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17/07/2020 7 reflexões sobre a arte de escrever | Rodrigo Gurgel

7 re exões sobre a arte de escrever


By Rodrigo Gurgel - 27 January, 2017

Vivemos acreditando que a realidade se oferece a nós de forma evidente — mas a verdade é que nem tudo é simples.

Estas 7 reflexões sobre a arte de escrever são uma releitura dos vários textos em que
trato desse tema — e que podem ser encontrados aqui no site. Aprofundo neste artigo
algumas questões e recupero outras, que avalio como essenciais:

1. Olhos abertos à realidade

Observar é fundamental. O escritor precisa ser um mestre da atenção. Vivemos


acreditando que a realidade se oferece a nós de forma evidente — mas a verdade é que
nem tudo é simples. Por trás de cada reação humana, de cada gesto, há influências,
escolhas, dúvidas, certezas, interesses, desejos, temores. O bom escritor dialoga com
todos esses elementos, tenta descobri-los, imagina-os, enquanto exercita essa qualidade
imprescindível: observar.

Mas não se trata de uma observação passiva. O escritor deve se colocar na pele das
pessoas e tentar compreender suas reações — e, a seguir, imaginar como ele próprio
reagiria em situações semelhantes. Muitos têm o poder inato de fazer esse exercício —
mas não é impossível treinar tal capacidade de observação.

A realidade inteira deve servir ao trabalho do escritor: dos sonhos a um diálogo rápido
no ponto de ônibus; das lembranças da infância às decepções, incertezas e alegrias que
ele testemunha ou experimenta. É preciso permanecer atento à vida; e abandonar a
ideia, tão difundida hoje, de que “só é realidade o que eu considero real” — verdadeiro
absurdo.

Sendo curioso, o escritor alimenta sua imaginação. Entender o estranho, o diferente, o


outro que nos perturba ou encanta, ajudará o escritor não só a conhecer seu próprio eu,
mas também a criar personagens convincentes, complexos.

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Vivemos acreditando que a realidade se oferece a nós de forma evidente — mas a verdade é que nem
tudo é simples.

Sim, jamais desprezar a realidade. Mas não esquecer, como afirma Henry James, que “a
experiência nunca é limitada e nunca é completa”. Para esse genial romancista, a
experiência é semelhante a “uma espécie de vasta teia de aranha, da mais fina seda,
suspensa no quarto da nossa consciência, apanhando qualquer partícula do ar no seu
tecido”. Ou seja, a experiência — a abertura ao real, deve ser “a própria atmosfera da
mente”, ela deve levar “para si mesma os mais tênues vestígios de vida”, deve
“converter as próprias pulsações do ar em revelações”.

2. Para que servem as anotações?

A uma carga tão intensa e constante de observação deve corresponder a necessária


desconfiança em relação à capacidade da memória. Dizendo de forma mais simples:
nunca confiar na memória, anotar tudo, cada inspiração, cada ideia.

O meio não importa — cadernetas ou celulares, blocos ou tablets. O fundamental é


gravar tudo o que desperte a atenção. (De minha parte, retornei ao papel e à caneta-
tinteiro, por serem mais prazerosos e mais seguros.) E anotar sem se preocupar com a
lógica, com uma possível relação entre as notas. Não se angustie se, no fim do dia, as
anotações parecem incoerentes, sem nexo. Cada nota é um universo particular, que
poderá servir para uma ou várias histórias — ou não.

Mas é importante guardar todas as notas. Se possível, em algum tipo de arquivo


temático — podem ser simples envelopes —, e revê-las obedecendo a determinada
periodicidade ou quando se precisar de uma ideia. Coloque-as sobre a escrivaninha:
podem surgir inesperadas tendências ou o esboço de uma trama. A nota não utilizada
hoje talvez se torne, no futuro, o tema de um conto, a cena de um romance, o núcleo de
um ensaio.

3. Ambiente de trabalho e tempo

É importantíssimo criar um espaço no qual se possa escrever sem interrupções — um


espaço que seja adequado ao processo criativo. O escritor necessita de quietude interior
— e alguns alcançam esse estado de concentração em meio ao barulho. Nem todos
apreciam o silêncio — alguns precisam de um ruído de fundo, como músicas ou o

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burburinho do café, do bar. O importante é encontrar o espaço em que você se sinta


predisposto à escrita.

Sob meu ponto de vista, o escritor deve se afastar da agitação social, da euforia urbana,
da fugacidade das panelinhas e das mesas de bar. Silêncio e recolhimento são
fundamentais se desejamos descobrir um método de trabalho, um processo organizado
que permita à criação fluir com o mínimo de obstáculos. Tal método, quando repetido e
aprimorado, permite ao escritor aproveitar o tempo — isto é, não malgastar o que, por si
próprio, se dissipa com facilidade.

O trabalho criativo demanda tempo — e, portanto, uma forma especial de ócio, que não
é a completa ausência de perturbações ou inquietações da mente. Ao contrário, o corpo
pode passar a ideia de inatividade, mas a mente trabalha de forma profusa — se não
fosse assim, o Ponto 1 deste texto, o exercício da observação constante, seria
impossível.

4. Disciplina e presença completa

Mais que estabelecer um período de tempo para o trabalho — enquanto se produz um


conto, um romance, um ensaio —, deve-se definir um número diário de páginas. Tal
volume de trabalho precisa ser encarado de forma draconiana — e, claro, o escritor terá
o bom senso de não se impor metas impossíveis. É fundamental estabelecer uma
disciplina — com local, horário e a previsão de quanto se escreverá diariamente —, pois
não se trata de permanecer horas devaneando diante do papel em branco, mas de
escrever.

Nos períodos de ócio ou de intensa atividade, o fundamental é “estar completamente


presente”. Essa, aliás, é a regra da vida inteira, não só do escritor, como aconselha o
crítico e poeta norte-americano Mark Van Doren: “Existe algo que podemos fazer, e as
pessoas mais felizes são aquelas que conseguem fazê-lo no limite máximo de sua
capacidade. Nós podemos estar completamente presentes. Podemos estar inteiros aqui.
Podemos… dar toda a nossa atenção à oportunidade que está diante de nós”.

Em certa medida, passado e futuro deveriam ser estranhos para o escritor — só


alimentando tal estranheza ele pode se abrir a todas as potencialidades que o presente
lhe oferece.

5. Conviver com o censor

O escritor também deve ter claro que seu trabalho é um contínuo exercício de superação
do medo. Por trás da sua mente sempre existirá o juiz incansável que ficará sugerindo o
que as pessoas falarão ou pensarão a respeito dos seus textos.

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O meio não importa — cadernetas ou celulares, blocos ou tablets. O fundamental é gravar


tudo o que desperte a atenção.

Se tal censor existe em todas as consciências, nas mais pequenas decisões, estará ainda
mais presente no trabalho criativo. Aceitar esse censor é o primeiro passo para saber
utilizá-lo em nosso próprio benefício. Ele não é de todo mau, se pensarmos em quantas
idiotices já nos impediu de fazer — e escrever. O homem — e o escritor — que não tem
nenhuma autocensura é também o que não possui nenhuma autocrítica.

Trata-se, assim, de aceitar a sentença do juiz — mas pelos motivos corretos. E, entre
estes, não se encontra a opinião dos outros.

Da mesma forma, é preciso aprender a conviver com o desconforto que certas ideias
causam, com o desânimo, com a dúvida, com pensamentos que vão e voltam,
irrequietos, muitas vezes prontos a colocar o escritor diante de decisões angustiosas,
labirínticas.

6. Escrever, apenas

O escritor deve entender seu ofício sob uma perspectiva prática: da mesma forma que
aprende a contornar ou ceder ao juiz interior, não deve se prender aos seus próprios
limites. Ou seja, no ato da escrita, no momento da criação, não deve preocupar-se com
dúvidas gramaticais, com lacunas inevitáveis da formação intelectual, ou deixar-se
desanimar pela insegurança em relação à qualidade do seu texto.

Precisa aprimorar-se, claro, principalmente estudando bons escritores, mas com a


certeza de que a ausência de perfeição absoluta não é um problema seu, mas de todos.

A solução é escrever. Escrever sempre. Quanto mais produzir, mais se aperfeiçoará.


Deve lutar para ser ótimo — mas sem permitir que o perfeccionismo destrua sua
vontade de escrever.

Erro comum é tentar enriquecer, de maneira artificial, o próprio vocabulário ou a forma


das frases, dos períodos. O escritor constrói seu estilo de forma gradativa, com

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paciência. Antes de tudo, deve ser ele mesmo — deve permitir que sua personalidade
fale — e escrever no ritmo dela, com as palavras dela.

Engana-se quem pensa que produzir literatura é escrever “bonito” ou “difícil”. Na


verdade, o primeiro objetivo do escritor é contar sua história de forma clara, da melhor
maneira que puder. Assim, iniciado o período diário de trabalho, o escritor deve, apenas,
escrever. Não deve voltar sobre cada frase, corrigindo-a, melhorando-a. Isso fica para
uma segunda fase, quando reescreverá, desbastando o texto, acrescentando novas
ideias, novas cenas — ou não.

Na elaboração do primeiro rascunho, pouco importam os erros de português ou as


imprecisões do pensamento, o tamanho das frases ou a lógica da paragrafação. Na
primeira etapa, deve-se apenas escrever. Escrever sem preocupar-se, também, com a
originalidade. Lembre-se do que André Gide afirmou: “Tudo já foi dito uma vez, mas
como ninguém escuta é preciso dizer de novo”. A sua forma pessoal de “dizer de novo”,
de dizer com o seu próprio estilo, se firmará, com certeza, a cada novo texto.

7. Ter um plano — e não escrever para todos

O principiante pode se sentir mais seguro seguindo duas sugestões: primeiro, imaginar
um leitor. É mais fácil alcançar objetividade quando não se escreve para todos, o que
equivale a escrever para qualquer um. Não se trata, contudo, de escrever para agradar a
esse leitor ou grupo de leitores; trata-se apenas de ter uma referência. À medida que a
história for construída, o escritor talvez acabe se divertindo em contrariar o leitor
imaginário.

Em segundo lugar, deve ter um plano — o mais minucioso possível. Mas sentir-se livre
para mudá-lo, pois nenhum escritor sabe, com todos os detalhes, começo, meio e fim da
sua história. Além disso, o escritor tem poder absoluto sobre sua criação e seus
personagens — o que significa que não precisa se preocupar em escrever seguindo a
ordem cronológica do seu plano. Pensando nos personagens, pode matá-los e, meses
depois, contar seus nascimentos.

***

De resto, ninguém mais do que o escritor acredita no poder das sinapses — os neurônios
conversam entre si, criam conexões inusitadas a cada milésimo de segundo. Não
esqueçamos o evento sináptico experimentado por Victor Hugo: explorando a Catedral
de Notre-Dame de Paris, encontrou da palavra “fatalidade” gravada à mão numa parede;
a forte impressão causa por essa descoberta desencadeou o processo de criação do
romance O corcunda de Notre-Dame.

Rodrigo Gurgel
http://www.rodrigogurgel.com.br

Sou professor de literatura e escrita criativa — e crítico literário. Minha Oficina de Escrita Criativa (com
turmas semestrais) e meus outros cursos são transmitidos on-line, aqui neste site. Tenho quatro livros
publicados: Muita retórica — Pouca literatura; Esquecidos & Superestimados; Percevejos, Ideólogos — e
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alguns Escritores; e Crítica, Literatura & Narratofobia. Você pode acompanhar meu trabalho também no
YouTube e no Telegram.

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