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Paraíso em Penang

Título: Paraíso em Penang.


Autor: Barbara Cartland.
Título original: Paradise in Penang.
Dados da edição: Nova Cultural, São Paulo, 1989.
Género: romance.
Digitalização: Dores Cunha.
Correcção: Edith Suli.
Estado da obra: corrigida.
Numeração de página: rodapé.

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à


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Contracapa: Lorde Selwyn se aproximou do barco encalhado


na praia, que parecia vazio. No fundo da embarcação, entretanto, jazia uma
linda jovem,
ricamente vestida. Estava deitada sobre
almofadas de cetim branco, e parecia dormir.
Seus cabelos dourados se espalhavam sobre um
travesseiro de seda, e a pele acetinada tinha a
beleza de uma pérola. Usava um fino colar e
pulseiras de diamantes, e a blusa de seu vestido
era toda trabalhada em pedras preciosas. Paul
Selwyn ficou a olhar para ela, fascinado, imaginando como essa figura de sonho
teria ido parar ali...
Que mistério cercaria a jovem que surgira das águas?
(Fim da contracapa)

BARBARA CARTLAND
Paraíso em Penang
Título original: Paradise in Penang
Copyright (c) Barbara Cartland 1989
Tradução: E. N. Costa e Silva
Copyright para a língua portuguesa: 1989
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 - 3º andar
CEP 01452 - São Paulo - SP - Brasil
Caixa Postal 2372
Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda.
Impressa na Artes Gráficas Parâmetro Ltda.

NOTA DA AUTORA
Penang, uma pequena ilha em forma de tartaruga, na extremidade setentrional
do estreito de Malaca, é um dos mais lindos lugares do mundo.
Banhada pelas águas límpidas e tépidas do oceano Índico, a ilha é orlada de
praias douradas e coqueirais.
Homens bravos e audazes foram atraídos para Penang depois de a ilha ter sido
descoberta pelo capitão inglês Francis Light, em 1784.
Esses homens intrépidos adquiriram fortunas fabulosas, construíram mansões
enormes e requintadas em estilo inglês e se estabeleceram na ilha, vivendo
felizes entre malaios e chineses.
Na ocasião em que escrevi este livro, duas terríveis sociedades secretas
estavam sendo caçadas pelas autoridades malaias.
Elas eram responsáveis por numerosos assassinatos, e duelavam perigosamente
para conseguir as riquezas recém-descobertas na ilha.
Foi o sultão Abdullah de Kedah quem ofereceu ao capitão Light a Pulau Pinang
(ilha de Penang), em troca de sua ativa intervenção contra seus inimigos
siameses.
Penang foi de grande importância para a Companhia da índias Orientais, e
tornou-se um importante posto comercial para todo o Império Britânico.
Atualmente, a ilha é uma estância de férias, e ainda conserva muitos
monumentos, casas e prédios que recordam sua história fascinante. Espero que
esteja fadada a ter um futuro igualmente fantástico.
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CAPÍTULO I
1869
O trem chegou à Victoria Station, e lorde Selwyn desembarcou, respirando
aliviado.
- Que bom voltar para casa!
Não havia carruagem alguma esperando por ele; porém, felizmente, o diplomata
francês com quem viajava lhe fez um gentil oferecimento:
- Há uma carruagem enviada pela embaixada à minha espera. Não quer vir comigo?
- Fico-lhe imensamente grato. Como já lhe disse, parti mais cedo do que o
previsto, e nem tive tempo de avisar ao meu secretário que estava voltando
antes da data combinada.
O diplomata sorriu.
- Dizem que chegadas inesperadas costumam ser perigosas.
- Não no meu caso particular - respondeu lorde Selwyn, sorrindo também. - Mas
concordo que, em princípio, você tem razão.
Os dois cavalheiros subiram na elegante carruagem da embaixada. Ao notar os
dois belos cavalos de raça atrelados ao veículo, lorde Selwyn não pôde deixar
de admirá-los. Embora os animais não fossem iguais aos seus, quem quer que
os tivesse comprado era um conhecedor e merecia elogios.
Recostado confortavelmente ao encosto do assento acolchoado, muito macio, ele
lembrou, satisfeito, que aquela noite iria ver Maisie Brambury. Desde que
deixara a Inglaterra, não a havia tirado do pensamento.
Fora em Paris que decidira tomar a resolução mais importante de sua vida:
casar-se!
Há anos vinha lutando, primeiro contra as insinuações, depois contra as
súplicas da família para que arranjasse uma esposa. Mas simplesmente não via
motivo para se apressar a dar um passo tão decisivo, a não ser, claro, a
necessidade de deixar um herdeiro, visto ser ele um nobre possuidor de imensa
fortuna
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e de uma das casas em estilo georgiano mais fantásticas do país.
Todavia, a ideia de ver-se preso pelos laços matrimoniais o exasperava. Queria
ser livre, desimpedido e definitivamente desembaraçado do fardo de uma esposa.
Lorde Selwyn fora a Paris em missão diplomática muito delicada, a ele atribuída
pelo ministro das Relações Exteriores, e havia partido determinado a esquecer
lady Brambury.
Não ignorava que em Paris encontraria inúmeras mulheres ansiosas para
satisfazer-lhe os desejos, lisonjeá-lo e fazê-lo gastar muito dinheiro.
Reconhecia, porém,
que cada pêni dispendido teria valido a pena.
Era bem próprio de lorde Selwyn levar suas missões muito a sério. Mas, quando
a noite chegava, divertia-se. E esta vez não constituíra uma exceção; ele
tivera a companhia de sedutoras cortesãs que havia conhecido em sua última
visita à capital francesa. Ele foi a inúmeras festas e esteve em muitos leitos.
E então, na véspera de voltar à Inglaterra, lorde Selwyn percebeu que estava
farto daquela vida.
Acostumado a ser honesto consigo mesmo, admitiu que, apesar de ter passado
ótimos momentos, de certa forma havia forçado o que antigamente costumava ser
um entusiasmo natural. Desta vez era como se Paris tivesse perdido a magia.
Ou quem sabe ele próprio tivesse perdido o que os franceses tão bem definiam
como joie de vivre.
A princípio questionara-se para saber o que estaria errado. Não tardara a
reconhecer que, em vez de se deixar seduzir pelo fascínio dos olhos negros
que o fitavam apaixonadamente, só via diante de si os olhos azuis de lady
Brambury.
Da mesma forma, chegava-lhe aos ouvidos a voz dela, suave como a de uma criança.
"Estou me comportando como um tolo!", pensara ele.
No entanto, nada do que os franceses lhe pudessem oferecer o satisfazia, nem
mesmo os pratos dignos do paladar mais exigente, oferecidos nos jantares e
festas aos quais comparecia. Tampouco apreciava como antes o requinte da comida
do Maxim's
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ou do Grand Vefour, aonde sempre ia acompanhado,de alguma deusa sedutora.
Mulher alguma poderia ser comparada às demi-moitdaines francesas,
inigualavelmente chiques, espirituosas e alegres. Além de possuírem um encanto
todo seu, essas
garotas sabiam como ninguém fazer um homem sentir-se ao seu lado como se fosse
um rei.
Apesar de tudo, lorde Selwyn só ouvia uma VOK suave murmurando:
- Sinto-me tão só... Os altos círculos socais me amedrontam!
Os dois olhos azuis de Maisie o fitavam, desanparados. Então, a única vontade
dele era protegê-la, e só
havia um meio de fazer isso.
"Mas casamento não!"
Ele tinha tudo o que um homem podia desejar, além de uma inteligência
privilegiada e grande interesse
por livros. Por isso, jamais sentia solidão, estivesse em
sua majestosa casa no campo ou na de Park Lane.
Ao contrário de seus amigos e conhecidos, que não viam a hora de correrem para
o clube, lorde Selwyn sentia imenso prazer em ficar em casa, sentado na
biblioteca, lendo noite adentro.
Era tão grande sua paixão pela leitura que a mãe, quando vivia, não se cansava
de lhe recomendar para não abusar da visão, argumentando:
- Você não terá essa aparência tão bela usando óculos! O filho costumava achar
graça de tanto cuidado. Por certo
teria ainda muitos anos pela frente até começar a sentir a visão diminuir.
Bons livros davam-lhe o mesmo prazer que a companhia de uma linda mulher. Além
disso, os primeiros lhe ofereciam a vantagem de lhe proporcionar um prazer
mais duradouro.
Seus affaires de coeur em geral chegavam ao fim simplesmente porque ele acabava
descobrindo que o único assunto que interessava a suas parceiras era o amor,
e o vocabulário inglês, lamentavelmente, era limitado demais para facilitar
discorrer sobre esse tema.
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A mulheres que lhe concediam seus favores eram inegavelment lindas e
esculturais como jovens deusas. Todavia, enquanto seu corpo se excitava,
correspondendo à beleza
delas, seu cérebro um crítico exigente, o fazia sentir-se extorquido - apesar
da estranheza do termo - de algo que lhe dava muito prazer.
Quando pensava em matrimónio, dava-se conta de que seria impossível suportar
uma conversa banal diariamente, desde o amanhecer até oanoitecer. Mesmo suas
amantes mais
espirituosas e divertidas insistiam em contar-lhe sempre a mesma anedota ou
fazer o mesmo tipo de brincadeira, esperando que ele achasse graça
e Igualmente, exigiam
que ele lhes repetisse até cansar os mesmos elogios.
"O que ando buscando, afinal? O que desejo para ser feliz?"
Quantas vezes já fizera tais perguntas sem encontrar resposta!
Então viu pela primeira vez Maisie Brambury, e achou que ali estava uma mulher
diferente, apesar de muito jovem. Para ele, que havia terminado um romance
com uma
lady um pouco mais velha do que ele, Maisie era um delicioso contraste.
Comparou-a a um daqueles pequenos querubins que já vira em pinturas e
esculturas em igrejas
da Bavária.
Ao saber que Maisie já completara vinte e quatro anos, mal pôde acreditar.
Porém, quando soube de toda a sua história, convenceu-se de que já não era
tão jovem quanto
aparentava.
Maisie casara-se aos dezoito anos com lorde Brambury, um viúvo de sessenta
anos considerado uma das mais importantes figuras da corte.
O fato de lorde Brambury ser um homem eminente, que havia ocupado muitos cargos
importantes, inclusive o de governador do condado de Huntingdonshire,além de
ser
possuidor de uma fortuna imensa, fez parecer insignificante a questão da
diferença de idade entre ele e a noiva.
A primeira esposa de lorde Brambury havia morrido sem ter, infelizmente,
deixado filhos. Então, pensando principalmente em ter um herdeiro, ele
propusera casamento à filha de um nobre rural, descendente de ótima família.
Os pais de Maisie ficaram não só surpresos, mas também encantados com o pedido
de um aristocrata tão ilustre. Ao mesmo
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tempo, esperavam que, sendo tão linda, a filha conseguisse um bom casamento.
Como costuma acontecer com homens mais velhos, lorde Brambury viu-se
loucamente apaixonado pela jovem Maisie. Deixando de lado o bom senso e não
dando ouvidos a
uma voz interior, que lhe dizia que já era muito velho para aquele romance,
ele decidiu que aquela linda jovem, sadia e de boa linhagem rural, era perfeita
para dar-lhe o herdeiro tão sonhado.
Maisie pouco teve a dizer. Ouvia o tempo todo palavras elogiosas ao futuro
marido, e lhe repetiam vezes sem conta que ela era a jovem de mais sorte do
mundo por ter conquistado um nobre tão rico e distinto.
Sem nem mesmo ter usufruído a temporada em Londres, como era desejo dos pais,
Maisie viu-se sendo levada ao altar da Igreja de São Jorge, em Hanover Square.
Maisie sonhara casar-se na igrejinha da propriedade de seu pai, mas, sendo
lorde Brambury um homem tão importante, isso não foi possível.
- Compreenda, minha querida - explicou ele -, que Sua Majestade, a rainha,
estará presente à cerimónia religiosa, além de inúmeros estadistas, diplomatas
e nobres.
O assunto foi encerrado. Ficou estabelecido que a recepção seria em sua casa,
uma enorme mansão em Grosvenor Square, onde ele morava há quase trinta anos.
A noiva não foi consultada uma única vez. Apenas ficava a par do que estava
sendo planejado para o casamento. Lorde Brambury dava as ordens, e tudo o que
Maisie e os pais tinham a fazer era aceitá-las.
Como se tratava do casamento mais importante da temporada, ninguém quis deixar
de comparecer àquele grande evento social. A igreja ficou superlotada. Os
imensos salões de recepção da casa de Grosvenor Square também pareceram
pequenos para tantos convidados.
Os amigos do noivo ficaram encantados com a beleza de Maisie, e compreenderam
por que lorde Brambury ficara tão perdido de amor por aquela criatura, que
mais parecia
uma peça de porcelana de Dresden.
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Entretanto, esses comentários maldosos eram bastante discretos, pois não se
podia ofender um homem que merecia a atenção da rainha e que, em toda sua vida
de
sucessos, jamais cometera um deslize.
Para Maisie, tudo parecia irreal. Era como se tivesse deixado a sala de aula
para ser arremessada num torvelinho. Lorde Brambury fizera questão de que o
casamento
se realizasse quanto antes, e a noiva se vira correndo de modista em modista,
experimentando um vestido após outro, quase morrendo de cansaço.
Havia festas quase todas as noites, e os inúmeros parentes do futuro marido
para conhecer, uma vez que todos eles faziam questão de agradar ao ilustre
chefe da família.
Choviam convites para almoços, jantares, recepções e reuniões, para grande
contentamento dos pais de Maisie. Esta, no entanto, mal via o futuro marido.
- Você deve compreender, querida, que antes de partirmos para nossa lua-de-mel,
tenho mil e uma coisas para resolver desculpara-se lorde Brambury com um
sorriso. - Acho que, quando se quer uma coisa bem-feita, deve-se fazê-la
pessoalmente.
Maisie aceitara a desculpa de bom grado, e até se sentira aliviada. A verdade
era que aquele homem imponente, corpulento e de cabelos quase totalmente
grisalhos a amedrontava. Imaginava vagamente como seria passar a vida ao lado
dele como esposa.
Todavia, não tinha a quem fazer perguntas. A mãe sempre a tratara como se ainda
fosse uma criancinha. O pai jamais havia feito segredo de que ficara
desapontado desde o nascimento da filha, pois sempre desejara um menino.
Maisie tivera inúmeras preceptoras, uma vez que nenhuma delas parava no
emprego. Achavam entediante a vida do campo, principalmente porque não tinham
oportunidade de ir a Londres ou a outra cidade grande.
- Sinto muito, mas não desejo continuar aqui, onde me sinto
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enterrada - era invariavelmente o argumento apresentado pelas preceptoras ao
fim do ano.
Os pais de Maisie não conseguiam compreender aquele procedimento, pois o quarto
reservado à preceptora era excelente, e a sala de aula muito ensolarada.
Mas as preceptoras vinham e partiam. Cada uma delas começava as lições de
história com os irmãos Hengist e Horsa, de forma que Maisie nunca havia ido
além de Ricardo Coração de Leão.
Para a aluna, história era matéria muito aborrecida, e geografia ainda pior.
Não desejando criar problemas, fingia estar interessada, ouvia as aulas com
os olhos muito abertos, porém o pensamento voava para longe dali.
Essa mesma expressão lhe servira para ouvir o noivo quando ele vinha visitá-la,
e depois também lhe fora útil ao partir, já casada, sob uma chuva de arroz
e de pétalas de rosas, para a estação, ao lado do marido.
O casal viajaria no vagão particular de lorde Brambury. Ele planejara passar
a primeira semana de lua-de-mel em sua casa ancestral de Huntingdonshire.
Depois seguiriam para a casa de Leicestershire, onde ele mantinha um pavilhão
de caça e aonde raramente ia, por haver abandonado as caçadas há anos.
Essa casa, localizada em quinhentos acres de ótima terra, era parcialmente
jacobita, e há muitas gerações pertencia à família de lorde Brambury.
- Nunca me separaria desta propriedade - dissera ele ao pai de Maisie. - É
confortável, quieta e ótimo lugar para nossa lua-de-mel. Sei que ali não
seremos perturbados.
Durante a viagem de trem, Maisie notou a excitação e ansiedade do marido. De
sua parte, estava adorando viajar num vagão particular, luxo que nunca tivera
antes.
- Não se sente bem? - perguntou ela ao marido, preocupada.
- Oh, estou bem. Achei apenas a igreja e os salões de recepção quentes demais
- respondeu ele.
A esposa serviu-lhe uma taça de champanhe, que ele tomou com prazer,
demonstrando sentir muita sede.
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- Orgulho-me de tê-la como esposa - disse ele, satisfeito.


- E está exatamente como quero vê-la sempre: linda!
- Achei que você iria gostar deste vestido. Custou muito caro!
- No futuro não terá que se preocupar com preços - observou lorde Brambury
em um tom de voz abafado.
Ele tomou mais champanhe e continuou a conversar, com voz ainda mais
indistinta.
Maisie contara a lorde Selwyn o que havia acontecido quando ela e o marido
chegaram a Brambury Hall.
- O jantar foi servido, e achei que Arthur não estava bem. Comeu pouco, mas
bebeu em excesso.
Lorde Selwyn lembrou-se de que nesse dia achara Maisie ainda mais linda e
adorável, com aqueles seus cílios longos, recurvados, escuros na raiz e
tornando-se dourados nas pontas. Sua pele de seda era levemente rosada.
Cruzando as mãos sobre o colo, ela continuara a narrativa, em um tom hesitante:
- Depois fomos cada um para seu quarto. Deitei-me, e poucB depois Arthur veio
para meu quarto.
Mostrando-se embaraçada, Maisie desviara o olhar, o que foi lorde Selwyn
achá-la ainda mais encantadora.
- Não quero que se aborreça. Esse assunto pode ser-lhe penoso - dissera lorde
Selwyn delicadamente.
- Faço questão que você saiba de tudo... Nunca falei sobre isso com ninguém
- comentou ela, respirando fundo.
- Arthur caminhou em minha direção, e então, quando ia alcançar a cama, de
sua garganta saiu um ruído estranho... Maisie deu um pequeno soluço. - Estendi
as mãos para ele, mas... antes de alcançá-las... meu marido caiu para a frente.
- Ele sofreu um derrame cerebral - concluiu lorde Selwyn. Maisie acenou
afirmativamente com a cabeça.
- Foi terrível! Nem tenho palavras para expressar minha angústia! E os
médicos... nada puderam fazer por ele.
Lorde Selwyn disse a si mesmo que a tragédia havia sido o fato de lorde Brambury
não ter morrido imediatamente. Durante
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cinco anos ele permanecera semiparalisado, sem esperanças de recuperação.
Nesses cinco anos Maisie nada pudera fazer senão ficar ao lado do marido e
ouvir a opinião dos médicos que vinham ver o paciente. Embora eles tentassem
ser otimistas, a esposa sabia que o quadro clínico do marido só tenderia a
piorar.
- É difícil traduzir em palavras como lamento o que lhe aconteceu - dissera
lorde Selwyn.
- Tinha certeza de que você compreenderia... - dissera Maisie simplesmente.
Naquele instante, a vontade de lorde Selwyn havia sido compensá-la pelos anos
da juventude e beleza que perdera, tendo ficado encerrada em casa, vendo apenas
médicos e enfermeiras.
Os parentes do marido visitavam-no ocasionalmente, e achavam que a esposa tinha
mais do que obrigação de cuidar do chefe da família Brambury.
Depois da morte de lorde Brambury, apesar de sentir-se livre, Maisie nem sabia
o que fazer, depois de todos aqueles anos praticamente enclausurada.
- Papai sugeriu que eu viesse para Londres. A princípio tive receio de mudar-me,
porque não conhecia ninguém, e receava sentir-me sozinha...
Foi a irmã de lorde Brambury, também viúva, quem a acompanhou e lhe serviu
de chaperon. Lady EIton, cinco anos mais velha do que o falecido irmão, viera
morar na casa de Grosvenor Square, que havia ficado fechada durante cinco anos,
porém se tornara em pouco tempo tão ativa como uma colmeia.
Os parentes de lorde Brambury cercavam a rica viúva. Não queriam que se
preocupasse com nada, e cuidaram de providenciar todos os criados necessários.
Ao mesmo tempo desfrutavam de sua acolhida e não perdiam as festas que ela
oferecia. Chegavam até a, sem qualquer acanhamento, levar à mansão e apresentar
à jovem lady Brambury os amigos que julgassem convenientes.
Durante a doença de lorde Brambury, seu secretário havia administrado todas
as propriedades do patrão extremamente bem, e Maisie não precisou empenhar-se
para cuidar dos negócios.
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Sua preocupação passou a ser encontrar um segundo marido.
- Meu maior receio é cometer o mesmo erro outra vez segredara a lorde Selwyn.
- Sei que não devia ter-me casado com um homem tão mais velho do que eu, mas,
se eu
recusasse, ninguém me daria ouvidos!
Perspicaz como era, lorde Selwyn entendeu a insinuação de Maisie. Ela ficaria
feliz tendo-o como segundo marido. A ideia, no entanto, não pareceu nada
agradável a ele.
Lorde Brambury havia deixado para a esposa uma fortuna considerável, a casa
de Huntingdonshire, não a ancestral, mas a chamada "casa da viúva", e a mansão
de Grosvenor Square. A casa ancestral ficara para o herdeiro do título, um
sobrinho.
Este deixou bem claro que não estava interessado na viúva do tio. Só queria
ver a casa ancestral desocupada o mais depressa possível. Para Maisie, que
via aquele lugar como um necrotério, foi uma alegria mudar-se dali e ir para
Londres.
Já morava há seis meses em Londres quando conheceu lorde Selwyn. Ele já ouvira
falar nela e em sua beleza, porém não se mostrou particularmente interessado
em ser-lhe apresentado.
Se a questão era beleza, havia inúmeras outras mulheres com esse atributo,
especialmente aquela com a qual estava começando
um romance.
Entretanto, quando se conheceram, lorde Selwyn não apenas se encantou com ela
como se mostrou intrigado com a história de seu casamento, que era objeto de
muitos comentários na ocasião.
A jovem viúva também era considerada uma importante anfitriã. Ao vê-la ao alto
da escada recebendo seus hóspedes, tão pequenina e delicada, com aquele ar
de criança, lorde Selwyn supôs que brincavam com ele, e teve vontade de rir.
Porém, quando os olhos azuis e infantis se fixaram nos dele, lorde Selwyn
mostrou-se a princípio interessado e depois cativo dos encantos daquela
adorável mulher.
"Ela é certamente original", pensou.
Grande número de pessoas comentava que o casamento dela com lorde Brambury
não fora consumado.
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NO mínimo, incomum!
Lorde Selwyn passou a receber um convite após outro para jantares e festas
na mansão de lady Brambury. Logo percebeu que era um convidado permanente na
lista da
anfitriã. E então, ao ser convidado para um jantar onde haveria apenas dois
cavalheiros já idosos presentes, ele teve certeza das intenções da cândida
viúva.
Os dois convidados idosos saíram mais cedo. Maisie e lorde Selwyn ficaram
conversando na sala de estar confortável e encantadora até a meia-noite. Se
isso tivesse acontecido com qualquer outra mulher, ele saberia em que terreno
pisava e que atitude tomar.
Maisie, porém, deixou-o inseguro. Imaginou que, se lhe sugerisse que poderiam
tornar-se amantes, ela ficaria extremamente escandalizada. Acabaria se
recusando a vê-lo novamente, e isso ele não queria que acontecesse.
Ao mesmo tempo, sua percepção lhe assegurava que Maisie desejava uma ligação
permanente, e isso o atemorizava; não se sentia disposto a cair numa armadilha.
"Não tenho a menor intenção de me casar com quem quer que seja!", disse a si
mesmo com firmeza ao voltar para casa.
Ele tivera o cuidado de beijar apenas a mão de Maisie ao se despedir. Bem que
ela erguera o rostinho infantil para ele de modo sedutor, mas sua cautela lhe
disse que, se beijasse aqueles lábios que lhe eram oferecidos, seu gesto seria
tomado como uma proposta de casamento.
Foi com alívio que no dia seguinte recebeu do ministro das Relações Exteriores
a missão de ir a Paris.
Sendo extremamente habilidoso, lorde Selwyn era comumente convidado a resolver
questões delicadas em que diplomatas haviam falhado.
Como ainda não havia conhecido o fracasso, ele era muito importante para o
ministério. Em geral tinha prazer em desempenhar as missões que lhe davam.
Excitava-o empregar o cérebro, a agudeza de seu espírito e seus talentos para
sobrepujar homens conhecidos pela inteligência e capacidade.
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Uma de suas grandes vantagens era falar fluentemente a maioria dos idiomas
europeus. Ultimamente ele havia passado mais tempo na Áustria, em Roma, e agora
em Paris.
Ao voltar triunfante de cada uma dessas missões, merecera de lorde Clarendon
palavras elogiosas:
- Não sei o que faria sem você, Selwyn! Você já se deu conta de que poderia
estar sentado nesta minha cadeira, em vez de gastar o tempo com essas mulheres
fúteis?
Lorde Selwyn havia erguido a mão, demonstrando seu horror.
- Deus me livre! Não tenho a menor vontade de me envolver com política. Aceito
desempenhar as missões que me confia simplesmente porque me dão prazer.
Por causa de Maisie, no entanto, ele não havia aproveitado tanto como esperava
sua estada em Paris. Não conseguiu ser influenciado pelo erotismo da Cidade
Luz.
Havia pensado o tempo todo em Maisie, imaginando que era pura e intocada, e
um dia seria despertada por um homem para as delícias do amor. Era óbvio, no
entanto, que ela não iria esperar para sempre.
Lorde Selwyn não duvidava que seria o bastante ele dizer uma palavra e a teria
nos braços. Então beijaria aqueles lábios que certamente nunca tinham sido
beijados de verdade.
A questão era: será que ele teria coragem de dizer as palavras mágicas que
ela ansiava por ouvir?
"Abracadabra! Quer ser minha esposa?"
Era como se estivesse encenando uma peça na qual fazia o papel de herói. Mas
o preço que teria que pagar para obter a mão da princesa era alto demais: a
sua liberdade.
Finalmente decidiu-se.
Jamais conhecera mulher alguma que o fizesse sentir vontade de deixar o
celibato. Agora que sentia algo diferente por Maisie, concluiu que não poderia
haver esposa mais conveniente do que ela.
Naturalmente, desejava uma esposa que jamais tivesse conhecido outro homem
antes dele. Não admitia por um segundo que fosse que a mulher escolhida para
ser a mãe de seus filhos pudesse ser promíscua.
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Na verdade, às vezes ele se sentia envergonhado dê fazer amor com.a esposa
de outro homem, sabendo que ela era mãe de filhos e filhas do esposo traído.
Embora jamais tivesse expressado esse sentimento por meio de palavras, dentro
de si próprio considerava o comportamento da amante uma degradação de sua
dignidade de mulher.
Ao mesmo tempo, não suportava a ideia de ver-se casado com uma debutante de
dezoito anos que tivesse sido educada por uma preceptora que pouca coisa
saberia mais do que sua aluna.
Maisie não tivera oportunidade de viajar, por ter passado os anos de casada
cuidando do marido doente. Mas pelo menos devia ter lido muito. Ele sabia que
a biblioteca de Brambury Hall era enorme.
"Levarei Maisie a lugares sobre os quais ela tenha lido", disse a si mesmo.
"Visitaremos juntos a Notre-Dame de Paris, o Coliseu de Roma, o Paternon de
Atenas e as pirâmides do Egito."
Embora nunca tivesse conversado com Maisie sobre o assunto, supôs que ela iria
adorar conhecer tais lugares. Como ele, ela talvez viesse a descobrir algo
que ia além da aparência e da forma, e que na verdade tinha um sentido
espiritual.
Essa espiritualidade escapava aos turistas em geral. Lorde Selwyn orgulhava-se
de, como os chineses, "ver o mundo além do seu aspecto exterior".
"Irei ver Maisie amanhã", decidiu ansiosamente.
Era óbvio que fora por causa de Maisie que havia achado Paris cansativa, fria
e repetitiva. Era por causa dela que andava tão inquieto.
Maisie! Maisie!
Podia vê-la aonde quer que olhasse; podia ouvir-lhe a voz ao conversar com
alguém.
A carruagem parou em frente à sua casa.
- Obrigado por trazer-me até em casa - agradececeu lorde Selwyn ao diplomata
francês em sua língua materna. -
Fico-lhe extremamente grato.
- É sempre um prazer revê-lo, monsieur. Saiba que sou um dos seus maiores
admiradores.
Depois de lhe dirigir um sorriso, lorde Selwyn afastou-se. Ao
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entrar em casa, o mordomo olhou surpreso pára o amo, exclamando:
Não esperávamos Vossa Senhoria tão cedo!
Sei disso, Barker. Mas não tive tempo de avisar o sr. Ste-
vens de minha volta. Espero que o chef providencie alguma coisa para eu comer.
- Certamente, milorde! É um prazer ter Vossa Senhoria em
casa novamente.
Lorde Selwyn dirigiu-se para a biblioteca. Gostava tanto de ver-se cercado
de livros que sua escrivaninha ficava na biblioteca. Como já esperava,
encontrou uma pilha
de correspondência muito bem-arrumada sobre a escrivaninha, o que significava
muito trabalho.
Ocorreu-lhe que talvez fosse mais sensato ir visitar Maisie no dia seguinte.
Não devia ser precipitado. Além disso, era provável que ela tivesse alguma
festa ou qualquer outro compromisso social aquela noite. Se ele aparecesse
inesperadamente, só lhe estragaria os planos.
"Pela manhã lhe mandarei um bilhete", decidiu. "Se eu lhe sugerir que poderemos
jantar a sós, ela entenderá qual é meu desejo."
Lorde Selwyn mostrava-se absorto, imaginando que flores encomendaria para
ornamentar a mesa do jantar, quando o secretário, o sr. Stevens, entrou na
biblioteca.
- Que surpresa, milorde!
- Terminei meu trabalho mais cedo do que esperava - explicou ele em poucas
palavras.
Nesse instante um criado entrou com uma garrafa de champanhe já aberta, dentro
de um balde de gelo. Indo até a mesa de bebidas, serviu uma taça ao amo e
retirou-se.
Ao tomar um pequeno gole do champanhe, lorde Selwyn fez mentalmente um brinde
ao futuro.
- Vejo que tenho muito trabalho - disse ele ao secretário, referindo-se à pilha
de correspondência que se via sobre a escrivaninha.
O sr. Stevens acenou com a cabeça.
- Não é tão mau assim, milorde. Há inúmeros convites, sendo
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um deles de Sua Majestade, a rainha. No entanto, devo chamar-lhe a atenção
para uma carta importante, que exige sua atenção imediata. Lorde Selwyn arqueou
as
sobrancelhas.
- Importante? Em que sentido?
- Diz respeito a seu tio-avô, milorde.
- Meu tio-avô? Qual deles?
- Lorde Durham.
- Lorde Durham?! - repetiu lorde Selwyn, surpreso, encarando o secretário.
- Há anos não penso nele! Na verdade, pensei que estivesse morto.
- Ele acaba de falecer, milorde. Estava com oitenta e nove anos.
- Sim, devia ter mesmo essa idade. Ele morava no exterior.
- Exatamente. Em Penang, milorde.
- Ah, agora me lembro! Depois de se aposentar, após haver ocupado o cargo de
juiz supremo durante nem sei quantos anos em Hong Kong, ele se recusou a voltar
para a Inglaterra.
- Isso mesmo, milorde.
- A família de meu avô se sentiu ofendida porque ele não quis viver conosco.
Lembro-me vagamente de que ele mandou dizer numa carta que considerava o
Oriente sua pátria, e em qualquer outro lugar se sentiria estranho.
O sr. Stevens retirou uma das cartas da pilha e entregou-a a lorde Selwyn.
Este logo viu que fora enviada de Georgetown, em Penang.
Abriu a carta e constatou que vinha de uma firma de advogados, um chinês, o
outro inglês. Esses advogados o informavam de que seu tio-avô, lorde Durham,
falecera, e lhe havia legado sua casa e a fazenda, além de considerável quantia
em dinheiro.
A carta terminava informando que os advogados aguardavam as instruções do
herdeiro. Se ele pudesse ir pessoalmente a Penang, teria a oportunidade de
ver o que havia herdado.
- Bem, certamente isto é uma surpresa! - exclamou ele ao terminar a leitura.
- Jamais esperei que meu tio-avô Edward se lembrasse de deixar-me alguma coisa
em seu testamento! -
21
Não conteve um sorriso irónico. - Ah, só Deus sabe o que poderei fazer com
uma plantação em Penang!
Enquanto falava veio-lhe à mente a pequena ilha junto da península da Malásia.
Jamais havia pensado em conhecer um dia a ilha de Penang. Quando estivera na
índia, havia pensado em chegar a Cingapura, mas acabara vindo direto para a
Inglaterra, uma vez que tinha muito o que fazer em seu país. Não podia passar
mais tempo explorando o Extremo Oriente.
- Por que meu tio teve a ideia de se estabelecer justamente em Penang, entre
tantos lugares no mundo?
Lorde Selwyn fez a pergunta como se estivesse pensando em voz alta, porém o
sr. Stevens respondeu:
- Creio que Penang é uma bela ilha e um próspero posto comercial, milorde.
Mas lorde Selwyn não lhe prestara atenção. Havia deixado a carta dos advogados
sobre a escrivaninha e olhava para um envelope ao lado da pilha de
correspondência. Por um momento achou que devia ser um convite de Maisie.
O sr. Stevens tinha ordens expressas de não abrir qualquer correspondência
que lhe parecesse particular. O secretário raramente se enganava.
Como aquele envelope fora deixado de lado, lorde Selwyn supôs que, se não fosse
um convite enviado por Maisie, poderia ser uma carta mandada por alguma mulher.
Ao examinar a letra, reconheceu que não era de Maisie. O envelope estava
lacrado.
Movido pela curiosidade, abriu depressa o envelope, deixando o secretário à
espera para falar-lhe sobre o resto da correspondência.
Ao tirar a carta de dentro do envelope, notou o papel de boa qualidade, porém
sem qualquer nome ou iniciais ao alto da folha. A letra era de mulher, mas
não a reconheceu de pronto. Então leu:
"Você está sendo enganado por um par de traiçoeiros olhos azuis e uma língua
pérfida. Se esperar nas cavalariças, atrás de
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uma certa casa em Grosvenor Square, sem dúvida irá descobrir muito mais.
Uma amiga"
Tomado do mais puro espanto, lorde Selwyn ficou olhando para o papel que tinha
nas mãos, emudecido. Não se lembrava de ter, algum dia, recebido uma carta
anónima, muito menos de alguém que se dizia "Uma Amiga".
Era óbvio, no entanto, a quem a carta se referia. Era odioso pensar que uma
mulher pudesse atacar outra daquele modo desleal e revoltante.
- Quando esta carta chegou? - perguntou ao sr. Stevens.
- Não foi enviada pelo correio, milorde. Deixaram-na na caixa de
correspondência.
Lorde Selwyn constatou que não havia selo algum. Notando o ar preocupado do
patrão, o secretário indagou:
- Trata-se de um assunto que eu possa resolver?
- Oh, não, claro que não!
Lorde Selwyn colocou o papel de volta no envelope e guardou-o no bolso. Depois
de um momento de hesitação, decidiu:
- O restante da correspondência terá que esperar até amanhã. vou subir e tomar
um banho.
Assim dizendo, deixou a biblioteca.
O sr. Stevens seguiu-o com o olhar, tendo no rosto uma expressão preocupada.
Alguma coisa estava errada.
Embora não soubesse do que se tratava, não tinha dúvidas de que aquela carta
fora mandada por uma mulher.
"Há sempre uma mulher atrás de qualquer problema", disse a si mesmo com
amargura.
Aproximando-se da escrivaninha, pegou a carta enviada pelos advogados de
Penang.
23
CAPÍTULO II
Lorde Selwyn fora ver lorde Glarendon para falar-lhe sobre o resultado de sua
missão em Paris. Voltara em seguida para casa sem ter entrado em contato com
nenhum dos seus amigos.
Vendo-se sozinho na biblioteca, leu novamente a carta anónima enviada pela
pessoa que assinava "Uma Amiga".
"vou rasgá-la e jogá-la fora", pensou.
Sempre desprezara pessoas que escreviam cartas anónimas. Seu pai costumava
dizer que o lugar dessas cartas era a lata de lixo.
Jantou sozinho, porque não desejava que ninguém soubesse que ele já se
encontrava em Londres. Porém mais tarde sentiu uma vontade irresistível de
ir às cavalariças, na parte de trás da casa de Maisie.
Parecia ouvi-la dizer, com seu jeito de criança:
- É uma frustração não ter como você um jardim privativo e adorável na parte
posterior da casa. Infelizmente, só tenho o jardim da praça que todos usam.
Envaidecido, pois sempre tivera orgulho de seu jardim, lorde Selwyn havia
sorrido. A maioria das plantas era cultivada em vasos; entretanto, ele
conseguira espaço para plantar encantadores lilases brancos e roxos, e ainda
reservara um canteiro só para rosas.
- Quando a mansão de Grosvenor Square foi construída, as cavalariças ocuparam
a parte posterior do terreno - explicara Maisie. - Como a casa se situa no
lado leste, só os cómodos dos fundos recebem o sol da manhã.
- Imagino que seus aposentos fiquem nessa parte - observara lorde Selwyn.
Veio-lhe à mente a figura de Maisie. Nessa noite ela estava linda, e ele
comparou-a a um raio de sol primaveril que fazia surgirem os primeiros galantos
e as violetas.
- Como você adivinhou que adoro o sol? - perguntara ela, fixando nele seus
grandes olhos azuis. - É claro que meu
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quarto fica na parte posterior da casa.;É lindamente decorado, e como se
encontra no primeiro andar, não preciso subir correndo muitos lances de escada.
Maisie havia rido como uma criança, parecendo demonstrar que gostava de
escadas. Isso o fizera pensar que ela ainda teria muitos anos pela frente até
achá-las cansativas.
Naquele momento, ao relembrar essa conversa, trazia uma funda ruga entre as
sobrancelhas. Devia acreditar no que a carta anónima dissera? A que exatamente
a carta se referia?
"Mostrarei a carta a Maisie amanhã, e ela me dará uma explicação. Eu é que
não me rebaixarei indo espioná-la", pensou.
Terminado o excelente jantar, ele sentou-se confortavelmente numa poltrona,
na biblioteca, com um livro na mão. Estava ansioso para começar a lê-lo, pois
o volume acabara de chegar.
Tratava-se da biografia do famoso lorde Melbourne, em quem ele sempre tivera
muito interesse. Sabia que iria apreciar cada palavra do livro. Uma hora mais
tarde, no entanto, viu que não havia virado mais de três páginas, e mesmo assim
não se lembrava do pouco que lera.
Tudo o que conseguia ver diante de si eram dois inocentes olhos azuis fitando-o,
enquanto ouvia uma voz suave dizendo com um pequeno suspiro:
- Nunca em minha vida conheci o amor, mas talvez o encontre... um dia.
Ele percebera que Maisie dissera isso esperando ouvi-lo dizer-lhe que a amava.
A conversa se dera durante uma festa.
Uma coisa que lorde Selwyn detestava era chamar a atenção sobre si mesmo, em
público. Assim, receou que, sendo Maisie tão jovem, inexperiente e ingénua,
ao ouvi-lo declarar que a amava, poderia atirar-se em seus braços. Era o que
as mulheres em geral faziam.
Não. Era melhor não se arriscar. No salão ao lado vários convidados dançavam.
Lorde Selwyn preferiu dizer apenas:
- Certamente falaremos sobre esse assunto em outra ocasião.
Qualquer outra mulher teria revelado no olhar haver entendido
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o que ele quisera dizer. Ao mesmo tempo, nesse olhar haveria um óbvio convite
que ele, por sua vez, entenderia.
Maisie, porém, apenas baixara os olhos timidamente, como se estivesse pensando
que agira com indiscrição. Pouco depois se levantara, dizendo:
- É melhor voltarmos para o salão de baile...
"Ela é tão jovem!", pensara ele pela milésima vez.
Ao admitir, finalmente, que a amava, não teve mais dúvidas de que a única coisa
que lhe poderia propor seria o casamento.
Naturalmente havia alguém tentando difamar Maisie. Pois iria pagar por isso.
Não seria difícil descobrir quem escrevera a carta anónima. A caligrafia não
lhe parecera ter sido disfarçada.
Se ele mostrasse a carta a alguns de seus amigos mais íntimos, um deles
reconheceria aquela letra.
"Irei às cavalariças da casa de Maisie", decidiu ele, levantando-se. "vou
constatar que isso é mentira, e, de algum modo, me empenharei em impedir que
caluniem uma pessoa virtuosa."
Às quinze para a meia-noite, usando um casaco forrado de pele, ele deixou sua
casa e caminhou até Grosvenor Square. Em menos de cinco minutos achava-se nas
cavalariças. Sentiase como se fosse um cavaleiro de armadura reluzente indo
salvar a mulher que amava - uma princesa prisioneira.
"É óbvio que alguma mulher cheia de inveja de Maisie, que é tão linda e tão
rica, deve querer reduzi-la a pedaços", ponderou, com os lábios comprimidos.
"Bem, vou parar com isso! Nem que seja a última coisa que eu tenha que fazer,
impedirei essa caluniadora de continuar agindo!"
De modo algum toleraria ver manchada a reputação da mulher que se tornaria
sua esposa. Ocorreu-lhe que Maisie, dada sua posição social, tinha necessidade
de um marido para protegê-la.
Era verdade que sua chaperon, lady Elton, era muito conhecida e respeitada.
Mas, devido à idade, nem sempre podia acompanhar a cunhada. Não tinha
resistência para estar ao lado de Maisie dia e noite, seguidamente, como se
esperava da
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acompanhante de uma mulher tão jovem como lady
Iprambury.
O casamento resolveria o problema. Ninguém ousaria falar
mal de sua esposa, e não haveria escândalos.
A noite estava agradável, e havia certa magia no ar. No céu
todo estrelado uma meia-lua brilhava, permitindo que lorde
Selwyn visse o caminho sem dificuldade.
Ele alcançara as cavalariças caminhando pelo lado do parque. Passara por
diversas casas de pessoas conhecidas, sem encontrar ninguém. Esses conhecidos
ou eram idosos e raramente saíam à noite, ou mais jovens, e não voltavam
cedo para casa.
Ao chegar, não viu sinal de cavalariços; ouviu apenas o barulho dos cavalos
que se moviam nas baias. Dos dois lados das cavalariças havia cocheiras usadas
para abrigar as carruagens. Maisie parecia não apreciar passeios a cavalo pelo
parque, portanto, devia manter em Londres animais usados apenas para puxar
suas carruagens. Certamente devia haver baias vazias nas cavalariças.
A casa que lorde Brambury deixara para a esposa, situada do lado da praça
voltado para o leste, tinha uma fachada imponente e um pórtico à frente da
porta principal.
No primeiro andar ficava o imenso salão de recepções, onde Maisie oferecia
suas festas. Os únicos outros cómodos deviam ser os aposentos ocupados por
ela, sobre os quais havia falado.
Conhecendo diversas casas, ele sabia que no segundo andar ficavam os inúmeros
outros quartos, todos amplos e de teto alto. Sua intuição lhe dizia que lady
Elton ocupava a suíte maior que dava para a praça.
Ainda não era meia-noite. Lorde Selwyn olhou ao redor, imaginando onde poderia
esconder-se. Num impulso, decidiu abrir uma das portas das cavalariças.
Empurrou-a e notou que estava só encostada. Como suspeitara, viu quatro baias
vazias. Ao lado da porta havia uma janela bem alta, através da qual ele poderia
ver o lado de fora, se permanecesse de pé. No parapeito dessa janela viu uma
escova de escovar o pêlo dos cavalos,
27
evidentemente ali esquecida. As manjedouras se achavam
vazias..
-Se ficasse ao lado da janela, poderia ver a casa de Maisie sem ser notado.
Então fechou a porta e foi para junto da janela.
Sua intenção não era espionar, e sim proteger a mulher que amava. Constataria
que nada acontecera, e mataria a caluniadora, para impedi-la de continuar com
suas difamações.
com a claridade das estrelas e da lua era possível ver as três janelas grandes
e altas do salão de recepção, no primeiro andar. As cortinas estavam corridas,
e não vinha luz alguma dali. À esquerda lorde Selwyn viu a janela que devia
ser do quarto de Maisie. Atrás das cortinas havia luz.
Durante alguns minutos lorde Selwyn permaneceu de pé, imóvel, observando
aquela parte do terreno. Seus olhos passaram pela cocheira lateral, mais
próxima da casa, com sua grande porta dupla ocupando quase toda a frente da
construção e cujo teto achatado quase se nivelava com a altura do primeiro
andar da mansão.
À medida que o tempo foi passando, lorde Selwyn começou a sentir frio, e suas
suspeitas de que nada iria acontecer tornaram-se mais fortes; aquilo era uma
brincadeira de mau gosto.
Talvez a carta anónima não tivesse sido enviada por uma mulher, e sim por um
dos sócios do White's Club, que queria divertir-se à sua custa. Mas esse tipo
de brincadeira não o divertia nem um pouco.
Entretanto, era possível que alguém se julgasse muito espirituoso e
considerasse esperteza valer-se desse género de gracejo.
Subitamente lorde Selwyn ouviu um barulho não muito alto. Reconheceu que eram
passos vindos da parte de trás das cavalariças. Mas a pessoa que se aproximava
não vinha do mesmo lado que ele viera; caminhava no sentido oposto, que conduzia
à Carlos Place.
O barulho dos passos ficaram bem nítidos, e logo um homem passou debaixo da
janela junto à qual lorde Selwyn se achava. À luz da lua, reconheceu o
cavalheiro imediatamente.
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Tratava-se de um dos sócios de seu clube e frequentava as mesmas festas que
ele. Sem dúvida aquele era D'Arcy Claverj ton, cujo nome não podia deixar de
constar nas listas de convidados de todas as anfitriãs mais importantes de
Londres, uma vez que ele sabia como se tornar agradável.
D'Arcy Claverton costumava ser recebido como convidado "especial" em toda
festa ou jantar em que o convidado de honra não pudesse, no último instante,
comparecer.
Era também um grande mulherengo, acostumado a passar o tempo de boudoir em
boudoir.
Como não passava de um pobretão, sabia como ninguém usar seus encantos para
viver confortavelmente e conseguir dinheiro até para esbanjar.
Apesar de conhecer D'Arcy Claverton há anos, lorde Selwyn lhe era indiferente;
não o detestava, nem tampouco gostava dele. Apenas o aceitava como um homem
que fazia parte do seu círculo social, embora reconhecesse que não passava
de um oportunista e um perdulário.
O bon vivant, no entanto, aceitava sua posição com tal humor que eram bem poucos
os que se preocupavam em fazerlhe críticas.
Assim que D'Arcy Claverton passou pela janela, lorde Selwyn respirou fundo.
O que aquele tipo estaria fazendo ali?
Quando o vira no White's Club pela última vez, ficara sabendo que D'Arcy estava
tendo um romance com uma das beldades mais aclamadas da época.
Essa mulher morava em Berkeley Square, e seu marido possuía uma fortuna
incalculável, porém achava a vida social aborrecida, preferindo passar a maior
parte do seu tempo caçando, praticando tiro ao alvo ou pescando nas temporadas
propícias para cada uma dessas atividades.
Naturalmente a esposa via-se livre para entreter-se em Londres.
Como Berkeley Square não ficava muito distante dali, lorde Selwyn disse a si
mesmo que D'Arcy Claverton devia estar vindo da casa da beldade em questão.
Uma fração de segundo depois, D'Arcy parou e olhou para
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a janela acima de sua cabeça. Receando até mesmo pensar no que aquele homem
pretendia, lorde Selwyn não conseguia sequer afastar os olhos do aventureiro,
que naquele instante se virou e se dirigiu à cocheira, situada vizinha a casa,
desaparecendo por uma porta lateral.
Um segundo depois ele reapareceu, carregando uma escada. Encostando-a na
parede da cocheira, subiu até o teto achatado e puxou a escada para cima. Em
seguida encostou-a na parede da casa, subiu por ela e, inclinando-se, bateu
de leve na janela.
Lorde Selwyn não podia acreditar no que estava vendo.
As cortinas então se afastaram um pouco, e Maisie - ela própria, não havia
engano - apareceu, abrindo a janela.
D'Arcy olhou para baixo e para os lados, como a ver se haveria alguém por ali.
Não vendo ninguém, passou ligeiro e desembaraçado para o peitoril da janela
e saltou para dentro de quarto.
Lorde Selwyn viu Maisie afastar-se e D'Arcy fechar a janela e as cortinas.
Tudo aconteceu tão depressa que ele teve a impressão de que tudo não passava
de uma ilusão. Ao mesmo tempo, tinha certeza de que a janela havia sido aberta;
além disso, lá estava a escada usada por D'Arcy para entrar no quarto de Maisie.
com o auxílio dessa mesma escada ele iria deixar o aposento que invadira daquela
forma desprezível.
Era verdade! A carta anónima não havia mentido.
com as têmporas latejando e uma raiva surda avolumandose dentro do seu peito,
lorde Selwyn teve que admitir que acabara descobrindo muito mais do que
desejava descobrir.
Parecia haver fogo circulando em suas veias. Sua vontade era subir por aquela
escada e ir dizer a Maisie exatamente o que pensava dela.
Cerrando os punhos, desejou esmurrar D'Arcy Claverton até deixá-lo
inconsciente.
Imediatamente reconheceu que a culpa havia sido toda sua. Fora mesmo um tolo
mostrando-se tão hesitante, quando poderia ter deixado Maisie louca por ele.
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Uma pergunta insinuou-se em sua mente: seria D'Arcy o primeiro amante de
Maisie?
Era bem mais provável que tivesse havido outros antes dele. Não permanecera
tanto tempo em Paris, e o que via ao volftar? Afinal, o comportamento de Maisie
não era
o de uma jovem ingénua.
Nesse caso, seria pura representação aquele seu olhar inocente? Seriam falsas
as confissões de que "só ele" lhe importava?
Era-lhe impossível acreditar. Porém, sua inteligência lhe asi segurava que,
com D'Arcy ou sem D'Arcy o que Maisie desejava mesmo era agarrar um marido.
E para marido não seria qualquer um que ela aceitaria. Só depois de muito tempo
lorde Selwyn decidiu sair de perto da janela da cavalariça e deixar aquele
lugar.
Enquanto caminhava para sua casa em Park Lane, ia pensando apenas que Maisie
devia estar nos braços de D'Arcy Claverton. Sem dúvida não precisaria de maior
especialista para aprender os segredos do amor.
No entanto, D'Arcy não servia para ser seu marido, por não ser suficientemente
importante.
A expressão que marcava o belo rosto jovem de lorde Selwyn fez o criado da
noite olhar para o amo com espanto. Era muito raro vê-lo de mau humor. Mas
quando isso acontecia, todos os serviçais estremeciam, ficavam abalados e só
voltavam ao normal quando a crise passasse.
Sem dizer uma palavra, ele entregou ao criado a cartola e a capa e dirigiu-se
para a biblioteca. Não tinha vontade de ir para cama. Precisava pensar no que
havia acontecido.
Aquela situação lhe era totalmente estranha. Jamais havia passado por tal
experiência antes. Mulher alguma na qual ele estivesse interessado jamais
havia preferido outro amante a ele.
É verdade que ela poderia tê-lo quando se casasse com ele, mas isso já era
outro assunto. Até o momento, sempre havia sido ele quem primeiro se
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cansava de um affaire de coeur, nunca a amante. O adeus fora, até então,
invariavelmente iniciativa sua.
com habilidade - e essa qualidade não lhe faltava -, ele conseguia fazer um
romance que agonizava chegar definitivamente ao fim.
Mas desta vez ele havia sido passado para trás. Tinha que admitir que fizera
papel de tolo; não importava que ninguém soubesse disso.
O que mais lhe doía em todo esse detestável incidente era ter-se enganado a
respeito de Maisie. Justamente ele, que se vangloriava de ter uma percepção
aguda a respeito do caráter das pessoas.
Bastava dizer que, ao contratar um empregado, dispensava referências.
- Sou capaz de ler no rosto de um homem como é seu caráter - costumava afirmar,
cheio de orgulho. - Minha percepção me faz sentir se tenho à minha frente um
homem bom ou mau.
- Está querendo afirmar que nunca se engana? - questionavam seus amigos.
- Não me lembro de me haver enganado - era a resposta de lorde Selwyn.
Ele se convencera de que podia julgar as mulheres da mesma forma. Muitas vezes
conseguira desviar-se de algumas "sereias" porque soube intuitivamente que
tais mulheres
eram más e imprevisíveis.
Todavia, Maisie fora capaz de enganá-lo. Maisie, a dos olhos azuis inocentes,
que lhe confessara nada conhecer sobre
o amor.
Sem conseguir permanecer sentado, lorde Selwyn pôs-se a andar pela biblioteca,
enraivecido consigo próprio.
"Por que eu não vi logo? Por que não desconfiei de nada?", perguntava-se. "Como
fui capaz de acreditar em suas palavras e não perceber que eram falsas?"
A dura revelação daquela noite parecia ter atingido sua própria personalidade.
Sentia-se como se fosse um estranho.
A situação era desconcertante, embaraçosa e humilhante.
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Não adiantava fingir que não havia sido odiosamentderrotado quando menos
esperava, E o pior: por DArcy Claverton, entre tantos outros homens.
Lorde Selwyn tinha mais orgulho de seu cérebro do que de seu físico, e
julgava-se superior à maioria dos homens com quem mantinha contato,
simplesmente porque sua inteligência era muito mais brilhante do que a deles.
E também tinha muito mais instrução.
Finalmente - e aí reconhecia que se comportara como um idiota -, havia
acreditado que as mulheres o admiravam por seu cérebro.
com amargura, admitiu que tentara cortejar Maisie e deixála impressionada com
seus talentos, e o resultado fora um fracasso.
Devia logo de início tê-la beijado e tê-la tornado sua amante, ao invés de
agir com tanta reserva, receando escandalizá-la e achando que devia propor-lhe
casamento sem ao menos havê-la tocado.
"Eu fui mesmo imbecil!"
Indo até a janela, afastou as cortinas. Lá fora, à luz da lua, o jardim estava
encantador, e havia ali uma atmosfera etérea e mística.
Veio-lhe à mente que, se ficasse admirando aquele mesmo jardim uma hora atrás,
iria comparar-lhe a beleza à de Maisie.
Imediatamente fechou as cortinas e afastou-se dali, sentindo que aquele
encanto só serviria para aumentar sua raiva e aquele sentimento detestável
de frustração.
"vou para a cama", decidiu.
Ao passar pela escrivaninha, viu a carta que seu secretário lhe pedira para
responder com urgência. Ele a deixara de lado, por estar na ocasião preocupado
apenas com a carta anónima.
Novamente a carta anónima! Infelizmente as informações que ela continha sobre
Maisie haviam provado ser verdadeiras, afinal.
Encolerizado, imaginou o que D'Arcy Claverton e Maisie estariam fazendo
naquele instante, e cerrou os punhos com
33
violência." Só então percebeu que havia amassado a carta que viera de Penang.
Passou-lhe pela cabeça que o sr. Stevens iria achar estranho se visse uma carta
tão importante toda amassada ou rasgada.
Ligeiro, colocou novamente a carta sobre a escrivaninha e alisou-a bem, para
desamassá-la um pouco. Nesse instante deu atenção à palavra "Penang".
Tratava-se de uma pequena ilha muito distante dali, de beleza natural incrível,
além de ser um importante posto comercial.
Pareceu-lhe que alguém lhe ditava tais informações sobre Penang. Viu-se então
pensando em viajar pelo Mediterrâneo, atravessar o canal de Suez,
recém-aberto, e entrar no Oceano Índico.
Apanhando a carta, leu-a novamente e perguntou-se: por que não fazer realmente
a viagem até Penang?
Se ficasse em Londres, teria que explicar a Maisie o motivo de não querer mais
vê-la. E havia a "amiga" desconhecida, que mandara a carta anónima.
Fosse quem fosse essa "amiga", ela estava sabendo o que se passava. Mas quantas
outras pessoas não saberiam do papel de tolo que ele vinha fazendo?
Subitamente deu-se conta de que, sendo tão conhecido, por certo seu
relacionamento com Maisie vinha sendo objeto de muitos comentários.
Uma ideia o horrorizou: talvez até houvesse apostas entre os sócios do White's
Club para ver se Maisie conseguiria agarrálo ou não.
Se, àquela altura, desistisse de cortejar Maisie, seus amigos e conhecidos
iriam facilmente adivinhar o que acontecera. D'Arcy Claverton seria o primeiro
a saber por que seu rival "mudara de rumo".
Um homem como D'Arcy sem dúvida faria comentários. E por acaso existiria um
mexerico que não fosse bem-vindo nos clubes de St. James's Street?
Diante de tais possibilidades, lorde Selwyn estremeceu. Seria horrível
perceber, ao entrar em um salão, que falavam dele.
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à conversa seria interrompida subitamente assim que lhe noHpssem a presença,
e inúmeros olhares se fixariam nele. Por certo detestaria ver o riso
dissimulado nos lábios dos Munigos ou o brilho malicioso de seus olhos,
revelando-lhe que Bfeles "já sabiam de tudo".
O clima seria de escárnio e especulação. As mulheres, por sua vez, buscariam
avidamente retalhos de informações para Rirem juntando às que já haviam
conseguido.
Não. Não suportaria tal situação.
E por que teria que passar por isso?
Via a saída bem à sua frente. Ignorar essa oportunidade se ria falta de bom
senso.
Acabava de herdar uma fortuna e uma fazenda bem distante dali. Teria que tirar
partido disso. O fato provocaria comentários
e inveja.
Até podia ouvir os amigos dizendo: "Dinheiro sempre chama dinheiro"! "Ah, tinha
que ser o Selwyn! Ele é mesmo um camarada de sorte!"
"com certeza Selwyn não vai querer morar em Penang!" "Nunca se sabe! É bem
possível que ele ache o lugar confor tável como um ninho e queira viver ali
com suas avezinhas apaixonadas!"
Podia também ouvir até os risos dos cavalheiros, sua vozes animadas, as frases
com duplos sentidos e, por vezes, com toquês de despeito.
"Serei mesmo um imbecil se não aproveitar esta dádiva dos deuses!", disse a
si mesmo.
Depois de deixar a carta dos advogados sobre a escrivaninha, subiu a escada
sem pressa e foi para seus aposentos, encontrando o criado de quarto à sua
espera.
Higgins estava sempre alegre e bem-disposto, mesmo que o amo chegasse bem
tarde. Lorde Selwyn suspeitava que o criado, para poder estar sempre com o
mesmo humor,
dormia enquanto ele não chegasse, e combinara com os criados da noite que o
acordassem assim que vissem o amo se aproximar.
35
Enquanto Higgins o ajudava a despir-se, lorde Selwyn manteve-se calado. Só
quando já estava pronto para dormir, ordenou fleumaticamente:
- Comece a arrumar nossa bagagem logo pela manhã, Higgins. Partiremos amanhã
mesmo, ou depois de amanhã o mais tardar. Iremos para Penang, uma ilha na zona
equatorial.
Higgins permaneceu um segundo em silêncio, para então perguntar, no mesmo tom
indiferente do amo:
- Formal ou informal, milorde?
- Será melhor estar preparado para tudo.
- Muito bem, milorde.
Higgins caminhou para a porta. Mesmo sem lhe ver o rosto, lorde Selwyn teve
certeza de que ele sorria, uma vez que amava, acima de tudo, um imprevisto.
O criado de quarto costumava dizer que o sabor da vida estava em fugir da
monotonia. Ambos haviam acabado de voltar de Paris, e já se achavam de partida
novamente.
AQ mesmo tempo, lorde Selwyn pensou encolerizado que "partir" daquela forma
repentina representava uma afronta.
Tal pensamento, porém, fê-lo rir.
"Sempre soube que seria um erro casar-me tão cedo!", disse a si mesmo, em tom
desafiador.
Por um momento sentiu certo consolo agridoce. Por causa de Maisie passava,
a partir de então, a detestar as mulheres.
Elas - todas elas - eram, como a carta anónima alertara, traiçoeiras!
Na manhã seguinte todos os que conheciam bem lorde Selwyn teriam notado seu
retraimento, a expressão sombria e o ar de ceticismo, que o faziam parecer
mais velho do que era.
Assim que esteve com o secretário, comunicou-lhe a decisão de partir para
Penang o mais breve possível.
com satisfação, foi informado de que um vapor O partiria do porto de Tilbury
à meia-noite. Certamente faria uma viagem confortável num dos melhores e
maiores navios
que faziam a rota do Oriente.
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O sr. Stevens apressou-se em tomar as providências necessárias para o patrão
ter a melhor acomodação possível. EnquanH to isso, lorde Selwyn cuidou de
responder à pilha de correspondência que se acumulara sobre sua escrivaninha.
Deliberadamente evitou ter contato com seus amigos mais
íntimos. Não queria que nenhum deles comunicasse a Maisie
para onde ele havia partido. A única pessoa que fez questão de visitar foi
a tia, irmã de
sua mãe, que morava tranquilamente numa pequena casa na
elegante zona residencial de Belgravia. A tia, já viúva, ficou encantada ao
saber que lorde Durham
lhe havia deixado toda sua fortuna e uma fazenda em Penang.
- Edward sempre foi um homem ativo e inteligente - disse a tia. - Ele nunca
se casou. Sabíamos de seu sucesso em Hong Kong quando nos escrevia por ocasião
do Natal.
- Só recebiam notícias dele uma vez por ano?
- Acredito que Edward tinha predileção por sua mãe, caro sobrinho, e por isso
o tornou seu herdeiro.
- Naturalmente estou muito agradecido. Por essa razão creio que é meu dever
ir pessoalmente ver a propriedade, conforme os advogados me pediram que
fizesse.
- É claro que tem que fazer isso! Gostaria muito de ser mais jovem, para poder
acompanhá-lo.
- Não me ausentarei por muito tempo, e quando voltar virei visitá-la, para
contar-lhe tudo o que aconteceu.
- Suponho que você já saiba que Edward tinha um bom gosto a toda prova. Imagino
que durante todos esses anos seu tio-avô tenha colecionado valiosas peças de
jade e porcelanas chinesas que por certo darão ainda mais requinte a Wyn Hall.
Lorde Selwyn riu.
- Só espero ter espaço suficiente para tais preciosidades. Ainda outro dia
estive pensando que são tantos os tesouros de nossa família, que, se nossa
coleção continuar aumentando, me verei forçado a ampliar Wyn Hall!
A tia exclamou:
- Tenha cuidado para não destruir a perfeição arquitetônica
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de Wyul Além disso, o que é mais importante do que tesouros é ter filhos para
herdá-los, caro rapaz!
Lorde Selwyn franziu as sobrancelhas, porém a tia não lhe notou a expressão,
que se tornara, de repente, carregada.
- Você não ignora que toda família espera ansiosa o nascimento de um herdeiro.
Sua mãe sempre lamentou ter tido apenas um filho.
Lorde Selwyn levantou-se.
- Bem, tenho que ir, pois devo seguir para Tilbury dentro de poucas horas.
Fiz questão de vir vê-la antes de embarcar, titia, porque achei que você seria
a única pessoa interessada em saber o que meu tio-avô Edward me deixou.
- Traga-me um souvenir de Penang - pediu-lhe a tia. Cuide-se bem, querido.
Acredito que, apesar de todos os esforços da Marinha britânica, ainda haja
piratas nessa parte do mundo. Também costumam falar de assassinatos, o que
não deixa de ser inquietante.
- Ora, titia, está tentando me amedrontar! Mas prometo tomar cuidado, e não
me esquecerei de trazer-lhe o algo muito bonito de Penang.
Depois de dar um beijo de despedida na tia, ele regressou a Park Lane, sentindo
que podia partir para o desconhecido sem maiores preocupações.
Não ignorava que, apesar de a tia ser irmã de sua mãe, era muito ligada à família
de seu pai, e, portanto, iria informar aos parentes paternos para onde ele
havia ido.
Ocorreu-lhe que seria de bom tom, já que, como chefe da família, havia herdado
ainda mais dinheiro, enviar presentes para os tios e tias, tanto maternos
quando paternos. Ao chegar em casa diria ao sr. Stevens para enviar a cada
um desses parentes flores ou uma caixa de champanhe.
Assim que entrou em casa, Barker, o mordomo anunciou:
- Uma lady deseja vê-lo, milorde.
Lorde Selwyn ficou tenso.
- Uma lady? - repetiu.
- Lady Brambury, milorde. Chegou cerca de meia hoH atrás e preferiu esperar
até que Sua Senhoria regressasse.
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Lorde Selwyn respirou fundo. Ocorreu-lhe por uma fração de segundo que seria
melhor pedir a Barker que informasse a Maisie que ele só devia estar de volta
bem ao
final da tarde.
Imediatamente decidiu que jamais cometeria o ato covarde de fugir de quem quer
que fosse, muito menos de Maisie.
- Lady Brambury encontra-se na sala de estar, milorde.
O mordomo caminhou à frente do amo, e este o seguiu, visto não ter outra
alternativa. Aberta a porta, ele entrou na sala de estar.
Maisie achava-se de pé junto à janela, admirando o jardim ensolarado.
Evidentemente estava linda. Todavia, ao admitir quanto aquelas roupas e
acessórios a tornavam adorável, jovem e inocente, lorde Selwyn comprimiu os
lábios.
Ao vê-lo aproximar-se, os olhos azuis de Maisie se encheram de luz. Ela
permaneceu parada, recebendo o sol no rosto.
- Que bom que está de volta!
Sua voz chegou aos ouvidos de lorde Selwyn como se fosse o arrulhar de uma
pomba.
- Sim, acabo de chegar, mas receio ter que sair novamente dentro de poucos
minutos.
Maisie respirou fundo.
- Pretende viajar novamente?
A nota aborrecida em sua voz soou bem autêntica.
- Exatamente. Parto para Penang esta noite. Meu tio-avô faleceu e deixou-me
como herança uma casa e uma plantação. Como vê, preciso ir inspecionar minhas
novas propriedades.
Maisie fitou-o de um modo tão peculiarmente cândido que, se ele não soubesse
a verdade, interpretaria como genuína consternação.
- Oh... então eu não o verei!
Ela desviou o olhar, como se tomada de súbita timidez. Depois de um instante
de silêncio ela perguntou:
- Durante quanto tempo ficará ausente?
- Não tenho ideia. Talvez um mês ou mais.
- Sentirei muita saudade!
Ela ergueu a cabeça e voltou a fitá-lo, permitindo a lorde
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Selwyn vislumbrar o brilho de lágrimas furtivas em seus grandes olhos azuis.
- Não tenho dúvidas de que haverá muitas pessoas encantadas em ter sua companhia
durante minha ausência! - observou ele, sem conseguir evitar uma nota de
sarcasmo e desdém
na voz.
- Não será o mesmo... sem você! - respondeu Maisie, parecendo realmente
desconsolada.
Subitamente lorde Selwyn teve o pressentimento de que ela iria sugerir que
poderia acompanhá-lo. Portanto, se ele quisesse evitar mostrar-se indelicado,
teria que agir com rapidez.
Antes de mais nada ele atravessou a sala e foi puxar o cordão da sineta. Só
então, a certa distância de Maisie, sugeriu-lhe:
- Você deve desejar-me boa sorte e, claro, que retorne são e salvo.
Nem bem terminara de falar, a porta abriu-se.
- Traga-nos uma garrafa de champanhe, Barker ordenou.
- Está bem, milorde.
A porta se fechou. Maisie continuava junto à janela. Vagarosamente, lorde
Selwyn caminhou para perto dela, parando a uma certa distância.
- Suponho que ainda não tenha ouvido falar sobre Penang
- disse ele em tom bem casual, de simples conversa. - Imagino que seja uma
ilha muito bonita. Naturalmente, sempre terei a oportunidade de ir a Calcutá.
Lorde Mayo, o atual vice-rei, é um grande amigo meu.
A porta abriu-se e Barker, que, sempre previdente, mantinha uma garrafa de
champanhe à mão caso lhe fosse solicitada, entrou com o vinho dentro de um
balde de gelo, sobre uma bandeja.
O mordomo serviu duas taças, oferecendo a primeira a Maisie, que a aceitou,
sorridente. Ao pegar a sua, lorde Selwyn ergueu-a, fazendo um brinde:
- Bebamos em primeiro lugar a você a à sua felicidade! com dificuldade, Maisie
conseguiu dizer:
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- À sua viagem! E que possa... regressar em breve!
O modo como ela olhou para lorde Selwyn revelou-lhe exatamente o que quisera
dizer. Então ele teve um impulso momentâneo de contar-lhe o que sabia sobre
ela - ou pelo menos parte do que havia descoberto.
Talvez pudesse até contar-lhe que na noite anterior tivera vontade de visitá-la
e havia caminhado até Grosvenor Square., sPorém, dado o adiantado da hora,
decidira voltar para casa. Havia tomado o caminho das cavalariças, e ao ver
algo estranho acontecendo, chegara a supor que um ladrão tentava
enítrar por uma das janelas.
No mesmo instante repeliu a ideia. Não se rebaixaria! Seria humilhante revelar
que já sabia da ligação de Maisie e D'Arcy Claverton. Então agradeceu em voz
alta:
- Obrigado! Tenho certeza de que um brinde me trará sorte. Estarei seguro
durante essa viagem longa e cansativa.
Olhando para o relógio, depôs a taça.
- Sei que me perdoará - desculpou-se ele. - Naturalmente vai compreender que
tenho mil providências a tomar antes
de partir, e o tempo é curto demais.
- Sim, é claro. Por favor, tenha muito cuidado... Sabe que faz muita falta
aqui... na Inglaterra.
Enquanto falava, Maisie estendeu a mão para lorde Selwyn, que pareceu não ter
percebido o gesto. Ele dirigiu-se para a porta, seguido pela visitante.
Ambos atravessaram juntos o hall, onde se encontravam o mordomo e dois criados.
Ao tomar a mão de Maisie para despedir-se, lorde Selwyn notou pelo aperto dado
que ela expressava o que seus lábios gostariam de dizer e não podiam.
Os ternos olhos azuis também o fitavam, cheios de insinuações, porém ele
desviou o olhar para a carruagem parada à frente da casa.
Mal viu a carruagem se afastar, foi depressa para a biblioteca, e assim que
se encontrou a sós, deu-se conta de que já não sentia raiva alguma.
A fúria que abrigara em seu interior, fazendo-o sentir-se como
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se estivesse em ebulição por ter sido enganado, havia desaparecido.
Sentia agora um alívio por saber que escapara das garras de uma das mais
talentosas atrizes que já conhecera. Sua representação fora realmente
perfeita.
Não fosse a carta anónima, ele jamais suspeitaria que a linda e doce lady
Brambury não era a pessoa que aparentava ser.
"Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade!", disse ele em voz
alta, e seu riso ecoou pela biblioteca vazia.
Para lorde Selwyn, aquele riso soou quase natural.
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CAPÍTULO III
Anina deixou o jardim e entrou na casa carregando nos braços um grande buque
de orquídeas, que cresciam em profusão por toda parte.
Quando chegara à Malásia, mal pudera acreditar que pudesse haver tantas
daquelas flores adoráveis, fossem elas silvestres ou cultivadas.
- As orquídeas são tão lindas, mamãe - dissera ela -, que chego a imaginar
que os anjos do céu as invejam!
A mãe achara graça. Ela também se sentia feliz e entusiasmada com a casa que
o marido havia construído para eles. Ficava localizada num local privilegiado,
na costa, a cerca de quatro milhas de Cingapura.
Seus vizinhos, todos malaios, moravam em casas parecidas com árvores, e seus
filhos passavam o dia brincando na praia de areia dourada. As crianças adoravam
molhar-se nas ondas suaves que vinham beijar a praia.
Até o falecimento da sra. Ranson, Anina vivera extremamente feliz. Depois,
durante um longo período, doía-lhe ir ao jardim porque se lembrava vivamente
do amor que a mãe sentia por aquele lugar.
Fora a mãe quem lhe ensinara a conhecer e a amar a flora e a fauna daquele
país.
- Imagine só, querida - dissera à filha a sra. Ranson certa vez -, existem
aqui cento e cinquenta espécies distintas de palmeiras!
- Não posso acreditar! - exclamara Anina. Interessada, havia começado a contar,
a partir de então, as
palmeiras ao redor do jardim, e concluíra que a mãe tinha razão.
Só naquela pequena área havia em grande quantidade coqueiros, arequeiras,
palmeiras-lacas e a Arengapinnata ou gomuti, cuja seiva doce era usada na
fabricação de vinho e de açúcar mascavado.
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Mas Aniha preferia admirar as orquídeas. Amava ver as borboletas adejando sobre
as flores e sentia-se como se tivesse voltado à infância, quando acreditava
que as
borboletas eram fadas.
Esses graciosos insetos, nas cores rosa, laranja, amarelo, rubro-escarlate
ou turquesa, pareciam quase parte das flores. A presença de ambas no jardim
era para Anina
uma certeza de estar vivendo num paraíso terrestre.
Após a morte da mãe, seu pai, o capitão Guy Ranson, contratou uma senhora já
idosa e amável para tomar conta da filha.
Essa senhora, que morava em Cingapura com a filha casada, numa casa muito
pequena, se encantara ao mudar-se para a casa do capitão, linda, grande, com
cómodos amplos
e confortáveis e seu telhado em estilo chinês, revestido de cerâmica verde.
Em cada um desses cómodos havia uma quantidade impressionante de tesouros.
O capitão Ranson era homem de extremo bom gosto.
Era porém sua filha quem mais admirava as belíssimas peças de jade, quartzo
rosa e cristal que o capitão trazia ao voltar de suas viagens. As primeiras
peças foram dadas como presente à esposa, e depois de sua morte ele passara
a presentear Anina.
O capitão Ranson estivera durante muito tempo na Marinha Real, depois se
transferira para a Companhia das índias Orientais, onde ocupara o posto de
comandante de diversos navios cargueiros.
Na região de Cingapura o comércio era intenso logo que o capitão assumira seu
posto. Porém, ultimamente, Anina passara a notar que o pai ficava em casa mais
tempo do que no passado.
Suas voltas para o lar eram sempre imprevisíveis. A filha nunca sabia quando
devia esperar o pai. Subitamente ouvia sua voz chamando-a, e ela corria de
onde estivesse, do jardim ou do primeiro andar, para ir recebê-lo.
- Está em casa! Que bom vê-lo de volta, papai! - ia dizendo
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com excitação. - Que maravilha! Imaginei que não voltaria a vê-lo senão dentro
de duas semanas!
- Senti saudade, minha bonequinha! - costumava ser a resposta do pai. - O que
andou fazendo?
Achando desinteressante falar sobre sua vida pacata, a filha preferia pedir
ao pai que contasse o que se passara durante os dias de viagem. Ela notava,
no entanto, que o capitão não gostava de falar sobre si mesmo, e costumava
argumentar:
- Viajo a trabalho, e durante todo o tempo me concentro só no serviço. Agora
que estou em casa, quero ouvir o que minha bonequinha tem a me dizer.
Como as novidades naquela casa tranquila e cercada de palmeiras eram bem
poucas, Anina lia diversas passagens interessantes para agradar ao pai.
O capitão Ranson mandava vir frequentemente livros novos de Cingapura, e
insistira com a bibliotecária que mandasse para Anina todo livro interessante
que recebesse.
Sabendo que o pai tinha muito pouco tempo para dedicar-se à leitura, a filha
tinha prazer em resumir os livros que lia,
dando vida às tramas e descrevendo cenas
como se as palavras fossem tintas que retratassem o que ela ia dizendo.
Quando o assunto escolhido era controverso, pai e filha travavam verdadeiro
duelo verbal, na tentativa de defender out atacar o ponto de vista do autor.
Nos últimos dois ou três meses, Anina se dedicara exclusivamente à leitura
de livros de história ou sobre política. Como o capitão tinha vasto
conhecimento sobre
os dois assuntos, principalmente sobre o Oriente, era uma satisfação para ambos
conversarem sobre a índia, Birmânia e, naturalmente, sobre a China.
A China era, em particular, um país misterioso, mas o capitão e a filha tinham
contato com muito chineses, pois Cingapura estava cheia deles.
Para Anina as cerimónias e costumes chineses eram, além de curiosos,
divertidos. com o pai ela havia aprendido muito sobre os chineses, sobre suas
crenças e seus deuses, o culto aos
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antepassados e sua capacidade de "ver o mundo além de seu aspecto exterior".
Para ilustrar o que havia contado à filha, o capitão lhe prometera trazer ao
voltar da próxima viagem duas pinturas muito antigas e valiosas.
Quando as pinturas chegaram, foram colocadas na parede da sala de estar. Anina
gostava de sentar-se diante dos lindos quadros e tentar captar o que o artista
quisera transmitir ao pintar cada um deles.
Ela conseguia perceber o sentido espiritual daquelas pinturas. As nuvens
admiravelmente desenhadas sobre as flores e regatos significavam "o teto da
vida cotidiana", portanto, o mundo pequeno do seu dia-a-dia.
Os altos picos acima das nuvens, tão nítidos contra o céu, tinham um sentido
bem diferente, e Anina não tinha certeza da interpretação que fizera.
"Talvez um dia eu capte seu sentido verdadeiro", pensara ela com certa
melancolia, ansiando por ter o pai ao seu lado para ajudá-la.
Quanto às primorosas peças de jade, a mãe as deixara na sala de estar, em
prateleiras especiais para elas. Anina as conservara no mesmo lugar, e não
permitia que os criados malaios sequer tocassem nelas para tirar-lhes o pó.
Depois da morte da mãe, havia acrescentado muitas outras peças valiosas à
coleção. Ela gostava de tocar qualquer um dos enfeites verdes como o mar,
lembrando-se de que o jade tinha a propriedade de expulsar da mente todos os
maus pensamentos.
"Como poderei ter maus pensamentos neste lugar tão lindo?", perguntava a si
mesma.
Ao mesmo tempo, para não haver dúvidas, passava a mão com cuidado nos objetos
de jade, recordando que os chineses também acreditavam que esse mineral tivesse
uma força criativa.
"Será que existe essa força em mim?", costumava questionar-se.
Para Anina, seu pai possuía essa força. Achava que ela o envolvia
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como uma aura. Não lhe passara despercebido que as pessoas com quem o capitão
mantinha contato tinham dele a mesma impressão que a filha.
- Todas as pessoas que trabalham com o senhor em seus navios, papai, devem
amá-lo muito - dissera ela ao capitão, certa vez.
- Por que diz isso?
- Porque não se trata apenas do que o senhor faz ou do que diz; é que, sendo
tão bondoso, papai, seus subordinados recebem do senhor algo que eles podem
sentir, e que parece um raio de sol.
O capitão Ranson achara graça.
- Obrigado, minha querida. Mas às vezes, quando fico zangado, certamente fico
mais propenso a emitir lampejos como os de relâmpagos, que deixam todos
amedrontados.
Anina dera risada e se jogara nos braços do pai.
- Ninguém pode ter medo do senhor, papai! Amo-o muito!
- Também a amo, minha bonequinha, e é por você que trabalho tão arduamente.
Também quero que tenha toda a segurança.
A filha olhou surpresa para o pai.
- Estou muito segura aqui, em companhia de Chang. Ele cuida bem de mim e de
toda a família dele.
Todos os empregados malaios moravam em cabanas de bambu, beirando o mar, e
trabalhavam ou no interior da casa ou no jardim. com todos eles Anina não se
sentia sozinha ou negligenciada.
Os malaios eram muito serviçais e ativos. Até a criança menor, apenas com três
anos, se sentava na grama e cuidava de arrancar as ervas daninhas.
Naquele instante Anina acabara de passar perto dos jardineiros carregando o
enorme buque de orquídeas, e entrando na casa, foi colocá-las nos vasos altos,
de cristal, que a mãe havia comprado em Cingapura.
Já imaginava como as flores iriam dar colorido e alegria à
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sala de estar. Subitamente parou, achando que ouvira o pai chamando-a.
No mesmo instante disse a si mesma que se enganara. O capitão havia ficado
em casa durante uma semana, e partira há apenas quatro dias. Mas não se havia
enganado. Aquela era realmente a voz do pai.
- Anina! Anina!
- Papai! - exclamou ela, atónita.
Deixou as orquídeas sobre a mesa mais próxima e correu para a frente da casa.
Realmente, ali estava o capitão, à porta da frente, parado, parecendo ainda
mais forte e belo.
Fazia calor, e ele havia tirado o paletó. Ao entrar no hall, atirou o boné
sobre uma cadeira e abriu os braços.
- Papai! Está de volta! Nem acredito que esteja em casa novamente! - exclamou
Anina assim que pôde falar.
- Voltei, minha filha - disse ele com uma nota estranha na voz. - Tenho uma
coisa muito importante para lhe dizer. Onde está a sra. Boyton?
- Ela não se encontra em casa, papai.
- Por que não?
- No dia seguinte ao de sua partida um mensageiro vindo de Cingapura procurou-a
para comunicar-lhe que a filha dela ia ter o bebé mais cedo do que esperava.
- Então você ficou sozinha!
- Aqui em casa sinto-me perfeitamente segura, papai! respondeu ela depressa,
sabendo que o capitão fazia questão de que a filha tivesse uma acompanhante.
- Chang passou a dormir aqui enquanto o senhor estava fora. E naturalmente,
durante o dia sua esposa e seus filhos ficam aqui.
Apesar dos seus argumentos, ela achou que o pai iria apresentar alguma objecão,
porém ele disse:
- Bem, isto torna as coisas mais fáceis.
Anina não escondeu a surpresa, mas o capitão mudou de assunto.
- Desde o meio-dia de ontem não comi coisa alguma. Peça a Chang que me prepare
uma refeição ligeira.
- Sim, claro, papai. Mas por que precisou passar fome?
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O capitão não deu qualquer resposta. Sabendoquedevia obedecer ao pai, ela
correu para a cozinha, onde encontrou Chang lavando a louça do breakfast.
- Seu patrão está em casa, Chang, e está faminto. Por favor, sirva-o
imediatamente.
- Patrão voltar? - perguntou Chang com sua voz alegre e cadenciada. - Isso
bom! Levar comida deplessa-deplessa!
- É o que ele quer - disse Anina com um sorriso, e voltou em seguida para junto
do pai.
O capitão Ranson achava-se de pé na sala de estar, olhando para o jardim.
Aproximando-se dele, Anina segurou-lhe a mão.
- O que há de errado, papai? Sei que está preocupado.
- Muito preocupado, minha adorada. Logo que Chang me servir lhe contarei o
que se passa.
- Ele ficou preparando um dos seus pratos prediletos. O senhor não gostaria
de beber alguma coisa?
- Sim, claro! - respondeu ele, como se estivesse com o pensamento longe dali.
A filha foi apanhar a chave do armário de laca que servia de bar e que costumava
ficar trancado quando o capitão viajava. A sra. Ranson jamais tomava bebidas
alcoólicas, e Anina julgava-se ainda muito jovem para isso, apesar de ter
completado dezoito anos aquele ano e ter tido licença do pai para experimentar
algum tipo de bebida.
Havia abundância de frutas silvestres ao redor da casa, com as quais Chang
preparava sucos deliciosos. Estes sim, eram muito apreciados por Anina.
Assim que a filha abriu o armário, o capitão foi escolher ele próprio o que
preferia beber. Para surpresa de Anina, ele serviu-se de uma dose exagerada
de brandy, o que a fez ter certeza de que o pai estava muito preocupado e
aborrecido com alguma coisa.
E não era só a bebida; a expressão dele era bastante reveladora. Além disso
ela conseguia, com sua sensibilidade, notar no pai uma intranquilidade que
beirava a angústia. Em vão
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tentaVa adivinhar o que ele teria para lhe dizer, e esperava que não se tratasse
de dinheiro.
Houve um tempo, quando a casa estava sendo construída, em que o dinheiro havia
sido um grande problema. Nessa época a sra. Ranson não se cansava de repetir,
desalentada:
- Precisamos economizar.
Felizmente a crise, se é que chegara a haver crise, logo terminara. A partir
daí o dinheiro passou a existir com abundância.
Na verdade, o pai se mostrava tão próspero que passara a dar presentes e mais
presentes para a esposa e depois para a filha. Anina ficava atónita ao ver
como o dinheiro era gasto sem parcimônia.
O conforto e luxo que havia na casa eram demonstração disso. Receosa, Anina
viu-se fazendo uma oração mental:
"Oh, por favor, Senhor, não permita que haja nada sério com papai"!
Sendo muito discreta, não quis aborrecer o pai com perguntas, porém dada vez
que olhava para ele ficava mais curiosa.
Não tardou muito, Chang apareceu e anunciou:
- Comida plonta. Chang espela amo gostar.
- Tenho certeza de que está ótima! - afirmou o capitão, erguendo-se.
Ele caminhou para a sala de almoço, toda em estilo inglês,- tendo ao centro
a mesa envernizada e as cadeiras ao seu redor; junto a uma das paredes ficava
o aparador.
Tudo ali lembrava o ambiente de uma sala da Inglaterra ou de qualquer uma das
colónias britânicas.
O grande e lindíssimo lustre de cristal que pendia do teto e que a sra. Ranson
tanto apreciava era, sem exagero, tão fino quanto os existentes no palácio
do governador de Cingapura.
O capitão sentou-se à mesa e comeu apressadamente, parecendo nem apreciar o
sabor das delícias preparadas por Chang.
O peixe servido havia sido pescado aquela manhã, e era acompanhado de um molho
agridoce muito apreciado pelos chineses. Chang também servira uma salada, e
mais tarde trouxe um pudim de frutas coberto com coco ralado e um tudo-
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-nada de noz-moscada.
Chang era, inegavelmente, um cozinheiro talentoso. O capitão manteve-se calado
enquanto comia, e Anina, que o observava, notou que, ao terminar a pequena
refeição,
o pai demonstrava menos preocupação.
Ele olhou para o carrilhão a um canto da sala, que havia trazido da Inglaterra,
e em seguida levantou-se.
- Vamos para a sala de estar, querida - disse à filha. Vamos conversar, e não
devemos ser perturbados!
A filha olhou para ele sem esconder a surpresa.
- Só Chang está dentro de casa, e não creio que tenhamos visitantes.
Ocorreu-lhe que os vizinhos mais próximos moravam a certa distância, e àquela
hora da manhã estariam cuidando dos mangues ou das plantações. Só à noite
haveria possibilidade de aparecer uma visita, desde que o capitão Ranson
estivesse em casa.
Desde a vinda da sra. Boyton para aquela casa algumas mulheres vinham vê-las,
porém mesmo essas visitas eram escassas.
Anina seguiu o pai até a sala de estar, e ele próprio se encarregou de fechar
a porta, o que, sem dúvida, era estranho. Para manter a casa bem fresca, as
portas e janelas costumavam ficar sempre abertas. Dessa forma, mesmo nas épocas
mais quentes do ano, sempre havia uma aragem soprando no interior da
residência.
O capitão sentou-se no sofá, e a filha sentou-se ao seu lado.
- O que o preocupa, papai?
com se procurasse as palavras certas, o capitão ficou um instante em silêncio,
evitando encarar Anina.
- Algo desastroso aconteceu - começou ele. - E como isso lhe diz respeito,
devo contar-lhe a verdade, minha querida.
- A verdade, papai? Sobre o quê?
Novamente o pai mostrou-se hesitante. Mas prosseguiu:
- Nestes últimos três anos você e sua mãe acreditavam que eu comerciava com
meu próprio navio.
- Sim, claro, papai. O senhor mesmo nos contou que conseguira
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um navio e que estava tendo muita sorte, viajando com cargas que lhe rendiam
muito.
O som que o capitão emitiu foi mais parecido com um gemido. Mas ele usou de
franqueza:
- De fato, eu mentia para vocês. Anina fitou o pai, perplexa.
- Era... mentira?!
- Era verdade que eu tinha meu próprio navio. Tratava-se de uma embarcação
veloz e atualizada, com os melhores equipamentos possíveis, mas era pequena,
e eu não
transportava carga nenhuma.
- Então... o que fazia, papai? - Anina encarou-o, cada vez mais atónita.
- Sei que vai ficar escandalizada. Eu era um pirata. Por um momento a filha
duvidou do seu sentido da audição,
e repetiu, estupefata:
- Um... um pirata? O que quer dizer exatamente?
- Você ouviu bem, minha filha. Eu era um pirata. Atacava outros navios para
roubá-los!
Anina emudeceu. Veio-lhe à mente o que já ouvira dizer sobre os piratas daquela
parte do mundo. Então deu um grito de horror.
- O senhor não é... um prahu, é? - perguntou ela, incrédula.
Os prahus eram os piratas mais terríveis e cruéis que navegavam pelos mares
ao redor da Malásia. Eram conhecidos por seu aspecto feroz. Esses piratas
usavam os cabelos bem longos, e durante os combates faziam questão de
soltá-los, para, com a cabeleira desgrenhada, infundirem ainda mais terror
a suas presas.
Os prahus costumavam aproximar-se de um barco tão silenciosamente que ninguém
os ouvia; assim, subiam a bordo furtivamente e apanhavam os tripulantes e
passageiros deprevenidos, massacrando-os brutalmente.
Depois do assalto, partiam tão silenciosamente como haviam
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chegado, valendo-se de seus barcos especialmente projetados.
Seria possível que seu próprio pai fosse um desses homens terríveis? Anina
não podia acreditar nisso.
- É claro que não sou um prahul - protestou o capitão com veemência.
Foi tão grande o alívio da filha que ela sentiu as pernas fraquejarem.
- Acredito que posso ser comparado mais a um assaltante de estrada do que a
um prahu - apressou-se ele a dizer, para evitar que a filha fizesse dele uma
imagem ainda mais terrível.
- A diferença era que eu atuava no mar, e não montava um cavalo, mas utilizava
meu navio.
Torcendo levemente os lábios, o capitão acrescentou:
- Nunca maltratei minhas vítimas; apenas lhes ordenava que se mantivessem
quietos e me entregassem o que eu queria.
Numa voz débil que nem parecia a sua, Anina pediu:
- Explique isso melhor, papai.
Amedrontada, ela segurou a mão dele. O pai apertou-a tanto que quase a machucou.
- Juro, querida, que jamais matei uma pessoa sequer. O capitão notou que a
filha continuava a fitá-lo com o rosto transtornado. - O que eu fazia era
abordar um navio carregado que se encontrasse ancorado numa baía isolada ou
ancorado mais distante da costa apenas para passar a noite. Então exigíamos
um resgate.
- Não compreendo, papai.
- Eu agia com mais dois amigos, ambos tão pobres quanto eu. Afinal, a Companhia
das índias Orientais nos pagava um salário muito baixo. Nem mesmo a nós,
oficiais, a companhia pagava decentemente. Foi então que planejamos tudo e
começamos a operar.
- Oh, papai, é tão difícil compreender! - argumentou Anina.
O pai notou que o horror havia deixado os olhos da filha.
- Posso imaginar, minha querida. Só agradeço aos céus
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por não ter sido preciso confessar à sua mãe o que eu fazia. Sei que ela ficaria
profundamente chocada.
- Eu também estou chocada, papai!
Foi tão espontânea sua reação que, ao notar a angústia no rosto do pai, Anina
arrependeu-se de ter sido tão impetuosa.
Como se quisesse confortá-lo, aproximou-se dele um pouco mais e apoiou a cabeça
em seu ombro.
O capitão abraçou a filha.
- O que aconteceu foi que nós havíamos comprado um navio muito veloz, e, claro,
tivemos que pagá-lo com o que conseguíamos com nossos assaltos.
Ele fez uma pausa. SeU olhar distante indicava que fazia uma reconstituição
mental daqueles tempos.
- O que apuramos em dois ou três assaltos bastou para pagarmos o navio. A partir
daí achamos que aquilo era um bom negócio!
- Conte-me exatamente como eram esses assaltos.
- Escolhíamos comumente um navio cargueiro holandês. Achávamos a tripulação
mais pacata, por isso não atiravam em nós de imediato e tínhamos tempo de
explicar o que queríamos.
- Eles... poderiam matá-lo, papai!
- Sempre havia risco. Mas tínhamos o cuidado de subir a bordo quando estavam
todos relaxados ou meio embriagados.
- O capitão esboçou um sorriso. - Quando ficavam sabendo quem éramos e o que
desejávamos, ficavam estupefatos.
- Vocês exigiam... dinheiro?
- Exigíamos dinheiro, e se não o obtivéssemos, ameaçávamos danificar o navio
ou roubar a carga.
- Como vocês tinham coragem de fazer uma coisa dessas?
- Não queríamos saber de violências, mas a ameaça sempre adiantava. Eles não
queriam perder a carga, o que significava perder tempo também, pois teriam
que voltar ao porto de partida.
- Estou entendendo, papai.
- Era tudo muito simples. Eles nos pagavam, e saíamos
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sem disparar um tiro e sem machucar ninguém, o que era o mais importante.
- Felizmente. Dou graças a Deus - murmurou Anina. - Eu também - concordou o
pai. - Justamente por tudo torrer com essa facilidade, achei que minha vida
de salteador
continuaria indefinidamente.
- Agora entendo como o Senhor pôde comprar tantos tesouros e dar a mamãe e
a mim tantos... presentes.
- Você acha que eu levava esse tipo de vida só pensando em mim? - O capitão
mostrou-se zangado. - Absolutamente! Eu pensava em sua mãe e em você! Por
amá-las., demais e querer que tivessem sempre o melhor, resolvi me arriscar.
Anina acariciou o rosto do pai.
- Da mesma forma nós o amávamos, papai. Sabe muito bem que mamãe viveu sempre
muito feliz ao seu lado.
O pai inclinou a cabeça antes de prosseguir.
- Pois bem, anteontem abordamos um navio cargueiro que ia para Cingapura.
O pai fez uma súbita pausa, e a filha não conteve a curiosidade.
- O que aconteceu, papai?
- Havia um inglês a bordo.
- Um inglês?
- Sim. Ele esteve na Marinha, e servimos no mesmo navio, embora por pouco tempo.
Tenho certeza de que ele me reconheceu.
- Oh, não!
- Naturalmente, sempre que abordamos um navio usamos disfarces. Costumamos
escurecer a pele do rosto e usar máscaras negras.
- Máscaras?!
- Eu particularmente não gostava de máscaras, por achar que deixavam as vítimas
mais assustadas. Meus amigos usavam máscaras quando abordamos esse navio, como
eu
lhe contava. Eu apenas havia escurecido o rosto, e tenho quase certeza de que
Harrison - é esse o nome do inglês - me reconheceu.
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- Será que ele o reconheceu mesmo, papai?
- Só espero que pelo menos ele tenha alguma dúvida. Falei de um modo
completamente diverso do habitual, e ignorei esse ex-colega.
- Mesmo assim, vocês exigiram pagamento para poupar o navio?
- Pegamos o dinheiro e saímos. Mas você pode imaginar o que deve ter acontecido
depois de nossa partida.
- Acha que o inglês vai denunciá-lo?
- Receio que sim, o que significa que terei de ficar escondido.
- Oh, papai! Se o apanharem, o que acontecerá?
- Sabe a resposta - respondeu ele, comprimindo os lábios.
Anina deu um pequeno grito. Como poderia ignorar qual era a sentença para
piratas? Eles eram enforcados, e não havia como suspender tal sentença.
Anina passou os braços ao redor do pescoço do pai e ficou agarrada a ele.
- Oh, não! Isto não pode acontecer! Não é possível! - Escondeu o rosto no ombro
do pai, para ele não ver suas lágrimas.
- Concordo com você - observou o pai calmamente. Isso não pode acontecer, minha
bonequinha, não tanto por mim, mas principalmente por você.
- Por mim? O que tenho a ver com tudo isto? - Anina ergueu a cabeça para fitar
o pai, surpresa.
- Tem tudo a ver! - Ele abraçou a filha com tal força que ela mal conseguia
respirar. - Então você acha que eu iria permitir que minha única filha tivesse
que suportar ver seu pai submetido a interrogatórios? Acha que eu iria permitir
que a chamassem de filha de um pirata?
Anina permaneceu em silêncio, e o capitão estreitou-a ainda mais nos braços,
para depois dizer com veemência:
- Amo você, minha adorada filhinha. Amo-a demais, e se eu tiver que morrer,
morrerei como um cavalheiro, e não nas mãos de um carrasco!
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- Oh, por favor, papai... Não morra... Não me deixe!
A voz de Anina saiu entrecortada pelos soluços, e as lágrimas agora inundavam
seu rosto. Novamente ela escondeu o rosto no ombro do capitão.
Ao fazer isso, percebeu que ele lutava consigo mesmo para manter o controle.
- Agora ouça, minha pequena - disse o pai após um instante. - Há muito o que
fazer, e não me resta muito tempo.
com esforço sobre-humano, Anina conteve as lágrimas.
- O que quer que eu faça, papai?
Ele ergueu o rosto da filha, fazendo-a fitá-lo, e com o lenço enxugou-lhe
gentilmente as lágrimas.
- Pensei num plano que, suponho, irá nos salvar - passou a explicar.
- Acha que poderá salvar-se mesmo, papai?
- Sim. Seja lá como for, ninguém nos encontrará até que tudo esteja serenado.
Embora percebesse que o pai falava com otimismo deliberado e até excessivo,
Anina não o interrompeu. - A primeira coisa que faremos será partir
imediatamente.
Direi a Chang que a levarei para a casa de uns amigos, onde você irá passar
alguns dias. Se vierem fazer perguntas sobre mim, ele nada poderá dizer a não
ser isso.
- Mas para onde vamos, papai? - vou levá-la para Penang.
- Penang?
Veio-lhe à lembrança que Penang era uma pequena ilha afastada da costa noroeste
da Malásia. Já ouvira o pai dizer que se tratava de um posto comercial. Nada
mais sabia sobre a ilha.
- Conheço uma pessoa em Penang, e sei que ele cuidará de você. Todavia, deve
compreender que esse homem não poderá saber sua verdadeira identidade.
- Quer dizer que terei de fingir ser outra pessoa?
- Não é isso. Não precisará fingir ser outra pessoa. Subitamente ele se afastou
da filha, ergueu-se e começou a
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andar de um lado para outro da sala, tentando pensar claramente. Enquanto isso,
ela o seguia com o olhar.
- Durante todo o trajeto de volta para casa, estive pensando num plano - disse
ele afinal. - Você terá que ser bastante corajosa, minha filha, e ao mesmo
tempo fazer exatamente o que eu lhe ordenar.
Para não deixar o pai angustiado, Anina tratou de responder depressa:
- Naturalmente, papai. Farei tudo o que quiser que eu faça.
- Muito bem. Agora ouça.
A filha ficou bem ereta na beirada do sofá e juntou as mãos sobre o colo.
Ocorreu-lhe então, subitamente, que estava para ser expulsa do paraíso no qual
imaginava estar vivendo.
Aquele céu cheio de felicidade que era sua casa, de repente, se transformara
num pesadelo.
- vou levá-la imediatamente para meu navio, e chegaremos logo a Penang. - O
capitão olhava amorosamente para a filha enquanto ia explicando seu plano.
- Ao amanhecer o dia, amanhã, eu a colocarei num barco e o deixarei no mar,
porém terei certeza de que esse barco irá chegar à praia da propriedade de
um chinês de nome Lin Kuan Teng.
Anina levou a mão à boca para sufocar uma exclamação de horror ao ouvir o que
o pai dizia.
- Lin é um homem muito rico, e cuidará de você, especialmente quando compreender
que você perdeu a memória.
- Eu... perdi a memória? - sussurrou Anina, tão baixo que o pai mal pôde ouvir.
- Não se lembrará de nada! - disse o capitão com firmeza. - Bem mais tarde,
você dirá que os piratas atacaram o navio no qual viajava, mas não lembrará
para onde estava indo. Também dirá que alguém a colocou num barco, salvando-a
assim dos piratas.
O capitão finalmente parou de andar de um lado para outro e fitou a filha.
Ela era a pessoa mais adorável que poderia existir.
Seus cabelos, como os dele, eram loiros, porém Anina tinha
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o nariz aristocrático da mãe e olhos de um azul bem escuro, não da cor do céu,
mas de um mar turbulento. A filha era dotada de uma beleza espiritual totalmente
incomum, que nada tinha a ver com a beleza clássica da mulher inglesa, de pele
clara e rosada.
Talvez por ter vivido tanto tempo no Oriente, Anina possuía a graça das mulheres
malaias e a inteligência dos chineses. Certamente homem algum olharia para
ela sem
suster a respiração. Sem dúvida sua filha era um tesouro tão perfeito que nem
parecia humana.
- Como acaba de ouvir, este é meu plano - concluiu ele num tom de voz duro,
receando que a filha tivesse uma reação inesperada.
Porém Anina permaneceu silente.
- Você não apenas estará em segurança, minha bonequinha, mas estará me
ajudando. Terei que me esconder, e isso não seria possível se eu tivesse que
levá-la comigo. - Ele deu uma breve risada desprovida de humor. - Pode imaginar
o que todos diriam ao me ver acompanhado de uma linda jovem? Sabe quais seriam
os comentários? E os cães me descobririam bem mais facilmente.
- Compreendo, papai. Farei o que me pede... mas terei muito medo!
- Imagino como será difícil. Mas asseguro-lhe que meu amigo chinês é um homem
bondoso, e sua família, adorável. Lian Kuan Teng é pessoa importante em Penang,
e não posso pensar em ninguém melhor que ele para cuidar de você.
- Eu... eu não me lembro de nada... - murmurou Anina, como se estivesse
ensaiando.
- Você pode dizer que acha que bateram em sua cabeça com alguma coisa, porém
não tem certeza de nada. Também poderá, com o tempo, dizer que seu nome é Anina.
Mas lembre-se de ir dando informações aos poucos. - O tom do capitão tornou-se
mais alegre. - Graças às minhas atividades, apesar de você as desaprovar, algum
dia, se precisar, poderá ter em mãos muito dinheiro.
- Como isso será possível?
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- Depositei num banco de Cingapura uma grande quantia em dinheiro numa conta
no nome de solteira de sua mãe. Também encontrará outra conta em Jacarta, e
mais uma em Bangkok. Naturalmente não poderá retirar esse dinheiro
imediatamente, porém, quando for possível fazê-lo, terá com que viver
confortavelmente pelo resto da vida.
- Não estou interessada em dinheiro, papai... Só quero têlo ao meu lado, e
com vida.
- É o que.mais desejo também, mas tudo depende de Harrison ter ou não me
denunciado às autoridades. Se ele o fez, a Marinha inglesa estará atrás de
mim, e revistará todo navio cargueiro que estiver navegando. Dando um pequeno
grito, Anina levantou-se e correu para junto do pai, abraçando-o.
- vou ficar rezando o tempo todo... Pedirei a Deus que o mantenha em segurança!
Tenho certeza de que mamãe também estará tentando salvá-lo.
- Quero acreditar nisso. - E agora, minha querida, temos que ir o mais
rapidamente possível.
Anina fez um gesto de desalento com as mãos.
- O que devo levar comigo?
- A roupa do corpo. Mas deve usar seu vestido mais lindo e mais caro, ou melhor,
querida, use um dos vestidos de sua mãe! Aquele que ela usou para ir ao baile
em Cingapura estará perfeito! Sem dúvida ela era a mulher mais linda do salão.
- vou usar esse vestido num barco?
- Sim. Também vai usar as jóias de sua mãe. A filha olhou espantada para ele.
- Deixe-me explicar-lhe: em primeiro lugar, estando com lindas e valiosas
jóias, você será tratada com respeito, e não como uma pária. Em segundo lugar,
sua história será muito mais interessante. Imagine só quando estiverem falando
sobre a "linda jovem que foi levada até a praia"! Você será tratada como se
fosse uma princesa.
- Nesse caso, quando eu conseguir me lembrar de quem sou, as pessoas ficarão
desapontadas!
O capitão riu. Em seguida, mostrou-se sério.
- Não vai lembrar-se de nada até eu lhe dar permissão para
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isso. Voltarei para junto de você ou mandarei dizer que estou bem e que os
"malditos cães" não estão nos meus calcanhares.
- Oh, papai, tenha cuidado! Cuide-se muito bem, pois não posso perdê-lo!
- Prometo-lhe fazer todo o possível para permanecer vivo. Mas cada minuto que
ficamos aqui significa perigo.
- vou aprontar-me - disse ela com suavidade. - Fale com Chang enquanto vou
pegar o vestido de mamãe e suas jóias.
- Cuido das jóias. Arrume uma pequena bagagem com coisas de que irá precisar
até chegarmos a Penang.
O capitão Ranson deixou a sala e dirigiu-se para a cozinha. A filha seguiu-o
com o olhar, porém logo se lembrou do que ele acabara de dizer sobre correr
perigo.
Como isso podia ser possível?
Olhando pela janela, viu o mar, sereno e dourado sob a luz do sol. Chegavam
até ela as vozes e o riso das crianças que brincavam na praia. Pássaros cantavam
nas árvores e as borboletas adejavam sobre as orquídeas.
Como podia ser verdade que coisas tão terríveis haviam acontecido com seu pai
e que talvez o perdesse, assim como perderia tudo o que lhe era familiar?
No mesmo instante disse a si mesma que estava sendo egoísta. A única coisa
realmente importante era seu pai estar em segurança. Ele não poderia ser
apanhado.
Subiu a escada correndo.
Ao entrar no quarto da mãe, abriu a porta do guarda-roupa e viu-se fazendo
uma oração desesperada.
"Ajude-me, mamãe! Ajude-me a salvar papai. Estou amedrontada... terrivelmente
amedrontada!
Ao tirar do guarda-roupa o lindo vestido da mãe, Anina tinha o rosto molhado
de lágrimas. Ouvindo os passos do pai, limpou depressa o rosto.
Tinha que ser corajosa. Tinha que ajudar o pai.
Todavia, em bem pouco tempo se veria sozinha e não teria sequer um nome.
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CAPÍTULO IV
Como já havia imaginado, lorde Selwyn fez com grande prazer a viagem pelo mar
Mediterrâneo e a travessia do canal de Suez, aberto no mês anterior.
Ele havia esperado com o maior interesse ver os resultados notáveis do espírito
empreendedor e administrativo e da engenharia de um génio como Lesseps.
Graças à abertura do canal de Suez, a viagem para a índia podia ser feita entre
dezessete e vinte dias.
Lorde Selwyn pegara na sua biblioteca diversos livros para ler durante a
viagem. Infelizmente, não encontrara livro algum sobre Penang. Só quando
chegasse à ilha poderia saber exatamente qual o seu aspecto.
Durante todo o tempo ele tentou não pensar em Maisie. Todavia, à noite, quando
ia para o convés para olhar as estrelas, via-se pensando que o amor que buscava
talvez jamais fosse encontrado.
Seriam todas as mulheres falsas como Maisie? Seriam mentirosas?
Era bem possível que ele tivesse sido infeliz com as mulheres que conhecera
até então, especialmente com Maisie. Por ter acreditado em sua pureza e
juventude, sentira despertar dentro de si o espírito cavalheiresco que havia
conhecido quando rapazinho.
Ressentia-se de ter feito de Maisie Brambury um conceito tão elevado, do qual
só lhe restara a desilusão.
"Eu estava exigindo demais", disse ele a si próprio com severidade.
Ao mesmo tempo, gostaria de saber se todos os homens seriam uns desiludidos
como ele. Ocorreu-lhe que pintores como Botticelli, por exemplo, deviam fazer
uma ideia sublime do amor para poder pintá-lo com tanta força, tanta beleza
e tanto brilho.
Da mesma forma os compositores, entre eles Chopin, sabiam
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com sua música infundir no coração das pessoas o- grandioso sentimento do amor.
Os poetas não podiam ser esquecidos. Quantos não haviam escrito poemas capazes
de fazer quem os lesse ver o amor como algo iminentemente desejável...
Poderia ser tudo isso ilusão?
Seria um sonho do qual ao despertar um homem se visse num deserto para onde
fora atraído por uma miragem?
A chegada a Calcutá deixou lorde Selwyn muito feliz; agora teria como escapar
de seus pensamentos e de suas emoções. Ele havia enviado um cabograma para
o vice-rei, que havia tomado posse do cargo naquele ano.
A indicação do sexto conde de May o, um nobre relativamente desconhecido na
Inglaterra, para o cargo de vice-rei havia deixado lorde Selwyn muito
satisfeito. Considerava sábia a escolha feita pelo sr. Disraeli, o
primeiro-ministro inglês.
Lorde Selwyn conhecera o conde há alguns anos, quando fora à Irlanda comprar
cavalos de raça ptra o haras do pai. Na ocasião lorde Selwyn era apenas Paul
Wyn.
O conde de Mayo era um grande desportista e um bemsucedido organizador de
caçadas no condado de Kildare.
Simpatizando com Paul Wyn, o conde o convidara para passar uns dias com ele,
no outono, e participar de várias caçadas.
Esse foi o começo do que veio a tornar-se uma grande amizade.
Lorde Selwyn acabara de deixar o navio e dirigia-se para o Palácio do Governo
numa carruagem do vice-rei, escoltado pela cavalaria.
Durante o trajeto, sentia-se muito entusiasmado por estar prestes a rever o
amigo em seu novo posto e novo ambiente.
Não duvidava de que o conde de Mayo desempenharia com brilhantismo as funções
de vice-rei, um dos cargos mais importantes do mundo.
O vice-rei já se achava à espera do amigo, e estendeu-lhe a mão, cheio de
contentamento, quando lorde Selwyn surgiu à sua frente.
Este teve plena consciência de que o conde não mudara desde
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que o conhecera. Continuava o mesmo belo cavalheiro alto, de constituição
robusta e ombros largos, de personalidade marcante e grande magnetismo
pessoal. Trazia
no rosto o bom humor, a alegria e a determinação que o caracterizavam.
- Que surpresa agradável, Paul! - exclamou ele. - Não tinha ideia de que você
estava viajando para a índia.
- Nem eu mesmo pensava em voltar para cá tão depressa., Mas os advogados de
meu falecido tio-avô me comunicaram que eu havia herdado uma casa e uma
plantação em
Penang.
- Penang! Nada sei sobre o lugar, mas é uma grande alegria tê-lo aqui no Oriente.
Os amigos sentaram-se, e a conversa versou sobre a Irlanda e cavalos.
Foi só bem mais tarde, naquela noite, que Penang se tornou o objeto da
conversação. Um dos conselheiros do vice-rei, FitzJames Stephen, disse:
- Penang é um lugar adorável, milorde. Gostaria muito de poder acompanhá-lo
até essa ilha.
- Já esteve em Penang? - perguntou lorde Selwyn. - Nesse caso, fale-me da ilha,
sobre a qual sei muito pouco. Confesso que encontrei em minha biblioteca bem
poucas referências ao lugar onde fica minha plantação.
O sr. FitzJames Stephen sorriu.
- Imagino que sim. No entanto, a primeira povoação foi fundada pelos ingleses
em 1786.
Lorde Selwyn arqueou as sobrancelhas, demonstrando surpresa. Era de estranhar
que Penang não tivesse maior destaque nos livros de história.
- Encontrará em Penang um governo britânico em miniatura - continuava o sr.
Fitz James Stephen. - Verá o Forte Cornwallis, que tem esse nome em homenagem
ao nosso famoso general. Sem dúvida Vossa Senhoria constatará que Georgetown
reúne em perfeita harmonia ingleses, malaios e chineses.
Lorde Selwyn mostrava-se cada vez mais interessado.
- Não se preocupe, pois irá encontrar em Penang, naturalmente, um clube de
críquete, um hipódromo e uma igreja majestosa.
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Como vê, lá há tudo o que um inglês necessita quando se encontra no exterior.
Os cavalheiros riram.
- Como Vossa Senhoria não conhece o lugar, vou enviar um cabograma a um chinês
meu amigo, na verdade o chinês mais influente da ilha - prontificou-se,
FitzJames. - Ele irá recebê-lo.
- Um chinês?! - repetiu lorde Selwyn. Imaginava que seu primeiro contato devia
ser com um inglês.
Como se lhe adivinhasse o pensamento. FitzJames explicou:
- Meu amigo é Lin Kuan Teng. Tenho certeza absoluta de que ele tomará as
providências necessárias para Vossa Senhoria ser muito bem recebido a ter o
maior conforto. Para esse tipo de coisa ele supera qualquer inglês. Na verdade,
Lin Kuan Teng é um dos homens mais interessantes que já encontrei. Além disso,
possui a casa mais requintada de Georgetown. Referemse a essa casa como uma
miniatura do Palácio de Buckingham, e asseguro-lhe que ela tem quase o mesmo
tamanho.
Lorde Selwyn riu.
- Bem, aceito sua sugestão com prazer!
- Lin Kuan Teng cuidará muito bem de Vossa Senhoria. Qualquer coisa que desejar,
basta dizer-lhe e a terá ao estalar dos seus dedos de unhas longas!
Nos dias seguintes lorde Selwyn fez ainda muitas perguntas ao sr. FitzJames
Stephen. Ficou sabendo que havia sido o capitão Francis Light o primeiro inglês
a ver
o enorme potencial de Penang.
Na verdade o capitão era considerado o fundador de Georgetown. Quando ele
chegou à ilha havia ali apenas oitenta pessoas, entre homens, mulheres e
crianças.
Francis Light logo observou que o porto natural e a posição geográfica da ilha
poderiam ser de tremenda importância para o Império Britânico.
- O capitão Francis Light é uín dos grandes heróis do nosso império - observou
FitzJames Stephen. - Porém, como costuma acontecer, seu valor só foi
reconhecido depois de ele estar morto.
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-Têm-razão - concordou lorde Selwyn. Quando ficou a sós com o vice-rei, este
quis saber da vida do amigo.
- O que tem feito, Paul? Você deve reconhecer que é muito mais inteligente
do que a maioria dos homens de sua idade, e por essa razão não deve desperdiçar
seu tempo com mulheres cuja faculdade mental vai pouco além da de um passarinho.
- O que está querendo insinuar?
- Chegam aos meus ouvidos, ocasionalmente, notícias sobre você.
Invariavelmente seu nome é associado ao de mulheres que não têm outro atrativo
que não seja um palminho de rosto bonito.
Lorde Selwyn permaneceu calado. Apenas fitou o conde, mostrando-se surpreso.
- Também tenho estado a par das missões diplomáticas que você tem desempenhado
com brilhantismo. Devo insistir, meu caro rapaz, no fato de que você é capaz
de realizar grandes feitos!
Sem se conter, lorde Selwyn ergueu as mãos em protesto.
- Há sempre alguém tentando me modificar! Minha família deseja me ver casado.
E agora vem você querendo que eu trabalhe ainda mais!
- Só quero que você aproveite seus talentos ao máximo e não os desperdice como
vem fazendo! - argumentou o vicerei com seriedade. Em seguida esboçou um dos
seus irresistíveis sorrisos. - Quando o conheci, Paul, notei que era não apenas
o jovem de inteligência mais brilhante que eu já tivera ocasião de encontrar,
como também que possuía uma notável personalidade. Tais qualidades são raras
hoje em dia.
- Ora, está sugerindo que eu siga suas pegadas e me torne um vice-rei?
Lorde Selwyn falava com ironia, porém o vice-rei respondeu muito seriamente:
- Não deixa de ser uma possibilidade, e de antemão já posso afirmar que você
seria extremamente bem-sucedido nesse cargo.
- Falando dessa maneira, você me assusta! - exclamou lorde Selwyn. - Ao mesmo
tempo, considero muito mais atraente
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sua sugestão do que a de me casar com alguma mulher da qual me cansaria duas
semanas depois das bodas, tornando-me ainda mais desiludido com o casamento!
com sua aguda percepção, o vice-rei notou a nota amarga na voz de Paul, e
comentou, solidário:
- Imagino que você tenha sido magoado. Mas isso acontece a todos nós, mais
cedo ou mais tarde.
- Eu não diria que me magoaram propriamente. Mas é sempre uma grande frustração
ver-se fazendo papel de tolo, ainda que para si próprio.
O conde de May o sorriu.
- Isto é outra coisa que nos acontece a todos, queiramos ou não. Mas acredite
em mim, Paul, quando lhe asseguro que você é capaz de grandes realizações.
Só é preciso
considerar essa sua capacidade como a coisa mais importante de sua vida.
- Suas palavras me lisonjeiam. Todavia, nem tenho ideia do que poderia fazer
para ser merecedor de toda essa confiança que você deposita em mim.
O vice-rei fez um expressivo gesto com as mãos.
- A resposta-está dentro de si mesmo, tenho certeza disso. cê não ignora, Paul,
que minha percepção é aguda, e que
jamais me enganei ao confiar nela. Suponho que
seja meu sangue irlandês que me torne possível conhecer o caráter das pessoas
logo ao primeiro contato. - Ele sorriu. - Esse dom tem ine ajudado muito.
- Graças a essa percepção, você imaginava que um dia seria escolhido para ocupar
este cargo em particular? -
perguntou Paul, movido pela curiosidade.
- Este posto exatamente, não. No entanto, eu tinha certeza de que o destino
me reservava algo muito mais importante
do que organizar caçadas em Kildare! - Sua voz transformou, tornando-se
profunda. - Foram aqueles anos terríveis de
fome na Irlanda que me prepararam para o espectro
da fome queencontro aqui na índia. Foram os anos que passei exercendo o cargo
de secretário de Estado que me ensinaram a governar.
- De uma coisa eu tenho certeza absoluta, e não preciso me
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valer de percepção alguma para afirmar que você será um vice-
rei notável e muito bem-sucedido.
- Obrigado. É o que espero ser, mas no momento, Paul, estou pensando em você,
não em mim!
Tendo as palavras do vice-rei ainda a ecoar em seus ouvidos, lorde Selwyn deixou
Calcutá na semana seguinte, com destino a Penang.
O sr. FitzJames providenciara as despedidas do amigo do vicerei, que se
revestiram de toda a pompa e brilho. Da mesma forma, havia cuidado para que
o nobre inglês fosse recebido em Penang com toda a solenidade.
Portanto, foi sem surpresa que lorde Selwyn viu, ao chegar a Georgetown, um
grande comité de recepção a esperá-lo no porto.
Entre aquelas pessoas havia ingleses cheios de respeito porque iam receber
um cavalheiro enviado pelo vice-rei da índia.
Foi, no entanto, Lin Kuan Teng quem saudou o recémchegado, curvando-se inúmeras
vezes, respeitosamente, e dirigindo-se a ele em sua linguagem inevitavelmente
floreada.
Assim que viu o chinês, lorde Selwyn percebeu que se achava diante de um homem
de personalidade marcante, como bem dissera Fitz James Stephen.
Lin Kuan Teng informou a lorde Selwyn que sua casa ficava não muito distante
da parte principal de Georgetown, e foi em sua carruagem que ambos deixaram
o cais.
Ao ver a belíssima construção, muito grande, de pedras brancas, tendo um amplo
pórtico à entrada e colunas gregas sustentando um balcão, lorde Selwyn disse
a si mesmo, com um sorriso, que aquela casa era ainda mais admirável do que
o Palácio de Buckingham.
No interior da residência de Lin Kuan Teng, as valiosas peças de jade e quartzo
rosa, as porcelanas e as pinturas chinesas causavam assombro.
Ao ver uma coleção de cavalos da dinastia Tang, lorde Selwyn ficou fascinado,
e pensou que daria sua fortuna para ter aqueles tesouros.
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Os tapetes que cobriam o assoalho eram tão valiosos que ficavam melhor expostos
nas paredes, para serem admirados, em vez de serem pisados. A esposa de Lin
Kuan Teng era uma chinesa encantadora, e ele tinha três lindas filhas e um
filho, que se encontrava nas docas inspecionando a frota do pai.
O navio em que lorde Selwyn viajara havia chegado a Georgetown pela manhã,
porém, quando ele chegou à casa de Lin Kuan Teng, já era hora do almoço.
Ao experimentar um pouco de cada um dos deliciosos pratos servidos, verdadeiras
maravilhas da cozinha chinesa, ele teve certeza de que FitzJames não havia
exagerado ao afirmar que, como hóspede do importante chinês, iria ter todo
o conforto.
- Eu tinha grande respeito e admiração pelo honorável lorde Durham, seu
tio-avô, milorde - dizia o anfitrião naquele momento. - Era uma grande
satisfação ter um
cavalheiro tão distinto em nossa ilha; costumávamos consultá-lo sobre assuntos
legais.
- Fiquei muito surpreso ao saber que havia herdado sua casa e a fazenda.
- A fazenda de lorde Durham é uma das melhores de Penang. Seu tio-avô cultivava
especiarias, e suas colheitas lhe rendiam considerável soma anualmente. Creio
que, como seu herdeiro, irá apreciar muito a casa que ele lhe deixou e tudo
o que há dentro dela.
- Se pelo menos uma pequena parte dos objetos que herdei se compararem aos
tesouros que você tem aqui, por certo me considerarei muito, muito feliz!
Lin Kuan Teng curvou-se em agradecimento pelo elogio antes de dizer:
- Seu honorável tio-avô trouxe consigo muitas preciosidades de sua casa de
Hong Kong. Ele também era um ardoroso frequentador dos bazares de Georgetown,
onde os chineses expõem seus artigos.
- Confesso que estou ansioso para conhecer esses bazares.
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- Nesse caso, cuidarei de não deixar que o tapeiem ou roubem - prometeu o
anfitrião a lorde Selwyn.
Terminado o almoço, lorde Selwyn manifestou o desejo de ir conhecer sua nova
propriedade.
- Imaginei mesmo que você desejasse vê-la assim que fosse possível - observou
Lin Kuan Teng. - Porém, permita-me sugerir humildemente que visite sua
plantação em outra hora do dia. Está ficando cada vez mais quente, e não é
aconselhável fazer tantos excessos logo nos primeiros momentos de sua chegada.
- O chinês deu um sorriso. - Aceite o conselho deste homem mais velho e descanse
esta tarde. Amanhã logo cedo, uma de minhas carruagens o levará até sua casa
e a fazenda. Verá como a essa hora os arredores estarão com seu mais lindo
aspecto.
Lorde Selwyn reconheceu que o anfitrião falava com sabedoria. De fato, mesmo
dentro de casa ele sentia bastante calor, embora os panças se movessem
lentamente para a frente e para trás sobre a cabeça dele.
Todas as portas e janelas estavam bem abertas, porém não soprava a mais leve
brisa.
Sem ter o que fazer, lorde Selwyn preferiu ser conduzido ao quarto que ocuparia
enquanto estivesse naquela casa. Em poucos minutos já se achou acomodado num
grande e luxuoso aposento cujas janelas estavam voltadas para o mar.
O grande jardim que ocupava toda aquela parte lateral do terreno tinha um lindo
gramado, muito verde, certamente por ser regado com grande frequência.
Os arbustos mostravam-se carregados de flores. O gramado se prolongava em
declive até as areias douradas da baía circundada de árvores. Estas também
cercavam toda a casa, de modo que ela não podia ser vista da rodovia.
Sem dúvida seu anfitrião escolhera o mais belo lugar que se podia imaginar
para construir aquela casa majestosa.
Ocorreu-lhe que era realmente uma pena seu tio-avô ter construído a fazenda
no interior e não à beira do mar. Contudo, não tinha o direito de fazer críticas.
Além disso, nem vira ainda a propriedade.
70
Higgins o ajudou a despir-se, e quase imediatamente após terse deitado, ele
adormeceu.
Ao acordar, lorde Selwyn constatou que, apesar de ainda estar bem quente, o
sol havia perdido muito de sua força. Os panças ao alto continuavam se
movimentando, produzindo um barulho característico.
Preferindo não chamar criado algum, ele se vestiu sozinho. Usando calças e
camisa brancas, decidiu ir para o jardim. Ali encantou-se com o fantástico
colorido das flores e das borboletas, que nunca vira em tão grande número.
O canto melodioso dos pássaros enchia o ar. Havia nas árvores muitos
passarinhos desconhecidos, cujos nomes ele fazia questão de aprender. Também
devia haver diversos outros animais próprios da região que lhe interessavam.
Isso sem contar os próprios habitantes da ilha.
"Um país novo, novos amigos e talvez uma vida nova!", murmurou Paul enquanto
caminhava.
Durante algum tempo ele brincou com a ideia de ficar morando em Penang e
esquecer-se da Inglaterra. Subitamente lembrou-se do que o vice-rei lhe
dissera.
Tal lembrança o aborreceu. Não deixava de ser desagradável ver alguém tentando
forçá-lo a ser mais importante do que ele já era.
"Por que eu deveria arranjar problemas? Por que deveria me preocupar com outra
coisa que não seja gozar a vida?"
Durante algum tempo, continuou imerso em seus pensamentos.
"Gostaria que as pessoas me deixassem em paz. Quero viver minha própria vida
e não ser manipulado por quem quer que seja, por melhores que sejam as intenções
das pessoas."
Paul decidiu voltar para o interior da casa. Não vendo sequer sinal de Lin
Kuan Teng, achou melhor passar o tempo
admirando os fabulosos tesouros que o chinês colecionava.
Apesar de se considerar um entendedor de pinturas e mobiliário, tanto da
Inglaterra como de outros países da Europa, constatou que tinha muito a
aprender sobre a
arte chinesa.
71
Por exemplo, o que ele estava vendo naquela casa eram objetos raros,
primorosos, de muito valor e antiquíssimos. Para apreciá-los com o devido
conhecimento, certamente levaria uma vida.
Afinal o anfitrião reapareceu, trazendo no rosto o ar tranquilo de quem
repousara convenientemente. Lorde Selwyn expressou sua opinião sobre o que
havia visto até o momento.
- Os chineses dão grande valor às antiguidades, porque louvam seus antepassados
- explicou Lin Kuan Teng.
- Creio que você tem razão. No entanto, é extraordinário que um país considerado
pelo mundo moderno como atrasado possa ter produzido obras de arte tão
maravilhosas!
- Certamente as pessoas consideram as obras de arte chinesas tão fantásticas
porque todas elas foram pintadas, desenhadas ou esculpidas com o propósito
de transmitir uma mensagem espiritual. Para nós, chineses, elas não são apenas
belas, mas têm um ensinamento que enriquece nosso espírito, ao mesmo tempo
que nos alegram os olhos.
Lorde Selwyn reconheceu que isso era verdade.
Enquanto acompanhava o dono daqueles tesouros, que lhe ia mostrando satisfeito
esculturas intrincadas, cheias de detalhes, Paul custava a crer que o que via
fora executado por um simples mortal.
Em cada pintura ele sabia existir um significado oculto que lhe estimulava
a mente. Sendo ocidental, era-lhe difícil compreender a mensagem espiritual
das obras de arte, como Lin Kuan Teng havia dito, porém era grande sua vontade
de saber, de conhecer mais sobre o assunto.
Ele e o anfitrião conversaram durante longo tempo. Continuaram conversando
à noite, depois de a esposa de Lin Kuan Teng e seus filhos terem se recolhido.
Quando se viu sozinho em seu quarto, já deitado, lorde Selwyn ficou algum tempo
meditando na conversa que mantivera com o dono da casa, que lhe abrira novos
horizontes.
Finalmente fechou os olhos, e dormiu sonhando com o fascínio de Penang.
72
Era ainda muito cedo, o sol nem havia nascido quando lorde Selwyn acordou.
No céu, as primeiras luzes do crepúsculo matinal começavam a afastar a
escuridão e a fazer desaparecer o brilho das estrelas.
Pela janela entrava uma brisa fresca.
Enquanto se vestia, Paul pensava, cheio de entusiasmo, no que iria ver aquela
manhã.
Lin Kuan Teng havia providenciado mais uma carruagem, para levar também à
fazenda os advogados de lorde Durham.
- Você viajará comigo - dissera o anfitrião, - Muita conversa perturba a mente,
e você perderá a nova paisagem, a nova beleza. Precisa olhar em silêncio. Será
muito melhor.
Acabando de se vestir, Paul olhava pela janela. Lá fora, viu Lin Kuan Teng
caminhando pelo gramado, em direção ao mar.
Querendo perguntar-lhe várias coisas, lorde Selwyn saiu apressado atrás dele,
alcançando-o.
Assim que o viu, Lin Kuan Teng curvou-se respeitosamente.
- Espero que meu mais honorável hóspede tenha passado uma noite confortável
em minha humilde casa.
Embora soubesse que essa era a forma correta de um chinês se dirigir a um
convidado, Paul precisou controlar-se para não achar graça daquele excesso
de gentilezas. Chegava a ser ridículo referir-se àquele palácio como "humilde
casa".
- Dormi tranquilamente, e só lhe posso apresentar profundos agradecimentos
por sua amável e generosa hospitalidade.
Mais uma vez Lin Kuan Teng se curvou e em seguida caminharam os dois para o
mar.
O caminho não podia ser mais encantador. Pássaros cantavam nas árvores. Paul
reconheceu o canto do azulão e do pintassilgo-da-mata, todo preto e branco.
Parecia haver muitos desses pássaros nas árvores.
Borboletas esvoaçavam sobre as flores e arbustos. De vez em quando um lagarto
atravessava apressado à frente dos pés dos caminhantes e se escondia entre
as folhagens.
A distância até a baía era pequena. Logo ela se abriu diante deles. A areia
não podia ser mais dourada. O mar tinha o mesmo
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tom verde dos Budas de jade que formavam a coleção de Lin Kuan Teng.
Ambos já estavam na areia, e podiam ver o fim da baía, onde o mar se perdia,
num horizonte nevoento, quando Lin Kuan Teng soltou
uma exclamação.
Surpreso, lorde Selwyn olhou na mesma direção para a qual a cabeça do chinês
estava voltada, e notou um barco na curva da baía. Pareceu-lhe um barco comum,
encalhado
na areia.
Lin Kuan Teng correu para onde estava a embarcação, e Paul o seguiu. Os dois
logo notaram que havia uma pessoa no barco.
O chinês mantinha-se calado, impassível, mas Paul percebeu que ele estava
aborrecido. Era natural que, sendo aquela baía particular, ele não quisesse
saber de intrusos.
O barco poderia estar servindo para desviar a atenção do proprietário da baía,
e o intruso talvez estivesse escondido.
Em poucos minutos os dois homens caminharam pela areia e alcançaram o barco.
Surpresos, viram uma jovem deitada no fundo da embarcação, tendo a cabeça
apoiada num travesseiro
de seda.
Paul ficou abismado com a beleza da moça; era por certo a jovem mais maravilhosa
que já vira. Seu vestido era tão ricamente trabalhado que ele chegou a imaginar
que estivesse sonhando.
Imediatamente fechou os olhos, acreditando que o sol o ofuscasse, causando-lhe
a sensação de estar vendo coisas. No entanto, ao abri-los novamente, a figura
encantadora
ainda se achava ali, de olhos fechados, os longos cílios escuros repousados
sobre as maçãs do rosto muito pálidas.
Sem afastar o olhar daquela visão de sonho, lorde Selwyn notou-lhe os cabelos
dourados espalhados sobre o travesseiro de seda; a pele acetinada tinha a
beleza de
uma pérola, e aquele vestido, para surpresa dele, era um traje de noite, muito
fino.
Ao redor do pescoço ela trazia um colar de diamantes. Também havia pulseiras
de diamantes nos dois pulsos, e as mesmas pedras preciosas enfeitavam-lhe a
blusa do vestido.
O corpo da jovem achava-se esparramado no fundo do barco, e o mais estranho
era que os bancos da embarcação haviam
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sido removidos. Era possível notar que sob seu corpo havia almofadas de cetim
branco, semelhantes ao travesseiro. Finalmente lorde Selwyn conseguiu
perguntar:
- Quem é ela? Como teria chegado até aqui?
Ao indagar, ele pensou que não se surpreenderia se Lin Kuan Teng lhe respondesse
que aquela delicada figura só poderia ter vindo de outro planeta.
Jamais imaginara que uma mulher pudesse reunir tanta beleza, sobretudo aquele
tipo de beleza etérea, que mal poderia ser considerada humana.
Depois do que lhe pareceu um longo tempo, ouviu Lin Kuan Teng responder:
- Não faço ideia de quem possa ser a lady ou de onde tenha vindo. Muito estranho.
Muito misterioso. Talvez ela seja um presente dos deuses!
Desde que embarcara no navio do pai, que navegara a incrível velocidade, Anina
sentira-se aterrorizada, imaginando que a qualquer instante um navio da
Marinha os perseguiria e viriam prender seu pai.
Assim que ela se vestira, o capitão a levara até a praia. Carregava apenas
uma maleta, onde Anina havia colocado o vestido da mãe e as jóias, além de
outros objetos pessoais que usaria para passar a noite.
O capitão dera instruções a Chang para cuidar bem da casa na ausência deles
e lhe entregara uma grande quantia em dinheiro.
- Estarei ausente por mais tempo desta vez. Deixo tudo aos seus cuidados, e
confio que você não permitirá que nos roubem coisa alguma - recomendara ele.
- Não, não, amo! Chang cuidar bem. Ninguém loubar casa! O criado sorria, feliz.
Teria bastante dinheiro para cuidar da
família.
Na praia havia um barco. O capitão ajudou a filha a subir na embarcação, e,
pegando os remos, afastou-se, tomando a direção do norte.
Remava com vigor, e o barco passou rapidamente pelas casas
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construídas sobre estacas. Ao vê-los, as crianças e mulheres lhes acenaram,


e Anina acenou-lhes também. Todas aquelas pessoas estranhariam se ela não
agisse assim.
No entanto, sua única vontade era chorar. Estava deixando sua casa, tudo o
que lhe era familiar, e principalmente todas as lembranças de sua mãe.
Como aquilo podia estar acontecendo com ela? Como poderia viver sozinha? O
que lhe reservaria o futuro?
Cerca de umas três milhas subindo a costa havia uma baía ao redor da qual não
havia casa alguma. As árvores que acompanhavam a costa, além de outros tipos
de vegetação, formavam uma barreira compacta, que parecia uma selva.
Anina viu o navio do pai ancorado. No convés estavam os dois amigos que ele
mencionara. Esses dois homens observavam ansiosos aquela direção, esperando
o retorno do capitão, para partirem quanto antes.
O pai de Anina ajudou-a a subir a bordo e apresentou-a aos amigos ingleses,
um deles cerca da mesma idade do capitão e o outro mais jovem.
Imediatamente as máquinas começaram a funcionar e o navio partiu,
desenvolvendo logo tal velocidade que Anina jamais pensou que um navio pudesse
atingir.
Só ao escurecer a marcha do navio foi reduzida. Não havia luzes a bombordo
ou estibordo. Anina ficou sabendo que além deles quatro havia no navio apenas
quatro chineses como tripulantes.
Havia três confortáveis cabines na parte de baixo; depois de uma leve refeição,
Anina foi para a cabine do pai. Ele
pediu-lhe que se trocasse e fosse dormir. Depois
foi à cabine da filha dar-lhe boa-noite.
Sentado na beirada da cama e fitando a filha com carinho, o capitão lhe disse,
tomando-lhe a mão:
- Você está demonstrando muita coragem, minha querida. Estou orgulhoso de ser
seu pai.
- Estou muito assustada, papai... muito mesmo! Mas o que mais me preocupa é
saber quando o verei novamente.
- Como já lhe disse, minha adorada, eu me comunicarei com
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você assim que souber que não corro perigo. Mas meu plano é partir para bem
longe daqui.
- Para onde?
- Primeiro para Taiwan, depois, possivelmente para a China.
- Oh, papai... será que é seguro?
- Espero que sim. No entanto, não posso fazer planos para o futuro. Tenho que
viver cada dia sem pensar no amanhã.
- Pedirei a Deus que o proteja. Pedirei muito... a todo momento... pela sua
proteção! - disse a jovem, emocionada.
- Conto com suas orações. Como você já disse, minha querida, sei que sua mãe
velará por mim e também por você.
A filha apertou a mão do pai e pediu-lhe:
- Por favor, papai... leve-me com o senhor! Eu não me importo com as
dificuldades... Só quero ficar ao seu lado!
Imediatamente viu o sofrimento nos olhos do pai.
- Tê-la comigo é o que mais desejo no mundo, filhinha adorada. Mas se eu ficar
com você estarei sendo egoísta. Tenho que pensar em seu futuro. Você precisa
conviver com pessoas respeitáveis, e não com criminosos como eu!
Ánina deu um pequeno grito.
- Não deve falar dessa forma, papai! É claro que não é um criminoso! Para mim
o senhor é gentil, bom, maravilhoso... mais do que maravilhoso, e é assim que
me lembrarei do senhor.
O capitão Ranson inclinou-se para beijar a filha, e esta notou que havia
lágrimas em seus olhos.
Não suportando mais ficar ali devido à emoção, ele se levantou, recomendando,
antes de sair:
- Agora durma, querida. Virei acordá-la quando chegar o momento de ir para
o barco.
Ele deixou a cabine, e a filha chorou muito até adormecer, vencida pela
exaustão.
Quando o capitão Ranson entrou na cabine para acordá-la, ela teve a sensação
de haver dormido muito pouco.
- Está na hora, querida.
Ela se levantou, e o pai ajudou-a a vestir o lindíssimo traje
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de noite que pertencera à sua esposa. Em seguida prendeu o fecho do colar e
das pulseiras.
A grande estrela de diamantes que ele prendeu na blusa da filha fora presente
dele para a esposa no último Natal que haviam passado juntos.
- Esta estrela a guiará - murmurou o capitão. Anina sentia-se infeliz demais
para falar.
Levada pela mão do pai, subiu a escada. Em silêncio, ia pensando nas inúmeras
perguntas que desejaria fazer e nas inúmeras coisas que tinha a dizer ao pai
antes de se separarem, porém, parecia ter perdido a voz.
Os dois amigos do capitão já os esperavam.
- Está tudo pronto? - perguntou o capitão Ranson.
- Exatamente conforme você ordenou. O pai voltou-se para a filha.
- Há café para você tomar. É melhor beber algo estimulante antes de ir para
o barco.
Anina juntou as mãos e apertou-as. Queria gritar que não desejava sair de perto
do pai. Não suportaria ficar sozinha. Como enfrentaria o futuro longe da pessoa
que mais amava?
Mas os três estavam esperando. Seria humilhante demais fazer uma cena diante
dos amigos do pai.
Um dos ingleses ofereceu-lhe uma xícara de café, que ela aceitou
automaticamente, sem afastar os olhos do rosto do pai. Estava pensando em como
ele era belo, e em quanto o amava.
Justamente por amá-lo tanto, era seu dever obedecer-lhe. Sim, iria fazer a
vontade dele, mesmo com o coração partido.
Sem ao menos saber o que estava fazendo, tomou o café.
Mal entregou a xícara ao amigo do pai, sentiu a cabeça rodar. O convés parecia
querer fugir-lhe dos pés.
Tentou gritar, mas não conseguiu.
Então a escuridão se abateu sobre ela. Não teve consciência de mais nada.
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CAPITULO V
Anina recobrou a consciência e abriu os olhos. Ao ver aquele quarto estranho,
lembrou-se do que havia acontecido.
No mesmo instante fechou os olhos, querendo concentrarse; precisava pôr o
cérebro a funcionar. Mas era como se tivesse a cabeça cheia de algodão.
Tudo o que vinha à mente era o belo rosto do pai e a certeza de amá-lo mais
do que a qualquer coisa do mundo.
Tivera muito medo do que tinha que fazer, e afinal, tudo já havia acontecido.
Ali estava ela naquela casa estranha. Teve então certeza de que havia um
sonífero no café que bebera no navio do pai.
Foi fácil deduzir que enquanto estivera desacordada fora posta no barco.
Veio-lhe à lembrança a conversa que tivera com o pai.
- Como pode ter certeza, papai, de que chegarei realmente à praia particular
desse seu amigo? - havia perguntado.
O pai dera um sorriso.
- Fique tranquila, minha querida. Não deixarei que o barco seja levado pela
maré.
- Como pode ter tanta certeza?
Ao fazer essa pergunta, imaginou os perigos que correria, abandonada num barco.
Poderia ser roubada, principalmente por causa das jóias da mãe. Pior ainda:
os piratas poderiam até matá-la.
Até mesmo um barco vazio atrairia ladrões.
- Sou um bom nadador - respondera o pai.
- Está querendo dizer que irá comigo?
- Nadarei ao lado do barco e o guiarei para o local desejado. Prometo-lhe,
querida filhinha, que a deixarei no ponto ideal para ser logo encontrada.
De certa forma, as palavras do pai a haviam deixado um pouco menos assustada.
Contudo, agora, ali estava ela: chegara ao seu destino, porém seu medo não
havia desaparecido. Era terrível estar sozinha,
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numa ilha estranha, numa casa estranha.
Todo o seu ser se encolhia de pavor diante da incógnita que era seu futuro.
Sua vontade era apenas mergulhar na escuridão da inconsciência e assim
permanecer - talvez para sempre.
Mantendo ainda os olhos fechados, Anina percebeu que havia alguém no quarto,
apesar de os movimentos dessa pessoa serem muito suaves.
Quem quer que fosse, deteve-se ao lado da cama, ficou ali um instante,
certamente fitando-a, depois afastou-se.
Finalmente, como tinha muita sede, ela abriu os olhos, e deparou com um teto
branco. Continuou olhando fixamente para o alto, receando o que poderia
encontrar.
- Lady acordada? - ouviu alguém perguntar num inglês truncado, com sotaque
chinês.
com alívio, Anina disse a si mesma que pelo menos estava acostumada com aquele
modo de falar. Vagarosamente dirigiu o olhar para o lugar de onde vinha a voz,
e viu uma chinesa.
A mulher lembrava as muitas chinesas que ela conhecia e com quem conversava
frequentemente, inclusive as que trabalhavam
em sua casa.
- Onde estou?
Ao falar, sentiu a garganta seca, naturalmente devido à droga que haviam posto
em seu café. Embora tarde demais, pensou que havia sido mesmo uma tola em não
desconfiar de nada ao beber o café que lhe haviam oferecido. De qualquer modo,
o pai não gostaria de ver seus planos alterados.
Ela notou que o quarto em que se achava era amplo, luxuosamente mobiliado e
com extremo bom gosto. Todos os lençóis da cama eram de seda.
Alguém a havia despido, pois não usava mais o vestido da mãe, nem tampouco
jóia alguma.
Parecendo adivinhar o que ela queria, a chinesa ofereceu-lhe:
- Beba, senholita. Sentir bem.
A mulher levou um copo aos lábios de Anina e com muito jeito ergueu-lhe um
pouco a cabeça.
Sedenta como estava, Anina tomou com prazer o suco de frutas, achando-o
delicioso. Sua garganta já não estava mais seca.
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Só esperava que em breve seu cérebro ficasse totalmente claro, que passasse
aquele turvamente.
- Lady agora seguia - disse a criada chinesa. - bom dormir. Muito quente.
Pelas palavras da mulher, Anina deduiu que devia passar do meio-dia, e o sol
quente estaria demais para qualquer atividade. Era bem possível que o dono
daquela casa estivesse repousando, bem como sua família.
"Suponho que mais cedo ou mais tarde terei que conhecer o amigo de papai e
seus familiares", pensou, com um estremecimento.
A criada saiu. Anina mergulhou numa súbita escuridão e sonhou com o pai.
Quando acordou novamente, a mesma criada de antes estavá
erguendo as persianas das janelas. Devia ser bem tarde.
A criada percebeu seu movimento e perguntou:
- Lady melhor agola?
- Imagino que sim... - respondeu Anina, hesitante.
- Amo deseja ver lady. Anina ficou em silêncio por um momento, porém compreendeu
que não poderia continuar dormindo indefinidamente.
Quanto antes aquele suplício terminasse, melhor. Afinal, era uma agonia ficar
com tanto medo de tudo e de todos.
Muito vagarosamente, receando sentir-se mal, ela ergueu-se, ficando por um
instante sentada na cama. Felizmente havia desaparecido aquela sensação
horrível de que o cérebro não ia funcionar.
Uma leve dor de cabeça a incomodava, e também era grande sua sede.
- Por favor... eu poderia tomar alguma coisa? - perguntou à criada.
- Já ter plonto.
A chinesa colocou uma pequena bandeja ao lado da cama. Havia ali um copo de
suco de frutas e dois pratos, num dos quais havia frutas frescas, todas elas
conhecidas de Anina. No
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outro ela viu docinhos feitos de mel e nozes, que ela própria costumava ter
frequentemente em casa.
Em primeiro lugar Anina bebeu o suco. Depois comeu um dos docinhos, e por último
provou uma das frutas.
A criada permaneceu a um canto do quarto, esperando-a terminar de comer. Em
seguida aproximou-se para apanhar a bandeja e disse:
- Lady levantar. Eu ajudo.
Deixando a bandeja sobre uma mesa, ela voltou para ajudar Anina. Esta percebeu,
assim que colocou os pés descalços sobre o tapete macio, que não sentia tontura
alguma.
Constatou que passara o efeito da droga que a deixara inconsciente.
Lavou-se e pôs o mesmo vestido com o qual chegara àquela casa, pois não tinha
outra roupa. Estava pensando, enquanto a criada se encarregava de abotoar os
botõezinhos às costas, que sem dúvida seu anfitrião acharia estranho ela estar
usando um traje tão enfeitado e tão fino.
Então lembrou-se do que o pai havia dito: o vestido luxuoso faria com que ela
fosse tratada com respeito e reconhecida como pessoa de classe.
A criada acabara de prender o fecho do bracelete e começava a pentear-lhe os
cabelos.
"Pelo menos não me porão na rua, vendo-me vestida e adornada deste jeito",
pensou ela, olhando-se ao espelho. Isso era
melhor do que nada.
Sentada diante do espelho de moldura dourada, Anina supôs que, depois da
experiência pela qual havia passado, talvez até mudasse de aparência. No
entanto, a figura que ali via refletida era a mesma de sempre.
A diferença era que estava enfeitada com as jóias da mãe, que faziam seu traje
cintilar com um brilho invulgar. Quanto à acentuada palidez, só a ajudava;
daria verossimilhança à história que ia contar.
Começou a imaginar o que iria dizer ao sr. Lin Kuah Teng.
Tinha de ser muito cuidadosa para não revelar nada sobre sua vida. Seu pai
correria perigo se ela cometesse enganos.
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"Por favor, mamãe... ajude-me!", pediu ela com fé. Afastando-se do toucador,
voltou-se para a chinesa, que a esperava junto à porta.
- Lady plonta? Levá-la ver o amo.
Por um instante, um medo pânico fez Anina pensar em dizer que se sentia mal
e queria voltar para a cama.
Repreendendo-se, disse a si mesma que não teria medo. Seu pai havia sido
corajoso, e embora agisse como um fora-da-lei, enfrentara perigos por amor
à esposa e à filha. Não seria ela quem iria desapontá-lo mostrando-se covarde.
Caminhando com cuidado devido às sandálias de cetim que combinavam com o
vestido, Anina atravessou o quarto sem pressa.
A chinesa abriu a porta, esperou a hóspede passar e depois seguiu-lhe à frente,
conduzindo-a pelos corredores fresquinhos até chegarem ao que Anina supôs ser
a parte central da casa.
Quando a criada passou por uma porta que se achava aberta, Anina respirou fundo
e entrou num cómodo amplo, luxuoso e cheio de verdadeiros tesouros. Embora
só olhasse ao redor de relance, ela teve certeza de que ali havia muitas
raridades, que o pai apreciaria imensamente.
Além dos inúmeros quadros e da mobília ricamente marchetada ou dourada, nos
armários certamente devia haver peças de jade e porcelana.
Mesmo antes de se voltar para o fundo do salão, sentiu vivamente a presença
de uma pessoa. Então olhou naquela direção e viu um chinês sentado numa cadeira
que mais parecia um trono.
Usando suas vestes de mandarim, ele pareceu-lhe ainda mais mais majestoso e
dominador do que o havia imaginado.
A criada que ia à frente de Anina já se achava diante do amo. Ajoelhando-se,
inclinou-se até tocar a cabeça no chão, e em seguida comunicou-lhe em chinês:
- Depois de longo sono a jovem lady acordou, honorável amo.
Os olhos de Lin Kuan Teng estavam fixos em Anina, que já se encontrava também
diante dele, fazendo uma breve mesura.
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- É pára mim a maior honra, madame, receber sua visita
- disse ele em bom inglês. - Só me surpreende o fato de ainda não saber qual
seria a razão de ter chegado a esta casa.
A criada chinesa deixou o salão discretamente.
Falando muito devagar e com hesitação, Anina respondeu:
- Asseguro-lhe que minha surpresa é maior do que a sua, Sir.
Lin Kuan sorriu.
- Creio que devemos nos sentar - sugeriu ele. - Gostaria
que me contasse o que aconteceu.
Ele indicou um sofá confortável, perto da janela. Agradecendo, Anina foi até
lá. Precisava de ar e tinha medo de não suportar permanecer muito tempo de
pé, não porque se sentisse fraca, mas porque estava apavorada.
Ao mesmo tempo, era imprescindível cumprir exatamente sua parte, conforme o
pai a instruíra.
O sofá era em estilo bem ocidental, mas havia inúmeros banquinhos e almofadões
espalhados pelo salão. Lin Kuan sentouse numa cadeira de braços e espaldar
alto, bem perto de Anina.
O chinês lembrava de tal forma a figura de mandarins que nina já vira tantas
vezes em pinturas antigas, que ela chegou a duvidar que estivesse diante de
um homem real.
Notando que a jovem se mostrava nervosa, Lin Kuan
pediu-lhe:
- Bem, conte-me o que lhe aconteceu. Anina fez um gesto de desalento com as
mãos.
- Estou pensando nisso desde que acordei, e... não sei de
nada.
- O que quer dizer com "não sabe de nada"?
- Não consigo me lembrar!
Lin Kuan dirigiu-lhe um olhar cheio de suspeitas. Não podia acreditar no que
acabara de ouvir. Mas insistiu:
- Minha graciosa lady, vamos começar desde o princípio.
Qual é seu nome?
Anina demorou algum tempo para responder.
- Estou tentando... tentando... mas não me lembro...
- Pode lembrar-se de onde veio?
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Ela sacudiu a cabeça. Querendo convencer o chinês de que dizia a verdade, tentou
explicar, mostrando-se hesitante:
- Minha cabeça está muito dolorida... Devo tê-la batido em alguma coisa...
ou talvez eu tenha sido golpeada...
- Não tem ideia de quem ou o que poderia tê-la golpeado.
- Não...
- Tampouco se recorda de quando isso aconteceu?
- Não.
O rosto enigmático de Lin Kuan não revelava emoção alguma. Contudo, Anina teve
certeza de que ele ficara não apenas surpreso, mas também confuso.
Juntando as mãos de unhas muito longas, o chinês procurou argumentar.
- Deduzimos que você viajava a bordo de um navio, pois foi encontrada em minha
baía, em um barco pequeno.
- Cheguei até aqui num barco?
- Você não sabia disso?
Ela acenou negativamente a cabeça.
- Então deixe-me explicar. Encontrei-a na baía, ao fundo do meu jardim. Você
se achava deitada sobre almofadas de cetim, vestida como está no momento.
Anina emitiu um som baixinho e olhou para a saia do vestido que usava, toda
enfeitada com babadinhos de renda e pequeninos buques de rosas almiscaradas.
Ela não conseguiu evitar que seu pensamento volvesse ao passado. Lembrou-se
de que, quando vira a mãe usando aquele mesmo vestido, achara-o o mais
maravilhoso traje de noite que já vira.
Sem dúvida aquele homem de olhos astutos sentado à frente dela devia pensar
que sua hóspede se trajava com muito requinte. Ele devia saber que aquele
vestido era muito caro, além de estar de acordo com a moda mais recente de
Paris.
Na parte de trás havia as famosas anquinhas; a mãe de Anina lhe contara que
o criador dessa moda havia sido Frederick Worth, um estilista inglês que havia
decretado a morte da crinolina.
Anina também se lembrava de a mãe ter contado que quando
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aparecera com aquele vestido no baile do governador, as mulheres que não
estavam atualizadas com a moda a fitaram com tanta inveja que pareciam querer
arrancar-lhe
os olhos.
- Seu pai sentiu o maior orgulho de mim - dissera à filha suavemente. - E era
só isso o que me importava.
Vendo-se então submetida àquele interrogatório, Anina teve confiança de que
seus pais iriam ajudá-la a dar as respostas
corretas.
Incansável, Lin Kuan continuou tentando fazer a jovem lady lembrar-se de onde
viera e para onde viajava. Fez perguntas sobre sua família, quis saber o nome
de seus
pais, e se ela ao menos tinha uma vaga ideia de como eram eles.
Demonstrando vontade cooperar, Anina foi a princípio respondendo com negativas
ou apenas sacudindo a cabeça. Afinal, cansada de tantas perguntas, passou
apenas a dirigir ao chinês um olhar de desalento.
A certa altura Lin Kuan admitiu a derrota.
- Tenho certeza de que, mais cedo ou mais tarde, os deuses permitirão que você
recupere a memória - asseverou ele com bondade. - É apenas uma questão de tempo.
- Mas para onde irei enquanto espero que isso aconteça?
- perguntou a jovem, sabendo que essa questão tinha importância vital.
- Há muitos quartos aqui à sua disposição. Você honrará minha casa com sua
beleza.
Pela primeira vez, desde que entrara naquele salão, Anina sorriu.
- Obrigada... muito obrigada! - agradeceu ela, eufórica.
- Senti tanto medo de que me mandasse embora...
- Ora, não sou um homem cruel. Não duvido que em breve você se lembrará do
seu nome, e poderei encontrar sua família e seus amigos.
- O senhor é muito bondoso! Lin Kuan ergueu-se.
- Agora você deve conhecer minha família. Como há de compreender, todos estão
muito curiosos por saber quem é a linda moça do barco. Imagino que estejam
pensando que você
tenha caído do céu ou tenha surgido das profundezas do oceano.
Anina riu.
- Talvez seja verdade. Mas se eu tiver surgido do mar, terei que ser uma sereia
com cauda de peixe!
O anfitrião acompanhou-a a outra parte da casa para apresentar-lhe sua família.
Enquanto caminhava, ela ia pensando que, afinal, tudo havia corrido melhor
do que havia esperado. Parecia chegar-lhe aos ouvidos a voz do pai:
"Boa garota! Fez exatamente o que lhe pedi!"
A nova propriedade de lorde Selwyn era muito mais grandiosa do que ele havia
imaginado. O lugar onde a casa da fazenda fora construída deixou-o atónito
e ao mesmo tempo encantado.
Ele já esperava que, sendo um homem de muito bom gosto e de posses, seu tio-avô
só poderia construir para si uma casa confortável e agradável.
No entanto, o que não havia previsto é que lorde Durham tivesse o capricho
de mandar construir aquela mansão encantadora, uma réplica de uma casa inglesa
em estilo arquitetônico de meados do século anterior.
Apesar de estar em Penang, lorde Selwyn pareceu ver-se diante de uma das casas
de seus amigos aristocráticos de Londres.
com entusiasmo, admirou a mesma arquitetura de proporções perfeitas, as mesmas
colunas jónicas logo acima dos vários degraus da entrada. As altas janelas
em estilo georgiano abriam-se para a plantação, que se estendia a perder de
vista.
Ao notar que Lin Kuan o observava, analisando sua reação, Paul exclamou:
- Não posso acreditar! Confesso que esperava ter herdado uma casa em estilo
europeu, porém jamais imaginei encontrar aqui esta jóia arquitetônica, uma
perfeita imitação da obra dos irmãos Adam!
Sem surpresa, constatou que Lin Kuan não ignorava que os irmãos Adam haviam
sido os maiores arquitetos do século XVIII.
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- Imaginei que ficaria surpreso, milorde! - observou Lin Kuan com uma nota
divertida na voz, ao ver o entusiasmo do inglês. - Não se esqueça de que esta
casa era o lar de seu tioavô, e ele desejava sentir-se e viver como inglês.
- Se ele desejava mesmo estar em meio a coisas que lhe lembravam a pátria,
não compreendo por que não voltou à Inglaterra.
- Certa vez lorde Durham me disse que já vivia há bastante tempo no Oriente
que passara a pensar como chinês, a comer como chinês, e gostava mais de
conviver com orientais do que com seu próprio povo.
Paul sorriu, mas não fez qualquer observação. Lin Kuan prosseguiu:
- No entanto, creio que seu honorável tio-avô sonhava com a Inglaterra, e quis
edificar aqui a casa dos seus sonhos.
Se o exterior da casa que herdara o surpreendera, seu interior o deixou ainda
mais maravilhado. Havia ali um número incalculável de peças valiosíssimas,
verdadeiros tesouros.
Algumas das peças de porcelana eram fantásticas. Havia também objetos de jade,
quartzo rosa e cristal, e lindíssimas pinturas decoravam as paredes.
Lin Kuan, que conhecia a história da maior parte das peças que compunham o
mobiliário e a biografia dos artistas que haviam feito as pinturas, ofereceu-se
para expor ao novo dono daqueles tesouros o que sabia sobre cada um deles.
- Seu honorável tio-avô pediu-me para ajudá-lo a selecionar criteriosamente
tudo o que devia compor a decoração desta casa. Encomendamos então aos chineses
o que queríamos, e ao recebermos as encomendas, raramente nos desapontávamos.
Paul seria grosseiro e mal-agradecido se não reconhecesse quanto era
afortunado. Como poderia imaginar que herdaria tantos tesouros de valor
incalculável?
Depois que o novo proprietário inspecionou toda a Durham House, como era
chamada aquela mansão, Lin Kuan o deixou,
- Mandarei a carruagem vir buscá-lo mais tarde, milorde
- disse ele ao despedir-se.
Acompanhado dos advogados, que se mostravam ansiosos
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para mostrar-lhe a plantação, lorde Selwyn percorreu uma parte da fazenda,
e depois quis ver o jardim.
Este era muito grande e mostrava-se meio abandonado, porém ali crescia uma
profusão de orquídeas, inclusive uma variedade das Phalaenopsis, de lindas
flores brancas.
com imensa alegria ele viu uma árvore original, cujas flores surgiam
diretamente da casca do tronco, que os malaios chamavam de serac.
Paul tinha vontade de ficar algum tempo naquele vasto jardim, inspecionando-o,
porém os advogados queriam que ele fosse examinar as culturas.
Asseguraram-lhe que ele teria uma renda considerável se cultivasse a terra
devidamente. Paul ficou extremamente interessado.
Ao mesmo tempo, sentia-se preso ao encanto dos incomparáveis tesouros da casa
e à maravilha das exóticas flores do jardim. Queria guardar na memórias tais
belezas, que evocaria quando regressasse à Inglaterra.
- Se tem interesse em orquídeas, honorável lorde - aparteou o advogado chinês
-, certamente vai ter que ficar em Penang durante muito tempo.
Havia uma insinuação no tom de voz do chinês.
- Por que diz isso? - indagou Paul. O chinês sorriu.
- Temos oitocentas espécies de orquídeas na Malásia. Ali está uma delas.
O advogado indicava uma linda e rara espécie, presa ao tronco de uma árvore
coberto de liquens.
- Pelo que vejo, terei que me ocupar do assunto a partir de agora, e é provável
que acabe passando aqui toda a minha vida, como fez meu tio-avô.
Ele falava em tom de brincadeira, porém notou, pela expressão séria dos dois
advogados, que ambos esperavam que o novo senhor daquelas terras e da belíssima
casa ficasse realmente interessado em continuar o trabalho de lorde Durham.
"Pois ambos ficarão desapontados!", pensou ele.
O melhor meio de obter dos advogados as melhores informações era deixá-los
supor que estava interessado em fazer a
89
fazenda produzir e que passaria a morar na casa assim que lhe fosse possível.
Felizmente não tinha condições de mudar-se de imediato, uma vez que nem criados
possuía; apenas dois caseiros cuidavam da propriedade. Continuaria a viver
confortavelmente no palácio de Lin Kuan Teng.
Os advogados haviam trazido consigo comida chinesa, que Paul apreciou.
Enquanto comiam, ele ouviu com prazer tudo que os procuradores de lorde Durham
tinham para
contar.
Ao fim da tarde, quando já não estava tão quente, lorde Selwyn voltou para
Georgetown numa carruagem aberta. Antes de partir deu aos caseiros uma quantia
em dinheiro
que os deixou boquiabertos.
Admirou a paisagem durante a viagem até a casa de Lin Kuan. Encantaram-no as
árvores, a profusão de flores silvestres, os pássaros e as crianças malaias
ou chinesas que brincavam à beira da estrada poeirenta.
Meninos mais velhos subiam nos coqueiros para derrubar os cocos.
Ao chegar a Georgetown, sentia-se orgulhoso de possuir uma belíssima
propriedade e ao mesmo tempo fascinado com aquela ilha paradisíaca.
Para completar sua alegria, tinha à sua espera uma pessoa inteligente como
Lin Kuan, com quem podia conversar. FitzJames Stephen não havia exagerado ao
dirigir palavras elogiosas ao seu anfitrião. O chinês era realmente
excepcional.
Divertido, Paul conjecturou que fora necessário vir a Penang para encontrar
um homem incomum como Lin Kuan Teng. Era tão agradável manter uma conversação
mais séria com ele quanto conversar com o primeiro-ministro, o sr. Benjamim
Disraeli.
"De certa forma, acredito que ambos são orientais", pensou Paul, "e é esta
a razão de serem os dois mais sensitivos, mais rápidos de raciocínio e,
certamente, bem
mais perceptivos do que a média dos ingleses."
A carruagem passou pelo portão da casa de Lin Kuan e entrou no caminho de acesso,
ladeado pelos jardins repletos de flores.
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Ao descer da carruagem, Paul lembrou-se da estranha e encantadora jovem cujo
barco viera dar à praia aquela manhã. Possivelmente àquela hora já haviam
descoberto quem seria ela.
Talvez ela até já tivesse voltado para o lugar de onde viera, o que seria uma
pena, pois gostaria de ver mais uma vez aquela criatura adorável.
A jovem do barco lhe lembrava uma deusa chinesa que ele havia admirado,
esculpida em cristal, sobre um dos armários do salão de estar.
Tal pensamento fê-lo rir consigo mesmo. Afinal, tratava-se de uma mulher, e
para ele o sexo feminino, no momento, devia ser visto com reservas, senão como
um inimigo.
"Só espero que ao vê-la consciente eu fique desapontado. Tomara que seja até
vesga!"
com tal pensamento zombeteiro, entrou na casa, sendo conduzido por um criado
à sacada onde Lin Kuan se achava sentado com a esposa e as filhas.
A grande sacada sustentada por colunas dava para o jardim, e apesar da brisa
muito leve, que ajudava a suavizar um pouco o calor, os panças estavam em
funcionamento.
Um aroma suave enchia o ar quente e úmido.
A esposa e as filhas de Lin Kuan Teng estavam sentadas em banquinhos baixos
e em almofadões, porém o dono da casa não deixara sua cadeira de espaldar alto.
Sentado naquela espécie de trono de mandarim, o anfitrião parecia quase tão
majestoso quanto um rei.
Só ao aproximar-se, o recém-chegado notou a presença da jovem do barco. Ela
também estava sentada numa cadeira de espaldar alto, ao lado de Lin Kuan, e
ouvia com o maior interesse o que ele lhe dizia.
Por um instante lorde Selwyn não conseguiu deixar de fitar aquele rostinho
delicado, de perfeita forma ovalada, emoldurado por cabelos dourados como
raios de sol
e resplandecentes como uma aura. Sua impressão foi novamente a de estar
sonhando.
Achou impossível alguém parecer tão adorável e ser real.
Ao vê-lo, Lin Kuan ergueu-se e saudou-o:
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- Seja bem-vindo, honorável hóspede! Espero que tenha apreciado sua "viagem
de descoberta!"
Paul pensou que, se havia descoberto um tesouro, seu anfitrião tinha a seu
lado algo infinitamente mais raro e precioso. Então respondeu cortesmente:
- Tenho muito a lhe dizer, mas no momento estou encantado por me encontrar
de volta a esta linda casa e em contato com você e sua distinta família.
Ao falar ele dirigiu o olhar para a única pessoa que não fazia parte da família.
Lin Kuan notou imediatamente o movimento de seus olhos e apresentou-lhe a
jovem.
- Permita apresentar-lhe alguém que honra com sua presença esta minha humilde
casa.
O chinês indicou Anina, e esta ergueu-se, fez uma mesura e tomou a mão de Paul,
que lhe fora estendida.
- Creio que a senhorita deve ser inglesa - disse ele. É para mim um grande
prazer conhecer uma pessoa de meu país.
Notando, ao tocar a mão de Anina, que ela estremecera, teve certeza de que
a jovem estava amedrontada. Mesmo sem saber o que poderia infundir-lhe aquele
temor, sentiu vontade de ajudá-la.
- Meu nome é Selwyn - acrescentou ele, pois Lin Kuan não o havia mencionado.
Evidentemente confusa, Anina não respondeu. Paul continuava a segurar-lhe a
mão. Finalmente ela encontrou coragem para dizer:
- Eu não me lembro... Não sei qual é o meu nome.
As palavras saíram como se fossem extraídas de seus lábios. Paul arqueou as
sobrancelhas, e Lin Kuan explicou-lhe:
- Esta linda lady, encontrada por nós dois naquele barco, em minha praia, perdeu
a memória, milorde!
- Perdeu a memória?! - repetiu Paul, atónito. Voltou-se novamente para a
adorável criatura e fitou-a
bem dentro dos olhos, percebendo que ela estava muito amedrontada.
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Sua percepção disse-lhe que todo aquele temor não era oriundo do fato de ela
ter perdido a memória.
Evidentemente, havia outra razão atrás de tudo aquilo. No entanto, o que seria?
Ainda não lhe era possível saber a resposta.
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CAPÍTULO VI
Pela quinta vez lorde Selwyn visitava Durham House. Já havia levado a esposa
de Lin Kuan, suas filhas e Anina para conheceram a casa, porém só tivera a
oportunidade de ir lá sozinho com a jovem inglesa.
Desde que a conhecera interessara-se por ela, e observava-a com atenção sempre
que podia. Gostava de vê-la conversando com as outras garotas e de ouvir seu
riso cristalino.
Havia desejado muito ficar a sós com a jovem do barco, e afinal surgira a chance
de fazê-lo.
Havia tanto o que ver em Durham House e na fazenda, que levaria semanas, se
não meses, para conhecê-las bem.
Paul passara inúmeras horas com os advogados e outras tantas sozinho,
explorando o que havia herdado. Contudo, no momento, embora tentasse não
admiti-lo, sua vontade era mostrar seus tesouros à linda jovem sem ter pessoa
alguma por perto.
Havia nela algo diferente, que o intrigava e que não conseguia definir. Não
se tratava de sua extraordinária beleza ou do fato de ela dizer ter perdido
a memória.
Ele poderia afirmar que existia uma vibração vindo dela para ele. Também tinha
consciência de sua personalidade marcante, como havia tido da do vice-rei.
Muitas vezes, à mesa do jantar, quando a conversa era muito inteligente, ele
olhava para a hóspede de Lin Kuan, e assim que seus olhos se encontravam havia
uma comunicação
tácita entre ambos; eles conversavam sem a necessidade de palavras.
No entanto, bastava Paul perceber que se mostrava entusiasmado, criticava-se
severamente e chegava a zombar de si mesmo, dizendo a si próprio que mal saíra
de uma armadilha, via-se prestes a cair em outra.
À noite, porém, quando ia para seu quarto, seu pensamento voltava-se para a
linda jovem sem memória. Parecia vê-la até nas réstias de luar que se
infiltravam pelas janelas abertas.
94
Quando se dava conta, já se via conversando com ela, falando-lhe sobre si mesmo
e até fazendo planos para o futuro.
"Estou ficando completamente maluco!", dissera a si mesmo mais de uma vez.
"Só posso estar louco para acalentar tais pensamentos depois da experiência
desastrosa
que tive com Maisie!"
Ao mesmo tempo, apesar de não saber explicar por quê, tinha convicção de que
o que sentia por aquela jovem quase desconhecida era muito diferente do que
havia sentido pela viúva.
Maisie lhe parecera muito jovem, pura e, muitas vezes, até uma criança; a jovem
desconhecida não; era toda mulher.
Lin Kuan mostrava-se impressionado com a inteligência da bela hóspede. De fato,
era de surpreender seu vasto conhecimento do mundo, embora ela dissesse não
se lembrar de haver viajado.
Lorde Selwyn havia notado que ela não tinha consciência da própria beleza.
Era também tão natural que as filhas de Lin Kuan Teng conversavam com ela como
se fosse outra irmã.
Naquela tarde a esposa de Lin Kuan fora com as filhas à escola onde estudavam,
para assistirem a um concerto.
A anfitriã não havia convidado a hóspede para acompanhálas, para evitar
embaraços. Como iria apresentar sem constrangimentos uma jovem sobre a qual
nada sabia, nem sequer seu próprio nome?
Era a oportunidade que lorde Selwyn havia esperado; então convidou-a:
- Se você não tiver nada a fazer, gostaria que me acompanhasse a Durham House.
Não lhe passou despercebida a luminosidade em seu olhar quando ela respondeu,
sem perda de tempo:
- Eu adoraria voltar lá! Gostaria de ver inúmeros outros tesouros que há na
casa. Quando estive ali, o tempo foi escasso para admirar tantas maravilhas.
Creio que você, como dono, deve sentir o mesmo.
Paul admitiu que era verdade.
95
Até o momento, inspecionara os cómodos principais da casa, porém havia inúmeros
outros aposentos com valiosas peças de porcelana. Uma das salas era
inteiramente decorada com porcelanas da dinastia Ching.
Em outra sala havia máscaras usadas pelos chineses em festivais durante
centenas de anos. Algumas
eram feias demais, e outras muito bonitas.
Na noite anterior, Paul fora para a cama pensando nas coisas que desejava
mostrar à jovem inglesa. Sabia que aquelas peças raras e valiosas que herdara
possuíam
para ela um significado maior do que para qualquer outra pessoa. Porém, no
mesmo instante, dissera a si mesmo que estava sendo ridículo.
Não havia por que imaginar que ela tivesse maior sensibilidade diante de coisas
belas do que qualquer outra mulher. Afinal, por que a considerava diferente?
Pela manhã ele tinha certeza de que a hóspede de Lin Kuan devia estar ansiosa
para ir com ele a Durham House.
Pensando em proteger a reputação da bela moça, Paul pediu a Higgins que os
acompanhasse. O criado de quarto mostrouse muito contente, pois também
desejava conhecer a tão comentada casa.
Até o momento lorde Selwyn não permitira a ida do criado à nova casa, porque
não ignorava como o homem era curioso. Finalmente, ao surgir o convite tão
esperado, Higgins não escondera sua satisfação.
Eles partiram logo após o breakfast. Anina usava um lindo vestido novo que
a sra. Lin havia comprado na cidade. Ali havia modistas chinesas que
trabalhavam com extrema rapidez.
Ao ver o vestido, Ánina surpreendera-se; não esperava um traje tão lindo. A
roupa assentou-lhe perfeitamente, porque havia sido confeccionada de acordo
com as medidas da filha mais velha da sra. Lin, que tinha quase o mesmo tamanho
da hóspede. Só foi preciso aumentar alguns centímetros em certos lugares.
A princípio Anina usava sempre o mesmo vestido, mas a eficiente sra. Lin cuidara
de resolver o problema, e roupas novas não cessavam de chegar.
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Os vestidos para o dia eram feitos de tecido vaporoso, e tinham pequenas
anquinhas. Os trajes de noite, confeccionados em sedas finíssimas, vindas da
China, tinham anquinhas bem maiores.
- Como pode comprar roupas tão adoráveis para mim? perguntara Anina à sra.
Lin.
A chinesa respondera gentilmente:
- Sr. Teng sempre diz que pintura linda exige moldura linda também.
- Ambos são extremamente bondosos. Sinto-me embaraçada por receber tanto de
vocês. Por favor, convença o sr. Lin Kuan a vender um dos meus braceletes para
pagar o que tem gastado comigo - sugerira ela.
A sra. Lin tinha erguido as mãos, demonstrando horror.
- Meu marido veria nisso um insulto! Ele considera violação de hospitalidade
aceitar pagamento de honorável hóspede.
Não ignorando que era verdade o que a sra. Lin lhe dizia, pois conhecia os
costumes dos chineses, Anina não se cansara de repetir:
- Muito obrigada! Muito obrigada!
Secretamente ela estava contente por não parecer estranha aos olhos de lorde
Selwyn. Afinal, ambos eram ingleses, e seria embaraçoso se ela tivesse que
usar o vestido ricamente enfeitado que pertencera à mãe e ele achasse que só
queria chamar-lhe a atenção.
Naquele momento eles viajavam numa carruagem aberta, muito confortável,
pertencente a Lin Kuan Teng, provida de um toldo leve, suficiente apenas para
proteger do sol seus ocupantes.
Higgins viajava na boleia, ao lado do cocheiro, por isso Paul havia dispensado
o cavalariço que via de regra o acompanhava.
A carruagem atravessou a rua principal da cidade, onde o comércio era variado;
havia vendedores de mantimentos, de frutas, mascates e vendedores ambulantes
de livros.
Sob árvores grandes e umbrosas, várias pessoas se achavam
97
sentadas tomando kopi-o, como era chamado o café preto e bem forte. Nas casas
viam-se grandes venezianas de madeira.
- É muito agradável fazer esse passeio com você - observou Anina com um sorriso.
- Quando visitei sua propriedade, tive vontade de perguntar-lhe muitas coisas,
porém as filhas da sra. Lin quiseram ficar o tempo todo no jardim...
- O jardim daquela casa também me atrai muito, e tenho o maior prazer em ficar
ali, mas não no meio de muita gente
- observou Paul.
- Você fala como o sr. Lin Kuan - disse Anina, sorrindo e fitando-o nos olhos.
- Ele sempre diz que não pode pensar ou sentir com pessoas conversando sem
parar, como se fossem periquitos!
- Exatamente! Ele já me falou sobre isso, e quando me acompanhou na minha
primeira visita à propriedade que herdei, não disse uma palavra durante todo
o trajeto!
- O sr. Lin Kuan está certo. Mas, quanto a mim, não me importo de ser comparada
a periquitos. Eles são umas avezinhas tão encantadoras!
A carruagem ganhou a estrada. Estavam na zona rural. Anina indicou uma árvore
pela qual estavam passando naquele instante, e Paul notou em seus galhos
inúmeros periquitos.
- Veja aquele periquito-de-cabeça-vermelha! Além do tom vermelho, há uma
iridescência azul-violácea em sua cabeça e nos ombros; sua cauda é azul e
amarela!
Paul só teve tempo de dar uma olhadela na ave, pois a carruagem agora
desenvolvia grande velocidade.
Entusiasmada, Anina continuou a falar sobre as interessantes avezinhas.
- Preciso ver se encontro um periquito-pendente para mostrar-lhe. Eles são
bem pequeninos, e sua cor predominante é o verde. Dormem pendurados como os
morcegos, e reunidos, parecem grupos de folhas.
Ouvindo as explicações da jovem, Paul conjecturou que ela devia ser inglesa,
mas sem dúvida conhecia muito bem a Malásia.
98
Virando-se subitamente para ela, ele perguntou-lhe de chofre:
- Qual é seu nome?
Anina achava-se distraída olhando para o alto, querendo ver mais pássaros nas
árvores sob as quais iam passando. Sem pensar, respondeu automaticamente:
- An... Ela parou.
- Continue - pediu-lhe Paul amavelmente.
- Anina!
Ela disse o nome em voz baixa, e, demonstrando que aquilo era uma grande
surpresa para si própria, acrescentou depressa:
- Consegui lembrar meu nome! Lembrei-me dele... porque você me pediu!
- É um belo nome, e combina muito com você. Conseguiu lembrar-se de mais alguma
coisa?
- Não... de mais nada!
Sua resposta foi tão imediata, que Paul soube instintivamente que Anina tentava
esconder alguma coisa. No entanto, não quis forçá-la. Precisava ter bastante
tato.
Para infundir-lhe confiança, disse-lhe:
- Bem, Anina, agora podemos conversar mais à vontade. Sinto-me mais chegado
a você porque já sei seu nome. É tão desajeitado dizer "Ei, você!", sempre
que eu quiser chamá-la...
Anina riu.
- Mas você nunca me chamou dessa forma!
- Tem razão. E você nem sabe como eu precisava pensar antes de me dirigir a
você. É bem melhor chamá-la de Anina.
O modo como ele pronunciou o nome fê-lo soar de maneira muito agradável aos
ouvidos dela. Anina sentiu uma estranha emoção, e atribuiu-a à voz profunda
de lorde Selwyn.
A carruagem parou diante de Durham House, que, à luz do sol da manhã, parecia
ter sido construída com ouro, e não com pedras brancas. Parecia também ainda
mais bela e majestosa.
Higgins, que via a casa pela primeira vez, mostrou-se encantado.
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Esperou o patrão ajudar Anina a descer do veículo e conduziu-o então para as
cocheiras.
- Agora podemos explorar a casa à vontade, sem pessoa alguma para nos
interromper - observou Anina, eufórica, quando entraram no hall.
Ambos foram para o salão de estar, e ela imediatamente correu até um dos
armários, para examinar as peças de jade e porcelana, entre outras
preciosidades.
Paul preferiu ficar à janela.
As flores do jardim estavam belíssimas, e, como sempre, um grande número de
borboletas adejava sobre elas.
Sem se voltar, ele sugeriu a Anina:
- Creio que seria melhor irmos até a cachoeira enquanto o sol não está muito
quente. Também gostaria que você visse minhas orquídeas.
- É uma boa ideia - concordou Anina.
Passaram pela porta de correr que se abria para o jardim; caminharam pelo
gramado, passaram pelos canteiros de orquídeas e por inúmeros arbustos
floridos.
Muitas árvores também se achavam em plena floração. Sobre várias plantas
sarmentosas, cresciam como parasitas as enormes rafflesias, flores muito
conhecidas na Malásia, de colorido muito vivo.
Caminhando em meio a tanta beleza, Anina não conteve uma exclamação:
- Nada pode ser mais maravilhoso!
Subitamente ela parou, e, estendendo a mão, fez lorde Selwyn parar também.
- Olhe! - disse, num sussurro. - Veja, ali!
Ele seguiu a direção dos olhos dela. Pousado sobre uma das pedras da pequena
cachoeira, não muito distante deles, havia um pássaro.
Algumas folhagens o escondiam, porém Paul reconheceu que tinha diante dos olhos
uma ave-do-paraíso.
Tanto ele como Anina permaneceram algum tempo maravilhados e emudecidos.
100
Nada assustado, o pássaro voou para o ramo de uma ár-vóre próxima.
- Uma ave-do-paraíso no próprio paraíso! - murmurava Anina. - A vinda dessa
ave até a sua propriedade significa que você recebeu uma bênção especial.
- E a que deus devo agradecer a bênção que me foi concedida?
Ao fazer a pergunta, Paul disse a si mesmo que Anina era tão encantadora quanto
a ave-do-paraíso. Chegava a acreditar que ela fosse uma deusa diante da qual
devia ajoelhar-se.
- Será melhor peguntarmos ao sr. Lin - respondeu ela. Realmente, os malaios
acreditam que a ave-do-paraíso traz bênçãos especiais dos deuses. É costume
colocar comida para elas, mas infelizmente são os esquilos gulosos que acabam
com o alimento.
- Creio que é exatamente o que acontece na vida! - argumentou Paul, rindo.
- Aqueles que são decididos, arrojados e gananciosos derrotam os tíbios e
meticulosamente seletivos.
- Você pertence ao primeiro grupo? - perguntou Anina com ingenuidade.
- Claro! Não poderia pertencer ao segundo!
Ele a fitava ao falar, e quando seus olhos encontraram os dela, ambos
permaneceram imóveis por algum tempo.
Sentindo que lorde Selwyn podia ler seus pensamentos, subitamente tímida e
ruborizada, Anina apressou-se em dizer:
- Vamos ver a cachoeira de perto. Talvez haja ali mais surpresas para você.
- O que espera encontrar? Algum peixe especial, talvez?
- Pode ser ambição demasiada de minha parte, porém, se não for querer muito,
gostaria de ver outros pássaros. Tenho certeza de que há martins-pescadores
por perto da água, e também os pequeninos nectarínios, meus preferidos. São
avezinhas vivamente coloridas, que se assemelham aos colibris.
- Nesse caso, devemos tentar encontrá-los.
Ambos ficaram durante um longo tempo perto da cachoeira, depois voltaram,
caminhando por entre as orquídeas. Paul
101
tentou colher algumas delas para Anina, porém ela não lhe permitiu fazer isso.
- Deixe-as onde estão. É aí o lugar delas. Imagino que essas flores ficarão
ressentidas se forem tiradas do paraíso.
Ela sorriu para Paul, e ele ficou estático, admirando-a em meio às orquídeas,
encantando, desejando loucamente beijá-la e estreitá-la em seus braços.
No mesmo instante afastou a ideia. Não queria amedrontála. Além disso, estava
a sós com ela; Anina não trouxera uma chaperon e, sendo um cavalheiro, ele
jamais tomaria liberdades com uma lady.
- Está ficando muito quente - disse ele controlando-se.
- Será melhor voltarmos para dentro.
Embora relutante, Anina caminhou obedientemente pelo gramado, e entraram na
casa pela porta de correr por onde haviam saído.
Só ao olhar o relógio, que marcava meio-dia e meia, Paul se deu conta de que
havia ficado muito tempo no jardim e na cachoeira.
- vou dizer a Higgins que almoçaremos em seguida - comunicou ele. - Espero
que meu criado já tenha preparado tudo para nós.
Como pretendia passar o dia na sua propriedade, Paul trouxera o almoço. O
cozinheiro de Lin Kuan é que o preparara, e certamente devia estar delicioso.
Desde que se hospedara na casa de Lin Kuan, lorde Selwyn não se cansara de
elogiar a comida preparada pelo cozinheiro, e o anfitrião dissera certa vez:
- Se você quiser ficar morando em Druham House, pedirei a meu cozinheiro que
encontre para você um profissional tão bom quanto ele.
- Tenho certeza de que isso será impossível.
- Agradeço o elogio, mas meu cozinheiro, que já está comigo há anos, ensinará
ao colega que arranjar para o honorável hóspede as coisas que ele ainda não
saiba preparar.
- É grande bondade de sua parte, mas já lhe devo muitos favores.
102
Respondendo dessa forma, lorde Selwyn evitou dizer se ficaria ou não morando
em Penang. A verdade é que ele se mostrava indeciso.
- Se vamos almoçar agora - disse Anina - vou subir, lavar as mãos e tirar este
chapéu.
- Está bem. Creio que já conhece bem o caminho, não?
- Sim. Os quartos são tão lindos quanto os outros cómodos da casa.
Depois de lhe dirigir um sorriso, ela se virou e afastou-se, atravessou o hall
e subiu a escada em caracol, deixando Paul parado, seguindo-a com o olhar.
com esforço ele reprimiu o desejo de acompanhá-la, simplesmente porque não
gostava de perdê-la de vista.
"Como posso estar me sentindo assim?", questionou-se ele, virando-se e
recebendo no rosto a luz do sol.
Parecia-lhe impossível que houvesse deixado a Inglaterra inflamado de raiva.
Era como se um século já se tivesse passado desde que voltara aquela noite
para sua casa, em Park Lane, fervendo de fúria.
Agora, tudo o que havia sentido, tudo o que sofrera parecia ter desaparecido
numa névoa.
A única realidade era o sol, as orquídeas, a ave-do-paraíso e Anina.
- O almoço está servido, milorde!
Ao ouvir a voz de Higgins às suas costas, lorde Selwyn voltou-se e perguntou:
- O que achou da casa, Higgins?
- É um bocado bonita, milorde, não resta dúvida. Se agradar a Vossa Senhoria,
ficaremos muito confortáveis aqui!
A resposta do criado deixou-o atónito. Sempre havia imaginado que Higgins
ficaria horrorizado diante da ideia de morar num país estrangeiro.
Ao voltarem das viagens que haviam feito juntos, e tinham sido inúmeras, a
opinião do criado era sempre a mesma sobre o lugar que acabavam de deixar:
- Está tudo bem, milorde, mas não há lugar melhor do que
103
a nossa terra. Suponho que já deu para enjoar desses "escurinhos".
O comentário de Higgins não mudava, estivessem ambos na índia, Turquia, África
ou Europa.
Por isso a resposta que ele acabava de dar deixara lorde Selwyn curioso. Mas,
quando ia perguntar por que o criado dissera aquilo, viu Anina se aproximar.
Vendo-a, Paul supôs estar vendo o próprio esplendor do sol. Então todos os
outros pensamentos desapareceram. Só ela tinha importância.
- O almoço está pronto, Anina - anunciou ele.
- Estou faminta, e sei que você também está. Espero que Higgins tenha trazido
um delicioso suco de frutas, pois também estou morrendo de sede.
Para ela havia suco de frutas, e Paul tomou um vinho suave e dourado.
Os pratos servidos deviam ser manjares dos deuses, mas tanto Paul quanto Anina
acharam difícil saborear o que comiam.
Estavam muito mais felizes conversando sobre vários assuntos que lhes
interessavam. Então, de repente, seus olhos se encontravam, e o mundo parecia
deixar de existir; ninguém mais se lembrava do que estava falando.
Terminado o almoço, eles foram para uma sala de estar, mobiliada com um conjunto
finíssimo de cadeiras e armários de laca vermelha.
Anina reconheceu que aquelas peças antiquíssimas tinham mais de mil anos. Numa
das paredes havia um grande quadro que ela gostaria muito de analisar
calmamente na primeira oportunidade que tivesse.
Foram então para a sala seguinte, e iam sentar-se num dos confortáveis sofás
quando um malaio passou correndo pela porta que se achava aberta e foi dizendo,
enquanto apontava alguma coisa além da janela:
- Venha! Venha!
- O que há de errado? - perguntou lorde Selwyn.
- Venha! - insistia o homem.
Anina começou a conversar com o estranho em seu próprio
104
idioma, o que o deixou perplexo; naturalmente não imaginou que ela soubesse
falar malaio.
Calmamente, ela foi fazendo perguntas, às quais, embora parecendo perturbado
e falando confusa e agitadamente, o homem foi respondendo.
- O que ele disse? - quis saber Paul.
- Ele mencionou que houve um acidente, mas não entendi se foi com uma pessoa
ou um animal.
- Diga-lhe que me leve ao local imediatamente.
Anina traduziu o pedido de lorde Selwyn, e o estranho, com um grito que pareceu
ser de alívio, começou a correr, atravessando o hall em
direção ao jardim.
- Acha melhor eu ir também? - perguntou Anina.
- Não. Fique dentro de casa. Está muito quente. Dirigindo-lhe um sorriso, lorde
Selwyn deixou-a.
- Venha! Venha! - gritava o malaio para Paul, que já alcançara o hall.
Antes de sair, ele pegou o chapéu de aba larga que deixara sobre uma cadeira
ao chegar. Anina seguiu-o até a porta e viu os dois correndo sobre o gramado,
em direcão à plantação de especiarias.
Sempre de olhos fixos na figura máscula de lorde Selwyn, que caminhava a
passadas largas, acompanhando o malaio, que quase corria, Anina teve uma
repentina e assustadora
premonição de perigo.
Era uma sensação tão forte, tão viva, que ela chegou a emitir um murmúrio,
como se sentisse dor. Sabia que tinha que ir atrás de lorde Selwyn.
"Eu já devia tê-lo acompanhado assim que deixou a casa", pensou ela.
Ele não falava malaio, não sabia o que iria encontrar, tampouco tinha ideia
de qual seria o lugar para onde o homem o levava.
A sensação de perigo era agora tão intensa que Anina não teve mais dúvidas.
Olhou ao redor para ver se encontrava Qchapéu, e lembrou-se de que o deixara
no andar de cima.
105
Abriu então uma porta, achando que por ali chegaria à escada que conduzia ao
andar superior, mas, surpresa, deparou com outro lance de escadas, imerso em
grande escuridão, que devia servir de acesso à adega e ao porão da casa. Quando
já ia fechando a porta para correr até o andar superior e pegar o chapéu, ouviu
uma voz.
Um homem falava em chinês:
- Ele está indo para lá?
- Cheng o está levando na direção certa - foi a resposta de outro homem. -
Eles vão atravessar a ponte do riacho e logo estarão no bosque.
- É melhor irmos agora? - indagou o primeiro homem.
- Não. Vamos esperar até os dois desaparecerem. Quando eles chegarem ao bosque,
você atravessará o riacho a pé. Mateo lá no bosque. Vão demorar muito para
achar o corpo.
- Wang Yen mandou esconder o corpo.
- Sim. Você vai fazer o que ele mandou. Agora prepare-se. Eles vão alcançar
a ponte agora mesmo.
Paralisada de horror, Anina compreendeu o que estava acontecendo. Aqueles
homens, quem quer que fossem, pretendiam matar lorde Selwyn.
Então, como se estivesse ouvindo claramente o pai a aconselhá-la para não se
deixar dominar pelo pânico, sentiu-se fria e calma.
Sem fazer o menor ruído, fechou a porta que abrira e correu para a cozinha,
onde encontrou, conforme já esperava, Higgins e os caseiros. Estes eram marido
e mulher, pessoas já idosas, mas havia o cocheiro chinês com os três.
Os serviçais estavam sentados à mesa, e quando viram Anina entrando na cozinha
daquela forma, olharam surpresos para ela.
- Seu amo corre perigo, Higgins! - exclamou ela. - Venha depressa! Temos que
salvá-lo!
Num salto Higgins pôs-se de pé.
- Ponha depressa os cavalos nos varais e fique pronto para partirmos - ordenou
ele ao cocheiro.
106
Anina já havia saído da cozinha e corria para a porta da frente. Higgins
seguiu-a instantes depois.
Do meio do jardim ela pôde ver, ao longe, que lorde Selwyn havia alcançado
a ponte do riacho. Depois dele havia um denso arvoredo, e mais além, o bosque
que marginava todo aquele lado da propriedade.
Sabendo que por mais que gritasse não seria ouvida, ela correu o mais rápido
que pôde sobre o terreno arado onde as plantinhas começavam a revestir-se de
folhas.
Aquela área cultivada não lhe permitia desenvolver muita velocidade, e por
diversas vezes quase caiu, na tentativa de desviar-se das fileiras onde havia
as culturas.
Já sem conseguir respirar, ouviu a voz de Higgins logo atrás dela.
- Não tenha medo, está tudo bem, senhorita - disse ele tentando tranquilizá-la.
- Trouxe uma pistola comigo.
Mas uma pistola de nada adiantaria se chegassem tarde demais. Pelo que ouvira,
o homem mataria lorde Selwyn depois que ele entrasse no bosque, e se ela e
Higgins demorassem, iriam encontrá-lo morto.
Era bem provável que o oriental desferisse em sua vítima golpes com um punhal
afiado, como era tradicional entre os povos do Oriente.
Ela continuou correndo, saltando, mantendo o equilíbrio e sempre fazendo
mentalmente uma oração para lorde Selwyn esperar que eles chegassem.
Deu para vê-lo novamente, depois de ter atravessado a ponte, parado perto do
riacho, olhando a correnteza. O malaio também parou e virou-se, insistindo
com ele para que se apressasse.
No entanto, Anina intuía que lorde Selwyn já havia pressentido que algo estava
errado. Mas ele logo seguiu em frente, talvez porque o malaio estivesse sendo
insistente demais.
Ele estava bem próximo do bosque, e Higgins gritou, com toda a força de seus
pulmões:
- Milorde! Milorde!
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Porém, a distância entre eles era ainda bem grande, e a voz de Higgins se perdeu
no ar.
Anina continuava correndo, ofegante, e ia orando, desesperada, repetindo as
mesmas palavras:
- Faça-o parar, meu Deus... faça-o parar! Detenha-o, Senhor... Ele não pode
morrer! Tenho que salvá-lo!
- Milorde! Milorde!
Higgins continuava a gritar, quase sem fôlego.
Finalmente lorde Selwyn virou-se.
Para seu espanto, viu os cabelos loiros de Anina brilhando como ouro em meio
aos campos cultivados.
Ele voltou para perto da ponte, caminhando ao encontro de Anina e de Higgins,
enquanto o malaio o chamava insistente:
- Venha! Venha! Venha!
Lorde Selwyn não lhe deu atenção.
Anina chegou perto dele completamente sem fôlego e ele estendeu-lhe as mãos,
evitando que ela caísse. Perguntou em seguida:
- O que há? O que aconteceu?
- Você está em perigo! - conseguiu responder a jovem, com a voz entrecortada.
- Está tudo bem - disse ele com calma, tranquilizando-a e abraçando-a com força.
- Como vê, estou aqui, e no momento não corro perigo.
- Não se preocupe, milorde. Se houver perigo, eu cuido disso! - asseverou
Higgins, puxando a pistola do bolso.
- Eles iam matá-lo... lá no bosque! - explicou Anina com dificuldade, ainda
arfando.
- Como ficou sabendo disso? - indagou Paul.
- Eu ouvi dois homens conversando... Deviam estar na adega!
Lorde Selwyn olhou em direção ao bosque. O malaio ainda se achava no mesmo
lugar, no entanto mostrava-se inquieto e parecia inseguro, obviamente
imaginando o que iria fazer.
Higgins, de arma em punho, atravessou a ponte e, encarando o oriental com ar
feroz, dirigiu-se em sua direção.
Dando um grito de medo assim que viu Higgins, o malaio
108
correu e embrenhou-se no bosque. Sem olhar para trás, desapareceu em questão
de segundos.
Durante algum tempo Anina permaneceu encostada no peito de lorde Selwyn, de
lábios entrecortados, com a respiração ofegante.
- Está tudo bem - disse ele suavemente. - Você me salvou do que quer que tenha
sido planejado contra mim. Agora, quanto antes voltarmos para casa, melhor.
- Tive tanto medo de não chegar a tempo... e não conseguir impedi-lo de entrar
no bosque!
- Mas você me salvou!
Anina ergueu a cabeça e olhou em direção ao bosque.
- Eles ainda poderão atirar em você! - disse ela numa voz cheia de medo.
- Então vamos voltar.
Passando o braço ao redor de Anina, ele ajudou-a a caminhar pelo terreno
cultivado.
Higgins vinha logo depois, com a arma na mão, sempre muito atento e olhando
para trás repetidamente, para ver se no bosque não havia nada de estranho.
Ao chegarem ao jardim, puderam ver a carruagem já pronta, esperando à porta
da frente.
Depois de ajudar Anina a subir na carruagem, lorde Selwyn dirigiu-se a Higgins:
- Creio que o chapéu da jovem lady ficou num dos quartos, no primeiro andar.
- vou buscá-lo, milorde.
O criado desapareceu, entrando na casa.
Paul foi para a parte de trás da carruagem e ficou ali algum tempo, de pé,
olhando atentamente em direção ao bosque.
Talvez notasse algum movimento ou até visse os homens que pretendiam
assassiná-lo.
Porém tudo o que viu foram pássaros, borboletas, pinheiros e outras árvores.
Quando o criado voltou trazendo o chapéu de Anina, lorde Selwyn pegou-o, mas
não o entregou à dona, deixou-o sobre o banco.
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Então subiu na carruagem, e Higgins saltou agilmente para o lado do cocheiro,
que tocou os cavalos.
Colocando o braço ao redor de Anina, Paul puxou-a para bem perto dele,
pedindo-lhe em seguida:
- Agora, minha querida, conte-me exatamente o que ouviu e por que foi salvar-me.
Diante dessa demonstração de carinho, Anina olhou para ele, surpresa. Em
resposta, Paul sorriu e disse ternamente:
- Amo você. Não sei por que me contive durante todo esse tempo.
- Você me ama?
Os olhos dela brilhavam como se houvesse mil velas dentro deles.
- Amo você! - repetiu Paul. - Como seria possível não me apaixonar por você?
Além de ser a mulher mais linda que já conheci, você desperta em
mim sensações que jamais senti por outra mulher anteriormente. Você faz parte
de mim. Não posso viver sem tê-la ao meu lado.
- Não pode ser verdade! - murmurou ela em voz tão suave como se fosse o canto
de um pássaro. - Como pode me amar se nem sabe quem sou eu?
Lorde Selwyn sorriu.
- O que importa isso? Não é bastante eu tê-la encontrado? Confesso que cheguei
a pensar que pessoas como você não existissem.
Anina respirou fundo.
- Assim que o vi, soube que você era diferente.... Era também o homem mais
maravilhoso que eu já havia conhecido.
- Fico tão feliz por ouvi-la dizer isso! Estou ansioso para ficarmos a sós
e poder falar-lhe sobre o que sinto por você... Você é completamente diferente
de todas as outras mulheres que já conheci!
Quando Anina ergueu mais a cabeça para fitá-lo, ele pensou que pessoa alguma
poderia parecer tão radiante, tão encantadora que não parecia real.
Num ímpeto, levado pelo entusiasmo do momento, embora
110
seu bom senso lhe dissesse que ainda era cedo para fazer àquele pedido, Paul
perguntou:
- Quando se casará comigo, meu amor? Quero você para mim, só para mim!
Por um instante Anina simplesmente fitou-o. Então, como se fosse uma sombra
toldando o esplendor do luar, a radiosidade de seu rosto se desvaneceu.
- Não! - exclamou ela, desesperada. - Não, não! Você não pode... não deve dizer
isso!
111
CAPÍTULO VII
Quando chegaram a Georgetown, Paul não podia estar mais confuso. Sabia - e
não havia como se enganar - que Anina o amava.
Não conseguia compreender por que ela não aceitara tornarse sua esposa.
Sendo a carruagem um lugar totalmente impróprio para discutir o assunto, ele
dissera com calma:
- Quando estivermos a sós falaremos sobre isso, querida. Mas em primeiro lugar
teremos que saber quem são os homens que querem me matar e por que fariam isso.
Tendo Anina junto de si, ele sentiu um forte estremecimento percorrer o corpo
dela, prova de que o amava. Ela não teria tal reação se não o amasse.
Ao entrarem no palácio de Lin Kuan Teng, foram logo à procura do anfitrião,
que se encontrava na varanda, sozinho.
Erguendo a cabeça, o chinês saudou-os com alegria:
- Bem-vindos, honoráveis hóspedes. Contudo, devo dizer que regressaram mais
cedo do que eu esperava.
- Temos algo muito importante para lhe dizer - comunicoulhe, lorde Selwgn.
Lin Kuan indicou duas cadeiras e voltou a sentar-se em sua poltrona de espaldar
alto.
Tão resumidamente quanto lhe foi possível, lorde Selwyn pôs o chinês a par
do que havia acontecido.
Lin Kuan ouviu-o atentamente, depois voltou-se para Anina e perguntou-lhe:
- Você conseguiria repetir exatamente as palavras que ouviu, em chinês?
Obediente, ela cruzou as mãos sobre o colo e foi repetindo pausadamente a
conversa dos dois chineses.
Quando ela mencionou que um deles de nome Wang Yen, dera ordens de esconderem
o corpo, Lin Kuan interrompeu-a com uma exclamação.
112
- Tem mesmo certeza de que foi esse exatamente o nome que ouviu? - perguntou
ele.
- Certeza absoluta. Ele disse distintamente: Wang Yen. Eu não iria me enganar.
- Nesse caso, tudo o que lhe posso dizer é que você prestou um serviço
extraordinário. Não apenas salvou a vida do honorável lorde Selwyn, mas ajudou
todos os moradores de Penang.
Anina olhou para ele com uma indagação no olhar. O chinês explicou:
- Existe aqui uma sociedade secreta que age sob as ordens de um chefe, um
facínora que acreditamos ser Wang Yen. Estamos atrás desses criminosos, mas
não temos provas concretas contra eles. Eles têm cometido diversos
assassinatos e estão corrompendo muitos de nossos jovens com ópio.
Anina e Paul ouviam, surpresos. O anfitrião prosseguiu:
- Jamais passou pela cabeça de nenhum de nós, interessados na captura desses
malfeitores, que eles estivessem usando Durham House como esconderijo. Agora
posso ver tudo com clareza. A razão de eles desejarem pôr fim à vida de meu
honorável hóspede é simples: querem manter a casa desocupada para permanecerem
ali sem problemas.
- Acha que minha casa é o lugar de reunião desses criminosos? - indagou lorde
Selwyn.
- Levando em consideração o que ouvi, tenho certeza disso. As autoridades de
Georgetown ficarão, sem dúvida, felizes e agradecidas quando forem informadas
do que vocês descobriram.
Ele ergueu-se, disposto a tomar providências imediatamente.
- vou já procurar as autoridades. Alguns soldados irão a Durham House para
prender os criminosos que lá estiverem e também para deterem Wang Yen.
Ainda falando, Lin Kuan deixou a varanda com sua habitual majestade.
Vendo-se a sós com Paul, Anina murmurou, como se falasse consigo mesma:
- Agora eles não tentarão novamente matá-lo.
113
- Mas se tentarem você deve ir salvar-me - observou ele com um sorriso.
Anina meneou a cabeça negativamente, e ele perguntou-lhe:
- Está pensando em me abandonar? Pois asseguro-lhe que isso será impossível.
Você é minha, Anina, e jamais a deixarei separar-se de mim.
Por um instante ela permaneceu calada. Depois ergueu a cabeça para fitá-lo,
pálida e angustiada.
- Você não compreende... que deve me esquecer? - perguntou ela baixinho,
emocionada.
- Está mesmo achando que sou capaz de esquecê-la? - perguntou Paul com
veemência. - Amo você, Anina, amo-a demais, e passarei por cima de qualquer
obstáculo para torná-la minha esposa!
- Mas... isso é impossível!
Levantando-se da cadeira, Anina foi para junto de uma das colunas e ficou
olhando para o mar.
Paul também se ergueu e foi para perto dela. Ocorreu-lhe que ela pensava,
naquele instante, que, como viera até ali num barco, também deveria partir
viajando por mar.
- Aonde quer que você vá, eu a seguirei - afirmou ele com suavidade na voz.
Um leve estremecimento percorreu o corpo de Anina, porém ela continuou imóvel.
Sem volver o olhar para lorde Selwyn, ela murmurou:
- Você é um homem tão importante... há tantas coisas que você deve realizar
no mundo... Por isso precisa me esquecer.
- Para mim nada é mais importante do que o amor que sinto por você.
Não houve resposta. Notando a quietude de Anina, Paul chegou mais perto dela.
- Amo-a, Anina! Amo-a e a amarei até que nada mais exista no mundo, a não ser
nosso amor. - A voz dele tornara-se profunda. - Para mim você é o céu, o mar,
a terra, os pássaros! Acima de tudo, você representa para mim o paraíso!
Ao terminar de falar ele tomou-a nos braços, e antes que Anina pudesse impedir,
seus lábios se apossaram dos dela.
114
A princípio ela tentou fugir, mas não conseguiu evitar que um doce torpor lhe
invadisse o corpo ao sentir o suave toque dos lábios de Paul.
Para ele, os lábios de Anina eram doces e inocentes. Beijava-os gentil e
delicadamente, como se tocasse uma flor.
Depois, sentindo despertar neles sensações que jamais imaginara experimentar
um dia, seus lábios tornaram-se mais exigentes e apaixonados.
Anina nem conseguia pensar; sentia apenas que todo o seu corpo se fundia no
de Paul. Era tal o seu arrebatamento que se imaginou transportada para o
paraíso.
Seu corpo ganhara o esplendor e o calor do sol; parecia-lhe impossível
experimentar tamanho êxtase e continuar viva, na terra.
Os beijos de Paul tornaram-se ainda mais apaixonados. Eram como fogo, e Anina
passou a sentir que o esplendor do sol se transformara agora em pequeninas
chamas tremeluzentes, que tomavam conta de seu peito e vinham queimar em seus
lábios.
A emoção de Paul era tão intensa que, para se conter, ele ergueu a cabeça.
Numa voz que nem parecia a sua, ele perguntou:
- E agora? Vai continuar dizendo que não quer se casar comigo?
Era tão forte a sensação de ter sido arrastada do céu para a terra, que Anina
ficou um momento emudecida.
Só conseguia fitar lorde Selwyn e seus olhos eram mais eloquentes do que
qualquer palavra.
- Você me ama - insistiu Paul. - Oh, minha querida, você me ama! Nenhum de
nós tem o direito de lutar contra esse sentimento tão completa e
definitivamente maravilhoso!
- Sim... amo você... amo-o muito! Mas não posso aceitar seu pedido de
casamento!...
As palavras saíram desoladas de seus lábios, e ela escondeu o rosto no ombro
de lorde Selwyn. Ele beijou-lhe os cabelos, sentindo-lhes a maciez de seda.
- Diga-me, meu amor, por que não pode se casar comigo? Deve haver uma razão!
115
- Há... Mas não posso falar sobre isso com ninguém! balbuciou Anina.
- Deve contar-me do que se trata - insistiu ele.- Não importa qual seja o seu
segredo, sabe que o guardarei só para mim. Além disso, eu a protegerei.
Anina permaneceu em silêncio, porém era evidente sua indecisão. Afinal, numa
voz sumida, quase inaudível, ela disse:
- Eu não posso contar a ninguém... Sei que ficaria muito magoado. Por isso
um de nós deve partir...
Gentilmente, Paul tocou o queixo dela e fê-la erguer a cabeça e fitá-lo. Havia
lágrimas em seus olhos.
Atrás daquelas lágrimas, no entanto, ele viu uma intensa radiosidade, que o
levou a ter certeza absoluta de que Anina o amava apaixonadamente.
Jamais vira aquela espécie de amor radioso nos olhos de uma mulher. Era como
se uma luz brilhasse no interior de Anina.
Ele soube que aquela luz vinha da alma daquela jovem encantadora e pura.
- Minha querida! Meu amor! Minha adorável e pequenina asa, como você tem coragem
de ser tão cruel comigo?
- Estou tentando ser bondosa... pensando em você e não em mim mesma - respondeu
ela em voz estrangulada. - Prefiro morrer a magoá-lo!
Paul beijou-a novamente.
Não poderia perdê-la! Ele disse a si mesmo que qualquer que fosse seu segredo,
jamais a deixaria, jamais permitiria que Anina se afastasse dele.
Só então compreendeu que, se ela fizera menção a um segredo, a "algo que não
poderia contar a ninguém", era sinal de que sua memória estava voltando.
Ou, o que era mais provável, ela nunca havia perdido a memória.
O que quer que fosse, de uma coisa estava certo: iria cuidar de Anina, iria
amá-la pelo resto de suas vidas. Era uma promessa solene que fazia a si mesmo.
Pouco depois ambos foram para o fundo da varanda e
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sentaram-se num sofá. Anina repousou a cabeça no ombro de Paul. Mantendo-a
bem junto de si, ele sugeriu ternamente:
- Você está exausta, minha querida! Passou por uma experiência terrível, além
de correr daquela forma. Vamos, por um momento, esquecer os problemas. Vamos
desfrutar
com alegria a oportunidade de ficar juntos e a sós.
- Para mim é a maior das maravilhas estar com você, mas temos que ser sensatos.
- É perfeitamente sensato nos alegrarmos com o que temos. Tudo o que peço aos
deuses é tê-la sempre em meus braços, como agora, e saber que você me ama.
- Amo-o! Amo-o muito!
Sua voz era ao mesmo tempo terna e desalentada.
Um criado apareceu na varanda, e Paul soltou Anina.
Tratava-se de um dos criados mais antigos e de posição mais elevada entre os
serviçais. Fazendo uma reverência, o chinês informou:
- Um visitante desejar ver honorável hóspede.
- Um visitante?! - repetiu lorde Selwyn evidentemente surpreso.
Ocorreu-lhe que talvez alguém enviado por Lin Kuan Teng, querendo saber
detalhes sobre o que havia acontecido em Durham House.
O criado chinês explicou-lhe:
- Visitante chegar em navio. Intrigado, lorde Selwyn respondeu:
- Por favor, traga o visitante à minha presença.
Assim que deu a ordem, ergueu-se do sofá e foi para o centro da ampla varanda.
Não queria que Anina se envolvesse naquilo.
Em poucos segundos o criado voltava acompanhado de um cavalheiro, sem dúvida
um inglês. Assim que o viu, Paul exclamou:
- Meu bom Deus! Adrian Meredith! Eu não esperava vê-lo! O inglês, pouco mais
velho do que ele, riu.
- Imaginei mesmo que o surpreenderia, milorde! Na verdade,
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deixei a Inglaterra logo depois de sua partida. Cheguei cinco ou seis dias
depois do senhor. Lorde Selwyn convidou-o a sentar-se.
- Sente-se e conte-me por que está aqui. vou mandar servirlhe alguma bebida.
Os eficientes criados já haviam providenciado uma garrafa de cristal com vinho,
dois copos e um prato de ovos de codorna, habitualmente servido para acompanhar
bebidas.
Adrian Meredith levantou o copo e fez um brinde:
- Ao seu futuro, milorde! É por esse motivo que estou aqui!
- Meu futuro?
- Três dias depois que deixou Londres, o ministro das Relações Exteriores,
lorde Clarendon, foi informado de que, devido ao seu estado de saúde, o
governardor de Cingapura desejava aposentar-se.
Adrian Meredith notou que lorde Selwyn o ouvia atentamente, porém impassível.
- Lorde Clarendon encarregou-me de segui-lo, milorde, e autorizou-me a
oferecer-lhe o cargo de governador de Cingapura. Sua Senhoria, o ministro,
o considera admiravelmente capaz e, sem dúvida, a pessoa ideal para ocupar
essa posição.
Foi tamanho o seu espanto que lorde Selwyn ficou petrificado. Adrian Meredith
prosseguiu:
- Naturalmente a recomendação de lorde Clarendon foi confirmada pelo
primeiro-ministro, e o sr. Disraeli pediu-me para lhe dizer, milorde, que ele
pessoalmente ficaria agradecido se o senhor aceitasse o cargo que lhe é
oferecido.
Ainda semiparalisado pelo efeito da surpresa, lorde Selwyn fez um esforço e
conseguiu encontrar as palavras para dizer:
- Você há de compreender que esta notícia é para mim uma tremenda surpresa.
Realmente, jamais me passou pela cabeça que meus serviços poderiam ser
requeridos no Oriente.
Adrian Meredith sorriu.
- Certamente compreende, milorde, muito melhor do que eu, que Cingapura tem
se desenvolvido e está se tornando o posto comercial mais importante de todo
o Oriente. Além disso, esse desenvolvimento é essencial para o Império
Britânico.
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Entusiasmado como um garoto, ele continou:
- Não me ocorre o nome de outra pessoa que reúna como o senhor tantas qualidades
para exercer o cargo de governador, milorde! Basta considerarmos o
brilhantismo com que desempenhou missões tão difíceis no passado para
confirmar o que estou dizendo. Tenho certeza de que é o homem ideal para
governar Cingapura neste momento tão decisivo para o império.
- Obrigado! - agradeceu lorde Selwyn. - Fico-lhe agradecido por ter vindo de
tão longe me procurar.
Adrian Meredith o fitou com apreensão, pois tivera a súbita impressão de que
lorde Selwyn recusaria o cargo que lhe era oferecido.
- Só posso lhe dizer que gostaria de considerar calma e cuidadosamente a
proposta de lorde Clarendon e do sr. Disraeli
- continuou ele, erguendo-se. - Sei que deve estar muito cansado depois de
tão longa viagem. Proponho que descanse aqui mesmo na casa do honorável Lin
Kuan Teng. Tenho certeza de que ele ficará imensamente honrado em recebê-lo.
Amanhã cedo espero poder lhe dar uma resposta.
Adrian Meredith terminou de tomar o vinho e depôs o copo.
- Compreendo, milorde, que de fato a notícia o tenha surpreendido. Só lhe peço
que considere a proposta cuidadosamente e, se for humanamente possível, que
a resposta seja favorável. Sem a menor sombra de dúvida, precisamos muito de
seus serviços.
Lorde Selwyn ficou comovido, mas limitou-se a sorrir enigmaticamente.
Adrian Meredith contou que uma carruagem o esperava à porta, e lorde Selwyn
indagou:
- Tem mesmo onde ficar?
- Sim, obrigado. Foi tudo providenciado. Ficarei em casa de um dos funcionários
do governador.
Lorde Selwyn estendeu-lhe a mão.
- Nesse caso, até amanhã, Meredith, e obrigado novamente por ter vindo me
procurar.
- Oh, ia-me esquecendo de lhe dizer que antes de vir até aqui parei em Calcutá
e, confidencialmente, conversei com o vice-
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rei, que é um grande amigo seu, sobre o motivo de minha visita a Penang.
Os olhos de lorde Selwyn ganharam um novo brilho. Lembrou-se da conversa
mantida com o conde de Mayo e imaginou exatamente o que o amigo havia dito
a Adrian Meredith.
- O vice-rei encarregou-me de dizer-lhe exatamente estas palavras: "Nesta
vida, é inútil querermos nos opor ao nosso destino". Disse que foi o que
aprendeu ao longo de toda sua vida, e que o senhor entenderia a mensagem.
- Entendo-a perfeitamente! - respondeu lorde Selwyn, rindo.
O sr. Meredith dirigiu-se para a carruagem. Quando ia subir no veículo, viu
um jornal dobrado sobre o assento e entregouo a lorde Selwyn.
- Comprei este jornal no último porto em que fizemos escala. Imaginei que se
interessasse em saber que parece haver um novo herói inglês nesta parte do
mundo. Veja o que diz a notícia,
Entregando o jornal a lorde Selwyn, subiu na carruagem.
Os cavalos puseram-se em marcha, e ele acenou com a mão em sinal de despedida.
Levando o jornal na mão, lorde Selwyn foi ao encontro de Anina, que ainda se
achava sentada no sofá, ao fundo da varanda.
Ela se mantivera tão calada e discreta que, apesar de não estar muito distante,
Adrian Meredith nem notara sua presença.
Aproximando-se dela, Paul atirou o jornal sobre uma cadeira e abraçou-a.
Momentos depois, Anina rompeu o silêncio:
- Fiquei tão feliz em saber que lhe ofereceram um cargo tão importante! O último
governador não foi exatamente um sucesso. Devido ao seu estado de saúde, ele
ia a Cingapura apenas ocasionalmente.
- Você acha que eu aceitaria um cargo desses?
- É claro que deve aceitar! Você será um governador eficiente, maravilhoso!
Todos irão admirá-lo e amá-lo! Papai sempre dizia que os acontecimentos de
Cingapura afetavam diretamente todo o sistema comercial do Império Britânico.
Apesar de ter notado que ela havia mencionado o pai, lorde
120
Selwyn não deu sequer demonstração de ter notado o fato. Perguntou apenas,
suavemente:
- Você quer mesmo que eu aceite o cargo de governador?
- Sim, porque sei que o exerceria de maneira brilhante. Seria um novo Stamford
Raffles. É exatamente de um homem assim que o Império necessita... no momento.
- Nesse caso, aceitarei o cargo, e prometo assumir o governo assim que nos
casarmos e tivermos terminado nossa viagem de lua-de-mel.
Ele falou calma e ternamente, mas de modo determinado, o que não passou
despercebido a Anina.
- Não... não! - gritou ela. - Sabe que não poderei me casar com você...
especialmente se você se tornar governador de Cingapura!
- Por que não, minha adorada?
Não houve reposta, e lorde Selwyn mostrou-se categórico:
- Muito bem. Como não tenho a intenção de ficar morando no Oriente sem ter
uma esposa ao meu lado, explicarei a Adrian Meredith e ao ministro das Relações
Exteriores que não aceito o cargo de governador que me é honrosamente
oferecido.
Anima deu um pequeno grito:
- Não pode fazer isso! Não pode de forma alguma! O que devo fazer para
convencê-lo de que não sou a esposa ideal para você?
- É muito fácil: basta contar-me seu segredo.
Novo silêncio. Anina libertou-se dos braços dele e foi para perto de uma das
colunas, onde ficou olhando para o jardim.
Paul foi para perto dela, e mesmo sem tocá-la, ela sentiu a presença dele e
as vibrações que dele emanavam, como se estivessem muito unidos.
Justamente por sentir-se tão ligada a ele e por amá-lo demais, não iria permitir
que ele estragasse sua vida. Não tinha o direito de prejudicar-lhe a carreira
tornando-se sua esposa, uma vez que era filha de um criminoso.
Não. O que quer que lhe acontecesse, era seu dever afastarse do homem que amava.
Juntando as mãos e apertando-as com muita força, como se
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o gesto pudesse infundir-lhe coragem, pois o horror do que estava para dizer
a fazia sentir-se prestes a desmaiar, Anina murmurou, em voz vacilante e quase
inaudível:
- vou contar-lhe a verdade.
Percebendo o seu sofrimento, Paul aproximou-se dela ainda mais.
- Odeio deixá-la aborrecida, meu amor. Ao mesmo tempo, seu segredo diz respeito
a mim também, porque a amo. Você está agindo corretamente, e não tem outra
alternativa senão confiar em mim.
- Sei disso. Entretanto, assim que ouvir o que vou lhe dizer, compreenderá
que tenho razão ao afirmar que nunca poderemos ficar juntos. Também não devemos
nos ver novamente.
- E você acha realmente que é isso o que irá acontecer?
- Tenho certeza de que é o que acontecerá.
Anina virou-se inesperadamente, e Paul ficou consternado. Jamais vira tamanho
sofrimento no rosto de uma mulher.
- Minha querida... - ele começou a dizer.
- Beije-me - murmurou Anina. - Beije-me pela última vez... E quando me deixar,
lembre-se de que ficarei rezando por você, e de que o amarei até morrer.
Ela aproximou-se mais de Paul, que a tomou nos braços, começando a beijá-la
loucamente, de modo possessivo e arrebatado.
Por meio daqueles beijos ele travava uma luta com Anina, que acabou por
render-se a ele completamente. Entregou-lhe o corpo, o coração e a alma. Nada
mais pertencia a ela.
Sentindo que Anina se entregava sem reservas, Paul quase perdeu o controle.
Então, usando de toda a sua força de vontade, dominou os sentidos e afastou-se
delicadamente dela.
Ela agarrou-se à mureta de pedra, receando cair. Paul também se encostou na
mureta, sem tocar em Anina, que começou a falar, numa vozinha sumida e
amedrontada:
- Meu pai é o capitão Guy Ranson. A princípio ele esteve na Marinha Real;
depois... porque precisava de dinheiro... ele tornou-se um pirata!
Embora sua voz mal pudesse ser ouvida, as últimas palavras
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soaram aos ouvidos de Anina como um grito que ecoava pelo jardim.
Paul não esboçou qualquer reação e ela continuou:
- Papai conseguiu fazer fortuna atacando navios cargueiros, que só liberava
se o capitão de cada navio pagasse um resgate. Desse modo, ele conseguia um
bom dinheiro,
e nenhum dano era causado às pessoas. Também não lhes roubava a carga.
Sem ter coragem de prosseguir, Anina permaneceu virada, sem encarar lorde
Selwyn, que se mantinha imóvel e calado. Respirando fundo, Anina retomou a
narrativa:
- Meu pai operava com dois amigos. Certa noite eles abordaram um navio, e um
inglês que estivera com papai na Marinha o reconheceu. - Anina deu um soluço.
- Para salvar-me, pois acreditava que seu ex-colega iria denunciá-lo, papai
quis deixar-me em segurança na casa deste seu amigo, Lin Kuan Teng. A maior
preocupação de meu
pai era evitar que eu fosse tachada de filha de um criminoso. Ele não temia
tanto ser enforcado como me envolver e arruinar minha vida.
Anina fez um pequeno gesto com as mãos e concluiu:
- É por isso que estou aqui... O resto você já sabe!
Ela fechou os olhos, esperando apenas ouvir os passos de lorde Selwyn se
afastando. Não suportaria vê-lo desaparecer para sempre com uma expressão de
ódio no semblante.
Então, mal podendo acreditar que isso não era um sonho, sentiu os braços dele
passarem em volta do corpo, enlaçando-a ternamente. Paul começou a beijar-lhe
os olhos, as maçãs do rosto e por fim os lábios.
E foram tantos e tão apaixonados os beijos, que só quando teve certeza de que
a mulher que amava havia sido transportada de um inferno de desespero para
um paraíso de luz, Paul disse:
- Minha querida! Minha doçura! Minha adorada! Você chegou mesmo a pensar que
as atividades de seu pai teriam alguma importância para mim? Amo você! O que
quer que seu pai tenha feito ou tenha deixado de fazer nada significa diante
do grande amor que nos une. Eu a amaria ainda que você mesma fosse uma pirata!
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Anina ergueu a cabeça para fitá-lo, maravilhada.
- Fala a sério?
- É claro que sim! Só agora consigo compreender seu medo e por que fingiu ter
perdido a memória.
- Mas você não pode ter uma esposa que precisa permanecer no anonimato.
- Nós pensaremos numa forma de resolver esse assunto tranquilizou-a ele. -
E de uma coisa esteja certa: as pessoas, por mais suspeitas que tenham, não
irão discutir com o governador!
Ele falava em tom de brincadeira, porém Anina irrompeu em lágrimas e escondeu
o rosto no peito dele.
Sentindo todo o corpo dela estremecer, lorde Paul tentou acalmá-la:
- Está tudo bem, minha querida, meu amor. Sei que ficou envergonhada por ter
que me revelar sua história. Mas para mim não importa, e asseguro-lhe que não
importa mesmo, em que atividades seu pai tenha estado envolvido. - Ele
beijou-lhe o rosto. - Se você pessoalmente tivesse cometido uma centena de
assassinatos, eu continuaria a amá-la e me casaria com você.
- É mesmo verdade? - perguntou ela em meio aos soluços. - Nenhum homem pode
ser assim tão maravilhoso!
- Você tem que acreditar em mim. Adoro-a, e vamos nos casar imediatamente!
- Está cometendo um erro. Não posso permitir que faça algo que possa
prejudicá-lo.
- A única coisa que poderá me fazer mal é você não me amar mais e desaparecer
de minha vida, deixando-me só.
Ele fitou-a amorosamente.
- Não estou brincando, querida. Se você me abandonar, voltarei para a
Inglaterra imediatamente.
- Mas Cingapura precisa de você!
- E eu preciso de você, minha adorada! Para impedir novos protestos, ele a
beijou.
Beijou-a até ver desaparecerem as lágrimas de seus olhos e devolver-lhes o
brilho.
- Agora, diga-me que aceita se casar comigo!
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- O que posso fazer? O que posso dizer?
- Diga apenas uma palavra: "Sim"!
- Não posso! - sussurrou ela.
- Estou disposto a passar minha vida toda provando que é você quem está errada.
Não se contendo, Paul voltou a beijá-la.
Erguendo depois de um instante a cabeça, ele sugeriu:
- Como tenho muito a lhe dizer, minha querida, e o tempo está passando, creio
que será melhor caminharmos pelo
jardim. Seria interessante irmos até a baía onde
a vi pela primeira vez. Assim não seremos interrompidos.
- Eu adoraria! Mas primeiro eu gostaria de ir lavar o rosto, porque quero estar
bonita para você - disse ela, erguendo a cabeça para fitá-lo.
- Cada vêz que olho para você acho-a mais linda, e cada dia que passa sinto-me
mais apaixonado.
- Comigo acontece a mesma coisa.
- Então vá depressa. Quero ficar a sós com você, e a qualquer momento nossos
anfitriões e seus filhos estarão de volta.
Emitindo apenas uma exclamação, Anina afastou-se. Mal atravessara a varanda
e alcançara o centro da sala de estar, ouviu a voz de Paul a chamá-la:
- Anina! Espere! Anina! Ela voltou-se.
- Venha cá! Tenho algo para mostrar-lhe.
Quando ela voltou para junto dele, Paul lhe mostrou o jornal que tinha nas
mãos, o mesmo que Adrian Meredith lhe dera, onde se lia a seguinte manchete:
"HERÓI INGLÊS SALVA PASSAGEIROS DE PIRATAS" "O capitão Guy Ranson derrota
bravamente os prahus"
Mal acabou de ler a manchete, Anina deu um grito:
- Papai! É sobre papai!
O medo voltou-lhe aos olhos, mas lorde Selwyn fê-la sentarse no sofá, e passou
a ler em voz alta toda a notícia sobre o capitão Ranson.
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O jornal mencionava que um dos amigos do capitão ficara


doente quando o navio singrava as águas do mar de Málaca, e que ele dera ordens
de voltar. Sua intenção era levar o enfermo para o hospital de Cingapura.
Já estava ficando tarde quando o capitão e seus homens avistaram dois navios
de prahus, os mais perigosos piratas conhecidos.
Os piratas abordavam um navio que fazia um cruzeiro e que se achava ancorado
para passar a noite numa das baías calmas do estreito.
Compreendendo que os prahus, além de roubarem tudo o que os passageiros
tivessem, iriam matá-los, o capitão Ranson, seu outro amigo e os quatro
tripulantes atacaram os piratas, conseguindo matar grande número deles e pondo
os restantes em retirada.
Os últimos parágrafos diziam:
"Infelizmente, no último instante, quando já era certa a vitória, um longo
punhal, a arma preferida dos prahus, atingiu o peito do capitão Ranson. O navio
que ele salvara dos piratas levou-o o mais depressa possível para Cingapura,
porém ele morreu, depois de ter perdido muito sangue.
Todos reconhecem o ato de heroísmo do ex-capitão da Marinha Real.
Foi enviada a Londres uma petição, solicitando à rainha que recompensasse de
algum modo a coragem do capitão Ranson e de seu amigo, o tenente Hutchinson.
Foi sem dúvida a ação rápida de ambos que salvou a vida de mais de trinta
pessoas, que enviaram e também solicitam contribuições para um monumento ao
bravo capitão, a ser erigido em Cingapura".
Compadecido, Paul abraçou Anina, que chorava desoladamente.
Vendo as lágrimas descer-lhe pelo rosto, Paul imaginou que para ela, aqueles
acontecimentos eram de certa forma uma bênção.
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Seu pai havia morrido de maneira heróica, e era assim que ela se lembraria
dele. Não havia mais perigo de ele ser caçado e terminar com uma corda no
pescoço, como um criminoso.
- Não se sinta infeliz, minha adorada - disse Paul, consolando-a ternamente.
- Tenho certeza de que era desse modo que seu pai desejava morrer. Agora ele
sabe que eu cuidarei de você.
- Sem dúvida era isso o que papai desejava - murmurou Anina, em meio aos soluços.
- Naturalmente. Acredito que o capitão ficaria orgulhoso de saber que sua filha
irá ajudar seu marido a governar Cingapura exatamente como deve ser governada.
Anina aos poucos foi se acalmando. Finalmente, com o rosto encostado ao pescoço
de Paul, ela sussurrou:
- Acha que poderei mesmo ser sua esposa?
- Eu já tinha a mais firme convicção de torná-la minha esposa, mesmo sem saber
quem você era nem quais eram seus parentes. Agora sinto orgulho de me casar
com a filha de um herói, um homem que entrará para a história e que será admirado
por todos aqueles que vierem a saber como morreu.
- Nem parece verdade que isso tenha acontecido. Não preciso mais recear que
papai possa ser enforcado.
- Jamais mencione isso novamente - pediu ele com firmeza. - O capitão Ranson
provou sua lealdade e heroísmo, e ninguém poderia desejar um epitáfio mais
admirável do que esse. Agora o que temos a fazer será comunicar a todos quem
você é realmente. Então encontraremos juntos o paraíso, onde ficaremos só nós
dois.
Ele a estreitou nos braços.
- Viverei no paraíso casando-me com você!
- Nós dois já encontramos o paraíso aqui em Penang. Passaremos nossa lua-de-mel
em Durham House, e depois que estivermos em Cingapura, viremos para nossa
propriedade sempre que pudermos escapar de nossas obrigações.
Seus lábios estavam bem próximos dos dela.
- Acredito também, meu amorzinho, que nossos filhos irão adorar Penang. Quando
terminar meu mandato e nós tivermos
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que voltar à Inglaterra, voltaremos sempre que possível para nosso paraíso,
que ficará à nossa espera.
Fitando Anina amorosamente, ele viu uma luz em seu olhar. Era a luz divina
que o guiaria, o impeliria e lhe traria inspiração pelo resto da vida.
Voltando a beijá-la, Paul soube que havia encontrado o que todo homem busca:
o amor puro, perfeito e incontaminado, amor que vem de Deus e é eterno.
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QUEM É BARBARA CARTLAND?
As histórias de amor de Barbara Cartland já venderam mais de 350 milhões de
livros em todo o mundo. Numa época em que a literatura dá muita importância
aos aspectos mais superficiais do sexo, o público se deixou conquistar por
suas heroínas puras e seus heróis cheios de nobres ideais. E ficou fascinado
pela maneira como constrói suas tramas, em cenários que vão do esplendor do
palácio da rainha Vitória às misteriosas vastidões das florestas tropicais
ou das montanhas do Himalaia. A precisão das reconstituições de época é outro
dos atrativos desta autora, que, além de já ter escrito mais de trezentos
livros, é também historiadora e teatróloga. Mas Barbara Cartland se interessa
tanto pelos valores do passado quanto pelos problemas do seu tempo. Por isto,
recebeu o título de Dama da Ordem de São João de Jerusalém, por sua luta em
defesa de melhores condições de trabalho para as enfermeiras da Inglaterra,
e é presidente da Associação Nacional Britânica para a Saúde.

Fim

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