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10 livros que mudaram minha vida

E S C R I T O P OR R OD R IG O G U R G E L | 2 1 JU LH O 20 15
A R T I GO S -   C U LT U R A

Se Edmund Wilson me vacinou contra os estruturalistas,  Olavo de Carvalho  me


vacinou contra o marxismo e a intelectualidade materialista, hedonista e cética que pontifica na mídia e
na universidade brasileiras.

De Euclides da Cunha, (1) Os Sertões foi o primeiro livro que estudei com o olhar de leitor malicioso —
não no sentido de “má índole”, o mais comum entre nós, infelizmente, mas no sentido de “astúcia”,
“sagacidade”. A motivação veio de Paulo Vieira, meu professor de português no velho Instituto de
Educação, em Jundiaí. Quando comecei “A Terra”, tive uma vertigem: aquilo era incompreensível — o
livro exigia muito mais que um dicionário constantemente aberto ao meu lado. Foi, aos 17 anos, o
primeiro lampejo de que as melhores obras literárias estão além, muito além do que o leitor inocente vê
no seu contato superficial, passageiro. Ir e voltar pelas páginas, descobrir a musicalidade que a
linguagem pode alcançar, sentir que aquele livro estava além dos meus conhecimentos — tudo me
impulsionava a ir adiante, a perseverar.

Descobri (2) John Keats de forma inesperada. Era o primeiro dia de aula na universidade. E a primeira
aula do primeiro dia. Meu professor de Teoria da Comunicação, Flávio Vespasiano Di Giorgio, tirou o
maço de Continental sem filtro do bolso rasgado da camisa, acendeu um cigarro, sentou sobre a mesa e,
olhando para o vazio, agitando um pouco no ar seus dedos manchados de nicotina, começou: “A thing of
beauty is a joy for ever…”. Quando terminou, o feitiço estava lançado: manhã após manhã eu tentaria me
vincular à terra, apesar do desespero, dos dias escuros e de todas as dúvidas que pudessem existir na
minha alma. Desde aquele dia, não passa um semestre sem que eu releia o “Endymion” ou algum outro
poema de Keats. Minha fascinação por ele foi semelhante à do próprio Keats por Homero: era como se eu
tivesse descoberto um novo planeta.

Foi também Flávio Vespasiano Di Giorgio quem me despertou para Drummond. Em algum momento
daquele primeiro semestre, interrompeu, como sempre fazia, seu raciocínio e começou a declamar
“Campo de flores”. Comprei (3)Claro enigma depois da aula. E descobri “Tarde de maio”, “Remissão” —
nada resta do que escrevemos, “senão contentamento de escrever”. E se busco “o fim sem a injustiça dos
prêmios”, também me pergunto, até hoje, “Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?”.

O início de (4) A Morte de Virgílio capturou-me: “a solidão do mar, ensolarada e todavia prenunciadora


de morte”. Eu não sabia que a visão da armada imperial a cruzar o Adriático me levaria mais longe do que
qualquer outro romance que eu tivesse lido. Com Broch descobri que a ficção não precisava estar presa
aos temas comezinhos da literatura brasileira, às historinhas pérfidas, a permanentes universos
mesquinhos, restritos à pelada no fim de semana,à libido insatisfeita, aos subúrbios, a casos de adultério
e existências rasteiras.

(5) Lorde Jim e (6) A fera na selva confirmaram Broch. A grande literatura está muitos degraus acima de
Capitu, Peri e Ceci, ou eternos retirantes esfaimados sem nenhuma dúvida interior. Conrad e James me
mostraram que a grande batalha encontra-se no centro do nosso coração — essa é a única história
sempre recontada. Sem o duelo permanente que ocorre na nossa consciência, a banalidade se instala na
ficção — e é vendida aos incautos como o melhor realismo.

Em algum momento da década de 1970 comprei (7) Raízes da Criação Literária, de Edmund Wilson. Foi
meu primeiro contato com uma crítica literária consistente, jamais sufocada pela erudição. Ao contrário, a
erudição servia para tornar o texto sedutor, as idéias eram colocadas de forma clara — e o autor
realmente dialogava com os livros. Ter lido um ensaio como “Filoctetes: a chaga e o arco” vacinou-me,
percebi anos mais tarde, contra o estruturalismo ou a semiótica. Wilson foi o filtro que impediu minha
contaminação completa. Na faculdade, forçado a me empanturrar com os textos tediosos de Roland
Barthes, eu mantinha Wilson como uma referência lúcida, equilibrada.

A análise que Mario Vargas Llosa faz de Madame Bovary, em (8) A orgia perpétua, confirmou o que eu
intuíra ao ler Wilson: na análise de um texto, era possível o detalhamento, digamos, quase científico, mas
sem matar a obra, sem transformá-la num esquema, numa árvore de análise lingüística, sem endeusar a
linguagem, sem desvincular a obra da realidade. Llosa me ensinou ainda mais: mostrou-me que o
hermetismo das vanguardas, seu suposto espírito revolucionário, era um engodo. E por um simples
motivo: o bom escritor carrega a ira de Flaubert — a ira que o salvou do “esteticismo hermético”. Essa ira,
muitas vezes contra a própria humanidade, “infundiu em seus livros o vírus negativo que é o segredo da
sua acessibilidade: para que um romance provoque dano é imprescindível que seja lido e entendido”.

Se Edmund Wilson me vacinou contra os estruturalistas, Olavo de Carvalho me vacinou contra o


marxismo e a intelectualidade materialista, hedonista e cética que pontifica na mídia e na universidade
brasileiras. 

Depois de ler (9) O imbecil coletivo ainda militei anos na esquerda, mas o pensamento de Olavo
permanecia — desculpem-me o chavão — como uma ilha de lucidez. Fazia com Olavo o que o diretor do
Gabinete de Leitura Ruy Barbosa, em Jundiaí, fazia com Lênin nos anos duros da ditadura militar:
guardava-o num armário bem fechado, em algum ponto sombrio da biblioteca. Eu me debatia com meus
próprios pensamentos; repleto de dúvidas, observava a vida e meu trabalho seguirem destituídos de
sentido. Ao mesmo tempo, percebia a tremenda incompatibilidade que havia entre o discurso dos
“companheiros” e sua prática cínica, aética.

O Imbecil coletivo e tantos outros artigos de Olavo somaram-se a Isaiah Berlin — e então livrei-me do
coscorão esquerdista. Olavo e Berlin foram meus guias no processo de rompimento definitivo não apenas
com uma forma de pensar, mas com uma forma de viver. Ambos são intelectuais completos. Minha leitura
de Berlin começou por seu ensaio “O ouriço e a raposa”, em (10) Pensadores russos, aula de crítica
literária e cultural.

Foi um longo processo. Olavo de Carvalho e Isaiah Berlin ajudaram-me a abraçar aquelas verdades que
sempre estiveram à mão, obscurecidas pelo meu esquerdismo. A primeira delas, a mais banal, é que
justiça e liberdade jamais foram bandeiras exclusivas da esquerda. Aliás, a esquerda tem se notabilizado
na história exatamente por, chegando ao poder pela via revolucionária, trair esses ideais.

Mas o que Olavo de Carvalho e Isaiah Berlin me oferecem não se resume a desacreditar do marxismo.
Seria muito pouco para dois pensadores excepcionais. Eles me fazem refletir, como os outros livros que
mudaram minha vida, sobre a existência, a literatura, a condição humana — e cada página deles
acrescenta algo à minha Weltanschauung

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