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Poesia à lenha

Impressões1 por Solange Perpin

Na tela do computador vejo uma mulher nonagenária miúda, de porte leonino, sentada diante de
uma plateia-bastidor pequena. Com um xale florido, de cores intensas, acolhendo seus ombros, ela
é a entrevistada pela TV Brasil.
A repórter lhe pergunta sobre a vida e a obra. Documentam-se ali a fama tardia que lhe trouxe
prêmios literários e o reconhecimento público, assim como a história por detrás das câmeras que
lhe deu a dignidade e o apreço por si mesma.
Assertiva e sábia diz “a escolha sempre cabe a você, pois mesmo quando tudo parece desabar,
cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho
incerto da vida, que o mais importante é o decidir”. E foram muitas as decisões difíceis que
precisou tomar.
Os ralos cabelos brancos quase desalinhados, semipresos em coque, emolduram o rosto pálido
daquela que mais cuidou de tachos sobre fogões de lenha do que se demorou em penteadeiras,
engrandecidas com espelhos bisotados, adornadas de porta-joias e pó de arroz.
As palavras firmes, bem encadeadas e quase rimadas, em tom empostado como quem vai
declamar, se apressam por sua voz trêmula. Em alto som, fala com seriedade, orgulho e deixa

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Gênero literário próximo da crônica ou do diário, em que se mesclam sensações, sentimentos, reflexões,
relatos, especialmente de viagens.
escapar poucas risadas, meio tímidas, como se não pudesse gargalhar da vida embrenhada nos
becos da interiorana cidade do Goiás. Voz regional.
A altivez do seu olhar, banhado de rugas, encara a lente, mira os olhos da interlocutora, como se
nunca houvesse sentido medo diante de percalços juvenis e da viuvez que lhe causou uma penúria
repentina; do cansaço da labuta pela sobrevivência de quem perdeu dois e alimenta quatro filhos
sozinha. O olhar, acinzentado e aguado pelo tempo, guarda no túnel da íris as pessoas desvalidas
que perambulavam em Goiás Velho, testemunhos de margens, a água corrente do rio Vermelho,
A face sulcada remete às vivências profundas de uma criança dita “bobona”, rejeitada, que
deveria ter nascido homem para gosto da mãe; de uma jovem feia amarelada, que estudou
apenas até o terceiro ano primário, sem pretendentes, que sofria do pensamento agonizante de se
tornar solteirona; de uma moça rebelde que saiu de casa a contragosto dos pais, subindo em um
cavalo, grávida de gêmeos, acompanhada de um homem casado, advogado e chefe de polícia, 22
anos mais velho, cavalgando por 14 dias até chegar em Araguari para pegar um trem em direção a
Jaboticabal; da mulher madura que retornou às origens, 45 anos mais tarde, agora, deixando os
descendentes criados em São Paulo, em busca de uma promessa que fez a si mesma.
Suas mãos calmas, que empunharam uma escrita singela, simples, memorialística, traz as
manchas prováveis de queimaduras do fogo que dá o ponto aos doces e as talvez cicatrizes vindas
dos cortes das frutas colhidas no pomar da casa velha da ponte, onde nasceu e, décadas depois,
precisou recuperar, em um leilão, a herança secular.
Os dedos curvos apoiaram lápis e canetas dos 14 aos 95 anos, rabiscando pensamentos fugitivos
em forma de verso sobre sacos de pão, jornais, cadernetas deixadas na cozinha, folhas apoiadas
no colo sob a luz de velas, e sobre qualquer outro suporte que suportasse sua incessante ânsia de
escrever. Escrever e escrever, aquilo que a memória não se cansava de lembrar e queria
avidamente escapar pelo grafite, pela tinta, pelas letras que levam ao mundo as sensações e
verdades de uma época, de uma mulher fora do seu tempo.
Nota-se que sua escuta é atenta. Parece que a surdez não lhe chegou. Os ouvidos, que bem
guardaram histórias, cantos de passarinhos, farfalhar de folhas trocando estações remotas,
absorvem as dúvidas da jornalista. São os mesmos ouvidos que certo dia trocaram as histórias
orais pelos versos escritos, quando aprendeu a escrever e confiar em sua capacidade de narrar.
Sua observação, sua empatia, sua sabedoria e seus sentidos certamente compensaram a falta de
estudos formais.
Não me desconcentro e quero saber mais sobre essa escritora, de nome familiar, que habitou o
tempo de minhas bisavós maternas, também goianas. “Recria tua vida, sempre, sempre. Remove
pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça”, me indica seu verso.
Transformação pode ser seu verbo. Batizada como Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, foi
chamada de Aninha por alguns, criou seu pseudônimo Cora Coralina para o Brasil e se
transformou na mais famosa poeta goiana para os turistas de todo o mundo.
Da menina que habilmente transformava palavras em versos à anciã que transformava as frutas
em doces, para ver as vidas de dentro e de fora prosperarem em vitalidade, veio o Vintém de
Cobre – meias confissões de Aninha que transformou sua rotina.
Dizia “nunca procurei a poesia ela já estava guardada em mim”. Quanto aos doces, que, muito
antes dos livros, a deixaram famosa na pequena Cidade do Goiás (conhecida por Goiás Velho), se
orgulhava de fazer o melhor da região, para juntar muitos vinténs e recomprar a casa onde passara
primeira parte da vida. O sangue nordestino de seu pai estava nela. Lampião e Maria Bonita,
Padrinho Cícero ornaram as paredes de sua infância.
Sei que foram anos e anos de transformações, que a fizeram chegar até mim e até você. Nascida
em 1889, na antiga Vila Boa de Goyaz, começou a escrever aos 14 anos, aos 16 publicou uma
crônica na Tribuna Espírita, e a partir de 1910, aos 21, começa a publicar contos em jornais locais
e a frequentar as tertúlias do "Clube Literário Goiano".
Quando casada morou em Jaboticabal, Penápolis, Andradina. Com a viuvez, vendeu livros, linguiça
caseira e banha de porco. Ao completar 50 anos, conta que passou por uma profunda
transformação interior, a qual definiria mais tarde como "a perda do medo". Nessa fase, deixou de
atender pelo nome de batismo e assumiu o pseudônimo que escolhera para si muitos anos atrás.
Seu primeiro livro começou a ser organizado, em 1956, aos 67 anos, após voltar sozinha, por
escolha, às suas origens para resolver questões de inventário, no qual era testamentária. Nessa
época transformaria sonhos em realidade. Iniciou o oficio de doceira para juntar dinheiro. Entre
panelas e fogo, relia e reescrevia seus guardados.
“Desistir… eu já pensei seriamente nisso, mas nunca me levei realmente a sério; é que tem mais
chão nos meus olhos do que o cansaço nas minhas pernas, mais esperança nos meus passos, do
que tristeza nos meus ombros, mais estrada no meu coração do que medo na minha cabeça”,
pensou.
Aos 70 anos aprendeu datilografia para “passar a limpo” uma seleção entre milhares de poesias à
mão, para enviar à respeitada editora José Olympio e dar acesso aos seus versos do cotidiano e
das ruas históricas do Império. Conseguiu editar sua primeira obra Poemas dos Becos de Goiás e
Estórias Mais, em 1965, aos 75 anos.
Depois deste, veio o Meu Livro de Cordel, em 1976. Nesse tempo, ocupava a 5ª cadeira da
Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, recebia fãs em casa, onde vendia os doces e os
livros.
Contudo, foi a segunda edição (1978) de Poemas dos becos de Goiás e estórias mais composta e
impressa pelas Oficinas Gráficas da Universidade Federal de Goiás, com a capa retratando um dos
becos da cidade de Goiás e ilustrações elaboradas pela artista Maria Guilhermina, que lhe rendeu
o reconhecimento nacional, ao enviar alguns exemplares para renomados escritores até chegar às
mãos de seu “padrinho literário”.
Era julho de 1979, quando recebeu um bilhete do renomado poeta Drummond admirado com seus
poemas. A partir dali passou a trocar correspondências com o poeta como já fazia com Jorge
Amado, Zélia Gattai, além dos fãs espalhados pelo Brasil.
Em 1980, com 90 anos, a escritora recebeu uma “correspondência pública” de Carlos Drummond
de Andrade. A “carta-artigo”, publicada no famoso Caderno B do Jornal do Brasil, em um parágrafo
recortado da página inteira dizia:
“Minha querida amiga Cora Coralina: Seu Vintém de Cobre é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro
que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e
amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com
as fontes da vida! Aninha hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e
amamos a poesia [...]”.
Assim, a notícia exaltando sua poesia e lançando-a na literatura brasileira circulou em todos os
jornais do país inteiro. Ana Lins se transformou publicamente em Cora Coralina para chegar até
nós.
Em 1982, mesmo tendo estudado somente até o equivalente ao segundo ano do atual Ensino
Fundamental, recebeu o título de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal de Goiás.
No ano seguinte, foi a vencedora do concurso Intelectual do Ano do Troféu Juca Pato, tornando-se
a primeira mulher a receber tal honraria. Em 1984, foi eleita Símbolo da Mulher Trabalhadora Rural
pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO).
Nunca deixou de escrever poemas relacionados à história pessoal, à cidade em que nascera e ao
ambiente em que fora criada. Também gravou um LP declamando algumas de suas poesias.
Cora, derivativo de coração, partiu em 10 de abril de 1985, aos 95 anos. A casa em que vivia,
construída no século XVVI, Patrimônio Histórico da Humanidade desde 2001, transformada em
museu, em 1989, fica à beira do rio Vermelho e dá título ao único livro de contos de Coralina:
Histórias da Casa Velha da Ponte.
Em sua homenagem também foi criado o Caminho de Cora em Goiás que passa por cidadezinhas
como São Francisco de Goiás, Jaraguá, Itaguari e Itaberaí.
“Do passado não tenho saudades, tenho recordações. Saudade é vontade de voltar e isso não
tenho”, disse Ana-Lins-Aninha-Cora-Coralina, mulher liberta, emancipada, voluntariosa, à repórter
naquela tarde de outrora.

Aninha e suas pedras


Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos
poemas.

Recria tua vida, sempre,


sempre.
Remove pedras e planta
roseiras e faz doces.

Recomeça.
Faz de tua vida
mesquinha
um poema.

E viverás no coração
dos jovens
e na memória das
gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de
todos os sedentos.

Toma a tua parte.


Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.
Cora Coralina

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