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9/16/2014 Das Serpentes Negras ao PCC: o mito virou pesadelo | Ponte

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Das Serpentes Negras ao PCC: o mito virou pesadelo


Arnaldo Pagano — 15/09/14

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* Colaboração para Ponte

Há 30 anos, uma suposta organização criminosa chamada Serpentes Negras, de existência nunca
comprovada, serviu de pretexto para acabar com a política de humanização dos presídios paulistas e
aumentar a repressão carcerária, cujo apogeu foi o Massacre do Carandiru, de 1992. Logo depois, surgiu o
PCC

Nove anos antes do surgimento do Primeiro Comando da Capital, PCC, nos presídios paulistas, a imprensa
noticiou o surgimento de uma organização criminosa chamada Serpentes Negras, que estaria provocando o
caos no sistema penitenciário do Estado de São Paulo. Assim como o PCC, as Serpentes Negras organizariam
ações de presos contra o poder público e representariam uma séria ameaça à segurança da população. A
diferença entre a organização das Serpentes Negras e o PCC, contudo, é que a primeira talvez nunca tenha
existido. Uma, portanto, pode não ter passado de um mito. Já a outra organização criminosa virou o principal
pesadelo das autoridades de São Paulo. Serpentes Negras foram o principal pretexto para deslegitimar a
política de humanização dos presídios, empreendida em São Paulo pelo então governador Franco Montoro e por
seu secretário da Justiça José Carlos Dias. Diga-se que Montoro foi eleito governador de São Paulo em 1982, na
primeira eleição direta desde a o golpe militar de 1964. Como representante dos anseios democráticos da
sociedade paulista, sua atuação foi em grande medida pautada pela abertura de canais para a manifestação de
setores até então calados à força. Foi nesse contexto que se criaram as chamadas Comissões de
Solidariedade, para servir de porta-vozes dos presos, o que era absolutamente inédito no sistema penitenciário
brasileiro. Segundo denúncias nunca comprovadas, a organização criminosa das Serpentes Negras teria surgido
dentro das Comissões de Solidariedade.

Na imprensa escrita houve uma polarização e uma disputa pela


verdade a respeito das Serpentes Negras. Enquanto o Estadão e o
Jornal da Tarde – do mesmo grupo editorial – enfatizavam o poder
da organização criminosa e o perigo que ela significava para a
população, criticando duramente o governo Montoro e
especialmente a Secretaria de Justiça, a “Folha de S.Paulo” se
esforçou para mostrar que não havia provas da denúncia. Depois,
tratou o caso como invenção.

As dinâmicas prisionais no Estado de São Paulo nos anos 1980 e início dos 90 são objeto de pesquisa do NEV-
USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo). A pesquisa “Das Comissões de
Solidariedade ao Primeiro Comando da Capital (PCC): disputas e conflitos em torno da organização de
presos”, financiada pelo CNPq, é coordenada pela socióloga Camila Caldeira Nunes Dias (professora da
UFABC) e também reúne os pesquisadores Fernando Salla (professor da Uniban), Marcos César Alvarez
(professor da USP) e Gustavo Higa (graduando da USP).

As Comissões de Solidariedade

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Franco Montoro assumiu o governo de São Paulo em 1983 e, num período de transição para a democracia, deu
atenção especial a espaços que deram amparo à ditadura e precisavam ser democratizados. Desse objetivo
nasceu a política de humanização dos presídios, que tomou forma especialmente com as Comissões de
Solidariedade. José Carlos Dias, então Secretário da Justiça de São Paulo, falou à Ponte sobre a iniciativa.
“Nós tínhamos uma consciência política de respeito aos direitos humanos e entendíamos que esse
respeito deveria ser dirigido a todas as pessoas, estivessem elas em liberdade ou presas. Estabelecemos,
portanto, uma política de respeito aos presos, dizendo não à tortura completamente. E a ideia de criar as
Comissões de Solidariedade foi para exercitar a cidadania dos presos”, afirmou. Segundo José Carlos Dias, os
presos elegiam seus representantes, que não poderiam ter cometido faltas graves no regime penal. Tinham de
ter uma espécie de “ficha limpa”. Os eleitos representavam os presos perante a diretoria, o juiz e a Secretaria de
Justiça. Ficavam também encarregados de organizar eventos nos presídios. “Sempre existem aqueles que
mandam, mas nós queríamos que mandasse aquele que recebesse o voto popular”, completou Dias. As urnas
da votação eram abertas, inclusive, na Secretaria de Justiça. A socióloga Camila Caldeira Nunes Dias, que
coordena a pesquisa do NEV-USP, diz que as Comissões de Solidariedade foram uma experiência que nunca
havia ocorrido no Brasil: “Foi uma experiência radical e inédita no sistema prisional. Sempre existiram lideranças
entre os presos, mas a diferença é que as lideranças das comissões eram normatizadas, legitimadas e
reconhecidas pelo Estado. As comissões permitiram estabelecer uma ponte entre a população carcerária e o
governo.” As Comissões de Solidariedade foram criadas em algumas penitenciárias do Estado de São Paulo,
sendo mais atuantes na Penitenciária do Estado e na Penitenciária de Araraquara. Na avaliação de José Carlos
Dias, elas funcionaram tão bem que a experiência quase foi internacionalizada. “Eu cheguei a receber um
professor de Direito Penal da Universidade de Frankfurt e o levei a uma penitenciária para conhecer as
Comissões de Solidariedade. O professor ficou impressionado com a comissão e disse que precisava importar
essa ideia para os presídios alemães”, lembrou o ex-secretário da Justiça. A reação entusiasmada do professor
alemão, entretanto, não foi a mesma de diversos setores da sociedade paulista. A política de humanização dos
presídios sofreu forte oposição da imprensa, do staff prisional (agentes carcerários e diretores de presídios), de
autoridades do Judiciário e de partidos políticos, inclusive do PMDB de Franco Montoro. A pressão contra as
Comissões de Solidariedade cresceu ainda mais em meados de 1984, com o aparecimento da denúncia de uma
organização criminosa chamada Serpentes Negras.

Serpentes Negras: a disputa na imprensa

A denúncia da existência da organização Serpentes Negras surgiu em junho de 1984, após uma investigação do
juiz-corregedor Haroldo Pinto da Luz Sobrinho. Pinto da Luz concluiu que havia uma situação de crise nos
presídios do Estado de São Paulo gerada por um grupo criminoso que atuava no interior das Comissões de
Solidariedade. A denúncia foi publicada na íntegra no jornal “O Estado de S.Paulo”, no dia 23 de junho de 1984.

“Isso tudo foi uma criação de setores da imprensa e do juiz Haroldo Pinto da Luz Sobrinho, que
inventaram a existência dessa organização”, José Carlos Dias, ex­secretário de Justiça.

A mídia em peso repercutiu a denúncia, mas na imprensa escrita houve uma polarização e uma disputa pela
verdade a respeito das Serpentes Negras. Enquanto o Estadão e o Jornal da Tarde – do mesmo grupo editorial
– enfatizavam o poder da organização criminosa e o perigo que ela significava para a população, criticando
duramente o governo Montoro e especialmente a Secretaria de Justiça, a “Folha de S.Paulo” inicialmente se
esforçou para mostrar que não havia provas da denúncia. Depois, tratou o caso como uma invenção. O jornal
também abriu espaço para a fala de guardas penitenciários, que negaram a existência das Serpentes. Algumas
manchetes revelam essa polarização. No dia da denúncia do juiz-corregedor, 23 de junho de 1984, o “Estadão”
dedicou uma página inteira ao assunto. A manchete principal dizia: “Governo ainda ignora Serpentes Negras”.
Outros títulos na mesma página: “Guardas vivem clima de medo e de revolta”; “Uma gestão completa de
contradições e atropelos”; “A inversão de poderes não pode ser permitida”. Na página ainda estava publicada a
íntegra da denúncia de Haroldo Pinto da Luz Sobrinho. Já a “Folha”, no mesmo dia, estampou: “Dias manda
apurar denúncia sobre Serpentes Negras”. Ainda em junho de 1984, o juiz-corregedor encaminhou a denúncia
diretamente ao Conselho Superior de Magistratura, que encomendou uma minuciosa investigação a uma
comissão de desembargadores da seção criminal, liderada por Pestes Braga. Depois de 60 dias a Comissão
Especial de Inquérito concluiu as investigações e entregou o relatório. O conteúdo do relatório não foi
integralmente tornado público. Coube à imprensa apurar e divulgar partes desse conteúdo e interpretar de
acordo com seus interesses. Em linhas gerais, o relatório concluiu que havia uma organização chamada
Serpentes Negras como havia várias outras quadrilhas em presídios, mas ressaltava que essa organização não
tinha o caráter político e ideológico nem o poder que lhe eram conferidos pela denúncia de Haroldo Pinto da Luz
Sobrinho. A simples constatação de que Serpentes Negras não era totalmente uma ficção levou o “Estadão” a
publicar as seguintes manchetes no dia 29 de agosto de 1984: “Calado, governo ignora o relatório”; “’Eu ainda
nem recebi o relatório’ É Montoro”; “Secretário muda sua linha. E foge”. Já a “Folha” foi mais cautelosa e
publicou por vários dias notícias informando que o relatório não havia chegado às mãos do governador. Só no
dia 21 de setembro a “Folha” publicou “Desembargadores pedem mudanças em Corregedoria”, com a
informação de que o relatório criticava o trabalho da Corregedoria, justamente o setor de Haroldo Pinto da Luz
Sobrinho, o juiz que fez a denúncia. “O tiro saiu pela culatra”, escreveu na ocasião o repórter Ricardo Kotscho. A
mesma notícia falava que Serpentes Negras não possuía caráter político e ideológico nem a dimensão
denunciada. Talvez o principal indício que torna bastante duvidosa a existência da organização criminosa
Serpentes Negras é o informante do juiz Haroldo Pinto da Luz Sobrinho. Pinto da Luz afirmava que tinha provas
concretas, mas sua denúncia estava baseada no testemunho do preso Derney José Gasparino, que, em troca

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das informações, recebeu benefícios como a prisão domiciliar. E, como informou a “Folha de S.Paulo” na
manchete de capa “Surge o inventor das Serpentes”, Derney era paranoico, segundo afiançado por laudos
psiquiátricos.

Para José Carlos Dias, a organização criminosa Serpentes Negras não passou de ficção: “Isso (Serpentes
Negras) nunca existiu. Isso tudo foi uma criação de setores da imprensa e do juiz Haroldo Pinto da Luz Sobrinho,
que inventaram a existência dessa organização. O “Estadão” e o “Jornal da Tarde” fizeram uma verdadeira
campanha contra mim, que na verdade era uma campanha contra a política de direitos humanos”. José Carlos
Dias diz como realmente teria surgido a expressão que tomou conta dos jornais. “Essa expressão surgiu quando
houve uma remoção grande de presos de um presídio para outro e, quando se formou uma grande fila, o
chamado monte, alguns presos teriam comentado que aquela era a serpente negra, mas nunca houve uma
organização”, completou.

“Enquanto nas comissões os líderes eram eleitos pelo voto, as lideranças do PCC são impostas pela
violência”, Camila Caldeira Nunes Dias, socióloga.

Embora as denúncias nunca tenham sido comprovadas, a pressão insuportável gerada pelos boatos acabou
inviabilizando a continuidade das Comissões de Solidariedade. Apesar do esforço de Montoro em mantê-las,
elas foram perdendo força gradativamente até serem definitivamente extintas em 1987. Com a troca no governo
do Estado de São Paulo, a política de humanização dos presídios deu lugar a novas estratégias do Estado, nada
humanas.

PCC: agora é pra valer

Com apoio da sociedade, os governos de Orestes Quércia (1987-1990) e Luiz Antônio Fleury (1991-1994)
endureceram a repressão nos presídios. Os presos perderam os canais de representação. A ordem era reprimir
qualquer levante com a força policial. Dois episódios retratam bem esse período. Em 5 de fevereiro de 1989, em
represália a uma tentativa de fuga, 51 presos foram confinados em uma sala sem ventilação de 1,5m x 4m
dentro do 42˚ Distrito Policial. Dezoito morreram por asfixia. E, em 2 de outubro de 1992, a Polícia Militar
matou 111 detentos durante uma rebelião, no caso que ficou mundialmente conhecido como o Massacre
do Carandiru. O PCC surgiu em 1993 e pode ser encarado como uma consequência da forma como São Paulo
tratou seus presos. “A pesquisa (do NEV-USP) trabalha com a hipótese de que a interrupção da política de
humanização, com o bloqueio dos canais de representação dos presos, gerou as condições sociais e políticas
que permitiram o surgimento do PCC. Se o Estado respeitasse as leis, o PCC teria um terreno menos fértil
para proliferar, seu discurso faria menos sentido”, analisa Camila Caldeira Nunes Dias. De acordo com a
socióloga, o PCC nasceu como um representante dos presos, mas em uma lógica completamente diferente das
Comissões de Solidariedade. Enquanto nas comissões os líderes eram eleitos pelo voto, as lideranças do PCC
são impostas pela violência. Enquanto as Comissões de Solidariedade se constituíram na chave da luta por
direitos, o PCC busca sua legitimidade no mundo do crime e, ao invés de buscar integração social tendo o
Estado como interlocutor, coloca o Estado como principal inimigo. Já José Carlos Dias acredita que, se tivesse
sido mantida, a política de humanização iniciada por ele no governo Montoro, 10 anos antes do surgimento do

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PCC, teria impedido a constituição da organização criminosa. “Se as comissões de representantes dos presos
tivessem continuado, não haveria lugar para o nascimento do PCC. O PCC surgiu quando se impôs a ditadura”,
respondeu. * Arnaldo Pagano, 27 anos, é jornalista formado na ECA-USP e graduando em filosofia na FFLCH-
USP. Também estudou roteiro na Escola de Cinema de Cuba. Atua há cinco anos como redator no Portal R7. Já
escreveu para o Portal UOL e trabalhou em assessorias de imprensa nas áreas de economia e cultura.

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SOBRE O AUTOR
Claudia Belfort
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