Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Sztutman A Antropologia Reversa de Jean Rouch PDF
Sztutman A Antropologia Reversa de Jean Rouch PDF
Abstract: The work of Jean Rouch can be connected with an array of debates in
contemporary anthropology. I would like to point out just one of them, the one
proposed by the American anthropologist Roy Wagner on the notion of “reverse
anthropology” – an anthropology that treats native reflexivity as if it were
anthropology. If the visual anthropology of Rouch is, firstly, a “shared anthropology”,
it is, in many instances, also a reverse one. Movies very different among themselves
as Mad Masters (1954) – the first ethnographic film in which Rouch focused an urban
context – and Little by Little (1970) – an ethnofiction in a satirical tone – are excellent
examples of this reversibility, as I shall demonstrate.
Keywords: Jean Rouch. Reverse Anthropology. Cinema. Ethnofiction. Utopia.
Résumé: L’œuvre de Jean Rouch peut être connectée à une série immense de débats
dans l’anthropologie contemporaine. Je dois me concentrer, plus précisément, sur
celui proposé par l’anthropologue américain Roy Wagner autour de la notion d’
«anthropologie renversée» – une anthropologie qui traite des réflexions indigènes
comme si elles étaient de l’anthropologie. Si l’anthropologie visuelle de Rouch est,
d’abord, une “anthropologie partagée”, elle est dans bien des cas aussi “renversée”.
Films très différents entre eux comme Les maîtres fous (1954) – le premier film
ethnographique de Rouch porté dans un contexte urbain – et Petit à petit (1970) –
une ethnofiction jouée sous un ton satirique – sont d’excellents exemples de cela,
comme je dois démontrer.
Mots-clés: Jean Rouch. Anthropologie renversée. Cinéma. Ethnofiction. Utopie.
No fundo de cada heresia há, pois, uma Utopia. (...) A 1. Este artigo é uma versão
utopia é sempre um sinal de inconformação e um prenúncio de revista do texto de duas
apresentações realizadas no
revolta. Colóquio Internacional Jean
Rouch, em 3 de julho de 2009
Oswald de Andrade, A marcha das utopias na Cinemateca Brasileira, São
Paulo, e em 18 de agosto de 2009
na Universidade de Brasília.
Agradeço especialmente a
Os filmes e idéias de Jean Rouch, grande parte deles gestados Mateus Araújo Silva pelo convite,
pelo diálogo e pelo estímulo.
na África do Oeste, antecipam, ainda que de modo selvagem, Agradeço, por seus comentários
instigantes, a Rose Satiko Hikiji,
muitas das questões centrais da antropologia contemporânea, não Ruben Caixeta, Cristian Borges,
apenas a visual mas também aquela que continua a se debruçar Andrea Paganini, Marco Antonio
Gonçalves e José Jorge de
sobre conceitos. E essa antecipação nada mais é do que a prova Carvalho.
de que o pensamento – o pensamento antropológico, por exemplo
– é tanto melhor quando tecido nesse trânsito entre arte, filosofia
e ciência, é tanto melhor quando tem em vista, além das funções
e dos conceitos, os perceptos e os afectos (DELEUZE; GUATTARI,
1991), elementos fundamentais, diga-se de passagem, de toda
experiência etnográfica.
A reviravolta estética e epistemológica promovida por Rouch
consistiu em acrescentar à tarefa de registrar e documentar por
meio de imagens fenômenos socioculturais – tarefa deste que
podemos chamar de “filme etnográfico clássico” –, uma dimensão
propriamente dialógica. Com Bataille sur le grand fleuve (1951),
Rouch inaugurava um diálogo com os filmados – ou nativos, como
preferimos os antropólogos – exibindo para eles suas imagens
de modo que pudessem opinar sobre o produto final do filme.
Inaugurava-se, assim, uma antropologia compartilhada que, aos
poucos, ganhava mais espaço, submetendo o filme etnográfico
– que muitas vezes transbordava para o que ficou conhecido
como “etnoficção” – a um processo de “autoria múltipla”, no
qual ele figurava como maestro. Esse processo era ancorado
em elementos como improvisação diante da câmera, inserção
de comentários sobrepostos às imagens por parte dos filmados,
formação de equipes de técnicos e assistentes africanos, e, ainda
que em menor grau, a participação na mesa de montagem. Rouch
foi responsável, vale ressaltar, pela formação de certos cineastas
africanos, além de ter sido um dos idealizadores das oficinas que
dariam origem, no começo dos anos 1980 em Moçambique, aos
Ateliers Varan, ainda bastante atuantes.
Do compartilhado ao reverso
Para Rouch, a dimensão “compartilhada” é potencializada
pelo uso da imagem. Afinal, os nativos não lêem os textos
O sonho reverso
Rouch enfatiza mais propriamente o desejo de uma
antropologia reversa quando, em um debate travado com o
cineasta senegalês Sembène Ousmane, ocorrido em 1965, afirma
que seu sonho é que os africanos filmem no mundo ocidental,
filmem em Paris. Ousmane teria lançado farpas aos africanistas
europeus e ao filme etnográfico em geral, por retratarem os
africanos “como insetos”. Rouch procura escapar dessa acusação,
ao menos no que se refere ao seu próprio trabalho, alegando que
o próprio da antropologia é oferecer um olhar estrangeiro, e que
uma verdadeira postura de simetrização de saberes e práticas não
seria dada apenas com a oportunidade de os nativos – no caso,
os africanos – filmarem eles mesmos os seus problemas, mas
também com a oportunidade de eles filmarem os seus outros – por
exemplo, nós mesmos. Rouch afirma: “A antropologia que se presta
a estudar a cultura francesa deveria ser praticada por gente de fora
A tribo parisiense
É interessante notar que o período que separa Jaguar de Petit à
petit, duas etnoficções, é pontuado por filmes importantes rodados
na França, então algo novo para Rouch. Note-se também que esse
período é bastante profícuo para a filmagem – num molde mais
clássico – de rituais complexos, como os Yenendi (dos Songhay e
Zerma) e os primeiros anos do Sigui (dos Dogon), que dura sete
anos e é realizado a cada sessenta anos.
O primeiro desses filmes parisienses é Crônica de um verão
(1960), co-dirigido com Edgar Morin. Mas Paris já se fazia notar
em La pyramide humaine (1959), cujo foco é a relação entre
estudantes brancos e negros em Abdijan. Entre os estudantes
brancos está Nadine Ballot, espécie de musa dos filmes parisienses
de Rouch. Crônica de um verão, primeira experiência propriamente
dita de Rouch com o som sincronizado, é, em suas palavras, uma
espécie de “etnografia parisiense”, uma experiência de filmar
a própria tribo, mas sempre com o olhar distanciado obtido na
África. Nesse filme, habitantes de Paris falam sobre si mesmos
e vivem suas próprias vidas em frente à câmera, refletem sobre
o fim da guerra da Argélia, sobre o processo de descolonização
da África (em 1960, o Mali e o Níger conquistam finalmente sua
independência política) e sobre as relações entre brancos e negros.
Depois de Crônica seria a vez de La punition (1962), Les
veuves de quinze ans (1964) e Gare du Nord (1965), filmes que
se aproximam da Nouvelle Vague por seus aspectos formais e
temáticos. Retratam, em longas tomadas externas, o cotidiano
de personagens parisienses sempre às voltas com seus dilemas
existenciais: uma colegial à procura de um amor louco e da
liberdade, adolescentes aristocráticos vivem o rock, o jazz e o tédio,
uma moça recém-casada, e já insatisfeita com a rotina conjugal,
vê-se diante de uma reviravolta em sua vida. Note-se que o olhar
irônico sobre essas situações e personagens parisienses, presente
Mosso mosso
No já referido debate, promovido pela revista CinémAction (n.
17, 1982), Rouch é obrigado a rebater críticas que tomam o seu
Referências
ALMEIDA, Ronaldo; NASCIMENTO, Silvana. Pombas-giras, espíritos, santos e
outras devoções. Novos Estudos Cebrap, n. 57, p. 197-199, 2000.
CLASTRES, Pierre. De que riem os índios? In: A sociedade contra o Estado. São
Paulo: Cosac Naify, 2003.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34,
1991.
GOLDMAN, Marcio; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O que pretendemos é
promover conexões transversais. In: SZTUTMAN, Renato (Org.). Eduardo
Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Azougue, 2008. (Coleção Encontros)
GONÇALVES, Marco Antonio. O real imaginado: etnografia, cinema e surrealismo
em Jean Rouch. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O olhar distanciado. Lisboa: Edições 70, 1986.
MONTESQUIEU. Cartas persas. São Paulo: Perosa Editores, 1991.
ROUCH, Jean; OUSMANE, Sembène. Une confrontation historique entre Jean
Rouch et Sembène Ousmane: ‘Tu nous regardes comme des insectes’. In:
PRÉDAL, René (Éd.). Dossier Jean Rouch, un griot gaulois. CinémAction, n.
17, p. 104-106, 1982.
ROUCH, Jean et al. Conclusion (un peu) polémique: cinéma ethnographique et
cinema d’intervention sociale: des frères ennemis? Table ronde avec Jean
Rouch, par Guy Hannebelle, Monique Martineau, Yvonne Mignot-Lefebvre,
André Pâquet. In: PRÉDAL, René (Ed.). Dossier Jean Rouch, un griot gaulois.
CinémAction, n. 17, p. 165-175, 1982.
SARTRE, Jean-Paul; COHN-BENDIT, Daniel. A expansão do campo do possível.
In: COHN, Sérgio & PIMENTA, Heik (Orgs.). Maio de 68. Rio de Janeiro:
Azougue, 2008.
SCHEINFEIGEL, Maxime. Jean Rouch. Paris: Éditions du CNRS, 2008.
STOLLER, Paul. Embodying colonial memories: sprit possession, power and the
Hauka in West Africa. New York: Routledge. 1995.
SZTUTMAN, Renato. Imagens-transe: perigo e possessão no cinema de Jean
Rouch. In: BARBOSA, Andrea; CUNHA, Edgar T.; HIKIJI, Rose (Orgs.).
Imagem-conhecimento: antropologia, cinema e outros diálogos. Campinas:
Papirus. 2008.
TAUSSIG, Michael. Mimesis and alterity: a particular study of the senses. New
York: Routledge, 1993.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Mana, v. 8, n. 1, p. 113-148,
abr. 2002.
WAGNER, Roy. The invention of culture. Chicago: The University of Chicago Press,
1981.