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ARTIGO

TROCA DE CARTAS NO TIME DA VIDA: UM BATE-BOLA


CONSTRUTIVO

EXCHANGE OF LETTERS IN THE TEAM OF LIFE: A CONSTRUCTIVE


PICK UP GAME

ADRIANA MÜLLER RESUMO: Este artigo apresenta e discute uma ABSTRACT: This article presents and discusses
Psicóloga, terapeuta familiar, experiência da aplicação da metodologia do Time an experience of the Team of Life methodology
mestre em psicologia do da Vida em um contexto que envolveu a troca de involving mail exchange between inmates of al-
desenvolvimento e docente do correspondências entre os internos de centros cohol and drugs rehabilitation centers in Brazil
CRESCENT – ES. de reabilitação de drogas e álcool no Brasil e na and Australia. Despite the physical and cultural
Austrália. Apesar da distância física e cultural en- distance between these two groups, they were
tre esses dois grupos, eles conseguiram destacar able to highlight common aspects in their stories,
pontos em comum em suas histórias, construindo and to build a relationship of mutual support that
uma relação de mútua ajuda que auxiliou no pro- helped in the treatment process. This experience
cesso de tratamento. Tal experiência baseou-se was build upon the idea that each person is an
Recebido em 29/11/2011. nos pressupostos que cada pessoa é especialista expert in his/her own history. Once a person
Aprovado em 10/01/2012. em sua própria história e consegue, nas interações has established interactions with others, he/she
que estabelece com os demais, fortalecer aspec- is able to strengthen positive aspects of his/her
tos positivos de sua vida, reconhecer as habili- life, to acknowledge skills and knowledge as well
dades e conhecimentos, assim como ampliar sua as thickening their own stories. Furthermore, ex-
história. Além disso, a troca de cartas entre eles changing mails enabled the sense of shared unity
promoveu no grupo a noção de unidade compar- among individuals, as well as the intention to con-
tilhada e um interesse em contribuir com a vida tribute to the lives of others in similar or related
de outros que passam por situações semelhantes. situations .

PALAVRAS-CHAVE: Práticas Narrativas Coleti- KEYWORDS: Collective Narrative Practice; The


vas; Time da Vida; Documentos coletivos; Centro Team of Life; Collective documents; Rehabilitation
de reabilitação; Brasil, Austrália. Center; Brazil; Australia.

INTRODUÇÃO

Em maio de 2009, o CRESCENT – uma instituição promotora de pós-graduação


lato sensu em intervenção sistêmica com famílias, no estado do Espírito Santo –
trouxe para Vitória (ES) o primeiro workshop de Práticas Narrativas Coletivas no
Brasil*, ministrado por Cheryl White e David Denborough.
Desde meu encontro com Michael White, em 2005, a Terapia Narrativa, pela
forma como organiza e apresenta sua perspectiva teórica e pela posição que o te-
rapeuta ocupa nas conversações, passou a fazer parte da minha prática profissio-
nal. Quatro anos depois, Cheryl White e David Denborough, duas pessoas direta-
mente ligadas a ele, vieram mostrar mais uma aplicação dessa teoria: as Práticas
Narrativas Coletivas. No final de semana seguido ao workshop, Cheryl e David
* Workshop “Reagindo
às dificuldades: práticas orientaram um pequeno grupo de seis pessoas ligadas ao CRESCENT na aplica-
narrativas coletivas no trabalho ção de duas metodologias (a Árvore da Vida e o Time da Vida) em uma instituição
com indivíduos, grupos e
comunidades”. Vitória (ES) 15,
de reabilitação de drogas e álcool no município da Serra (ES). Teve início, então,
16 e 17 de maio de 2009. o trabalho que será apresentado aqui. A sequência dos encontros foi coordenada

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e realizada por mim, com a ajuda de dificuldade sabem quais os desafios Troca de cartas no Time da
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Ravenna B. Negromonte de Almeida, e a serem superados e descobriram
Adriana Müller
sempre mantendo a parceria com Da- formas de lidar com essas situações
vid Denborough. – portanto, podem ser consideradas
Denominamos Terapia Narrativa “consultoras” e compartilhar suas his-
aquela baseada nas ideias e práticas tórias de crescimento com outros que
que David Epston e Michael White passam por situações semelhantes.
desenvolveram desde o início dos anos Uma forma muito comum de com-
1980 e cuja proposta inclui vários con- partilhar tais experiências são as car-
ceitos chave da teoria pós-estrutura- tas (McKenzie & Monk, 1997; Epston,
lista, entre eles o firme compromisso 1989; Morgan, 2000; Denborough,
de perceber as pessoas de forma rela- 2008; Newman, 2008; Madigan, 2011).
cional/contextual/anti-individualista O foco principal desse tipo de docu-
(Madigan, 2011). mentação do processo terapêutico ba-
A Terapia Narrativa considera que seia-se no reconhecimento das com-
nossas vidas são historiadas: para ex- petências, habilidades, qualidades e
plicarmos quem somos, refletimos so- demais aspectos que tornam possível o
bre nossas experiências prévias, agru- fortalecimento das histórias alternati-
pamos essas vivências de determinada vas. Muitas são as utilizações das cartas
forma e temos um roteiro da “realida- terapêuticas e, aqui, gostaria de me de-
de” da nossa vida. Porém, vários outros ter um pouco sobre sua aplicação em
fatos da nossa história ficam excluídos grupos. De forma geral esse documen-
dessa narrativa, constituindo-se no to deve ser escrito tendo-se em mente
que denominamos de “histórias alter- dois grupos: o que contribui para a
nativas”. Quando a história que nar- elaboração do documento e o que vai
ramos está “saturada de problemas”, receber a carta. Como a carta revela
torna-se necessário acessar as histórias forças do grupo, ela é sempre escrita
subjacentes para buscar novas narra- utilizando uma voz coletiva, mesmo
tivas nas quais pessoas significativas, que apresente frases ou experiências
habilidades, valores, capacidades, en- de uma pessoa específica. A documen-
tre outros aspectos, desempenham um tação narrativa coletiva possibilita que
papel relevante (White, 1991; Epston, pessoas que nunca se encontraram
1998; Madigan, 2011). pessoalmente possam conversar e con-
Segundo tal perspectiva teórica, o tribuir com a vida umas das outras.
encontro terapêutico é uma troca en- Baseada em tais pressupostos teó-
tre iguais que buscam, naquele mo- ricos as Práticas Narrativas Coletivas
mento, coconstruir uma história mais seguem quatro princípios básicos:
adequada e plena de significados. Para • destacar a dupla narrativa das his-
tanto, considera-se que o terapeuta tórias*: existe a história do proble-
não é autoridade e que a pessoa é a es- ma e a história de como a pessoa
pecialista em sua própria vida (Epston, respondeu a ele – como conseguiu
1989; White, 1989, 1995, 2007; Epston sair desse problema, como tentou
& White, 1990; Winslade, Crocket & se proteger, quais habilidades teve
Monk, 1997; Denborough, 2008; Ma- que acessar para conseguir lidar
digan, 2011). Dessa nova postura de- com a situação, quais as pessoas
correm diferentes formas de interven- que a ajudaram, de que forma es-
ção, todas elas compreendendo que as sas pessoas colaboraram etc.;
* O termo original é Double-
pessoas que enfrentam determinada • ampliar a história preferida: ajudar storied account.

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a pessoa a construir conhecimentos meio a tantas e tão diversas histórias, o
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mais amplos e ricamente descritos que temos em comum? Todas as nar-
acerca de si mesmo e de sua história rativas advindas desses momentos de
(e não da história do problema); compartilhar servem de base para a ela-
• relacionar as experiências indivi- boração das documentações coletivas.
duais que são relatadas pela pessoa Com o objetivo de facilitar as con-
com alguma situação coletiva; versações nos grupos, foram desen-
• ajudar a pessoa a contribuir de al- volvidas algumas metodologias, todas
guma forma com a vida de outras elas buscando:
pessoas que passam por situações • externalizar os problemas, ou seja,
semelhantes. localizar os problemas em seu
Um dos autores que servem de re- contexto social mais amplo;
ferência teórica para as Práticas Nar- • obter conhecimentos relevantes e
rativas Coletivas é Paulo Freire. David especiais sobre as histórias indivi-
Denborough e Cheryl White tiveram duais;
um encontro com ele em São Paulo em • descrever de forma rica as ações de
abril de 1997 – uma das memórias pre- “unidade na diversidade” – aque-
ciosas que ambos guardam do Brasil e las que visam um objetivo comum;
que serviu de ponto de partida para o • realizar cerimônias de definição*:
livro Práticas Narrativas Coletivas: tra- encontros cuja estrutura cria um
balhando com indivíduos, grupos e co- contexto terapêutico que facili-
munidades que vivenciaram traumas. ta uma rica descrição da vida, da
Uma das ideias de Freire apresentadas identidade e dos relacionamentos
no livro é a tese da “unidade na diver- das pessoas.
sidade” (Freire, 2008) segundo a qual, • permitir a contribuição para a
para alcançar uma democracia real, os vida de outras pessoas.
grupos precisam “trabalhar as seme-
lhanças entre si e não só as diferenças” Cada metodologia trabalha com
(p. 154): o que temos em comum? uma metáfora específica e busca or-
Quais habilidades, valores, crenças, ganizar as informações dentro desse
princípios, sonhos, esperanças, com- contexto metafórico. A seguir apresen-
partilhamos entre nós e nos fazem um, tarei a metodologia do Time da Vida e
apesar das nossas diferenças? um exemplo de sua aplicação.
As Práticas Narrativas Coletivas
buscam encontrar esse ponto comum
partindo dos relatos das vivências e MÉTODO
experiências individuais, dando ouvi-
dos às narrativas de cada membro do O Time da Vida
grupo, buscando nas histórias parti- O futebol é uma paixão nacional –
culares os pontos relevantes e que daí a ressonância que essa metodologia
* Metáfora baseada no trabalho proporciona aos grupos com os quais
da antropóloga cultural Barbara dizem respeito às formas pelas quais
Myerhoff (1982, 1986). Nestas aquela pessoa encontrou resposta aos trabalhamos. Todos torcem por um
cerimônias, algumas pessoas
desafios da vida. time, sabem o nome de jogadores famo-
convidadas (as testemunhas
externas) ouvem a história que Cada pessoa relata sua história en- sos, admiram um determinado jogador,
é narrada e, em seguida, iniciam quanto os outros membros do grupo reconhecem o valor do futebol arte – o
um processo de re-narrar o que, em parte, confirma a impressão
que foi ouvido possibilitando ouvem como testemunhas externas.
que tanto a audiência quanto Posteriormente, as pessoas irão buscar popularmente difundida de que “todo
a pessoa que fez a primeira brasileiro é um técnico de futebol”.
narrativa ampliem a sua história. definir a “unidade na diversidade”: em

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Além disso, essa paixão pelo futebol soas que ajudam o goleiro e ga- Troca de cartas no Time da
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não é exclusividade do povo brasilei- rantem que o time adversário
Adriana Müller
ro. O ganhador do Prêmio Nobel de não marque gol;
Literatura de 2010, Mário Vargas Llo- • ataque – são aqueles que estão
sa, chega a afirmar que “o futebol é o ao seu lado na hora de marcar
ideal de uma sociedade perfeita: pou- os gols, seguem com você, dão
cas regras, claras, simples, que garan- os passes especiais para que
tem a liberdade e a igualdade dentro você possa marcar seu gol;
do campo, com a garantia do espaço • meio de campo – fazem a inter-
para a competência individual” (apud ligação entre o pessoal da defesa
La Taille, 2009). O Time da Vida, como e do ataque, facilitando o de-
metáfora, pode, assim, ser compreen- sempenho tanto de um grupo
dido por diversas culturas em diferen- quanto de outro;
tes partes do mundo. • reserva – são aquelas pesso-
Essa possibilidade de conectar pes- as que, dependendo do “jogo”
soas é uma das grandes conquistas das que está em andamento, podem
Práticas Narrativas Coletivas. substituir uma pessoa ou outra
A metodologia do Time da Vida no time, garantindo que o este
possui as seguintes etapas: mantenha seu desempenho.
b) Além disso, pode ser interessante
1. Aquecimento: os membros do gru- considerar:
po conversam sobre a paixão pelo fute- • seu campo – o local onde você
bol, jogadores favoritos, as habilidades se sente mais “em casa”;
de um bom jogador, a relação entre • o Hino – uma música que tem
uma partida e a vida, entre outros. um significado especial para
você;
2. O Time da Vida: • torcida – todas as pessoas que
a) Cada membro do grupo vai mon- torcem pelo seu sucesso, feste-
jam cada gol e se alegram a cada
tar o seu time, considerando as
vitória.
seguintes posições (cada pessoa
c) Finalmente, cada um lembra os
pode acrescentar mais posições,
gols coletivos alcançados, como foi
caso sinta vontade):
o treinamento, a contribuição de
• goleiro – representa aquela pes-
cada jogador, qual o placar da sua
soa que protege tudo aquilo que
vida, hoje, entre outros.
você conquistou na vida até
hoje e proporciona a segurança
3. Celebrando os gols:
para poder seguir o jogo porque
a) As formas de comemorar os gols
o que já foi conquistado será
e celebrar as vitórias alcançadas –
mantido;
tanto no futebol quanto na pró-
• técnico – representa aquela pes-
pria vida.
soa que mantém você “em for- b) Objetivos alcançados no ano pas-
ma” para todos os jogos, dá as sado:
orientações necessárias para me- • treinamento realizado – quais
lhorar o desempenho, dá bronca pessoas estiveram envolvidas,
durante o jogo, festeja cada jo- onde foi feito o treinamento,
gada, mas fica “do lado de fora”, quanto tempo durou, a frequên-
sem entrar mesmo no jogo; cia dos treinamentos, entre ou-
• defesa – representa aquelas pes- tras perguntas;

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• ajuda que recebeu para fazer Com essa sequência de cerimônias
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esse gol – quais pessoas ajuda- os membros do grupo têm a chance de
ram, direta e indiretamente e reforçar a noção de que eles são agentes
como elas ajudaram; de mudança, sua experiência de vida e
• celebrações – como cada gol foi de superação podem contribuir para a
comemorado e quais as pessoas vida de outras pessoas que passam por
que estiveram envolvidas nestes situações semelhantes. De vítimas da si-
momentos. tuação, eles se convertem em agentes de
c) Olhando para o futuro: transformação da vida de outras pes-
• próximo gol – qual a próxima soas. A história alternativa ganha vida
meta a ser alcançada; – e sua força se espalha para muito lon-
• treinamento – como pretende se ge, como ondas na superfície do lago.
preparar para alcançar esta meta; “Como resultado, isto pode se tornar
• pessoas envolvidas – quais as um antídoto para a imposição de co-
pessoas que poderão ajudar nhecimentos de cura vindos de fora [...]
neste ‘jogo’ e como elas podem aqueles que inadvertidamente impõem
contribuir para o seu bom de- certas compreensões de vida, trauma e
sempenho. cura” (Denborough, 2008, p.43).

4. Driblando os problemas: quais são


os dribles do futebol e a relação que PROCEDIMENTO
podemos estabelecer entre os dribles
no jogo e na vida: conversas sobre os Todas as visitas realizadas, tanto no
problemas que foram driblados, as ha- Cer-Homens quanto no CAAAPU, fo-
bilidades necessárias para driblar esses ram realizadas com a autorização de
problemas, dicas para que outras pes- ambas as instituições, sempre coorde-
soas possam também conseguir dri- nadas diretamente, aqui no Brasil, por
blar as dificuldades, entre outros. Adriana Müller e, na Austrália, por
David Denborough. A participação
5. Evitando obstáculos e ajudando os nos grupos é livre e voluntária, sen-
outros: do permitida a desistência a qualquer
a) manter-se na metáfora: quais as momento. Os trabalhos individuais
dificuldades que um time de fute- permanecem com seus autores e a ela-
bol enfrenta?; boração das cartas segue critérios bem
b) dar um passo além da metáfora: definidos com o objetivo de manter o
mesmo nas circunstâncias mais anonimato das pessoas e dar voz às ex-
difíceis ou de injustiça, as pessoas periências do grupo: devem ser escritas
não ficam passivas – o que é pos- na terceira pessoa do plural, utilizan-
sível fazer? É culpa das pessoas o do uma voz coletiva (“alguns de nós”,
fato de elas não conseguirem al- “muitos de nós”, “nós”) e, ao utilizar a
cançar seus objetivos? Como elas voz individual, isto é feito sem que haja
podem fazer para superar esses menção do nome da pessoa (“eu” “um
obstáculos?; de nós”), mantendo-se, assim, o sigilo
c) possibilitar a contribuição: você com relação à identidade dos partici-
conhece pessoas que enfrentam pantes (Denborough, 2008).
obstáculos semelhantes? E se elas Todas as cartas aqui apresentadas
não têm um time tão forte como o foram escritas pelos participantes dos
seu? Será que podemos ajudá-las? grupos e, posteriormente, lidas em voz

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alta para que todos os membros do time. Todos esses momentos sempre Troca de cartas no Time da
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grupo pudessem dar sua opinião sobre foram de muita descontração, alegria e
Adriana Müller
o conteúdo e a forma do texto. Somen- interesse dos participantes. Ao final do
te a versão final das cartas, aprovada encontro, solicitamos que eles escreves-
por todos os participantes, era enca- sem uma carta relatando o que haviam
minhada para a outra instituição. aprendido, com o objetivo de compar-
Os participantes tinham ciência de tilhar sua experiência com pessoas que
que as cartas escritas seriam enviadas passam por situações semelhantes. A
para outras pessoas que passam por seguir, a primeira carta:
situações similares e permitiram que
suas experiências fossem compartilha- Estamos aqui reunidos para assistir à
das e divulgadas em meios científicos partida de futebol entre o Cer-Homens e
(congressos, simpósios, publicações as dificuldades da vida.
científicas, entre outros). O Brasil é o país do futebol! O fute-
bol faz parte da nossa cultura e o amor
pelo futebol corre como sangue em nos-
RELATO DE EXPERIÊNCIA sas veias. É muito gostoso fazer “gol”,
driblar o adversário, comemorar com
A experiência relatada a seguir mos- emoção, ter um desafio pela frente e até
tra o intercâmbio de cartas entre os assistir é bom!
internos de um centro de reabilitação O time do Cer-Homens reconhece
aqui no Brasil (Cer-Homens) e outro que as experiências dos mais velhos são
na Austrália (CAAAPU)*. Em cada re- importantes para nos ajudar na cons-
lato, apresento o contexto de aplicação trução do jogo da nossa vida. Um de nós
da metodologia no referido encontro, conta até com a contribuição dos bisa-
a carta produzida pelo grupo e, em se- vôs de 112 e 113 anos que até hoje são
guida, o que foi mais relevante naquele jogadores fundamentais em seu time da
dia e na carta elaborada. vida. Além disso, outros de nós coloca-
ram em seu time aqueles que já se foram
Primeira Carta e aqueles que ainda vão nascer porque
Esta experiência começou em maio todos eles dão uma força na hora de dri-
de 2009, com um grupo de internos do blar as dificuldades da vida.
Cer-Homens, uma instituição de reabi- Vamos dar início ao jogo com a bên-
litação de drogas e álcool, somente para ção de Deus e o apoio da família e dos
homens, que funciona em Carapina, no amigos. As lembranças fazem o coração
município da Serra (ES). Cerca de 10 acelerar! O jogo inicia com muitos obs-
internos participaram do Time da Vida táculos, lágrimas, arrependimentos e
desenhando seu campo, escalando seu saudades... Os desafios são grandes!
time, conversando sobre as táticas de Com o andar da partida cada mem-
driblar os oponentes, os gols que fize- bro do time mostra as suas habilidades:
ram e ainda pretendem fazer, o placar o gingado, a garra, força, coragem... So-
do jogo, as formas de comemorar cada mos craques em driblar os problemas,
gol, entre outras conversas relativas ao Quando a boca do povo é muito gran- * Os resultados dessa
jogo. As atividades eram intercaladas de, alguns de nós se agarram nas coisas experiência de intercâmbio,
coordenada por David
com jogos de futebol no campo de que são importantes. É muito bom ter Denborough e Adriana Müller,
areia da instituição para demonstração uma torcida empolgada! É muito bom foram apresentados na 10ª
prática de suas habilidades em driblar, ter jogadores com os quais a gente pode Conferência Internacional de
Terapia Narrativa e Trabalho
dar passes, fazer gols e defender seu contar: laterais, meio de campo, defesa Comunitário, em Salvador (BA).

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e ataque. Todos juntos buscando fazer Ao fim do encontro, David Denbo-
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o gol. E o goleiro, sempre protegendo as rough disse que levaria aquela carta
nossas metas, nossos sonhos e esperanças. até um grupo de homens na Austrália.
Os reservas são importantes porque
o jogo da vida continua e a qualquer Segunda Carta
momento podemos precisar deles. Te- Meses depois, soube que David
mos gols, vitórias, muitas qualidades, Denborough tinha se reunido com
mas precisamos da força de todo o time. um grupo de aborígenes internos em
E também precisamos valorizar nossos um centro de reabilitação, havia apli-
técnicos, pessoas justas que nos ensina- cado o Time da Vida e lido a carta do
ram coisas valiosas na vida. Cer-Homens. Em seu relato ele dizia
Toda essa força nos ajuda a ser novo como aqueles homens haviam ficado
impressionados com o fato de que ou-
homem – não podemos crer em torci-
tros homens, de outra cultura, do ou-
da ruim que não ajuda e nos empurra
tro lado do mundo, que também não
a voltar para a vida difícil. Queremos
tinham o inglês como sua língua-mãe,
torcida animada, feliz com nossos gols,
passavam pelas mesmas dificuldades e
vibrando conosco, acreditando em nós. buscavam solucionar os mesmos dile-
Queremos alcançar o nosso gol, golear mas. O silêncio com o qual ouviram
o adversário. Para isso acontecer vamos a carta do Brasil foi impressionante.
contar com grupos que nos ajudam a Esta foi a segunda carta:
melhorar nossas vidas. Vamos acreditar
que podemos melhorar. Podemos fazer Essa é uma mensagem de Wally
gol de placa, podemos guiar a bola para Malbunka e dos Bulldogs de Western
o fundo da rede. Gol familiar, com a ilu- Arnada.
minação de Deus! Para os homens e os jovens no Brasil.
Um de nós que tem somente nove Nós gostaríamos de lhes agradecer
anos não estava se comportando bem, por nos enviarem as suas histórias. E
mas ele fez um gol com a ajuda de seus queremos lhes enviar palavras daqui
pais... O seu pai passou a bola para a para fortalecer a sua recuperação.
sua mãe que, com muito amor e cari- Obrigado por compartilhar conosco
nho, passou a bola para ele que finalizou suas palavras.
com um lindo gol, pois ele seguiu o que Ontem, quando as suas mensagens
é importante para a sua família. Desde foram lidas, os homens estavam real-
então a vida tem sido bem mais fácil em mente interessados em ouvi-las.
sua família. Havia um silêncio enquanto as suas
Acreditamos naqueles que nos dão for- mensagens eram lidas. E era uma forma
ça. Sabemos que nem sempre vamos acer- diferente de silêncio.
tar, mas que o jogo da vida continua e nós Éramos 43 homens no galpão aqui
em Hermannsburg e todos estavam
estamos em campo. E a galera pede gol!
quietos.
Foi fantástico ouvir as palavras de pes-
Esta primeira carta soa como a nar-
soas de diferentes culturas e diferentes lin-
ração de uma partida de futebol entre
guagens. Isso significou muito para nós.
o Cer-Homens e as dificuldades da Gostamos quando vocês falam de
vida. Relata a importância desse es- transformar a “força do afastamento”
porte na vida de cada um, o que foi em uma “força propulsora”.
relevante nas escalações dos times e a Nós estamos tentando transformar
certeza de que “o jogo da vida conti- a raiva em uma força propulsora que
nua e nós estamos em campo”. mude a nossa comunidade. Essa ideia

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vem dos jogadores mais jovens do nosso Essas são algumas das coisas que fa- Troca de cartas no Time da
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time. Eles que nos ajudam a fazer a mu- zemos e que tentamos lembrar quando
Adriana Müller
dança acontecer. não nos sentimos seguros aqui. Gos-
Nós nos encontramos toda segunda taríamos muito de saber o que vocês
quinzena, em uma segunda-feira, para fazem quando não se sentem seguros.
dividirmos nossas fraquezas e, como um Será que vocês poderiam compartilhar
time, buscarmos como fazer para con- conosco esse conhecimento?
sertarmos nossas vidas. Nós perdemos os últimos jogos aqui.
Recentemente nós começamos a fa- Talvez as mensagens e histórias de vocês
lar sobre como os jovens em algumas possam fazer com que voltemos a vencer.
comunidades não se sentem seguros. É�����������������������������������
que nós estamos na fase de aqueci-
E sobre o que os jovens podem fazer mento. Estamos aquecendo o time.
quando eles não se sentem seguros. Al-
Talvez possamos manter contato e fa-
gumas das coisas que nós fazemos por
lar sobre formas de manter o nosso time
aqui são:
fortalecido. Quem sabe até a gente pos-
• nós nos unimos;
sa jogar uma partida juntos algum dia
• ou montamos a cavalo;
• ou saímos para caçar. desses...
Quando estamos no mato, é como Alguns de vocês perguntaram se po-
se a terra pudesse nos proteger. Quan- deriam compartilhar esse nosso docu-
do voltamos para casa depois de ficar- mento com outras pessoas. Claro, nós
mos no mato, sentimos menos medo. até gostaríamos que assim fosse. Se as
De alguma forma, o medo vai embora nossas histórias podem ajudar outras
quando montamos nossos cavalos. Nós pessoas, por favor, compartilhem-nas
voltamos a nos conhecer de novo quan- com eles.
do rimos e brincamos. É como se nosso E, cada vez que lerem o nosso docu-
espírito voltasse para nós. mento, por favor, pensem em nós.
Algumas vezes nós também oramos Nossos espíritos estarão com vocês
para que Deus nos ajude. Isso nos ajuda desde o campo de futebol dos Western
a encontrar calma e paz. Às vezes a te- Bulldogs.
rapia também ajuda. E algumas vezes a Um novo espírito está surgindo. Nos-
gente tenta não pensar no passado. sos espíritos estarão com vocês.
Quando o medo está nos rondando Essa é uma mensagem de Wally
nós sempre nos fortalecemos perguntan- Malbunka e dos Bulldogs de Western
do uns aos outros “quem nós represen- Arnada.
tamos?” e a resposta é Hermannsburg.
Quais são as nossas cores? Vermelho, Esta segunda carta mostra a impor-
branco e azul. Onde quer que a gente tância dos documentos coletivos: por
vá, nossas cores são importantes. É como um lado, relatam o quanto represen-
um conhecimento secreto: nós temos as
tou para eles receber uma carta de ho-
melhores cores! Nós nos orgulhamos do
mens tão diferentes, mas ainda assim,
vermelho, que representa a terra; nos
tão iguais a eles. Por outro, solicitam
orgulhamos do branco, que representa a
que sua carta possa ser compartilha-
vida. E nos orgulhamos do azul, que re-
da visando a ajudar outras pessoas
presenta a liberdade e a alegria. Quan-
do você combina essas cores em uma, é que passam pela mesma situação. Isto
como uma mistura do arco-íris. E faz o mostra como é poderosa a conexão
time ficar mais forte. Faz com que a gen- entre histórias e grupos, viabilizada
te corra com orgulho. pela documentação coletiva.

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Terceira Carta exclusivamente para homens que têm
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Quando voltamos para o Cer-Ho- problemas com drogas, álcool e compor-
mens, o grupo de internos já havia mu- tamentais. Nós somos em mais ou me-
dado. Tivemos que explicar ao novo nos 35 (trinta e cinco) pessoas. Alguns
grupo o contexto da carta, utilizamos a conhecem a história da colonização do
metodologia para propiciar conversas continente australiano e o massacre que
de re-autoria e, depois, lemos a carta os aborígenes sofreram. Não foi mui-
dos aborígenes. Um silêncio respeitoso to diferente do Brasil. Nossos índios, os
envolveu todos os presentes e seus re- verdadeiros donos desta terra, foram
latos expressam o que sentiram: “Sinto quase dizimados, escravizados e muitos
honra em poder compartilhar o que que sobreviveram adquiriram hábitos
sei” (22a); “Pessoas do outro lado do dos homens das cidades grandes. Muitos
planeta fazendo conexões. Com certe- deles, hoje, usam droga, álcool e se pros-
za eu estou em união com eles e essa tituem. É lamentável.
força alimenta algo espiritual e bom Na nossa biblioteca há uma revista
em mim” (26a); “Estou muito emocio- Viagem que traz um artigo sobre “Da
nado com o silêncio que eles fizeram Austrália nativa restaram apenas o le-
ao ouvir sobre nós. Fiquei muito hon- gado aborígene e os famosos animais
rado” (23a). que não existem em outros lugares do
Chamo a atenção aqui para o fato mundo”. Fantástico! Há uma foto de
de que esse grupo não foi o que es- Tjapukai, um lugar para aprender um
creveu a primeira carta. Esse é um pouco da cultura aborígene em Caims.
fato relevante, pois mostra a força de Bela!
“criar unidade na diversidade”: no Entretanto, estamos felizes e agrade-
momento em que lemos a carta-res- cidos pela resposta que nos foi dada por
posta à mensagem que eles não escre- vocês.
veram, esse grupo se sentiu membro Nosso país tem uma população bem
de algo muito maior. Tal fato deu um diversificada, ou seja, somos uma mis-
sentido maior à experiência individu- tura de índio, negro, europeu e asiático.
al, conectando-a à experiência de ou- Nosso estado, Espírito Santo, podemos
tras pessoas e destacando que a carta dizer que é como um pequeno Brasil,
deles era importante em outros luga- pois temos o índio, o negro, o branco, o
res, mesmo que eles não fossem ouvir asiático e a mistura entre todos.
a resposta à carta que enviassem. En- Nosso clima é diversificado, pois te-
volvidos nesse sentimento de mútua mos praias, montanhas, dunas, rios,
ajuda e de fazer parte de uma unidade lagos e cachoeiras. E isso tudo num pe-
maior, eles realizaram uma pesquisa queno estado, que é o nosso!
sobre a Austrália na pequena biblio- Nossas cores são verde, amarelo, azul
teca da instituição. A terceira carta e branco. O verde representa as flores-
demorou dois dias para ser escrita e tas (Amazônia); o amarelo representa a
relata o que eles encontraram ao lon- riqueza do solo (ouro); o azul, o céu e
go da pesquisa. o mar; e o branco, a paz – que, infeliz-
mente, nos dias de hoje foi trocada pela
Serra (Espírito Santo/Brasil), 25 de violência. Principalmente pela corrup-
julho de 2010. ção dos governantes, dos traficantes de
drogas, enfim, de uma sociedade apo-
Nós estamos aqui reunidos na Co- drecida. Mas buscamos em Deus nosso
munidade Terapêutica Cer-Homens, refúgio.

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Voltando às cores, coincidentemente ção. E nossa “família” da comunidade Troca de cartas no Time da
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são as mesmas da camisa da seleção de Cer-Homens! Somos homens sofridos,
Adriana Müller
futebol do Brasil e Austrália. É uma ex- mas dispostos a ajudar uns aos outros.
celente identificação! Vocês nos perguntaram também o que
Nós somos um país de excelentes e nós fazemos quando estamos inseguros.
corajosos jogadores. Quando entram em Além da resposta que demos acima, há
campo, passam a ser um só! Mas um só as nossas famílias, pessoas às quais nos
mais fortalecido. Ficamos tristes com apegamos e que nos amam! São nossa
as derrotas, mas a perda é que nos dá base e referência para nossa vida.
coragem para ganhar na próxima vez.
Assim, teremos chance de analisar onde A carta é uma busca do que deno-
erramos. minamos, com Freire (2008), de “criar
Somos um só, pois não gostamos de unidade na diversidade” ao relatar as
perder. Aqui somos um time, que defen- semelhanças entre culturas tão distan-
de nosso país, e toda nossa comunidade, tes: a história de dominação em am-
nossa nação. bos os países, a diversidade cultural e
Quando estamos inseguros, nos ape- a semelhança entre os uniformes de
gamos em Deus, isso aumenta a nossa ambas as seleções. Apresenta o Bra-
fé. Fé significa o firme fundamento da- sil por meio das cores da bandeira e
quilo que não se vê, mas se tem certeza responde à pergunta sobre como eles
que existe. superam os problemas, mencionando
Nós, que numa etapa das nossas vidas a família, a Fé, as amizades feitas no
usamos drogas, tínhamos coragem para Cer-Homens e a ajuda daqueles que
ir buscá-las. Mas, após o efeito passar, trabalham na instituição. E terminam
vinha o medo, o pesadelo, a depressão. a carta convidando o grupo da Austrá-
Então, tivemos coragem de nos render lia para uma partida de futebol.
e vermos que somos fracos e buscamos
alívio para nossas dores, medos e defeito Quarta Carta
de caráter. E aí nasce o novo Homem! A carta foi enviada para a Austrá-
E muitos que se rendem, estão nascendo lia e, antes do final do ano, a resposta
neste belo país, como é o de vocês. chegou:
Também admiramos o vermelho, que
é a cor da nossa terra; o azul, que é a cor Caros colegas do Cer-Homens,
do nosso céu e do nosso mar e o branco,
a paz almejada. Vocês são mais do que Agradecemos pela carta. Muitas coi-
vencedores, pois reconheceram a derrota sas na mensagem de vocês nos fizeram
humildemente. A vida é um jogo. Nem refletir. Tudo o que acontece nestas ter-
sempre se ganha, nem sempre se perde. ras do outro lado do oceano também
Para tudo dá-se Glória a Deus. Que seja acontece por aqui. Esperamos que as
sempre feita a vontade d’Ele! coisas que foram pesadas para vocês co-
Estamos esperando vocês aqui para mecem a se transformar.
uma partida de futebol ou um convite As palavras que vocês nos enviaram
para irmos até aí. nos trouxeram esperança. Elas nos esti-
A paz de Cristo e abraços da nossa mularam a continuar este trabalho de
Comunidade Cer-Homens! ajudar a nós mesmos e aos outros.
Nós nos apegamos muito com nossa Gostamos de ver as fotos de vocês,
família sanguínea, apesar de nos dis- então, estamos enviando uma nossa
tanciarmos no momento da drogadi- também.

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O Time da Vida de vocês é baseado • ter o suporte da família e não ficar
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no futebol, mas o nosso é com as regras sozinho faz muita diferença;
do futebol Australiano. É um jogo dife- • caçar nas campinas – emus, cangu-
rente. Gostaríamos de saber como é o rus, goanas... É excelente. Quando
Time da Vida de vocês. vocês vierem para a Austrália, de-
Vocês sabiam que existe um jogo que pois de perderem o jogo de futebol
é uma mistura de futebol americano e o Australiano, nós vamos levá-los
futebol de vocês? Normalmente ele é jo- para caçar!
gado entre a Irlanda e Austrália. Quem
sabe a gente não joga contra vocês al- Essas são algumas coisas que fazemos
gum dia. Nós provavelmente vamos para deixar de beber. Será que vocês po-
derrotá-los! deriam compartilhar conosco mais al-
Falando sério, agora, as palavras de gumas histórias?
vocês nos inspiraram a continuar nossa Nós gostamos muito da parte da car-
batalha. Estamos no CAAAPU que é a ta que vocês falam: “Ficamos tristes com
Unidade do Programa de Tratamento as derrotas, mas a perda é que nos dá
de Alcoolismo da Austrália Central... coragem para ganhar na próxima vez.
Parece que é a mesma coisa que o Cer- Assim, teremos chance de analisar onde
-Homens. É um lugar aonde as pessoas erramos.” Também gostamos da par-
vêm para parar de usar drogas e álcool. te em que vocês dizem “vocês são mais
Algumas pessoas vêm para cá por man- do que vencedores, pois reconheceram a
dato judicial. Eu estou no CAAAPU há derrota humildemente”.
seis semanas e ainda vou ficar aqui por Também acreditamos que temos que
mais duas. aprender a perder antes de aprender a
Esperamos que vocês se mantenham ganhar e que aprender a perder pode
firmes e focados durante o Natal e o Ano nos dar força para lutar mais uma vez.
Novo. Esperamos que vocês tenham um Perder não é bom, mas não podemos
Natal seguro e alegre. simplesmente sentar e não fazer nada.
Queremos compartilhar com vocês Não ajuda nada colocar a culpa nos ou-
algumas formas pelas quais tentamos tros. É preciso aprender com as derrotas
manter nossos espíritos fortalecidos com para que possamos começar a vencer.
o objetivo de parar de beber. Nós sabemos que alguns de vocês
Algumas coisas que fazemos são: perderam pessoas que vocês amavam.
• saímos para o campo e nos conec- Nós também perdemos pessoas que-
tamos com a terra e com o espírito ridas. Queremos dizer que sentimos
– sair para estar em contato com a muito e somos solidários com vocês.
terra me restaura; Principalmente eu que ainda estou
• manter-me ocupado trabalhando triste porque perdi uma pessoa muito
faz muita diferença para mim; especial para mim.
• estar com crianças faz com que eu Todos nós perdemos pessoas da famí-
esqueça outras coisas, como beber; lia. Eles são agora como os nossos an-
• participar de jogos saudáveis e fazer cestrais que desejam que continuemos
parte de um time me fortalece; em frente. Eles nos incentivam na vida
• para mim, sair e andar a cavalo me e sabemos que eles querem que sigamos
ajuda a ficar longe das drogas e do adiante.
álcool; Quando estamos tristes, algumas
• levar a família para um piquenique vezes somos liberados para passar um
no campo ocupa a mente; tempo com nossa família querida. Ou,

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então, para irmos à campina onde há uma força que vocês nos enviam dire- Troca de cartas no Time da
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silêncio e podemos sentir o espírito. Isso tamente do coração da Austrália. Isso
Adriana Müller
nos revigora. nos traz felicidade e nos motiva a se-
No ano que vem talvez dois de nós guir em frente.
consigam ir ao Brasil. Nós queremos che- Queremos dizer que vocês podem até
gar e compartilhar histórias com vocês. ser melhores jogadores de Futebol Aus-
Acho que precisamos praticar nos- traliano, mas nós somos pentacampeões
so futebol. Quem sabe a gente não faz mundiais no futebol de campo (rsrsr-
uma partida entre CAAAPU e o Cer- srsss.....). Convidamos vocês para virem
-Homens. jogar aqui o famoso futebol arte brasileiro.
Que vença o melhor time! O futebol faz parte da nossa vida.
Desejamos a vocês alegria e paz nesse Aprendemos desde pequenos a jogar
Natal. bola, a torcer por um time, a cantar o
Diretamente do coração da Austrália. hino do time, a fazer dribles, dar passes.
O futebol faz parte da nossa vida e, tam-
Apesar das diferenças culturais, a bém, da nossa rotina de reabilitação. É
quarta carta veio com desejos de Feliz uma das coisas que fazemos para nos
Natal – uma demonstração de reco- manter focados no nosso objetivo.
nhecimento e respeito ao fato de que Outra coisa que nos traz conforto e
o grupo aqui do Brasil é cristão. Além fortalecimento nesse Campeonato é a
visita familiar. A família é muito im-
disso, merecem destaque as explica-
portante para todos nós. Depois de um
ções sobre como eles conseguem ficar
mês aqui no Cer-Homens, recebemos
sem beber e a provocação com relação
visitas familiares todo final de semana
ao desafio de jogar o futebol Australia-
e, depois de 3 meses, passamos um final
no. Tal comentário tocou profunda-
de semana com a família. A união com
mente o grupo aqui no Brasil, como
a família é muito importante para nós.
pode ser percebido a seguir.
A melhor coisa do mundo é quando eu
vejo minha mãe entrando pelo portão.
Quinta Carta
Isso me deixa mais forte. O olhar de fe-
O grupo do Cer-Homens que ouviu licidade dela ao me ver aqui, lutando
essa carta se sentiu muito mobilizado para vencer, me dá esperança.
com a provocação relativa ao futebol Sabemos que o Jogo da Vida não é
e fez questão de que a carta-resposta batalha fácil de vencer. Para vencer esse
falasse sobre o futebol-arte do Brasil, jogo precisamos mudar os lugares que
sobre o fato de sermos pentacampeões frequentamos, as pessoas que nos leva-
e que o desafio que o Cer-Homens vam aos lugares errados e os hábitos que
propunha era jogar o futebol de cam- temos no nosso dia a dia.
po. Além disso, gerou um interesse Também participamos em grupos
pelas regras do futebol australiano e de mútua ajuda nos quais partilhamos
mobilizou o grupo para ensinar aos nossas dificuldades e aprendemos for-
aborígenes sobre as regras do futebol mas de viver melhor, longe da adição.
de campo. Além disso, temos o momento de traba-
lho e de estudo onde procuramos força
Caros colegas do CAAAPU e conhecimento na palavra de Deus.
“Conhecereis a Verdade e a Verdade vos
Nos reunimos mais uma vez aqui no libertará.” “Cair é do homem, levantar
Cer-Homens para ouvir as palavras de é de Deus.”

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Uma música brasileira diz “quem Assim, temos um Time da Vida
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acredita sempre alcança” – por isso Campeão. Cada gol é uma Vitória e to-
nunca desistam de seus objetivos porque dos nós aqui no Cer-Homens estamos
a Vitória pode demorar, mas ela vem. jogando para vencer. No Jogo, Deus é o
O nosso Time da Vida é baseado no juiz e, para alguns de nós, os filhos são
futebol arte brasileiro. Ficamos curiosos o motivo de buscar a vitória. Quando a
em saber como é o Time da Vida de vo- gente percebe que alguém do time joga
cês, porque não sabemos as regras nem contra, damos um cartão vermelho e ex-
as posições do Futebol Australiano. pulsamos essa pessoa do time. No nosso
No nosso futebol, as posições do Time time só fica quem nos ajuda e contribui
da Vida são: para a nossa vitória.
• o goleiro: defende todas as nossas No time adversário estão os trafican-
conquistas e não deixa o time ad- tes, os usuários, os locais impróprios, as
versário fazer gols; más companhias e as más amizades. Es-
• defesa: ajuda o goleiro a proteger tamos tentando derrotar esse time. Se-
as conquistas; remos campeões!!! “Meu pai toca para
• ataque: trabalha para fazer gols; minha mãe, que dá um belo passe para
• meio de Campo: ajuda na passa- a minha avó, que toca para Jesus. Jesus
gem da defesa para o ataque. passa a bola para o meu irmão, que corre
Fora de campo, temos: e toca para meu sogro que dribla e passa
• o técnico: aquele que nos treina, para o Emiliano. Emiliano mata no pei-
briga quando erramos, se ale- to, cruza para a Esperança que devolve
gra quando acertamos e garante para meu sogro que passa para o Emilia-
que vamos estar preparados para no que dá um belo passe para a minha
cada jogo; esposa, que lança para mim. Eu mato no
• banco de reserva: Pessoas queri- peito, driblo o zagueiro, dou um chute e
das que, dependendo do time ad- é GOOOOOOLLLLLLLLLL!!!!!!!!!!!!!”
versário, podem substituir outras No Time da Vida sempre tentamos
pessoas do time; vencer. Fazemos o possível e nos esforça-
• torcida: todos aqueles que estão vi- mos muito para atingir nossos objetivos.
brando com nosso Time e torcendo Certamente vencemos, porque é preciso
para que sejamos vencedores. que se perca para descobrir a próxima
Escalamos para nosso time pessoas vitória. Entretanto, todos os times têm
queridas da família – mãe, pai, filhos, falhas. É preciso estudar e descobrir
esposas, irmãos, avós, tios, primos, o so- quem é quem. Prestar atenção no jogo
gro e até um ex-sogro – e, também, quem para saber a quem devemos dar o car-
não é�����������������������������������
da família – amigos, vizinhos, na- tão vermelho. Isso é muito bom para que
moradas, o padrasto, pastores, amigos da saibamos decidir entre o bem e o mal.
família e amigos do Cer-Homens. Agradecemos pela oportunidade de
Alguns de nós escalam qualidades compartilhar nossa história com vocês.
e habilidades que auxiliam no Jogo da Em nossas Orações diárias pedimos que
Vida: Força de vontade, Esperança, vocês sejam sempre felizes, que sejam
Confiança, Responsabilidade, Caráter, vitoriosos. A carta de vocês nos motivou
Perseverança, Trabalho, Pensamento muito. Esperamos que a nossa também
firme e correto, Oração, Coragem, Sin- lhes motive.
ceridade, Amor, Justiça, Respeito, Hu- Descobrimos com a nossa correspon-
mildade e Mudança de caráter. Além dência que a história é sempre a mesma,
disso, também escalamos a Bíblia, Deus, só mudam os personagens. Queremos
a Fé, o Espírito Santo, Jesus e os Anjos. nossa vida de volta em nossas mãos,

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nossa família junto com a gente, olha- como mais um jogo no campeonato da Troca de cartas no Time da
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res de admiração porque conseguimos vida, entender a espiritualidade (mes-
Adriana Müller
vencer. A história é sempre a mesma – e mo que de forma distinta em cada cul-
somos todos campeões! tura) como orientadora da caminhada
Diretamente do campo de futebol de deles e perceber a família como fonte de
areia do Cer-Homens, força e de sentido para a vida.
Muita torcida e admiração. Mais uma vez reforço que as cartas
aqui apresentadas foram redigidas pe-
Nesta carta o grupo do Cer-Homens los próprios internos – e não por nós,
ressalta a “oportunidade de comparti- especialistas pós-graduados – falando
lhar nossa história com vocês”, a mo- de suas experiências, de suas crenças
tivação que essa troca de correspon- e de suas habilidades de superação dos
dência provoca e as descobertas que desafios diários envolvidos no processo
surgem a partir disso: “Descobrimos de reabilitação. São narrativas particu-
com a nossa correspondência que a lares e coletivas daqueles que vivenciam
história é sempre a mesma, só mudam esta experiência e querem compartilhar
os personagens.” o que têm aprendido com pessoas que
passam por situações semelhantes. De-
mos voz a essas pessoas e às histórias al-
CONSIDERAÇÕES FINAIS ternativas que começam a surgir nesses
espaços de reabilitação.
Esta experiência exemplifica como Certamente outras possibilidades
as Práticas Narrativas Coletivas po- de pesquisa se abrem a partir dessa ex-
dem acessar habilidades e saberes da periência: a forma pela qual cada pes-
história individual que fortalecem soa reforça sua história alternativa, a
uma visão positiva de si e uma versão força dessa história alternativa no pro-
mais ampliada de sua própria história cesso de reabilitação, quais mudanças
de vida, além de contribuir para o for- foram possíveis após a aplicação desta
talecimento de histórias coletivas. metodologia, enfim, aspectos que não
As trocas de cartas (documentações foram o foco do presente trabalho,
coletivas) entre estes dois povos nos mas que são igualmente relevantes
proporcionam a chance de considerar para a área.
vários aspectos teóricos: a importância O que vale ressaltar, ao finalizar este
da testemunha externa, o poder da res- artigo, é que, por meio destas trocas de
sonância, a possibilidade de entrelaçar correspondências, esses homens nos
as histórias individuais com as coleti- ensinaram que podem ser os especia-
vas, a criação da “unidade na diversi- listas na experiência de luta contra a
dade”, entre outras tantas. dependência química e que, quando
Além disso, esta experiência possi- existe uma troca entre iguais, a possi-
bilita-nos refletir que, mesmo pessoas bilidade de crescimento mútuo é mui-
distantes entre si, tanto física quanto to grande e enriquecedora.
culturalmente, conseguem encontrar
pontos em comum e se fortalecer com
suas histórias. Tanto no Cer-Homens REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
aqui no Brasil, quanto no CAAAPU lá
na Austrália, a metáfora do futebol con- DENBOROUGH, D. (2008). Práticas nar-
tribuiu para compreender os desafios rativas coletivas: trabalhando com
que o grupo enfrenta naquele momento indivíduos, grupos e comunidades

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