Você está na página 1de 7

7/31/2018 Párrafo 451 - O áudio visual na vida metropolitana Uma...

Seguir parrafo451
Párrafo 451

O áudio visual na vida metropolitana


Uma entrevista com Marília Goulart
Marília (Marie) Goulart é mestre pelo Programa de Meios e Processos
Audiovisuais da Escola de Comunicação e Artes da USP, com a dissertação
“Um Salve por São Paulo – imagens da cidade e da violência em três obras
recentes”. Graduada em Ciências Sociais pela Escola de Sociologia e Política
de São Paulo onde realizou pesquisas relacionadas a violência nas cidades
tanto através da Antropologia Urbana quanto da Sociologia da Comunicação.
Atua também como editora audiovisual e na realização de curtas-metragens.

Por Mi Medrado

http://blog.parrafomagazine.com/post/163756753622/o-%C3%A1udio-visual-na-vida-metropolitana-uma 1/7
7/31/2018 Párrafo 451 - O áudio visual na vida metropolitana Uma...

Bruxelas, 30 de Julho de 2017.

Mi Medrado: Como a professora vê o papel do áudio visual na vida


metropolitana?

Marília (Marie) Goulart: Há uma ligação bastante estreita entre cinema e a


vida metropolitana, ao ponto de alguns teóricos de nirem o cinema como
uma arte urbana. É claro que o cinema não é exclusivamente urbano, há uma
lmogra a incrível e essencial que passa ao largo das metrópoles, como o
Cinema Novo brasileiro, por exemplo, com lmes emblemáticos realizados no
sertão. De todo modo, há uma conexão histórica, de origem, entre cinema e
vida metropolitana que marca o audiovisual.

As metrópoles são um produto da modernidade, do crescimento do


capitalismo e da transformação no modo de produção que ocorrem após as
Revoluções Francesa e Industrial. Essas transformações alteraram as mais
diversas esferas da vida. A ciência, a arte e atos cotidianos como o
deslocamento e a experiência sensível são também revolucionas com a
modernidade. Nesse contexto, o cinema, cujo nascimento é datado em 1895,
não cria, mas participa ativamente da nova cultura metropolitana que
também surge na virada do século XVIII.

O cinema tem um papel fundamental na consolidação da vida metropolitana,


por exemplo ao fazer da experiência frenética algo aprazível ou ao contribuir
com a formação de um público anônimo e indiferenciado, das massas. Ao
lado do conjunto de “novidades” e inventos que caracterizam a vida moderna,
como o telégrafo, o trem, as vitrines, e as exposições internacionais, o
cinema é talvez a mais completa síntese dessa nova sociedade. Além de
simular o movimento e a experiência da vida urbana, o cinema é uma
tecnologia que reuniu as principais características da vida moderna:
experiência efêmera, representação/ xação do real, aceleração, estímulo,

http://blog.parrafomagazine.com/post/163756753622/o-%C3%A1udio-visual-na-vida-metropolitana-uma 2/7
7/31/2018 Párrafo 451 - O áudio visual na vida metropolitana Uma...

técnica de circulação e movimento são características que irão marcar a


linguagem audiovisual ao longo de toda história.

Essa conexão “de berço” se mantém ao longo de toda história do cinema em


obras que demonstram fascínio, vertigem e também críticas contundentes às
metrópoles. As sinfonias urbanas da década de 1920, o expressionismo, o
cinema moderno dos anos 1950, o cinema noir, o neorrealismo, as Retomadas
Cinematográ cas dos anos 1990 e 2000 e também a produção recente são
alguns dos exemplos que expressam com clareza a intensa conexão do
cinema com vida nas metrópoles.

MM: Como as imagens do cinema podem ser consideradas “expressão


privilegiada para discutir a vida nas metrópoles”?
Marília (Marie) Goulart: O cinema é testemunha e participante ativo da
consolidação e do desenvolvimento das metrópoles e ao longo de sua história
sempre manifestou seu interesse pelo espaço e pela vida urbana. Esse
interesse resulta em um considerável conjunto de obras que permitem
assistir hoje, no ano de 2017, a saída dos trabalhadores de uma fábrica da
Paris de 1895, o despertar dessa mesma metrópole nos anos 1920, vagar pela
Itália do pós-guerra, ouvir e percorrer trajetos e ângulos inimagináveis da
cidade onde vivemos.

Para o estudo das cidades, o cinema é uma fonte extremamente importante.


Dentro da noção ampliada de documentos, o cinema exprime os sujeitos,
suas maneiras de ser e de se relacionar. Em sua espontaneidade e
despretensão acadêmica os lmes são impregnados por uma experiência, por
uma espontaneidade que o rigor da produção cientí ca não permite. Desse
modo o cinema é, muitas vezes, responsável por fazer ver e ouvir situações
veladas no cotidiano, problemáticas urbanas e sociais que só depois serão
objeto das ciências humanas.

Além de testemunha, discurso e re exão sobre as cidades, o cinema é


fundamental para entender os imaginários urbanos. Ao lado da literatura,
publicidade e diversas outras expressões que atravessam o cotidiano urbano,

http://blog.parrafomagazine.com/post/163756753622/o-%C3%A1udio-visual-na-vida-metropolitana-uma 3/7
7/31/2018 Párrafo 451 - O áudio visual na vida metropolitana Uma...

o cinema participa ativamente da composição das múltiplas, e às vezes


contraditórias, imagens da metrópole e da construção do senso do lugar. Um
ponto de vista que partilho, e que será proposto no curso, é pensar o cinema
como uma prática arquitetônica, isto é, como uma prática que constrói
espaços – ainda que espaços na tela e no imaginário. Que dizer, por mais
“realista” que seja a linguagem de um lme, ele nunca reproduz estritamente
um espaço real, mas reapresenta, reinventa esse espaço, interpretando e
conferindo sentidos à ele.

Como expressão artística, mais do que “documentar” as metrópoles de seus


tempos, o cinema, ou parte da produção cinematográ ca, faz do espaço um
meio de expressão. Por exemplo, o cinema expressionista, o neorrealista e o
cinema moderno fazem do cenário urbano um potente elemento expressivo e
dramático. Então, a espacialidade, a própria cidade desses lmes tem muito a
dizer sobre as metrópoles, ou sobre determinadas visões sobre as
metrópoles. Por tanto é fundamental pensar no cenário dessa lmogra a
para além do suporte da ação, observar a composição, ritmo e montagem,
en m, o lme como expressão audiovisual que desde seus primeiros
fotogramas vem discutindo a vida urbana.

MM: Sei que estão abertas as inscrições para o curso de extensão Cinema e
cidade: panoramas sobre o urbano, na Escola de Sociologia e Política de São
Paulo. Pode nos contar quais lmes estão na lista de ‘leituras’?
Marília (Marie) Goulart: Como homenagem às origens do cinema o curso
propõe uma visão panorâmica que destaca cinco importantes momentos da
história do cinema e do desenvolvimento urbano. A escolha da abordagem
panorâmica busca aproximar o “primeiro cinema”, as vanguardas, o cinema
moderno e a realização contemporânea como momentos signi cativos para
compreender as metrópoles do passado e do presente. Exibir um escopo
amplo e diverso de lmes tem também o objetivo de apresentar aos
participantes um escopo amplo de linguagens e poéticas do cinema em sua
abordagem do urbano.

http://blog.parrafomagazine.com/post/163756753622/o-%C3%A1udio-visual-na-vida-metropolitana-uma 4/7
7/31/2018 Párrafo 451 - O áudio visual na vida metropolitana Uma...

Da extensa lmogra a que será discutida no curso alguns exemplos


representativos do debate proposto são: Panorama from Times Building, New
York (Americam Mutoscope/ Biograph, 1905),  Um homem com uma câmera
(Vertov, 1929), A chuva (Joris Ivens, 1929), Housing Problems (Edgar Anstey,
Arthur Elton, 1935),  5 vezes favela (Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá
Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, 1962), São Paulo S.A.
(Sérgio Person, 1965), O Invasor (Beto Branti, 2001), Medianeiras (Gustavo
Taretto, 2011), A cidade é uma só? (Ardiley Queirós, 2013) e Obra (Gregório
Graziosi, 2015).

MM: Como as “cidades latino-americanas no cinema contemporâneo – a


centralidade do espaço” são representadas?

Marília (Marie) Goulart: A questão espacial atravessa de diferentes formas o


cinema da América Latina. Uma das características que aproxima a produção
latino-americana é a presença de realizadores engajados no debate e no
enfrentamento das problemáticas que assolam o assim chamado “terceiro
mundo”, território transformado em estados-nação por meio de processos
violentos de colonização e dominação. Esse engajamento presente no Tercer
Cine, na Estética da Fome, no Cinema Novo, no Cinema Social, etc. esteve
ligado a uma questão do território e do espaço, questão presente não apenas
como tema, mas como forma, poesia e política. Por exemplo, lmes como Los
Olvidados (Luis Buñuel, 1950), Rio 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955)
e Memórias do Subdesenvolvimento (Tomás Gutiérrez Alea, 1968)
apresentam, ou constroem, o espaço urbano como pedra fundamental da
trama e também como elemento político.

O olhar atento ao espaço, ao espaço urbano, está presente na lmogra a


latino-americana contemporânea, com um conjunto considerável de cções e
documentários que se debruçam sobre as metrópoles para compreender,
denunciar e remediar tensões que marcam a vida nas cidades. Essa
lmogra a contemporânea contém especi cidades que a diferencia da
produção latino-americana dos anos 1990 e início dos anos 2000, quando o
espaço urbano também aprece com força. Diferente de uma lmogra a

http://blog.parrafomagazine.com/post/163756753622/o-%C3%A1udio-visual-na-vida-metropolitana-uma 5/7
7/31/2018 Párrafo 451 - O áudio visual na vida metropolitana Uma...

empenhada em entender as problemáticas que rompem e se a rmam nas


cidades, mais recentemente, a mirada dos lmes tem se lançado para a
própria con guração do urbano.

A centralidade do espaço urbano se expressa na produção contemporânea


tanto pelo papel decisivo que o ambiente tem na trama, impulsionando
situações e con itos, quanto pela forma como é retrabalhada
audiovisualmente. É interessante notar também a presença de personagens
ligados à edi cação e comercialização dos espaços, como arquitetos,
corretores de imóveis e trabalhadores da construção.

Outra característica que marca parte desses lmes contemporâneos é que


neles a construção espacial (visual e sonora) das cidades é estruturante para
expor as tensões históricas e sociais que marcam as metrópoles. Por
exemplo, o espaço fílmico de A cidade é uma só?, Obra e AU3 - autopista
central (Alejandro Hartman, 2010) é parte fundamental da discussão sobre as
marcas deixadas por regimes e dinâmicas autoritário nas cidades de Brasília/
Ceilândia, São Paulo e Buenos Aires. Mobilizando o espaço como elemento
político, esses lmes tornam visíveis (e audíveis) personagens, dinâmicas e
espaços muitas vezes invizibilizados.

Assim, em linhas gerais, essa lmogra a contemporânea reforça e renova a


conexão entre cinema e cidade e sugere a centralidade que a organização
espacial possui nas con gurações das novas e antigas problemáticas que
marcam as metrópoles latino-americanas, se aproximando ainda desse
engajamento cinematográ co que comentei.

MM: Quais aprendizados podemos ter ao utilizar as expressões visuais para


pensar a estética e a arquitetura no espaço urbano?
Marília (Marie) Goulart: Essa sensibilidade e atenção do cinema sobre os
espaços urbanos nos recorda que os espaços da cidade carregam sentidos,
signi cados simbólicos dos sistemas de valores das diferentes sociedades que
atravessaram e viveram ali. Os espaços urbanos dão corpo, isto é exprimem
as tensões entre as diversas forças que operam e se enfrentam na

http://blog.parrafomagazine.com/post/163756753622/o-%C3%A1udio-visual-na-vida-metropolitana-uma 6/7
7/31/2018 Párrafo 451 - O áudio visual na vida metropolitana Uma...

con guração das cidades. Os espaços construídos cristalizam processos


sociais, ou, como a rma Mies Van der Rohe, a arquitetura é a vontade de uma
época concebida em termos espaciais.

Observar  a cidade através do cinema e de outras expressões visuais nos


ajuda a entender e a discutir as batalhas, nem sempre visíveis “a olho nu”, que
estão implicadas na construção do espaço urbano. O cinema, e outras re-
apresentações do espaço urbano, como a fotogra a, pintura, etc., operam
como lentes que permitem ver e ouvir as ssuras e as diferentes camadas
que compõem as cidades. Esses são lócus privilegiado tanto como
documento, testemunha, imagem, imaginário, lente e discurso sobre o
urbano. Dessa forma, o cinema e os estudos visuais têm muito a contribuir
com as ciências humanas, com áreas empenhadas em entender o ser humano
e a sociedade de diferentes épocas e em diferentes dimensões, como a
história, a sociologia e a antropologia, disciplinas que se se apegarem
exclusivamente ao texto, “tropeçarão” na compreensão das cidades onde as
imagens têm um papel central.

***

PARRAFOMAGAZINE PARRAFOONSCREEN VIDAMETROPOLITANA AUDIOVISUAL

NEWER POST OLDER POST

http://blog.parrafomagazine.com/post/163756753622/o-%C3%A1udio-visual-na-vida-metropolitana-uma 7/7

Você também pode gostar