
Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www. unesco.org/education/
educprog/ecf/index.htm).
1
O Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras, fundado pela autora, tem sua sede na
Universidade de Harvard, mas possui uma equipe de campo espalhada por todo o
mundo, com o objetivo de darpartida a um processo de responder às perguntas sobre

61
Projeto, a equipe de pesquisa, por mim liderada, vem analisando gran-
des levantamentos de situação familiar executados em países da Amé-
rica Latina, da África, da Ásia, da América do Norte e da Europa, a
fim de investigar o impacto sobre as oportunidades educacionais das
crianças em idade escolar da necessidade de oferecer cuidados às cri-
anças de zero a cinco anos. Realizamos análises complementares desses
levantamentos nacionais de situação familiar e de entrevistas detalhadas
feitas em nível local, em diversos países.
Tomados em conjunto, esses estudos sugerem o seguinte: em primeiro
lugar, quando os pais de crianças de seis a 14 anos trabalham, seus filhos
têm maiores possibilidades de freqüentar a escola. O aumento da renda
familiar proveniente desse trabalho possibilita que os pais paguem men-
salidades escolares, comprem uniformes e livros e enfrentem os custos
adicionais, que ocorrem até mesmo nas escolas públicas. Além do mais,
o aumento da renda familiar diminui as probabilidades de as próprias
crianças terem de exercer trabalho remunerado, uma vez que as famílias
têm dinheiro para as necessidades básicas de comida, moradia e vestuário.
Em segundo lugar, embora o trabalho dos pais geralmente aumente a
probabilidade de que todas as crianças da família freqüentem a escola,
quando os pais de crianças pequenas (zero a cinco anos) têm de trabalhar
sem contar com serviços de cuidados e educação para a primeira infân-
cia, as crianças de seis a 14 anos podem vir a ser tiradas da escola para
cuidar de seus irmãos mais novos, primos e de outras crianças da família.
Em terceiro lugar, embora tanto meninos quanto meninas sejam
afastados da escola para cuidar de irmãos mais novos, as meninas são
afetadas de forma desproporcional.
Em termos específicos, as análises de dados provenientes de grandes
levantamentos nacionais, realizados em Botswana, no Brasil, no México,
na Rússia, na África do Sul e no Vietnã, revelam o seguinte:2 na maioria

as experiências de crianças e adultos que vivem em famílias trabalhadoras em todo


o mundo. Para maiores informações, acessar o site <www.globalworkingfamilies.org>.
2
O número de famílias com filhos de seis a 14 anos pesquisadas em cada país é o
seguinte: 3.547 em Botswana; 2.955 no Brasil; 1.215 na Rússia, 9.529 no México e
4.488 na África do Sul.

62
dos casos, o fato de existir pelo menos uma criança de zero a cinco
anos numa família na qual todos os adultos trabalham levava a um
aumento da probabilidade de que as crianças de seis a 14 anos não
freqüentassem a escola (tabela 1).

Tabela 1: Percentual de famílias com filhos de 6 a 14 anos


que não freqüentam a escola
com irmãos de zero a cinco sem irmãos de zero a cinco
anos (quando todos os anos (quando todos os
adultos trabalham) adultos trabalham)
Botswana
família de um único genitor 19 11
família de dois genitores 17 10
família ampla 24 13
Brasil
família de um único genitor 30 7
família de dois genitores 3 7
família ampla 19 5
México
família de um único genitor 32 7
família de dois genitores 9 7
família ampla 18 13
Rússia
família de dois genitores 9 6
família ampla 14 8
África do Sul
família de um único genitor 14 10
família de dois genitores 9 7
Observação: Foram conduzidas análises em famílias nas quais os adultos tinham entre
25 e 55 anos, e onde havia, pelo menos, uma criança entre seis e 14 anos. As
pequenas dimensões das amostragens e as diferentes definições adotadas
impossibilitaram, no levantamento russo, análises comparáveis de famílias de um
único genitor na qual esse genitor trabalhava e, nas análises sul-africanas, as de
famílias amplas, em que todos os adultos trabalhavam.

Em Botswana, no México e na África do Sul, a presença de crianças


de zero a cinco anos necessitando de cuidados reduzia a possibilidade
de que as de seis a 14 anos freqüentassem a escola, tanto em famílias de
um único genitor quanto nas de dois genitores e nas famílias amplas,
em que todos os adultos trabalhassem. No Brasil e na Rússia, a presen-
ça de crianças pequenas neces-sitando de cuidados diminuía a freqüên-
cia à escola na maior parte das categorias para as quais dados suficientes
estavam disponíveis. O único país estudado por nós que não seguia
esse padrão foi o Vietnã. É digno de nota que o Vietnã foi o único país

63
onde a maioria esmagadora das famílias com filhos em idade escolar
entrevistadas (80%) viviam em áreas rurais.3
Por fim, com base nos dados dos levantamentos nacionais, em qua-
tro dos cinco países em que havia dados suficientes, as meninas eram as
maiores prejudicadas, e sua freqüência à escola decrescia em famílias
com crianças de zero a cinco anos necessitando de cuidados.
Apenas um dos grandes levantamentos nacionais permitiu que nós
examinássemos diretamente as horas trabalhadas pelas crianças em tarefas
de cuidar de irmãos menores: o levantamento russo nos permitiu analisar
de que forma o trabalho dos pais afetava as horas diárias despendidas
por crianças entre seis e 14 anos nos cuidados às crianças da família com
idades entre zero e 14 anos. Nas situações em que todos os adultos
trabalhavam, aumentava a probabilidade de as crianças mais velhas gas-
tarem dez horas semanais ou mais cuidando de crianças pequenas.
Embora essas conclusões, extraídas por nós dos dados resultantes
das análises dos levantamentos familiares, sejam sugestivas, ainda são
necessárias pesquisas adicionais, a fim de determinar até que ponto as
diferenças de freqüência à escola, observadas nos países que não a
Rússia, se devem à necessidade de cuidar de irmãos menores ou a
outros fatores. O tipo das perguntas colocadas nos grandes levanta-
mentos nacionais limita as conclusões passíveis de ser extraídas desses
estudos, tomados isoladamente. Em razão da limitação desses conjuntos
de dados, nós planejamos e realizamos entrevistas aprofundadas com
quase 1.000 famílias trabalhadoras em cinco regiões do mundo, inclu-
indo amostragens representativas de cidades grandes e pequenas, no
México, em Botswana e no Vietnã.

3
Nos ambientes predominantemente rurais, a natureza do trabalho parental e da
capacidade dos pais de levar os filhos pequenos para o trabalho apresenta diferenças
significativas da situação verificada nos ambientes urbanos. Para uma discussão
mais detalhada do impacto da urbanização, ver Heyman, S.J. (Ed.) Global inequalities
at work: work’s impact on the health of individuals, families and societies Oxford: Oxford
University Press, 2003.Todas as demais amostragens nacionais de famílias aqui
estudadas foram significativamente menos rurais: Botswana (50%), Brasil (22%);
México (27%), Rússia (25%) e África do Sul (54%).

64
Esses estudos aprofundados confirmam que um número significa-
tivo de pais trabalhadores com filhos de zero a cinco anos, para cuidar
de seus filhos pequenos, usam o trabalho, remunerado ou não, de ou-
tras crianças. No México, 43% das famílias com filhos entre zero e
cinco anos, com quem discutimos essa questão de cuidar de crianças
pequenas, afirmaram fazer uso do trabalho de crianças mais velhas
para essa tarefa, ocasionalmente ou de forma constante, e o mesmo
ocorreu com 47% dos entrevistados em Botswana e 36% no Vietnã.
Em alguns casos, essa situação ocorria quando as formas rotineiras de
cuidar das crianças falhavam, exigindo que as crianças mais velhas fal-
tassem à escola em dias intermitentes. Em outras situações, essas tare-
fas ocupavam o tempo fora da escola das crianças mais velhas, impe-
dindo-as de fazer seus deveres de casa e expondo-as ao risco de atra-
sarem-se ou ser reprovadas na escola. Em outros casos, ainda, as crian-
ças mais velhas eram obrigadas a abandonar de todo a escola para
cuidar dos irmãos em tempo integral. Em todos os países, as famílias
mais pobres eram as que mais tendiam a fazer uso do trabalho das
crianças mais velhas e dos jovens da família para cuidar das crianças
menores, ao contrário das famílias de maior nível de renda.
No passado, os debates políticos tendiam a contrapor a necessida-
de de investir recursos públicos na educação das crianças de seis a 14
anos à necessidade de investir em cuidados e educação para crianças de
zero a cinco anos. Nossa análise dos melhores dados disponíveis suge-
re que os investimentos em cuidados e educação para a primeira infân-
cia não devem ser vistos como competindo com as necessidades do
grupo em idade escolar, mas sim como uma maneira complementar
de atender às necessidades das crianças mais velhas.
Em suma, os investimentos em cuidados e educação para a primei-
ra infância são de importância crucial tanto para a educação primária
quanto para a secundária, por duas razões. Em primeiro lugar, os cui-
dados e a educação para a primeira infância dão apoio direto ao de-
senvolvimento físico, social, emocional e cognitivo das crianças peque-
nas, preparando-as, de forma importante, para um bom desempenho
na escola primária. Em segundo lugar, a disponibilidade e a acessibili-
dade de serviços de cuidados para crianças pequenas significa que os

65
pais, principalmente os que vivem em condições de pobreza, não pre-
cisarão tirar seus outros filhos da escola para cuidar das crianças peque-
nas, enquanto os adultos trabalham para ganhar o sustento da família.

66
9. A APRENDIZAGEM AO LONGO DA
VIDA E A POLÍTICA SOCIAL PARA A
PRIMEIRA INFÂNCIA*

Na Noruega, os cuidados e a educação da primeira infância, há


muito, estão sob a responsabilidade do ministério encarregado dos
assuntos sociais/familiares/infantis. Atualmente, vem sendo debatida a
possibilidade de a responsabilidade administrativa passar para o setor
educacional.
A fim de examinar em maior profundidade essa questão, que gira
em torno de até que ponto a política social é capaz de incorporar a
perspectiva educacional com relação à primeira infância, foi combinada
uma entrevista telefônica com o Sr. Einar Juell, especialista em primeira
infância do Sindicato Educacional da Noruega.1
Essa entrevista foi conduzida pela Srª Soo-Hyang Choi, da
UNESCO de Paris, que elaborou o seguinte resumo. As opiniões
expressas na presente nota não refletem as do Governo da Noruega,
nem as da UNESCO.

* Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early
Childhood) número 11, de março de 2003. Elaborada por Soo-Hyang Choi, Chefe
da Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação
Básica. UNESCO, Paris (http:/www. unesco.org/education/educprog/ecf/
index.htm).
1
Esse debate foi trazido à atenção da UNESCO por esse especialista, que também
nos forneceu subsídios por escrito, que foram incorporados nesta nota. O Sindicato
Educacional da Noruega congrega professores de pré-escolas, escolas primárias e
secundárias e professores universitários, na Noruega (http://www.utdanningsforb
undet.no).

67
Choi: Pelo que sabemos, atualmente, a responsabilidade adminis-
trativa pelos Barnehager2, os serviços integrados de cuidados
e educação para a primeira infância para crianças de zero a
cinco anos, cabe ao Ministério das Crianças e dos Assuntos
Familiares (MCAF). O Ministério da Educação e da Pesquisa
(MEP) tem algum papel a desempenhar?
Juell: O MEP é responsável pelo treinamento e pela educação3 dos
pedagogos e dos professores treinados dos Barnehager.4 Ele
prepara o currículo de treinamento e formação desses
profissionais e credencia suas qualificações, como parte de sua
responsabilidade geral sobre a formação e o treinamento de
todos os professores do país. Ele também é responsável pelo
credenciamento das instituições e programas de treinamento.
Choi: Ouvimos dizer que, na Noruega, vem surgindo um debate entre
os profissionais e praticantes da área, sobre a integração dos

2
Barnehager (singular, Barnehage) referem-se aos serviços de cuidados e educação para
a primeira infância na Noruega, atendendo a crianças com idades entre zero e cinco
anos. Os Barnehager originaram-se em duas instituições tradicionais: as creches de
tempo integral e os jardins de infância de tempo parcial. A Lei dos Barnehager, de
1975, reconheceu esses dois tipos de serviço como um único, integrando os cuida-
dos e a educação das crianças pequenas. Os Barnehager variam em termos de regime
de propriedade (pública ou privada), de administração (tempo parcial ou tempo
integral), em fontes de financiamento (com ou sem subsídios governamentais) e
também em termos da idade das crianças atendidas, mas todos eles encontram-se
integrados dentro do mesmo sistema administrativo do MCAF (Ministério das
Crianças e dos Assuntos Familiares). Cerca de 74%, 68% e 49% das crianças de
cinco, quatro e três anos, respectivamente, freqüentam os Barnehager (1997). Para
maiores informações, ver o NORWAY. Norway background report for EECD: thematic
review of early childhood education and care policy. Norway: s.e., (1998); OCDE.
OECD country note: early childhood education and care policy in Norway. Paris:
OECD, 1999. Disponível em: < (1999) (http://www.oecd.org>.).
3
O MCAF vem participando desse processo, reforçando o vínculo entre o currículo
nacional dos Barnehager, desenvolvido pelo ministério, e o currículo para os profes-
sores que trabalham nos Barnehager, cujo desenvolvimento é da responsabilidade
do MEP.
4
Três tipos de profissionais trabalham nos Barnehager: um diretor (styree), responsável
pela direção administrativa e educacional, um professor (pedagogiske ledere), que trata

68
Barnehager no sistema educacional, e a transferência de seu patro-
cínio administrativo para o MEP, embora esse debate ainda não
ocorra de forma oficial, no nível nacional. O senhor poderia
nos dar maiores informações sobre o contexto desses debates?
Juell: Em 1995, o MCAF desenvolveu o primeiro currículo nacional
para o Barnehager, o Plano Estrutural. O Plano, baseado na
premissa de que os Barnehager faziam parte do sistema
educacional, representou um acontecimento importante para
o reforço da função educacional dos Barnehager. Embora a
atual posição do MCAF seja a de que os Barnehager deveriam
ser uma interface com as famílias, e não com o sistema edu-
cacional, o Plano, paradoxalmente, intensificou os vínculos
entre os Barnehager e a educação.
Choi: Essa é a primeira vez que os Barnehager são vinculados à
educação?
Juell: Logo após a Segunda Guerra, quando o governo tentou
reorganizar o sistema educacional público, foi levantada a
questão de se os Barnehager5 deveriam ser vistos como parte
do sistema educacional. Mas essa discussão não teve
prosseguimento. Foi apenas nos últimos anos que esse tema
foi levantado de forma mais séria. A importância dada pelo
país à aprendizagem permanente, ao longo de toda a vida,
tem muito a ver com esse fato.
Choi: Na Noruega, os cuidados e a educação para a primeira
infância, há 150 anos, são da responsabilidade de um
ministério social ou de assuntos da família. O avanço da
filosofia da aprendizagem ao longo da vida afetaria de algum
modo essa tradição?

dos processos educacionais, com os alunos, os pais e os assistentes. Os styree e os


pedagogiske ledere têm de ser pedagogos, ou professores formados, e têm de representar
34% da força de trabalho dos Barnehager (1997).
5
Àquela época, os Barnehager eram um programa de jardins de infância que atendiam
apenas a crianças com mais de três anos.

69
Juell: Não se deve dramatizar essa tendência, mas é verdade que,
atualmente, a primeira infância é vista, cada vez mais, no
contexto da aprendizagem ao longo da vida. O Relatório dos
Antecedentes da Aprendizagem ao Longo da Vida de 1999, executado
pelo governo, é, em grande parte, responsável por essa maneira
de ver. Nesse relatório, foi usada, pela primeira vez, a
expressão “do berço ao túmulo”, fazendo com que o país
incluísse a primeira infância em seu conceito de aprendizagem
ao longo da vida.
Choi: Embora a aprendizagem ao longo da vida não pertença nem
deva pertencer exclusivamente ao ministério da educação,
como ele é o ministério que detém a liderança desse setor, a
associação dos Barnehager com a aprendizagem ao longo
da vida pode implicar uma participação mais ativa, se não
exclusiva, do MEP, e é com relação a isso que é possível
dizer que um novo desafio foi colocado.
Juell: Sim, é verdade. Recentemente, têm surgido diversas iniciativas,
por parte do MEP, de melhorar a qualidade dos Barnehager,
como sendo a base da aprendizagem permanente. Essas
iniciativas enfocaram principalmente o aperfeiçoamento da
transição dos Barnehager para a educação escolar e o desen-
volvimento de indicadores sobre a primeira infância.
Choi: Esse interesse na qualidade é um ponto interessante. O fato
de o MCAF ter desenvolvido esse plano e sua decisão de
reforçar a função educacional6 dos Barnehager, para nós, são
sinais importantes de que também o MCAF se preocupa
com a qualidade e, o que também é importante, é capaz de
implementar medidas de aumento da qualidade, como, por
exemplo, o desenvolvimento de currículos. Ainda seria pos-
sível argumentar a favor da transferência para o MEP com
base nessas razões de qualidade?

6
Por exemplo, uma maior ênfase foi colocada no desenvolvimento cognitivo da criança.

70
Juell: Um dos aspectos da qualidade que preocupa ao MEP é a
continuidade e a coerência da experiência de aprendizagem
da criança, e o atual sistema de Barnehager tem falhas quanto
a esse aspecto específico da qualidade. Em primeiro lugar,
enquanto a responsabilidade administrativa pelos Barnehager
cabe ao MCAF, o MEP é responsável pelo ensino escolar.
A colaboração entre esses dois ministérios é possível, como
de fato acontece, mas o vínculo entre o ensino escolar e os
Barnehager poderia ser mais forte, se ambos estivessem sob
a responsabilidade de uma única autoridade. Em segundo
lugar, o Plano é incumbência do MCAF, mas o currículo de
formação de professores é da responsabilidade do MEP.
A coerência entre os dois currículos poderia ser maior, se
uma única autoridade controlasse todo o processo. Por
último, e o que é mais importante, no nível local, os
Barnehager estão sob a responsabilidade das autoridades
da área da educação, mas no nível nacional, essa responsa-
bilidade cabe ao MCAF. Os sistemas administrativos locais
e central dos Barnehager têm de ser compatibilizados. Em
suma, sim, um esforço independente, tentando aperfeiçoar
a pedagogia dos Barnehager é importante, mas o que é
igualmente importante é a continuidade e a coerência sistêmica
dos Barnehager com o restante do processo de aprendiza-
gem e desenvolvimento das crianças, e é esse o aspecto
específico da qualidade que interessa ao MEP.
Choi: Qual a reação do MCAF a esse debate?
Juell: Como o debate ainda não chegou ao nível nacional, nem o
MCAF nem o MEP manifestaram uma posição oficial sobre
a questão. Em termos gerais, o MCAF reconhece as funções
educacionais dos Barnehager, embora seja de opinião de
que as crianças não deveriam ser obrigadas a freqüentar os
Barnehager, ou qualquer outro tipo de serviço externo à
casa da família, a não ser que elas assim o desejem. O MCAF
acredita que o principal responsável por cuidar das crianças
pequenas deveria ser a família, e não uma instituição, e que

71
essas famílias deveriam poder optar entre colocar seus fi-
lhos em um Barnehage ou deixá-los em casa.
Choi: Mas a freqüência aos Barnehager seria tornada obrigatória,
se eles forem transferidos para o MEP?
Juell: Em inícios da década de 70, ocorreu uma discussão sobre
tornar os Barnehager obrigatórios para crianças de seis anos.
Essa idéia não vingou, mas, em 1997, a idade de ingresso na
escola primária foi reduzida, e a educação compulsória acabou
por ter início aos seis anos de idade. Esse histórico pode
desencadear temores de que algo semelhante poderia
acontecer de novo, ou seja, que os Barnehager, novamente,
virão a ser invadidos pela pedagogia escolar, e de que a par-
ticipação das crianças será menos voluntária, ou até mesmo
obrigatória.
Choi: Então, o cerne dos debates é a questão filosófica mais ampla,
de como encarar a primeira infância – como um tempo para
a criança ou um tempo para o futuro.
Juell: Sim, é muito importante observar que os dois setores não
discordam quanto ao conteúdo pedagógico e a metodologia
dos Barnehager, uma vez que há consenso suficiente, entre
ambas as partes, de que bons cuidados levam a uma boa
aprendizagem, e que uma boa aprendizagem leva a bons
cuidados, e que as crianças aprendem melhor brincando e
sendo elas mesmas, e que, por meio desse desenvolvimento
integral, elas se preparam melhor para o futuro. Mas, na ver-
dade, parece haver uma diferença entre eles quanto ao
propósito dos Barnehager.
Choi: A Noruega possui uma boa política de assistência às famílias
(por exemplo, licença-maternidade/paternidade, abatimentos
fiscais, ajuda financeira etc.). Haveria alguma mudança nessas
políticas, caso a transferência venha a ocorrer?
Juell: Não, nenhuma mudança será necessária, porque a política de
assistência às famílias permanecerá no âmbito do MCAF. Mas

72
a transferência para o setor educacional fará com que sejam
levantadas questões quanto a quem tem direito a freqüentar
os Barnehager. Se eles se tornarem um serviço educacional,
haverá maiores pressões para que eles sejam oferecidos a
todas as crianças, o que, por sua vez, poderá pressionar o
governo a torná-los mais baratos.7 Aliás, já se fala, dentro do
governo, de tentar a aprovação de legislação que estabeleça
um teto para as mensalidades dos Barnehager. Esse é um
sinal de que o governo já vem-se preparando para o acesso
universal aos Barnehager, independentemente do atual debate.
Choi: Para terminar, em sua opinião, qual seria a desvantagem da
transferência dos Barnehager para o setor educacional?
Juell: Se os Barnehager passarem a ser vistos, preponderantemen-
te, como o primeiro estágio da aprendizagem ao longo da
vida, isso pode levar a um excesso de ênfase nos resultados,
gerando tentativas de medir o desenvolvimento da criança,
ou sua aptidão para a escola, o que seria prejudicial ao
desenvolvimento das crianças.

7
Nos Barnehager públicos, os pais contribuem com 29% dos custos totais; nos priva-
dos, 46% (1996).

73
10. A REFORMA DA EDUCAÇÃO E
CUIDADO NA PRIMEIRA INFÂNCIA NA
INGLATERRA, NA ESCÓCIA E NA SUÉCIA*

10.1 – A INTEGRAÇÃO DE SERVIÇOS DE EDUCAÇÃO


E CUIDADO
A Inglaterra e a Escócia (em 1998) e a Suécia (em 1996) transferiram
a responsabilidade pela educação e pelos cuidados para a primeira
infância (serviços para crianças pequenas) e os cuidados para as crianças
em idade escolar (serviços de cuidados a crianças em idade escolar)
dos departamentos da área social para os da área educacional.
Examinaremos aqui o grau de integração em cada país, e o que essa
integração significou para a relação entre escolas e outros serviços.1

INGLATERRA
À época da transferência, os serviços para crianças pequenas tinham
desenvolvimento precário e eram fragmentados. Por exemplo, eles se

* Notas sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood)
números 12 e 13, de abril e maio de 2003. Elaboradas por Bronwen Cohen e Jennifer
Wallace, Children in Scotland (www.childreninscotland.org.uk) e Peter Moss e Pat
Petrie, Unidade de Pesquisas Thomas Coram, Instituto de Educação, Londres. Publicadas
pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica.
UNESCO, Paris (http:/www.unesco.org/education/educprog/ecf/index.htm).
1
Estas notas sobre políticas baseiam-se em um trabalho de pesquisa financiado pelo
Conselho de Pesquisa Econômica e Social do Reino Unido (R000239373), executa-
do por Peter Moss e Pat Petrie (Unidade de Pesquisa Thomas Coram, Instituto de
Educação, Londres), Bronwen Cohen e Jennifer Wallace (Children in Scotland), com
o apoio de Bjorn e Lisbeth Flising (Universidade de Goteberg). Um livro baseado na
pesquisa, A New Deal for Children? Re-forming Education and Care in England, Scotland and
Sweden, foi publicado pela The Policy Press, em maio de 2004.

75
dividiam entre o atendimento prestado pelas escolas (que já eram res-
ponsabilidade do Departamento de Educação) e os serviços de “cui-
dados infantis” (de responsabilidade do Departamento de Saúde). Os
níveis de atendimento eram baixos e havia muitos tipos de serviços e
de prestadores de serviços, a maioria deles pertencente ao setor privado.
Após 1998, a estreita relação entre educação e cuidados infantis foi
ressaltada em documentos oficiais. Por exemplo, a Estratégia Nacional
de Cuidados Infantis diz que “não há distinção perceptível entre uma
boa educação e bons cuidados, nos estágios iniciais”. Na prática, contudo,
a continuidade dessa integração foi bastante limitada. Além do mais,
em fins de 2002, a responsabilidade pela educação e pelos serviços
destinados a crianças pequenas foi novamente dividida, desta vez entre
o Departamento de Educação e o Departamento do Trabalho.
Essa integração fica mais aparente em duas áreas. Em primeiro
lugar, os financiamentos públicos para a “educação nos primeiros anos”
(para crianças de três e quatro anos de idade; a escolarização compulsória
começa aos cinco anos) passaram a atingir todos os tipos de serviço –
escolas, creches e creches domiciliares – que preencham determinadas
condições. Essas condições incluem a adoção de um novo currículo, o
Estágio Fundamental, que abrange também o primeiro ano da
escolaridade compulsória, especificando os “objetivos iniciais da apren-
dizagem”. Em segundo lugar, a regulamentação foi integrada e
centralizada: uma inspetoria nacional do ensino é responsável pela
regulamentação de todos os serviços de educação e cuidados infantis
em todo o país.
Um programa, recentemente anunciado, de “centros infantis” tem
como objetivo integrar os cuidados, a educação e outros serviços – mas
apenas em áreas carentes. Também recentemente, a legislação passou a
capacitar as escolas a assumir um papel mais amplo. Por exemplo, as
escolas, ou seus parceiros, têm agora permissão para criar serviços de
cuidados infantis e de outros tipos. Mas ainda não há sinais de
desenvolvimento de um sistema integrado de “escolas de tempo integral”.
Com a adoção das “transferências condicionadas de renda para
cuidados infantis” e de muitas outras fontes de financiamento, as verbas

76
públicas aumentaram. No entanto, o financiamento dos serviços tor-
nou-se agora mais complexo do que era antes. Os recursos humanos e
as qualificações continuam fragmentados. Por exemplo, a remuneração
e o treinamento dos profissionais de cuidados infantis são desiguais.
Um dos principais temas foi a colaboração entre as diferentes
agências, mais ampla do que a que ocorre entre os serviços para os
primeiros anos da infância, os cuidados a crianças em idade escolar e
as escolas. O governo criou uma Unidade de Crianças e Jovens, que
vem desenvolvendo uma “estratégia abrangente para todos os servi-
ços voltados a crianças e jovens”. Um programa liderado pelo
Tesouro, o Sure Start (Bom Começo) financia programas locais em
áreas carentes, integrando cuidados infantis, saúde, assistência às fa-
mílias e outros serviços para crianças de menos de quatro anos e suas
famílias.

ESCÓCIA
Na Escócia, as reformas tiveram lugar no contexto da devolução,
com o restabelecimento de um parlamento escocês, o que abriu mais
espaço ao debate e à legislação.
A Inglaterra e a Escócia ainda têm muito em comum. Por exemplo,
antes da transferência de responsabilidade, em 1998, a estrutura e o
nível dos serviços de cuidados para crianças pequenas e crianças em
idade escolar, na Escócia, eram semelhantes aos da Inglaterra. Ambos
os países aumentaram as verbas destinadas aos primeiros anos da
educação e a extensão da integração posterior é mais evidente.
Mas há importantes diferenças de ênfase e de enfoque. Da mesma
forma que na Inglaterra, há um currículo que abrange crianças de três a
seis anos. Mas o “Currículo de Pré-Escolas” escocês é menos prescritivo
que o Estágio Fundamental inglês, oferecendo uma exposição de boas
práticas, mas sem especificação de objetivos de aprendizado. A regula-
mentação dos cuidados infantis permanece no âmbito do setor social,
embora uma inspeção integrada esteja sendo desenvolvida juntamente
com o setor educacional.

77
Uma política importante e peculiar à Escócia é a Iniciativa das No-
vas Escolas da Comunidade. O programa piloto, lançado em 1998,
está agora sendo estendido a todas as escolas. O objetivo é um enfoque
integrado e centrado na criança, no tocante tanto à educação quanto à
saúde e à assistência à família. Esse enfoque tem implicações relativas à
aprendizagem por toda a vida, e as escolas ou sediam ou estão vincu-
ladas aos serviços voltados a crianças pequenas e a crianças em idade
escolar, e também à educação de adultos.
Uma outra característica distintiva é que a responsabilidade pela
assistência às crianças, no nível nacional, foi integrada ao departamento
de educação, juntamente com as escolas e os serviços de cuidados a
crianças pequenas e em idade escolar. Foi colocada uma forte ênfase na
colaboração entre as diversas agências. Um relatório do governo
recomenda que todos os serviços que abrangem a faixa que vai do
nascimento até os 18 anos (incluindo educação, assistência à criança,
assistência social, saúde, lazer e recreação) devem ser vistos como um
sistema unitário. Uma Força-Tarefa Ministerial vem implementando com
sucesso esse enfoque integrado de todos os serviços infantis.

SUÉCIA
Antes de 1996, a integração já estava bem adiantada. A maioria das
autoridades locais já havia incorporado em um único departamento a
responsabilidade pelos serviços de cuidados para a primeira infância,
pelas escolas e pelos serviços de cuidados a crianças em idade escolar.
Havia um sistema amplo e bem-dotado de recursos financeiros para
os serviços destinados aos primeiros anos da infância, já então comple-
tamente integrados. A integração às escolas dos cuidados às crianças
em idade escolar, criando as “escolas de tempo integral”, já estava
avançada, como também a transferência das crianças de seis anos das
creches para as “turmas de pré-escola”, agregadas às escolas. O trabalho
de equipe entre professores de pré-escola, professores de escola e
pedagogos de horas de lazer já era prática comum. Agrupamentos de
serviços – primeiros anos, cuidados para crianças em idade escolar e
escolas –, com freqüência cada vez maior, eram administrados por um

78
rektor, que poderia pertencer a qualquer uma das profissões acima men-
cionadas.
A partir da transferência da responsabilidade do setor social para
os departamentos educacionais, que ocorreu em 1996, os princípios
educacionais foram ampliados de modo a abranger os primeiros anos
e os serviços de cuidados para crianças em idade escolar. Esses serviços
são de acesso universal a todas as crianças de idades entre um e 12
anos. Todos os serviços, atualmente, obedecem a currículos: um para
os serviços voltados aos primeiros anos da infância e outro abran-
gendo as escolas e os cuidados para crianças em idade escolar. Foi
adotado um período de freqüência optativa para crianças de quatro e
cinco anos de idade. A medida mais radical foi a unificação do
treinamento do pessoal docente para todos esses serviços.2

CONCLUSÕES
O processo de integração diferiu bastante nesses três países, refle-
tindo suas singulares histórias, contextos e agendas políticas. A Suécia já
possui um sistema coerente e integrado de serviços universais, tanto na
área social quanto na educação. “O cuidado infantil para pais trabalha-
dores” já havia sido alcançado, e os níveis de pobreza eram baixos.
Nenhum desses temas representava uma questão política premente.
Nessas condições, as reformas suecas concentraram-se na educação,
visando a atingir um enfoque comum a todos os serviços, que deveriam
compartilhar a maneira de encarar a aprendizagem, os cuidados e a
infância. Essa integração foi embasada numa forte tradição pedagógica
de orientação holística, resumida no currículo sueco para as pré-escolas:
“a pré-escola deve oferecer às crianças atividades pedagógicas de boa
qualidade, em que os cuidados, o desenvolvimento e a aprendizagem
formem um todo coerente”.

2
Ver UNESCO. A Integração da Primeira Infância na Educação: o caso da Suécia. Notas
sobre Políticas para a Primeira Infância, Paris: UNESCO, n. 3, de mai. de 2002.
Capítulo 2, desta publicação.

79
Na Inglaterra e na Escócia, ao contrário, os processos de integração
ocorreram em um contexto onde dominava uma forte agenda social,
voltada para a redução dos níveis de pobreza e para o aumento do
desemprego. Foi dada prioridade a reforçar “os cuidados infantis para
pais trabalhadores”. Há falta de tradições e de princípios políticos ca-
pazes de apoiar a integração dos cuidados e da educação. Por exemplo,
não existe um conceito de “pedagogia”, e a política baseia-se em inter-
venções públicas focalizadas, limitadas, de cuidados infantis, e oferta
universal de educação financiada por verbas públicas.
A situação escocesa é muito mais parecida com a da Inglaterra do
que com a da Suécia, com um forte foco na área social. No entanto, há
uma ênfase maior na inclusão social, contrastada à redução da exclusão.
Programas tais como as Novas Escolas da Comunidade adotam uma
visão mais universalista.

APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA


Nos três países, a integração concentrou sua atenção na escolaridade
compulsória e em sua relação com os demais serviços. Seria possível
criar “uma relação forte e igualitária” (como recomendado pelo
recente relatório da OCDE, Starting Strong)? Ou isso a que os suecos
chamam de “escolificação” é mais provável, com a adoção, pelos
demais serviços, de um enfoque escolar estreito e tradicional? Na
Inglaterra e na Escócia, uma “relação igualitária” foi dificultada pela
“economia mista” de serviços públicos, privados e sem fins lucrativos,
que gerou uma certa dose de tensão entre a promoção das escolas
como recursos comunitários e as políticas voltadas para o mercado,
que dão ênfase ao direito dos pais de escolher a escola a ser freqüentada
por seus filhos.
A experiência desses três países levanta diversas outras questões. Uma
integração ampla exige não apenas repensar, mas também reestruturar.
Um conceito inerentemente integrativo, como a pedagogia, embasa de
forma sólida esse repensar. Por fim, a integração é dificultada, caso os
serviços em questão possuam valores, princípios e objetivos muito
diferentes.

80
10.2 – A REFORMA DA FORÇA DE TRABALHO DE
EDUCAÇÃO E CUIDADO

INGLATERRA

Antes de 1998, a Inglaterra possuía uma força de trabalho


compartimentada e hierárquica. Os professores, geralmente
formados em universidades e relativamente bem pagos, trabalhavam
nos jardins de infância e nas escolas primárias e secundárias de
freqüência obrigatória. No outro extremo, encontravam-se os cuida-
dores das creches domiciliares, com pouco treinamento e salários
muito baixos. No nível intermediário, vinham os “profissionais de
cuidados infantis”, que trabalhavam em centros, tanto com crianças
pequenas quanto com as de idade escolar, e também as assistentes
de sala de aula, que na maioria das vezes trabalhavam em turmas de
crianças de três a cinco anos e prestavam assistência a crianças
portadoras de necessidade especiais. Para estes últimos, tanto o trei-
namento quanto os salários, eram baixos, embora melhores que os
dos cuidadores das creches domiciliares.
A partir de 1998, a força de trabalho continuou compartimentada
e hierárquica. Houve um grande aumento no número de assistentes
de sala de aula, devido às políticas adotadas pelo governo, e uma
queda no número dos cuidadores de creches domiciliares, em razão
da queda da oferta. As políticas concentraram-se no aperfeiçoa-
mento da força de trabalho ocupada nos cuidados infantis: por
exemplo, por meio de mais treinamento “em serviço”: racionali-
zando o número excessivo de qualificações, de modo a criar uma
“escala progressiva” que facilitasse a mobilidade, tanto vertical quanto
horizontal, dos profissionais, e também da criação de novos cami-
nhos de progressão funcional, como, por exemplo, uma qualifica-
ção de “profissional sênior”. O recrutamento de pessoal para o
trabalho de cuidados infantis também se converteu em uma priori-
dade: por exemplo, por meio de uma campanha nacional de
recrutamento e do estabelecimento de metas para grupos com
representação insuficiente, como os homens.

81
ESCÓCIA
Em muitos sentidos, a situação anterior e posterior a 1998 foi
semelhante à da Inglaterra. Há, contudo, algumas diferenças significativas.
Um relatório sobre o futuro da profissão docente levou a um
considerável aumento salarial para os professores e ao aumento da
disparidade entre os professores e demais grupos profissionais, entre
eles os de cuidados infantis e os assistentes de sala de aula. Um segundo
relatório recomendou a criação de um exercício de planejamento úni-
co da força de trabalho, abrangendo as questões de recrutamento,
treinamento e desenvolvimento profissional do pessoal dos serviços
voltados às crianças. Um exercício de mapeamento da força de traba-
lho está atualmente em elaboração. A iniciativa das Novas Escolas
Comunitárias, cujo objetivo é criar um modo mais integrado de enfocar
a educação, a saúde e a assistência à família, vem estabelecendo víncu-
los entre os diferentes setores e incorporando novos tipos de profissi-
onais: cargos de “gerente de integração” (ou equivalente) foram criados
em muitas áreas, enquanto Glasgow reuniu as instituições de educação
infantil e as escolas primárias e secundárias em “comunidades de
aprendizagem”, cada uma com um diretor, que pode pertencer a
qualquer um desses níveis educacionais.

SUÉCIA
Antes de 1996, havia três grandes categorias profissionais. Os
professores de pré-escola (Förskollärare) trabalhavam nos serviços
voltados para os primeiros anos e com as crianças menores das
escolas; os professores das escolas trabalhavam com crianças de
todo o espectro da escolaridade obrigatória e com jovens de 16 a
19 anos, nas escolas secundárias superiores (gymnasia), enquanto os
pedagogos de horas de lazer (fritidspedagog) trabalhavam nos
serviços de cuidados às crianças em idade escolar. Essas três
profissões eram treinadas separadamente, e os professores das
escolas tinham níveis consideravelmente mais altos de treinamento
e de salários, embora as diferenças não fossem tão grandes. Todas
elas tinham formação de nível superior, os professores por, no mí-

82
nimo, três anos e meio, e os professores de pré-escola e os pedagogos
de horas de lazer por três anos.
Havia também alguns assistentes, principalmente nos serviços
voltados para os primeiros anos da infância. Mas eles eram minoria, e
a tendência era de que a equipe profissional fosse mais numerosa. A
maioria das pessoas que trabalhavam nas creches domiciliares era
contratada pelas autoridades locais, recebendo salários melhores que
os da Inglaterra e da Escócia. Já os níveis de treinamento eram igualmente
baixos nos três países.
Um forte movimento em favor das “escolas de tempo integral”
havia integrado as escolas (inclusive as “turmas de pré-escola”, para
crianças de seis anos de idade) com os serviços para crianças em idade
escolar. Em muitos casos, as equipes das escolas de dia inteiro provi-
nham dos três grupos profissionais, trabalhando com crianças de seis a
nove anos de idade. Os agrupamentos de serviços – primeiros anos da
infância, cuidados para crianças em idade escolar e escolas – tendiam,
cada vez mais, a ser administrados por um rektor, originário de qual-
quer uma das três categorias profissionais. A demarcação entre esses
grupos vinha-se tornando menos nítida.
Após 1996, ocorreu uma reforma radical da força de trabalho. Um
novo sistema de formação foi adotado em 2001, abrangendo o trabalho
com crianças e jovens, do nascimento até os 19 anos. As três profissões
principais e respectivos sistemas de formação vêm-se transformando
em uma profissão única, com um único sistema de formação. Todos
os estudantes agora têm de passar por um curso de bacharelado de, no
mínimo, três anos e meio e, ao se formar, terão o título de professor.
Os primeiros dezoito meses dessa formação são constituídos por
matérias básicas, a serem cursadas por todos os estudantes, quer eles se
proponham a trabalhar com crianças de 18 meses ou de 18 anos. Essa
área comum da formação, segundo o Ministério da Educação da Suécia,
“deve compreender, por um lado, áreas de conhecimento que são de
importância central para a profissão docente, tais como pedagogia,
educação para portadores de necessidades especiais, desenvolvimento
das crianças e jovens e, por outro lado, matérias interdisciplinares”. O

83
restante do curso consta de estudos de natureza mais especializada: por
exemplo, sobre trabalho com a primeira infância e outras áreas especí-
ficas. Os estudantes não têm de decidir de partida sua área de especia-
lização docente, o que será feito no decorrer do curso, ao contrário do
que ocorria no passado.

CONCLUSÕES
Após a transferência da responsabilidade por todos os serviços
para a área da educação, a Inglaterra e a Escócia adotaram aperfeiçoa-
mentos quantitativos, sem uma reestruturação fundamental da força
de trabalho, que continua discriminada em professores, assistentes de
sala de aula e profissionais de cuidados infantis. A força de trabalho
tornou-se mais diferenciada, com a introdução de novos cargos de
“profissional sênior”, e um maior número de assistentes de sala de aula.
Permanecem as grandes diferenças, em termos de treinamento, salários
e status, entre os professores e os demais grupos.
A Suécia deu preferência à reforma estrutural. O objetivo é uma
profissão única, trabalhando com uma faixa etária ampla e em ambientes
diversos – de crianças pequenas, nos jardins de infância, aos adolescentes,
nos gymnasia. A idéia norteadora é radical: a integração exige práticas
novas na totalidade do sistema – e não apenas a extensão, para outros
grupos etários, dos métodos tradicionais de ensino escolar. Por exem-
plo, um professor de Física, em um gymnasium, pode encontrar
inspiração nas práticas pedagógicas desenvolvidas nos serviços para a
primeira infância e nos serviços de cuidados para crianças em idade
escolar. Ao mesmo tempo, essa reforma implica riscos consideráveis.
Foram manifestadas preocupações de que um número excessivo de
estudantes irá optar pelo ensino escolar, gerando carência de pessoal
nos serviços para os primeiros anos da infância, pois, embora a for-
mação esteja agora integrada, os professores de escola ainda são bene-
ficiados por melhores salários e condições de trabalho. As reformas
foram introduzidas ao longo de um período de tempo bastante curto,
mas elas irão exigir mudanças radicais nos métodos usados pelas
universidades para a formação de professores.

84
APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA
Nos três países, a experiência sugere que, para que haja relações
mais estreitas entre os diferentes serviços, deve haver novos tipos de
administradores, capazes de trabalhar com os diferentes serviços. Mas
a reforma, no nível dos profissionais, depende de uma série de condições,
inclusive conceitos compartilhados e investimentos públicos. Na Suécia,
a integração teve como base um repensar os conceitos de criança e de
aprendizagem, e também um bem estabelecido conceito de pedagogia,
que trata de forma holística as crianças e os jovens, a fim de apoiar seu
desenvolvimento integral. A reforma da força de trabalho sueca baseou-
se também em investimentos públicos constantes e de grande monta,
o que levou à redução das diferenças salariais e de treinamento entre as
várias categorias profissionais, cuja formação foi agora integrada.
Segundo a OCDE, a Suécia gasta 2% de seu PIB apenas nos serviços
voltados aos primeiros anos da infância.
Nenhuma dessas condições se aplica à Inglaterra ou à Escócia. A
força de trabalho compartimentada reflete uma arraigada cisão
conceitual entre “cuidados infantis” e “educação”. Mesmo após os
recentes aumentos, os gastos públicos com os primeiros anos da infância
e com os serviços de cuidados a crianças em idade escolar, tomados
em conjunto, perfazem menos de 0,3% do PIB. São necessários inves-
timentos muito maiores para reduzir as disparidades entre as diferentes
categorias profissionais, e existe um grande obstáculo para que isso
venha a ocorrer. Tanto a Inglaterra como a Escócia – como a maioria
dos países de língua inglesa – possuem sistemas de “cuidados infantis”
fornecidos por provedores privados, que operam com regras de
mercado. As verbas públicas são relativamente poucas, basicamente
um subsídio à demanda (por exemplo, transferências condicionadas
de renda) pago diretamente às famílias de baixa renda: a maior parte
dos serviços, em si, não recebe financiamentos públicos.
Não está ainda claro se os sistemas que dependem fortemente de
mensalidades pagas pelos pais são capazes de sustentar uma reforma
radical da força de trabalho ocupada com os “cuidados infantis”, em
termos de treinamento e salários. Os proprietários dos serviços talvez

85
até concordem que os profissionais de cuidados infantis necessitam de
melhor treinamento e melhor remuneração. Mas quem paga a conta?
As transferências condicionadas de renda, na Grã-Bretanha, são
concedidas a 3% das famílias: na média, elas recebem 39 libras esterlinas
semanais, quando o custo médio de um jardim de infância é de 120
libras. Os pais arcam com custos altos, mas a equipe profissional recebe
baixos salários. Enfrentando problemas de recrutamento que só fazem
se agravar, quando aumenta a demanda por profissionais enquanto a
oferta se reduz, a estrutura de categorias profissionais, ainda
compartimentada e hierárquica, tanto na Inglaterra quanto na Escócia,
talvez não seja apenas um obstáculo a um enfoque integrado dos
serviços, mas, além disso, uma situação insustentável.
A aprendizagem ao longo da vida, a partir do nascimento, que torna
indistintas as fronteiras entre a aprendizagem formal e a informal, e
também entre cuidados e educação, requer uma visão ampla. A discussão
da integração não pode-se limitar aos serviços voltados para os
primeiros anos da infância: ela tem de abranger os serviços para as
pré-escolas e também para as crianças em idade escolar, e tanto os
serviços de “cuidados infantis” quanto as “escolas”. Um enfoque
holístico das crianças e dos jovens tem de ser acompanhado por uma
reforma da força de trabalho, na qual desapareçam as disparidades,
em termos de treinamento, status e remuneração, entre os profissionais
que trabalham com crianças mais novas e os que lidam com crianças
mais velhas.

86
11. O IMPACTO DA AIDS SOBRE OS
CUIDADOS E A EDUCAÇÃO DA
PRIMEIRA INFÂNCIA*

A SITUAÇÃO ATUAL DA PANDEMIA DO HIV


A epidemia do HIV transformou a infância, a juventude e a idade
adulta de milhões de pessoas em todo o mundo. Mais de três milhões
de crianças e 38 milhões de adultos encontram-se infectados pelo vírus,
em todo o mundo. A epidemia afeta a primeira infância tanto pela
doença e morte das próprias crianças quanto pela doença e morte de
seus pais, professores e outras pessoas responsáveis por cuidar delas.
Embora as marcas da pandemia do HIV sejam sentidas em todo o
mundo, seu impacto, atualmente, é maior no Cone Sul da África. Só no
ano passado, ocorreram 3,5 milhões de novos casos de infecção entre
adultos e crianças na África Subsaariana. Entretanto, países muito dis-
tantes da África também foram afetados. Em tempos recentes, o rápi-
do crescimento dos índices de infecção na Ásia e na Europa Central e
Oriental passaram a atrair a atenção. No Leste Europeu e na Ásia Central,
1,2 milhão de adultos e crianças estão vivendo com o HIV. A Índia
tem 4 milhões de adultos e crianças infectados, um total inferior apenas
ao da África do Sul. Caso a atual tendência se mantenha, em 2010, 10
milhões de chineses estarão infectados.

* Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early
Childhood) número 10, de maio de 2003. Elaborada por Jody Heymann, Ph.D.,
Diretora-fundadora do Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras, Universidade
de Harvard. Pubblicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família.
Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www. unesco.org/education/
educprog/ecf/index.htm).

87
Ao mesmo tempo em que, em países com escassez de recursos,
novos programas destinados a aumentar o acesso ao tratamento tra-
zem novas esperanças de uma sobrevida mais longa para as pessoas
infectadas, a disponibilidade de medicamentos é apenas um dos aspec-
tos das medidas que se fazem necessárias. Um dos maiores desafios
para os países que já apresentam altos índices de infecção é como cui-
dar das crianças saudáveis e, simultaneamente, atender às necessidades
dos adultos e crianças já infectados. Para alguns países, essa tarefa é de
particular urgência. Na África do Sul, estima-se que cerca de 20% dos
adultos em idade reprodutiva estejam infectados; no Zimbabwe, essa
cifra é de 34%; em Botswana, de 39%; na Swazilândia, de 33%; no
Lesoto, de 31%; na Namíbia, de 23%; em Zâmbia, de 22%; e em
Malawi, de 15%.1

UM ESTUDO PARA ENTENDER O IMPACTO DO HIV


SOBRE A INFÂNCIA
A fim de entender a melhor maneira de dar assistência às famílias que
criam seus filhos em meio à epidemia de HIV, o Projeto Global sobre
Famílias Trabalhadoras realizou um levantamento representativo,
abrangendo mais de 1.000 pais e outros responsáveis por crianças, usando
os serviços de três localidades de Botswana.2 Essas pessoas foram
entrevistadas na capital do país, Gabarone, na grande cidade de Lobatse
e na aldeia urbana de Molepolole. O estudo foi planejado de modo a
obter amostragens proporcionais ao número total dos habitantes das
grandes cidades, das cidades e das aldeias urbanas, em todo o país – as
três grandes classificações censitárias adotadas em Botswana. O índice de
respostas foi de 96%. Foi colocada aos pais uma série de perguntas deta-
lhadas sobre saúde, cuidados e educação das crianças em idades pré-

1
Estatísticas adicionais podem ser obtidas nas publicações: UNAIDS/. WHO. 2002.
Epidemological fact sheets on HIV/AIDS and sexually transmitted infections;
UNAIDS/WHO, 2002. Aids Epidemics Update. Dezembro. 2002.
2
Este estudo foi desenvolvido por Jody Heymann e coordenado por Divya Rajaraman,
como parte de uma parceria entre o Ministério da Saúde de Botswana e a Universi-
dade de Harvard.

88
escolar e escolar, e tanto os pais quanto os outros responsáveis respon-
deram a perguntas detalhadas sobre os cuidados dispensados aos mem-
bros adultos da família, inclusive os infectados pelo vírus da Aids.
A análise dos resultados do levantamento deixa claro que o HIV
vem tendo um impacto crítico tanto sobre as crianças infectadas quanto
sobre aquelas que têm parentes infectados pelo HIV.

RESULTADOS: CUIDADOS INFANTIS

Os pais que cuidam de parentes infectados com o HIV3, muito


mais do que os que não têm essa incumbência, tendem a afirmar que
estão preocupados com a qualidade dos cuidados recebidos por seus
filhos (53% contra 34%). Eles se preocupam principalmente com os
cuidados recebidos pelas crianças, quando elas adoecem. Entre os pais
que cuidam de pessoas com Aids, 75% se preocupam com os cuida-
dos que seus filhos irão receber, caso adoeçam.

RESULTADOS: CUIDANDO DE CRIANÇAS DOENTES

Na ausência de cuidados adequados para crianças infectadas com o


HIV, quando elas desenvolvem os sintomas da doença, os pais são os
que têm de assumir esses cuidados. Conseqüentemente, eles, muitas
vezes, têm de faltar ao trabalho para atender à criança enferma. Entre
os pais que cuidam de doentes de Aids, 29% faltam ao trabalho pelo
menos uma vez por mês, para atender a crianças doentes, contra 19%
entre os que não têm esse encargo. A necessidade de se ausentar do
trabalho para cuidar de crianças doentes freqüentemente leva à redu-
ção dos rendimentos e, às vezes, à perda do emprego. Ambas essas
possibilidades podem ter sérias implicações para a capacidade das fa-
mílias de dar assistência adequada a seus filhos pequenos, uma vez que
a redução de sua renda pode levá-los a uma situação de pobreza ainda
mais grave.

3
Os resultados relatados nesta nota descrevem famílias nas quais havia, pelo menos,
uma criança entre zero e cinco anos de idade.

89
RESULTADOS: O TEMPO QUE OS PAIS TÊM PARA
PASSAR COM OS FILHOS
As crianças pequenas não-infectadas, mesmo assim são profunda-
mente afetadas pela epidemia – tanto quando seus pais adoecem como
quando eles têm de cuidar de outros doentes. A necessidade de cuidar
de familiares infectados afeta a capacidade dos pais de oferecer aos
filhos sadios os cuidados de rotina. Os pais sobrecarregados com essa
responsabilidade gastam cerca de 74 horas por mês cuidando de seus
filhos, 22 horas a menos que os que não precisam cuidar de um doen-
te. As horas necessárias para cuidar de familiares infectados diminuem
significativamente o tempo disponível para seus filhos, que, em 48%
dos casos, se reduz a duas horas diárias, ou menos ainda.

RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICAS
Diversas considerações importantes, de ordem política, surgem a
partir do que estamos começando a aprender sobre o impacto do
HIV nas famílias com filhos pequenos. Em particular, essas conside-
rações dizem respeito à quantidade e à natureza dos serviços de cuidados
e educação para a primeira infância que se fazem necessários, bem
como ao apoio que tem de ser dado aos pais para que, tanto eles
como outros membros de suas famílias mais amplas, possam cuidar
das crianças infectadas pelo HIV, ou de outro modo afetadas pela
epidemia.
Em primeiro lugar, temos de aumentar a oferta de cuidados e
educação para a primeira infância nos países que apresentam os maiores
índices de HIV. Muitos pais, que antes cuidavam de seus filhos em casa,
deixaram de poder fazê-lo, em razão de doença ou morte. Ao mesmo
tempo, os pais sobreviventes precisam trabalhar, ou, nos casos em que
ambos os genitores morreram, os membros da família mais ampla
têm de trabalhar, o que vem aumentando a demanda por serviços de
cuidados e educação para a primeira infância. Além do mais, como
demonstrado acima, o tempo que os pais sadios têm para cuidar de
seus filhos, seja como o principal ou o único responsável, vem-se

90
reduzindo, uma vez que eles têm de passar mais tempo cuidando dos
familiares doentes.
Em segundo lugar, o HIV vem alterando a natureza da demanda
por cuidados para a primeira infância. As crianças infectadas ou
afetadas passaram a enfrentar desafios maiores em termos de saúde
e desenvolvimento. Para enfrentar essa grave situação, teremos de
aumentar a capacidade dos responsáveis por cuidados infantis de
lidar, tanto com crianças doentes quanto com crianças que apresen-
tam problemas de desenvolvimento, e aumentar também a
possibilidade dos pais ou guardiães de obter licenças para se ausentar
do emprego, sem perda de remuneração, para que eles possam cuidar
de seus filhos, no caso de esses serviços de cuidados infantis não
estarem disponíveis. Ambas as medidas são praticáveis. Fazendo uso
tanto de atendimento domiciliar por profissionais de saúde e assistência
social quanto encaminhando as crianças para serviços públicos situados
na vizinhança, os programas de cuidados domiciliares, no sul da África,
já estão funcionando de modo a assistir nos cuidados com a saúde
física e mental das crianças que foram deixadas órfãs, ou cujos pais
estão doentes demais para cuidar delas. Programas de creches podem
ser mais baratos que os residenciais, podendo oferecer o mesmo
nível de assistência, tão necessária às crianças que residam na
comunidade, quer elas estejam doentes ou sejam de outro modo
afetadas pelo vírus.
O aumento da disponibilidade de licenças remuneradas, um ingre-
diente de importância capital para o papel desempenhado por pais ou
guardiães, também é praticável. Vinte países africanos, como muitos
outros em todo o mundo, já prevêem, em seus códigos trabalhistas ou
em suas políticas públicas, licenças remuneradas para tratamento de
saúde do próprio empregado. Essas políticas têm apenas de sofrer
alguns ajustes, de modo a estender a licença remunerada a doenças de
familiares. A África do Sul já adotou uma política de licenças remune-
radas em caso de doenças dos filhos dos empregados, ou de morte na
família. Embora os países africanos sejam os que enfrentem os mais
altos índices de incidência do HIV, mudanças políticas como essas são
igualmente necessárias em todas as regiões do mundo. Essas mudanças

91
representariam um avanço da maior importância para os trabalhado-
res do setor formal, em todo o mundo. Têm ainda de ser desenvolvi-
das iniciativas paralelas para disponibilizar essas licenças remuneradas
aos que trabalham no setor informal.
Em suma, os cuidados com a saúde e o desenvolvimento das crian-
ças infectadas ou afetadas pela epidemia da Aids, cada vez mais, terão
de ser divididos entre suas famílias e os profissionais dos serviços de
cuidados para a primeira infância. Apenas a união de seus esforços
permitirá que as crianças recebam cuidados adequados, e que seus pais
ou guardiães continuem trabalhando para obter a renda necessária para
sua sobrevivência. Está claro que a necessidade geral de bons serviços
de cuidados para a primeira infância vem aumentando, em conseqüência
da Aids. Não apenas é necessário o aumento da oferta desses serviços,
mas também é preciso que eles se adaptem, de modo a atender às
novas demandas colocadas pelas crianças infectadas ou afetadas pelo
HIV. Os serviços de cuidados para a primeira infância podem desem-
penhar um papel de importância essencial face à epidemia da Aids, na
assistência à sobrevivência das famílias e das sociedades. Simultanea-
mente, os pais e demais responsáveis por esses cuidados a crianças
infectadas ou afetadas pelo HIV precisam ter condições de trabalho e
apoio de seus empregadores, para que eles possam assumir, de fato,
seu papel nessa parceria, e enfrentar essa tarefa de importância tão
crucial.

92
12. A REFORMA DOS CUIDADOS E DA
EDUCAÇÃO PARA A PRIMEIRA INFÂN-
CIA NA REPÚBLICA DA CORÉIA*

12.1 – “A ESCOLA PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA”


Em 1997, a então Comissão Presidencial para a Reforma Educacional
anunciou uma proposta de reforma para o sistema de cuidados e
educação para a primeira infância do país, introduzindo o conceito de
Escolas para a Primeira Infância (EPIs), ou Yoo-Ah-Hak-Kyo, um ser-
viço integrado de cuidados e educação, apresentando também o texto
da Lei da Educação para a Primeira Infância. Seis anos depois, essas
idéias de reforma ainda são objeto de acalorados debates, e pouco
progresso foi feito quanto à sua implementação. Para saber mais sobre
essa reforma e sobre o impasse que a cerca, foi combinada uma entre-
vista com o Dr. Jung Na, Pesquisador Sênior do Instituto Coreano de
Desenvolvimento Educacional, o arquiteto dessa proposta.1 Essa
entrevista foi feita pela Srª Soo-Hyang Choi, da sede da UNESCO, em
Paris, que organizou os trechos abaixo citados. As opiniões expressas
nesta nota não refletem as do Governo da Coréia, nem tampouco as
da UNESCO.

* Notas sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early
Childhood) números 15 e 16, de julho-agosto e setembro de 2003. Elaboradas por
Soo-Hyang Choi, Chefe da Seção de Educação da Primeira Infância e da Família.
Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www. unesco.org/education/
educprog/ecf/index.htm).
1
Para maiores detalhes, ver Na, J.; e Moon, M. (2003). Integrating policies and systems for
early childhood education and care: the case of the Republic of Korea. Paris: UNESCO,
2003. (UNESCO, early childhood and family policy series; n 7).

93
Choi: O senhor poderia nos falar sobre as Escolas para a Primeira
Infância (EPIs) criadas pela Proposta de Reforma de 1997
(doravante referida como a Proposta)?
Na: As EPIs são um serviço integrado de cuidados e educação
para crianças de três a cinco anos de idade, visando a promover
o desenvolvimento integral da criança, bem como a atender
aos pais em sua demanda de cuidados infantis. A
responsabilidade administrativa pelas EPIs, que serão integradas
ao sistema nacional de educação, será assumida pelo Ministé-
rio da Educação e do Desenvolvimento de Recursos Huma-
nos (MERH).
Choi: As EPIs seriam uma nova forma de serviço, que viria a
substituir os serviços hoje existentes?
Na: As EPIs não pretendem substituir os serviços existentes. Os
serviços atuais – jardins de infância, os serviços de cuidado e
os Hakwons2 – serão transformados em EPIs, após a adoção
de determinados padrões.3 As EPIs, portanto, são um novo
conceito – uma “escola centrada nos cuidados” para crianças
pequenas – a ser implementado dentro dos serviços já existentes.
Choi: Por que foi necessário esse conceito, enfatizando a inte-
gração?
Na: Os serviços para a primeira infância, na Coréia, são
bifurcados, sendo ou um serviço educacional ou um serviço

2
As crianças pequenas geralmente freqüentam os Hakwons para aprender desenho,
piano, dança, esportes, aritmética, línguas estrangeiras, caligrafia etc. Esses Hakwons,
muitas vezes, oferecem serviços de cuidados e educação para a primeira infância,
pelo menos parcialmente.
3
Por exemplo, muitos jardins de infância privados já funcionam em horário integral,
mas os que funcionam em tempo parcial teriam de ampliar seus serviços para se
qualificarem a se converter em EPIs; e as creches e Hakwons deveriam seguir, pelo
menos em parte, o currículo nacional para os jardins de infância, contratar professo-
res credenciados para a educação de crianças pequenas e passar por inspeções das
autoridades educacionais.

94
de cuidados, raramente ambos. Essa situação se deve ao fato
de haver responsabilidades administrativas paralelas, no que
diz respeito às crianças de três a cinco anos, algumas dessas
responsabilidades cabendo ao Ministério da Educação e
do Desenvolvimento de Recursos Humanos e outras, ao
Ministério da Saúde e dos Assuntos Sociais (MSAS).4 Há
uma superposição dos planos de cada um desses ministéri-
os para a expansão dos serviços, para treinamento e para a
estrutura pedagógica dos serviços voltados para crianças
de três a cinco anos – no MSAS, tratando dos serviços de
cuidados, e, no MERH, dos serviços educacionais de jardins
de infância. O resultado dessa duplicação de sistemas é o
desperdício de recursos humanos e financeiros. Além disso,
a competição entre os fornecedores de serviços de cuida-
dos e de educação para o mesmo grupo-alvo de crianças é
enorme.
Choi: Como uma denominação para um serviço integrado,
contudo, “Escolas para a Primeira Infância” não parece ser o
nome mais apropriado, por estar muito associado à educação.
Houve alguma razão especial para a escolha desse nome?
Na: A Coréia tem uma propensão natural a respeitar a aprendi-
zagem e a educação. Os pais vêem a escola como uma insti-
tuição para onde eles têm de mandar as crianças. A palavra
“escola” também traz à mente a imagem de um lugar de
aprendizagem séria. O nome EPI, portanto, foi pensado

4
O MSAS gere os serviços destinados a crianças de zero a cinco anos, enquanto o
MERH é responsável pelos serviços de jardins de infância, freqüentados por
crianças de três a cinco anos. Mas como, na Coréia, a maioria das crianças de zero
a dois anos de idade fica em casa, as de três a cinco são o principal grupo-alvo dos
serviços de cuidados infantis do MSAS, o que torna ainda mais intensa a tensão e
a duplicação de funções entre os dois ministérios. Em reação à proposta de
reforma do MERH para as crianças de três a cinco anos, o MSAS, nesse ínterim,
desenvolveu e implementou uma proposta de subsidiar os serviços para a faixa de
zero a dois anos.

95
como uma maneira estratégica de valorizar a percepção que
as pessoas têm das instituições para a primeira infância, e
mobilizar a atenção do governo para esse grupo etário.
Choi: Como os pais reagiram a esse nome?
Na: Quando perguntados, eles davam a impressão de que EPI
era o nome preferido para o novo serviço.
Choi: Mas essa preferência pode indicar que eles esperam que as
EPIs sejam uma instituição de aprendizagem séria, e eu imagino
que essa aspiração educacional talvez prejudique a intenção de
fazer das EPIs um sistema integrado.
Na: Uma das razões pelas quais o conceito de EPIs agrada aos
pais é que elas funcionariam como um serviço de tempo integral,
atendendo a suas necessidades de cuidar de seus filhos. Eles,
portanto, são plenamente favoráveis a um serviço amplo, que
abranja tanto os cuidados quanto a educação. Mas não se pode
descartar a possibilidade de as EPIs serem assimiladas, em termos
pedagógicos, pelas escolas – a chamada “escolificação”. Uma
vez que esse perigo de fato existe, alguns especialistas chegaram
a sugerir que “jardins de infância” seria um nome melhor.
Choi: Por que essa sugestão não foi levada em conta?
Na: Em primeiro lugar, para abarcar todos os serviços existentes,
precisávamos de um terceiro nome, que não fosse associado
a nenhum deles. Mas houve também uma razão mais realista.
Na Coréia, de acordo com as leis vigentes, os jardins de
infância são reconhecidos como a primeira modalidade de
escola, mas os jardins de infância privados, com fins lucrativos,
que representam 78% das matrículas em jardins de infância
em todo o país, não recebem apoio financeiro do governo,
pela simples razão de não levarem o nome de “escola”.5
5
No entanto, os jardins de infância públicos que funcionam nas escolas recebem
subsídios do governo, da mesma forma que as escolas. Essa discriminação, portanto,
tem mais a ver com a exclusão, pelo setor público, dos serviços privados, de natureza
comercial.

96
Portanto, jardim de infância não era um nome estratégico,
desse ponto de vista.
Choi: É compreensível que os jardins de infância privados tenham
gostado muito da Proposta. Mas eles gostaram da perspectiva
de estender seu atendimento de turno único para um
atendimento em tempo integral, a fim de se converter em
EPIs?
Na: A Proposta trazia um plano de universalizar a freqüência
de crianças de cinco anos às EPIs, e isso se aplicaria tanto às
EPIs públicas quanto às privadas. Os jardins de infância
privados interpretaram isso como uma forma de apoio do
governo, que, finalmente, estaria disponível aos serviços
oferecidos por eles. Por essa razão, eles estavam dispostos a
aceitar quaisquer “cargas” adicionais implicadas nesse pro-
cesso de transformação.
Choi: E quanto aos provedores de serviços de cuidados infantis?
Devido à grande afinidade com a educação, o conceito de
EPI não deve ter sido muito confortável para eles.
Na: Os serviços públicos de cuidados infantis, subsidiados pelo
governo, temiam perder o apoio deste. Mas os provedores
privados ficaram satisfeitos com a “mobilidade social”
associada às EPIs, uma vez que os serviços prestados por
eles seriam considerados como escolas, e eles assumiriam o
título de “diretor” 6. Mas, com o passar do tempo, os
provedores de serviços de pequena escala ou de baixa
qualidade começaram a temer que seus serviços não
conseguiriam atender aos padrões exigidos pelas EPIs, e
desapareceriam. Esse medo também era comum entre os
operadores comerciais dos Hakwon, cujo ensino tendia a
não contar com a aprovação dos educadores especializados

6
Atualmente, eles são chamados de “responsáveis pelo estabelecimento”, e os serviços
dirigidos por eles são “os estabelecimentos”, termos esses que não são vistos como
respeitáveis.

97
em primeira infância. A resistência apresentada por esses gru-
pos vem sendo feroz.
Choi: Esse medo era infundado?
Na: Sim, era. A Proposta deixou claro que nenhum serviço exis-
tente seria eliminado para a criação das EPIs, e que o governo
pretendia trabalhar em medidas de apoio, a fim de aperfeiçoar
os serviços existentes, para que eles pudessem ser incorpora-
dos à estrutura das EPIs.
Choi: Qual foi a reação do MSAS às EPIs?
Na: O MSAS interpretou as EPIs como um serviço orientado
para a educação, que seria adequado apenas para as crianças
de classe média. Para as crianças carentes, o ministério insistia
em que um enfoque baseado mais nos cuidados seria mais
apropriado. O MSAS fazia uma distinção estrita entre cuidados
e educação, como se fossem dois conceitos diferentes.
Choi: Haveria alguma perspectiva de que a competência financei-
ra do MSAS venha a ser reduzida com a introdução das
EPIs, o que, creio eu, seria uma razão mais válida para essa
oposição?
Na: O orçamento do MSAS não seria reduzido em termos de
volume, mas sim canalizado unicamente para os serviços
voltados a crianças de zero a dois anos, uma vez que a
responsabilidade pelos serviços voltados às crianças de três a
cinco anos passaria para o MERH. Na versão revisada da
Proposta, essa divisão de trabalho inicial sofreu outros ajustes,
para permitir que tanto o MSAS quanto o MERH
mantivessem autoridade financeira sobre seus respectivos
serviços de cuidados e educação, quando estes forem con-
vertidos em EPIs. Nesse meio tempo, o MERH teria seu
orçamento aumentado, para fazer face às suas novas respon-
sabilidades de treinar o pessoal das EPIs e oferecer freqüência
gratuita às EPIs às crianças de cinco anos. Um aumento de
verbas foi também planejado, para permitir que o MSAS

98
apoiasse a criação de novas EPIs. Em suma, o objetivo era
um enxugamento da superposição das responsabilidades
financeiras, embora sem cortes no orçamento de nenhum
dos ministérios.
Choi: Nesse caso, qual, em sua opinião, foi a verdadeira razão da
resistência apresentada pelo MSAS à Proposta?
Na: O MSAS temia que as responsabilidades administrativas e
financeiras relativas às EPIs acabassem por ser transferidas para
o MERH, uma vez que o conceito que embasava essas escolas
estava intrinsecamente associado à educação, e que o MSAS
perderia seu controle sobre os serviços para a faixa de três a
cinco anos.
Choi: O MERH estava disposto a aceitar as novas e maiores
responsabilidades relativas às EPIs?
Na: O MERH concordava, basicamente, com a direção tomada
pela reforma, inclusive a idéia das EPIs. Com sua
concordância, a Proposta poderia ser apresentada, antes de
qualquer coisa, ao então Presidente Kim, e em seguida
anunciada. Mas, quando o MERH teve de enfrentar a
oposição do MSAS e de seus defensores, ele não “reagiu”.7
Uma das razões para tal, segundo acredito, é que a educação
de crianças pequenas não é uma prioridade do MERH, e
seria difícil criar um orçamento, dentro do setor educacional,
para fazer face a essa nova responsabilidade. Essa falta de
apoio por parte do principal ministério técnico, em parte,
contribuiu para que a Proposta perdesse ímpeto.

7
O MERH, no entanto, participou, em alguma medida, do trabalho preparatório,
encomendando aos Institutos Coreanos de Desenvolvimento Educacional
uma série de estudos sobre a experiência das EPIs, seus modelos de
organização, seus métodos de treinamento integrado e seu vínculo com o
ensino primário, para citar apenas alguns aspectos. Para referências
correlacionadas ao tema, entrar em contato com o Dr. Jung Na
(nj@kedi.re.kr).

99
Choi: Qual seu conselho a outros países que estejam tentan-
do implementar uma reforma dessa natureza?
Na: O patrocínio do governo aos serviços para a primeira
infância deveria ser aperfeiçoado, antes de tudo, visan-
do a assegurar o desenvolvimento integral das crian-
ças. Deve-se sempre ter em mente o ideal de colocar
o interesse das crianças acima de qualquer outra consi-
deração. Se a reforma for vista, pelos ministérios inte-
ressados, como uma oportuni-dade de expansão ou
de redução “territorial” ela será, no máximo, um re-
mendo.

12.2 – A LEI DA EDUCAÇÃO PARA A PRIMEIRA


INFÂNCIA

Choi: O senhor poderia nos falar sobre o contexto no


qual a Lei da Educação para a Primeira Infância foi
proposta?
Na: Quando o Ministério da Educação e do Desenvolvi-
mento de Recursos Humanos8, em 1997, elaborou a re-
visão da Lei da Educação, visando a reformá-la, os espe-
cialistas em primeira infância e as partes interessadas nessa
área solicitaram que uma lei separada fosse redigida, tra-
tando especificamente da educação para a primeira in-
fância. Mas a área foi novamente colocada sob a jurisdi-
ção da Lei da Educação Primária e Secundária.9 Essa ques-
tão inacabada necessitava de atenção.
Choi: O fato de não haver uma lei separada para a primeira
infância causava problemas específicos?

8
Na época, o nome desse órgão era Ministério da Educação. Em 2001, o nome
mudou para Ministério da Educação e do Desenvolvimento de Recursos
Humanos.
9
Mesmo anteriormente, a educação para a primeira infância era abrangida pela
Lei da Educação Primária e Secundária.

100
Na: Em primeiro lugar, essa inclusão na educação pri-
mária e secundária faz com que não seja dado reco-
nhecimento específico à educação para a primeira
infância, como um estágio distinto da educação. Em
segundo lugar, a Lei da Educação Primária e Secun-
dária não foi considerada adequada para a nova Es-
cola para a Primeira Infância (EPI) integrada,10 que
abrange não apenas as funções educacionais, mas tam-
bém as funções de cuidados. Em terceiro lugar, o apoio
governamental é negado aos jardins de infância
privados, com base na alegação de que não existe uma
lei tratando dos jardins de infância.11 Esses não têm
direito, por exemplo, aos subsídios governamentais
para o arroz usado no preparo dos almoços e merendas
das crianças, ajuda essa disponível aos estabelecimen-
tos escolares. Por fim, de acordo com a lei vigente, os
professores de escola primária podem-se tornar pro-
fessores de pré-escola sem necessidade de treinamento
específico. Uma lei separada foi necessária para retirar
da lei atualmente em vigor essas características potenci-
almente nocivas à pedagogia para a primeira infância.
Choi: Já faz seis anos que a Proposta para a Lei da Educa-
ção para a Primeira Infância foi divulgada, transforma-
da em projeto e apresentada aos legisladores.12 Mas essa
lei ainda não foi aprovada. Qual tem sido o problema?
Na: Um dos problemas é que a Proposta não foi apre-
sentada pelo ministério competente, o Ministério da

10
Um serviço integrado, de horário integral, para crianças de três a cinco anos,
apresentado na Reforma de 1997.
11
Os jardins de infância nacionais/públicos que funcionam nas escolas são trata-
dos como escolas, tendo direito ao apoio governamental reservado a estas.
12
A Proposta foi apresentada por quatro vezes, em 1997, 1999, 2001 e 2003.
Na Coréia, se uma proposta não chega a ser tratada em uma determinada
Sessão Anual, ela é automaticamente abandonada. Para que ela mantenha
sua condição de proposta, ela tem de ser reapresentada na Sessão Anual
seguinte.

101
Educação e Desenvolvimento de Recursos Humanos, mas
sim pelos Membros da Assembléia Nacional.
Choi: Se a Proposta foi colocada na pauta por iniciativa interna
da Assembléia Nacional, ela deve ter recebido algum apoio,
pelo menos partindo de seus Membros. Isso não foi
suficiente?
Na: A Proposta da Assembléia Nacional para a Lei da
Educação para a Primeira Infância foi gerada, inicialmente,
por argumentos apresentados pelos operadores de jardins
de infância. Mais tarde, os fornecedores de serviços de
cuidados para a primeira infância e os operadores dos
Hakwon13 participaram de um lobby pedindo o veto da
Proposta. Nesse processo, os membros da Comissão de
Educação, que apresentou a Proposta, passaram a se
perguntar se essa Proposta não favoreceria indevidamente
os jardins de infância. Eles, portanto, hesitaram em trabalhar
por ela, o que, em parte, contribuiu para o impasse na
aprovação da Lei.
Choi: Em que situação se encontra agora a Proposta?
Na: Este ano ela foi novamente apresentada pela Assembléia
Nacional, e rejeitada. Recentemente, entretanto, ficamos
sabendo que o Ministério da Educação e Desenvolvimento
de Recursos Humanos está examinado a possibilidade de
elaborá-la na forma de uma Proposta Governamental. Se
isso acontecer, será mais fácil superar o impasse.
Choi: A Proposta Governamental do Ministério da Educação e
Desenvolvimento de Recursos Humanos para a Lei da
Educação para a Primeira Infância será semelhante à sugerida
na Reforma de 1997?

13
Serviços comerciais oferecendo aulas de arte, piano, dança, esportes, aritmética, línguas
estrangeiras etc. para crianças pequenas. Esses serviços oferecem programas que
combinam cuidados para a primeira infância e atividades educativas.

102
Na: Sim, mas ela tratará apenas dos jardins de infância, deixando
de fora os serviços de cuidados para a primeira infância e os
Hakwon. Na verdade, a reforma original foi revista em 1997,
visando a restringir o âmbito da Proposta, de modo a incluir
apenas os jardins de infância. A Proposta Governamental
para a Lei provavelmente refletirá essa revisão.
Choi: A reforma revisada ainda era centrada no conceito de Escola
para a Primeira Infância (EPI)?
Na: Sim, a principal concepção de EPI – ou seja, criar serviços
integrados de cuidados e educação em tempo integral – foi
mantida. Mas ficou decidido que o serviço integrado não se
chamaria EPI. Desse modo, a Proposta Governamental para
a Lei da Educação para a Primeira Infância, apresentada pelo
Ministério da Educação e Desenvolvimento de Recursos Hu-
manos usaria o termo Jardins de infância, não Escolas para a
Primeira Infância.
Choi: Caso a Lei da Educação para a Primeira Infância tratando
apenas dos jardins de infância seja aprovada, o senhor ainda
assim a veria como um avanço?
Na: Sim, em primeiro lugar, com uma Lei da Educação para a
Primeira Infância, a Lei Educacional do país contará com
legislações para o conjunto completo dos ciclos da vida,
cobrindo a primeira infância, os ensinos primário, secundário,
superior e a educação de adultos. Em segundo lugar, a Lei
da Educação para a Primeira Infância certamente irá preparar
o terreno para o apoio governamental aos jardins de infância
privados.
Choi: Uma das mudanças significativas que a Lei da Educação
para a Primeira Infância tenta estabelecer é transformar os
jardins de infância em serviços de horário integral, para
atender às necessidades dos pais com relação ao cuidado
dos filhos pequenos. A demanda de serviços de cuidado para
a primeira infância é grande na Coréia?

103
Na: O cuidado para a primeira infância é uma das principais
razões que impedem as mães de procurar emprego fora de
casa. Recentemente, o baixo índice de fertilidade do país foi
atribuído, em parte, à carga do trabalho de cuidar de crianças
pequenas. De modo que existe uma crescente preocupação
com a necessidade de serviços para a primeira infância,
visando a aumentar a participação feminina no mercado de
trabalho e a promover a igualdade entre os gêneros.
Choi: Dado o contexto social do país, o senhor acredita que a
implementação da Reforma teria sido facilitada caso ela tivesse
se centrado na questão do cuidado para a primeira infância,
argumentando a favor de uma maior responsabilidade ser
conferida ao setor do bem-estar social?
Na: Poderia ter sido mais fácil.
Choi: Nesse caso, poder-se-ia dizer que a reforma de cunho
nitidamente educacional, centrada no aumento da responsa-
bilidade do setor da educação, representou um equívoco?
Na: Não, como o próprio Ministério da Educação e do Desen-
volvimento dos Recursos Humanos concordou, a Reforma
aponta para a direção certa a ser tomada pelo país, embora
ela seja de difícil implementação. E chegou a hora de
pensarmos seriamente em nosso futuro. Com relação à
perspectiva educacional, eu gostaria de observar que integrar
o cuidado e a educação sob a responsabilidade do setor
educacional é a direção que, ultimamente, vem sendo adotada
e examinada pelos países desenvolvidos. Mas, alguns anos
atrás, os investimentos desses países na primeira infância tam-
bém eram justificados principalmente como uma forma de
aumentar a participação das mulheres na força de trabalho e
de promover a igualdade entre os gêneros. A Coréia encontra-
se nesse estágio inicial de desenvolvimento, mas ela logo pas-
sará a uma fase mais avançada. Portanto, a reforma teria de
fato sido equivocada e anacrônica, caso ela privilegiasse uma
perspectiva que, logo em seguida, viria a ser substituída por

104
uma outra. Corrigir uma reforma malfeita é mais difícil e
mais caro do que implementar uma reforma nova. Uma re-
forma deveria estabelecer uma visão de futuro.
Choi: Qual o seu conselho aos países que estão tentando começar
um esforço legislativo dessa natureza?
Na: Os governos não devem ter medo de trazer a primeira
infância para dentro da estrutura educacional. Como nós
tentamos, com o conceito de Escolas para a Primeira Infância,
pode-se chegar a um serviço cujo objetivo seja tanto a
educação quanto o cuidado. O problema surge apenas quando
o conceito de educação é entendido e interpretado
estritamente no “velho” sentido da escolarização. Mas agora
que os países, embora lentamente, estão deixando para trás o
conceito de educação convencional e restrito ao ensino,
adotando uma visão ampliada da educação, os programas
para a primeira infância que apresentam características tanto
de ensino quanto de cuidado devem conquistar uma posição
sólida. Já é tempo de o conceito de educação se tornar mais
flexível e aberto, em vez de a primeira infância ser distorcida
de modo a caber no antigo conceito.

105
13. O PAPEL DA EDUCAÇÃO E DO
CUIDADO PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA
NA PROMOÇÃO DA IGUALDADE DE
OPORTUNIDADES*

ANTECEDENTES
Tanto nos países industrializados quanto nos países em desenvol-
vimento, os programas de educação pré-escolar vêm-se provando
capazes de trazer ganhos de importância crítica para o desenvolvimento
social, emocional e cognitivo das crianças. Além do mais, estudos vi-
sando a acompanhar as crianças ao longo dos anos passados em
programas de educação para a primeira infância e, subseqüentemente,
na escola, vêm demonstrando que as crianças que tiveram a oportuni-
dade de receber cuidado e educação de qualidade nos seus primeiros
anos têm desempenho acadêmico significativamente superior, quer elas
estejam sendo criadas na América Latina, na África, na Ásia, na América
do Norte ou na Europa. Em razão dos benefícios trazidos pela
educação para a primeira infância, é de importância fundamental –
caso tenhamos a intenção de assegurar oportunidades iguais a todas as
crianças – que haja igualdade no acesso a serviços de qualidade, volta-
dos à educação e cuidado para a primeira infância (ECPI). A presente
nota de política examina a atual situação do acesso a esses serviços.

* Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early
Childhood) número 18, de novembro-dezembro de 2003. Elaborada por Jody
Heymann, Ph.D., Diretora-fundadora do Projeto Global sobre Famílias Trabalha-
doras, Universidade de Harvard. Pubblicada pela Seção de Educação da Primeira
Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www.
unesco.org/education/educprog/ecf/index.htm).

107
AS ATUAIS DISPARIDADES ENTRE CLASSES SOCIAIS
QUANTO AO ACESSO A CUIDADOS INSTITUCIONA-
LIZADOS
Realizamos estudos aprofundados em grandes e pequenas cidades
do México, de Botswana e do Vietnã, e analisamos também dados
nacionais do Brasil e do Vietnã. Os resultados desses estudos são
mostrados a seguir.
As cifras para cada país demonstram, ao longo de uma vasta gama
de tipos de famílias, que as crianças que vivem em famílias onde o grau
de escolaridade dos pais é mais baixo, têm menores probabilidades de
vir a receber educação para a primeira infância entre as idades de três a
cinco anos (ver Tabela 1).

Tabela 1: Percentagem de crianças de três a cinco anos matriculadas


em educação para a primeira infância, por tipo de família e grau de
escolaridade dos pais

* AP – Amostragem pequena demais para permitir estimativas.

No decorrer dos estudos aprofundados, entrevistamos uma amos-


tra representativa de famílias atendidas em centros de saúde para pre-

108
venção e consultas de rotina, em cidades escolhidas, tanto grandes quanto
pequenas. Os resultados dessas entrevistas revelam disparidades entre
as classes sociais em termos do acesso a serviços formais de educação
e cuidado para crianças com idade inferior a seis anos, disparidades
essas semelhantes às encontradas nos dados nacionais.
Duas conclusões importantes tornaram-se evidentes. Em primeiro
lugar, as diferenças em termos de acesso a Educação e Cuidado na
Primeira Infância colocavam em situação de desvantagem, a partir de
uma idade muito precoce, as crianças de famílias das classes
socioeconômicas mais baixas. Em segundo lugar, e de igual importância,
as políticas adotadas pelos países podem ter efeitos benéficos, tanto
em termos do número total de famílias a ter acesso a esses serviços
quanto no que se relaciona a diminuir a disparidade de acesso entre as
diferentes classes sociais.
Em Botswana, 19% dos pais com escolaridade de nível médio ou
menor tinham menos oportunidades de mandar seus filhos a instituições
de cuidado e educação infantil. Por outro lado, 35% dos pais com nível
de escolaridade secundário ou superior tinham acesso a esses serviços.
Embora essas disparidades sejam observáveis também no México,
o sistema mexicano de seguridade social estabelece a obrigatoriedade
de seguro social para os empregados no setor não formal. Essa
cobertura inclui: seguro por riscos no ambiente de trabalho, licença-
maternidade e para tratamento de saúde, seguro por incapacitação física,
aposentadoria e creches para crianças entre seis semanas e quatro anos.
Os serviços de creches são oferecidos a todas as mães ou a pais viúvos
ou divorciados que tenham a guarda dos filhos.1, 2 Conseqüentemente,
enquanto apenas 20% dos pais com nível médio ou menos tinham
filhos que freqüentavam creches institucionalizadas ou serviços de
educação para a primeira infância, 52% dos pais com nível secundário

1
EVALUATION of the reforms: the Americas social security report 2003. In:
CONFERÊNCIA INTERAMERICANA DE SEGURIDADE SOCIAL, México,
Oct. de 2003. Report. México: s.e., 2003. pp. 150-159.
2
Para maiores detalhes, ver <http://natlex,ilo.org/>, onde a íntegra da Lei de
Seguridade Social mexicana pode ser acessada.

109
ou mais (e que, portanto, tinham maiores chances de conseguir empre-
go no setor formal) tinham filhos em serviços institucionalizados de
educação e cuidado na primeira infância.
No Vietnã, as medidas adotadas pelo setor público também levaram
a um aumento do número de famílias atendidas e a uma diminuição das
disparidades. Naquele país, uma lei de 1999 organizou as responsabilidades
pelos programas de pré-escola no âmbito do Ministério da Educação e
Treinamento. Os maiores avanços foram alcançados no acesso a educação
e cuidado na primeira infância para as crianças de três a cinco anos, em
áreas urbanas.3 Para o Vietnã, as cifras correspondentes foram de 53%
versus 63%.
Quando a renda é usada para medir a classe social, ficam evidentes
as disparidades paralelas entre as classes. Examinamos o caso de
trabalhadores de baixa renda que ganhavam menos que 10 dólares por
dia. Foi feita uma equivalência entre os salários dos diversos países,
com base não apenas nas taxas de câmbio, mas também na paridade
de poder de compra, usando dados numéricos do Banco Mundial.
Em Botswana, só 10% das famílias de baixa renda tinham acesso a
instituições formais de educação e cuidado na primeira infância,
percentual esse bem inferior aos 35% das famílias de renda mais alta
que tinham acesso a esses serviços.
No México, onde a seguridade social elevou o número total de
famílias com acesso a instituições formais para a primeira infância, nítidas
diferenças ainda permaneciam entre as classes sociais. Apenas 22% das
famílias de baixa renda entrevistadas por nós na Cidade do México e
em Chiapas podiam mandar seus filhos a essas instituições, contra 58%
das famílias de renda mais alta.
Dos países estudados por nós, o que tinha o maior número de
famílias servidas por instituições formais de educação e cuidado na
primeira infância era o Vietnã, que apresentava também as menores

3
Para maiores informações, consultar <http://www.unescobkk.org/education/ece/
policies/vietnam/htm>.

110
diferenças entre as classes sociais, em razão da disponibilidade de ser-
viços públicos. Em Ho Chi Minh, 57% das famílias de menor renda e
62% das de renda mais alta podiam enviar uma criança a essas institui-
ções formais.

DISPARIDADES EM TERMOS DE CUIDADOS INFANTIS


INFORMAIS, PRESTADOS POR ADULTOS
REMUNERADOS
O potencial de desigualdade no acesso a cuidados infantis não se
limita às instituições formais de educação e cuidado na primeira infância.
Encontramos fortes diferenças entre as classes sociais no que diz respeito
ao acesso a cuidados infantis informais, prestados por adultos remu-
nerados por esse serviço, tanto em casa quanto fora dela. No México,
19% das famílias de menor renda entrevistadas por nós contavam com
os serviços informais de adultos remunerados, contra 53% dos pais de
renda mais alta. (Algumas das famílias de maior renda tinham acesso
tanto a cuidados informais prestados por adultos contratados quanto
a instituições formais). Em Botswana, 24% das famílias de menor renda
conseguiam pagar outros adultos para ajudá-las a cuidar informalmen-
te de seus filhos, contra 62% das famílias de renda mais alta. No Vietnã,
as cifras correspondentes eram de 22% para 27%, com uma menor
percentagem do total (se comparada com os outros países) fazendo
uso de serviços informais, uma vez que os serviços prestados por
instituições formais são relativamente acessíveis. Disparidades seme-
lhantes surgem quando a classe social é medida com base no grau de
escolaridade dos pais. Os pais que receberam os menores níveis de
oportunidades educacionais são os que menos podem pagar outros
adultos para prestar cuidados informais a seus filhos.
Em razão da pouca disponibilidade de serviços institucionalizados
de cuidados infantis de preço acessível e da dificuldade das famílias de
pagar por serviços informais prestados por outros adultos, os pais de
menor renda e menor nível educacional eram os que tinham as maiores
probabilidades de deixar seus filhos pequenos aos cuidados de outras
crianças, ou de ter de levá-los para o local de trabalho, onde o ambiente,

111
muitas vezes, não apresentava condições de segurança. Em Botswana,
33% dos pais de menor renda e 25% dos pais com grau de escolarida-
de média ou menos tinham de deixar seus filhos sob os cuidados de
outras crianças, que não recebiam remuneração por esse serviço. No
Vietnã, 17% dos pais de menor renda e 17% dos pais com grau de
escolaridade média ou menos tinham de recorrer aos cuidados presta-
dos por uma criança não remunerada. No México, 21% dos pais com
grau de escolaridade média ou menos recorriam aos serviços não
remunerados de uma criança para cuidar informalmente de seus filhos,
e 53% deles costumavam levar os filhos para o trabalho.

A IMPORTÂNCIA DO SETOR PÚBLICO PARA A


PROMOÇÃO DE IGUALDADE DE OPORTUNIDADES
Atualmente, as crianças que vivem em condições de pobreza têm
uma probabilidade significativamente menor de receber educação para
a primeira infância, cuidados formais e até mesmo cuidados informais
prestados por um adulto remunerado (e não por uma criança). A
disparidade nas percentagens de crianças que freqüentam instituições
de prestação de cuidados ou que contam com os serviços de um adulto
para cuidar delas deve-se às diferenças de acesso e de capacidade para
pagar serviços de educação e cuidado na primeira infância de qualidade
aceitável.
As disparidades atualmente existentes têm graves conseqüências para
a saúde, o desenvolvimento e a educação das crianças. Toda uma gama
de métodos pode ser usada para aumentar o acesso a cuidados e
educação para a primeira infância para as crianças de todo o mundo.
Parcerias com o setor privado e regulamentação dos serviços ofereci-
dos por este, por meio de sistemas de seguridade social, são um exem-
plo de uma maneira eficaz de aumentar o acesso a esses serviços, quando
os pais são empregados no mercado de trabalho formal. Da mesma
forma, a oferta direta de serviços pelo poder público, ou subsídios
públicos para esses serviços, podem aumentar o acesso a eles, para
crianças cujos pais trabalham tanto no setor formal quanto no informal
(uma vez que o setor informal não é devidamente abrangido pelas leis

112
trabalhistas e pelos sistemas obrigatórios de seguridade social). Sejam
quais forem os mecanismos escolhidos, necessitamos urgentemente de
apoio público para a educação e o cuidado na primeira infância, partindo
tanto das políticas nacionais quanto das globais, a fim de diminuir as
desigualdades atualmente existentes.

113

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