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O gênero era aceito como “área específica”, mas ficava claro para mim que, ao
lidar com a questão dessa forma, ninguém considerava necessário conhecer
nossas autoras por que não desenvolver uma tese que tratasse justamente da
questão dos encontros e desencontros da teoria feminista com a sociologia e –
para fazer as devidas conexões transdisciplinares– com a teoria social
contemporânea?
Michèle Barrett8. Eu conhecia esta autora desde a época que ela se inseria
no campo do “feminismo marxista”; seus trabalhos posteriores discutiam sua
própria evolução e adesão à vertente dos “estudos culturais” no contexto das
mudanças trazidas pela problematização pós-estruturalista do paradigma
“racionalista” antes prevalecente na sociologia e na teoria social (cf.
Barrett,1999, p. 114).
Ao refletir sobre a história recente das disciplinas, os autores lidos por mim se
referiam uma vez ou outra ao momento histórico (codificado no termo “anos
60”) no qual os Outros – mulheres, negros, homossexuais, não ocidentais etc.
– conquistaram o direito de ser ouvidos e se tornaram, portanto, “novos
sujeitos”. Como, então, poderia ser essa “Sociologia dos Novos Sujeitos” e qual
a sua relação com a sociologia estabelecida como disciplina acadêmica
legítima ao longo de um século?
Por sua vez, esse capítulo abre espaço para uma discussão mais aprofundada,
no terceiro capítulo, sobre a emergência da teoria feminista contemporânea. No
quarto capítulo, estudo alguns autores consagrados da teoria social/sociologia
contemporânea, realizando uma leitura de suas obras a partir da teoria
feminista e tentando averigüar em que medida já se tem produzido um diálogo
ou encontro entre perspectivas. A partir do quarto capítulo, tento demonstrar
que os canais de comunicação foram apenas parcialmente abertos
Assim, cada um e uma de nós faria muito bem em pensar sobre sua própria
“posição de sujeito” – não somente o lugar social desde o qual se fala, mas
também, como Craib e a psicanalista e socióloga feminista Nancy Chodorow
(1999) sugerem, o lugar singular que habitamos, na conjunção da experiência
social e individual que nos produz igualmente como sujeitos singulares.
Os beats articulavam, através da sua arte e suas vidas, uma crítica social que
inspiraria às próximas gerações uma contribuição considerável num contexto
da sociedade norte-americana que não só carecia de tradições anarquistas,
socialistas, comunistas ou “esquerdistas” fortes, tais como as que existiam na
Europa, mas que também estava sob a vigilância cruel do período macartista.
Dentro dos EUA, havia outros grupos que começaram nessa década a
demonstrar sinais de descontentamento ou inconformação com o status quo.
Não foi coincidência, portanto, que o primeiro grande movimento social do pós-
guerra tenha sido o movimento pelos direitos civis dos negros, iniciado no final
da década de 50 com a resistência de algumas comunidades do sul do país ao
sistema de apartheid.
Como veremos mais adiante, as mulheres que mais tarde articulariam nos EUA
o maior desafio à ordem patriarcal e se tornariam as pioneiras da “segunda
onda feminista” surgida no final dos anos 60, começaram seu processo de
conscientização e aprendizagem políticas dentro do movimento pelos direitos
civis dos negros33: foi ali onde elas começaram a formular as conexões entre
as formas de opressão que aprisionam as mulheres e “as pessoas de cor” em
subcategorias sociais de “não-sujeitos” ou second-class citizens.
Autores que discutem o novo contexto em que esta geração vivia (Hobsbawn,
2000; Leggewie, 1998; Fink, Gassert e Junker, 1998) enfatizam questões como
a escolarização crescente da população e o acesso à informação facilitado pela
televisão, um meio de comunicação ainda recente.
Ressalto novamente que um elemento fundamental que marcou essa época foi
o papel das novas trocas que surgiam entre diversos grupos sociais,tanto local
quanto globalmente.
[...] As formas de falar, namorar e se vestir criaram uma “cultura jovem” que
ultrapassava fronteiras de classe, raça e nacionalidade. Elas criaram formas de
expressão através das quais os jovens se distanciavam do autoritarismo
imposto ou aceito por gerações anteriores e lhes forneciam uma nova forma de
pensar a busca de uma identidade – que bem pode ser vista como uma
característica dessa fase de vida nas sociedades modernas, construindo-se
desta vez como um contraste particularmente grande em relação aos valores
“dos mais velhos”.
Ainda que aqueles que se mostram mais céticos em relação aos novos valores
da época gostem de enfatizar que a mesma “sociedade de consumo” permitia
ou talvez até exigia “funcionalmente” uma mudança de atitudes quanto
aotrabalho, ao lazer e ao prazer, os acirrados conflitos que os novos
comportamentos produziam na interação social entre gerações e grupos
demonstravam que o terreno da subjetividade e da sociabilidade estavam se
politizando.
Nas grandes cidades, a comunidade podia ser uma estratégia tanto prática
quanto política, atendendo às pessoas cujas opções de vida envolviam projetos
que não privilegiavam a acumulação de recursos materiais e visavam à adoção
de novas formas de socialização e sobrevivência que também significassem a
construção de novas formas de relacionamento.
O consumo de drogas também fazia parte dessa visão mas, em lugar da forma
convencional de uso e abuso das drogas aceitas pela sociedade convencional
(álcool, antidepressivos e muitos outros “remédios”), procurava-se recuperar
uma utilização “transcendental” das drogas, que liberasse as pessoas para
novos níveis de percepção e comunhão com os outros e com a natureza.
Como apontado por Stephens (op. cit.), outro dos aspectos mal-compreendidos
da contracultura, freqüentemente acusada de assim abrir espaço para sua
própria cooptação, foi sua ética do prazer. Nestas acusações, alega-se que,
apesar da contracultura se colocar como uma tentativa de libertação dos
códigos disciplinares e repressivos da sociedade moderna, rapidamente
degenerou-se, criando um “hedonismo” que, longe de ser uma forma de
resistência, se tornou mera expressão da lógica do capitalismo tardio. Segundo
essa perspectiva, as experiências e “alternativas” da contracultura teriam uma
evolução mais ou menos direta para o marketing de estilos de vida dos quais o
capitalismo tardio se beneficiaria.
Mas os anos 60, com seu clima de contestação da ordem normativa de uma
sociedade vista então como repressora e “doente”, criaram um novo espaço
onde diversos grupos antes silenciados e marginalizados conseguiram assumir
e reivindicar sua “diferença”, isto é, iniciar um processo nada fácil de conquista
de direitos.
Como afirmou Evans, estas jovens sentiram na pele uma série de contradições.
Havia, por um lado, aquelas que a cultura e a sociedade norte-americanas da
época tinham criado num sentido mais geral de prover novas oportunidades –
principalmente de estudo e de controle da fertilidade – e, ao mesmo tempo,
impondo a noção da domesticidade e a subordinação sexual.
Por outro, havia aquelas que surgiram no bojo dos próprios movimentos, nos
quais os discursos libertário, democrático e/ou socialista se detinham frente aos
privilégios masculinos do monopólio da palavra e da liderança política.
Para muitas mulheres, ter um espaço que priorizava a convivência com outras
mulheres permitia uma nova liberdade e uma nova forma de sustento: era uma
experiência radical, de não se precisar de relações de dependência – emo-
cional, física, material – com namorado, marido, pai e professor, as quais, nas
condições de uma cultura patriarcal, tendiam a se reproduzir.
Quando, em meados dos anos 70, a turbulência dos movimentos parecia ceder
a um momento de apaziguamento dos conflitos sociais (diluindo-se em
algumas conquistas no âmbito jurídico e no esgotamento do fôlego radical dos
anos anteriores), o movimento feminista estava ainda em plena efervescência.
Ela resgata a crítica feita por historiadoras da década, que argumentam que a
narrativa convencional sobre a política radical da época dá prioridade à Nova
Esquerda masculina, inserindo um viés na sua análise que a faz muito diferente
do que seria a avaliação que considerasse realmente a experiência radical das
mulheres: dessa forma, a narrativa da desilusão e esgotamento transforma-se
numa narrativa de mudanças que – ainda contraditorias e incompletas – fazem
com que o “breve século XX” também seja conhecido como “o século das
mulheres”.
O modelo funcionalista tornou-se pouco convincente, não tanto por não dar
“ênfase suficiente” ao poder e ao conflito (pois, como em qualquer teoria, são
possíveis diversas leituras do funcionalismo, algumas das quais podem
fornecer elementos interessantes para entender a reprodução institucional e
cultural do poder e da normatividade), mas por seu compromisso mais ou
menos explícito com uma forma de viver que se tornou alvo de resistência
política e cultural aberta.
Pretendo mostrar como, desde o final dos anos 60, com Foucault e as femi-
nistas, e depois, de forma ainda parcial, na sociologia, há uma revalorização de
aspectos da experiência humana que vão além da visão do indivíduo como
sujeito da razão, atingindo profundamente a sociologia como narrativa sobre a
modernidade, mesmo sem que isso conduza à incorporação mais plena da
contribuição feminista.
Quando Freud insiste no que ele considera fundamental – que o pacto através
do qual os indivíduos abrem mão da sua liberdade vai sempre contrariar ou
violar àquela parte da “natureza humana” que não é domesticável, ou seja,
seus “instintos”, seu desejo, sua sexualidade, seu apego ao princípio do prazer
– e ainda afirma que é por isso mesmo que todas as tentativas “racionais” de
controle do ser humano estão destinados a falhar, fere profundamente uma
premissa cara ao pensamento social ocidental145. O mesmo pode ser dito em
relação ao seu conceito do inconsciente, estrutura da vida mental na qual
aquilo que a cultura recalca se mantém vivo e sempre pronto para o momento
do seu retorno.
Para Foucault, que dialoga com a obra de Freud embora trate a psicanálise
como uma forma discursiva aliada ao poder disciplinar da sociedade burguesa,
a visão racionalista do ser humano é também uma ficção do poder: uma forma
de discurso, historicamente construído numa configuração particular de
interesses.
Eu não deixo de encontrar uma certa ironia no fato de que o “declínio” que
Sennett lamenta coincide com o início da ascensão – ou irrupção – das mu-
lheres no público. Parece-me ainda mais problemático o fato de ele elaborar
tão forte crítica à cultura e ideologia da intimidade, contrastada com as formas
ritualizadas e mascaradas de se tratar com os desconhecidos que, segundo
ele, formavam a base da interação no público da época anterior.
Noutras palavras, seu alvo vem a ser exatamente aquilo que tem sido
interpretado muitas vezes como uma “feminização” da cultura, na qual se
começa a aceitar e dar valor àquilo que para muitos filósofos iluministas
representava “a fraqueza das mulheres”.
No entanto, cabe enfatizar que a todo seu argumento subjaz uma noção do
público – e do privado – que reproduz um subtexto de gênero parecido com os
argumentos de muitos autores neoconservadores, com os quais Sennett não
pretende afiliação. Como logo veremos, não é nenhuma coincidência que um
sociólogo como Anthony Giddens, cuja obra me parece muito mais permeada
por afinidades com a teoria feminista contemporânea, propõe uma visão da
modernidade que em vários aspectos críticos se contrapõe à concepção de
Sennett.
A “nova classe média” – que não seria para Giddens o que é para alguns
teóricos franceses, como André Gorz e Alain Touraine, o grupo do qual poderá
surgir uma “nova vanguarda revolucionária” – provavelmente estaria sendo
fortalecida em relação à porção da classe trabalhadora formada por
trabalhadores manuais (os quais, por sua vez, podem estar perdendo chances
de mobilidade social).
Ele parece também se inspirar num ponto sobre o qual as feministas insistiam
muito a partir dos anos 60, tanto nos movimentos e quanto nos escritos
teóricos: o de que, na separação entre público e privado, pessoal e profissional
etc., se escondiam as profundas conexões que as faziam funcionar.
Mas Giddens insiste: nem por isso devemos aceitar a tese de pensadores –
sejam conservadores ou marxistas – que vêem na modernidade a “dissolução
da comunidade”. Ao contrário, diz ele, existe uma ampla literatura etnográfica
que mostra novas formas de sociabilidade urbana.
Assim como faz abstração das formas concretas de operação das relações de
poder (as de classe, raça/etnicidade e mesmo as que agem em torno da
construção de gênero e sexualidade, que em certo momento ele privilegia) e a
maneira como os grupos e segmentos sociais concretos podem realizar seu
“projeto reflexivo”, falta considerar mais suas expressões “ideológicas” no
âmbito da produção discursiva.
Touraine resgata para sua teoria dos novos movimentos sociais o movimento
feminista, “quando afirma não a feminilidade, mas a resistência da natureza, do
corpo, da sexualidade, do sentimento, tanto para os homens quanto para as
mulheres” (p.135).
Em todo caso, cabe aqui a crítica básica das feministas a certas teorias que
romantizam a família: é muito difícil sustentar a noção de família como haven in
a heartless world; a família cumpre com tarefas de reprodução tanto materiais
quanto simbólicas e ambos os tipos de tarefas tendem a envolver distribuição
desigual de poder e de recursos e, às vezes, dominação aberta baseada em
hierarquias de gênero.
Continuo sem entender como se poderia esperar que uma esfera da sociedade
possa se manter impermeável às relações de poder e dominação que agem
noutra, mas é evidente que o dualismo de Habermas não dá centralidade a
essas categorias.
No caso, Habermas não problematiza o caráter originariamente masculino das
esferas “do dinheiro e do poder”. As mulheres e o feminismo são mencionados
em relação ao “mundo da vida” e às lutas que se dão nele, onde se luta não
por dinheiro e poder, mas principalmente por “definições”. Contudo, como
muitas teóricas feministas vêm argumentando, a economia capitalista também
funciona a partir da maneira pela qual as relações de gênero se encontram
embutidas nela e o Estado que historicamente excluiu as mulheres continua
reproduzindo definições (e políticas) de subordinação feminina (cf. Pateman,
1988). Portanto, sob a perspectiva das relações de gênero e de um projeto
feminista, qualquer tentativa de “descolonizar o mundo da vida” (descolonizá-lo
de relações capitalistas? De relações “patriarcais”?) significaria também a
invenção de políticas que interfiram diretamente nessas “estruturas sistêmicas”.