Hegel e o Estado. Captulos 01 02 e 03. WEIL PDF

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Impresso no Brasil, abril de 2011

Eric Weil, Hegel et l'État —Cinq Conférences suivies de Marx et la


Philosophie du Droit
© Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1950; 2002.
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HEGEL E O ESTADO
C IN C O C O N F E R Ê N C IA S SEGUIDAS D E
M A R X E A FILOSOFIA D O D IR E IT O

TR A D U Ç Ã O
CAR.LOS NOUGUÉ

R e a liz a ç õ e s
E d ito ra
*4 *
1.0 L ugar H istõrico da
Filosofia P olItica de H egel
Apesar de toda uma série de bons livros aparecidos ao lon­
go dos últimos trinta anos, tanto na Alemanha como na Fran­
ça, Hegel é de todos os grandes filósofos o menos conhecido,
ou, ao menos, o mais mal conhecido. Isso não impede, de
modo algum, que certa imagem dele se tenha estabelecido so­
lidamente, um desses retratos que deixam atrás de si os gran­
des pensadores - historicamente grandes justamente porque
deixaram tais retratos, que agem muito mais à maneira de um
ideal muito mais que à maneira de um conceito. Assim como
Platão é o inventor das ideias e do gênero de amor que toma
seu nome, assim como Aristóteles é o homem da lógica for­
mal e da biologia, e Descartes é o herói da clareza, e Kant é o
rigorista, Hegel é o homem para o qual o Estado é tudo, o indi­
víduo nada, a moral uma forma subordinada da vida do espí­
rito: em uma palavra, ele é o apologista do Estado prussiano.
Certamente, sabe-se que Hegel se voltou para outros pro­
blemas, que ele foi, como se diz, panlogista, que ele elaborou
uma filosofia da natureza declarada romântica e de todo in­
compreensível, pior que isso, não científica, que ele deu cur­
sos sobre a filosofia da religião, sobre a estética, sobre a histó­
ria; sabe-se ainda que seus livros exerceram uma influência
amiúde decisiva, seja diretamente, seja fixando o pensamento
de autores que se caracterizam por sua oposição às soluções
hegelianas, mantendo com respeito aos problemas, porém,
quase inconscientemente, a forma que Hegel lhes dera; po­
der-se-ia dizer que, para combater as ideias de Hegel, seus
adversários se servem ainda de suas categorias. Mas isso são
lembranças da história da filosofia: a medalha que circula en­
tre o grande público (que, ao fim e ao cabo, termina por ser o
público tout court) é cunhada com os traços do prussiano, do
reacionário, do inimigo inconciliável dos liberais, do homem
mais criticável, mais detestável para todos os que constituem
no século XIX a “esquerda”. Seria uma temeridade querer cor­
rigir tal imagem.
Sem dúvida, é fácil citar fatos para justificar tal tentativa.
Hegel, por exemplo, foi um dos censores mais duros da Prús­
sia no momento em que, no fim de sua juventude, ele se volta
para os problemas políticos, abandonando o domínio da teo­
logia, que tinha sido o seu anteriormente.1Concluir-se-á que a
* É F ich te q uem , em c e rto m o m e n to d e su a carreira, teria d ire ito , m u ito m ais
q u e H egel, ao titu lo d e filósofo d o E sta d o p ru ssia n o , se se p en sa n o E sta d o p o ­
licial, feito d e reg u lam en to s, d o m in a d o p o r u m a a u to rid a d e cen tral e ab so lu ta.
H eg el escarnece d e tal reg u la m e n ta ç ã o d e to d o s o s d e ta lh e s d a v id a , d e sd e o
artigo so b re "A D ifere n ç a e n tre o S istem a d e F ic h te e o d e S chelling” (1 8 0 1 ),
ed. L asson, p. 6 4 ss e p . 6 7 , n o ta , a té a F ilosofia do D ireito (abr.: P h D ), prefácio,
p. 14 ss, ed. L asson, 3* ed . O tex to d a C onstituição p ro v a q u e o p e n sa m e n to ,
e n ão apenas o gosto, d e H e g e l recu sa o E sta d o d a a u to c ra c ia fre d e riq u ia n a e
p ó s-fred eriq u ian a {La C o n stitu tio n d e l A
’ llem agne, ed . Lasson, 2 a ed., p . 3 1 ): “É
in fin ita a diferen ça e n tre u m p o d e r estatal (.Staatsgew alt) d e tal m o d o a rra n ja d o ,
q u e tu d o aq u ilo c o m q u e eic p o d e c o n ta r se e n c o n tra e m su as m ãos e, e m c o n ­
trap artid a, ju sta m e n te p o r causa d isso , n ã o p o d e c o n ta r c o m n a d a alé m d isso ,
e (u m p o d e r estatal) q u e , a lé m d o q u e te m nas m ãos, p o d e a in d a c o n ta r c o m
a livre adesão, c o m o o rg u lh o (Selbstgefliht) e o p ró p rio esforço d o p o v o , n u m
esp frito o n ip o te n te e in vencível q u e esta h ie ra rq u ia e x p u lso u e q u e só é vivo
aii o n d e o p o d e r su p re m o deixa o m á x im o possível (os negócios, o s assuntos)
à p ró p ria iniciativa {Besorgung) d o s cidadãos. A p reen d er-se-á a p en as n o fu tu ro
c o m o , e m tal E stad o m o d e rn o o n d e tu d o é reg u lad o d o alco, o n d e n a d a q u e
p o ssu a u m lad o universal é e n tre g u e à a d m in istra ç ã o e à execução pelas p a rte s
d o povo q u e nele estão interessadas — cai é a fo rm a q u e se d e u a R ep ú b lica
francesa — (co m o em cal E stad o ) se e n g e n d ra rá u m a v id a seca e te d io sa (lie.:
d e c o u to ) e sem espfrito, se esse to m pcdaneesco d o g o v e rn o p o d e m an ter-se;
ora, q u e g énero d e v id a e q u e secu ra d o m in a m e m o u tr o E stad o , reg u lad o d a
m esm a m an eira, n o E sta d o p ru ssia n o , isso im p re ssio n a c a d a u m , assim q u e
ele e n tre n o p rim eiro p o v o a d o d este E stado, o u aq u e le q u e veja aí a fâlta to ta l
d e g énio científico e a rtístico , o u a q u e le q u e n ã o c o n sid e re a força (prussiana)
seg u n d o a en erg ia efêm era à q u a l u m g é n io iso lad o a so u b e fo rçar p o r c e rto

14 1 HegeleoEstado
Prússia que ele tinha então em vista não era a Prússia que, de­
pois, ele citou como exemplo,*2ao passo que é a primeira a for­
necer a imagem popular deste Estado. Acrescentar-se-á que a
Prússia histórica, a de Frederico Guilherme IV, a dos Guilher­
mes, a que foi o centro do III Reich, não tinha o sentimento de
dever muito ao filósofo: ao contrário, morto este, o governo
real fez tudo o que podia para acabar com sua influência, cha­
mando o velho Schelling a Berlim, excluindo os hegelianos das
cátedras; e que, em suma, Hegel a partir da Revolução de julho
de 1830, teve enorme influência no mundo inteiro - menos na
Prússia: inferir-se-á disso que a Prússia real não se reconhece
no pretenso retrato traçado por Hegel, que este o terá pintado
mal, ou que ele o terá pintado muitíssimo bem.3

te m p o .” — O texto d este artig o não recebeu a form a definitiva; m as está-se d e


acordo em fixar a d a ta d e su a escrita en tre 1798 e 1802.
2 V er os textos q u e serão referidos a seguir.
3 D em asiado b em p in ta d o , de m o d o a agradar ao ro m an tism o de F rederico
G u ilh erm e IV, ad m ira d o r das teorias d e C . L. V o n H a lle r (ver m ais adiante)
e n a d a ad m ira d o r de q u e se insistisse n o caráter (em prin cip io ) co n stitu cio n al
da Prússia pós-napoleônica. M al p in ta d o , p o rém , p o rq u e u m a série de traços
e d c in stitu içõ es q u e , p a ra H egel, sã o essenciais n u n c a existiram na Prussta.
o u s<y'existiram nas partes in co rp o rad as após 1815- A qui, o n d e n ã o se tra ta d e
história, basta c ita r crês exem plos; a) X oda. a co n stru ç ã o d o E stado h eg eü an o
"se fu n d a e se c en tra n o p arlam en to o s estados — Standh, n o sen tid o em q u e o
te rm o estados tin h a e m 1789, em b o ra n ão se tratasse p a ra H egel dos m esm os
estados); ora, n ã o h á .p arlam en to n a Prússia) n ão existem senão estados p ro ­
vinciais, e a p rim eira reunião c o m o “d ie ta ” p ru ssian a desses estados só teve
lugar e m 1847. É m ais q u e ju s to observar q u e H egel d á provas de coragem e m
seu ensinam enco; pois Frederico G u ilh e rm e , q u e p ro m e te ra , p o r despacho d e
gabinete de 22 de m aio d e 1815, a form ação de u m a “ representação d o p o v o ”,
n ão via b em q u e o lem brassem de su a palavra: em 21 d e m arço d e 1818, ele
responde às autoridad es provinciais e com unais renanas q u e tin h a m ousado p e ­
d ir u m a constituição: “N e m o ed ito d e 2 2 d e m aio d e 1815 n e m o artigo 13 d a
a ta d a C onfederação fixam o m o m e n to em q u e a c o n stitu ição p ara estados deve
ser in troduzida. N e m to d o m o m e n to é b o m p a ra in tro d u z ir u m a m u d an ça n a
constituição d o E stad o . A qu ele q u e lem b ra o so b eran o das prom essas q u e ele
fez d e sua p ró p ria decisão, in teiram en te livre, d u v id a d e m o d o ím p io e c rim i­
noso d o caráter d a prom essa d o p rín cip e e u su rp a d o ju lg am en to d aquele o que
concerne ao m o m e n to co n v en ien te p a ra a in tro d u ç ã o dessa c o n stitu ição ”. i>)
A p u b licid ad e dos. d eb ate s p arlam entares n ã o e ra a d m itid a na« pro v ín cias qcte
tin h a m conservado estadas. M as, se g u n d o H eg el, essa p u b lic id a d e e im p o r­
ta n te p a ra o c o n tr o f e d a ad m in istra ç ã o é pa ra a form ação d a o p in iã o pública
c) A velha Prússia n ã o co n h ece a in stitu ição d o jú ri, a ú n ica, se g u n d o H egel
q u e d á satisfação à consciêncla-de-si d o cidadão, q u e exige ser ju lg a d o p or seus
pares e n ã o p o r u m a co rp o ração q u e Die é estranha. D e resto, o le ito r d a P h D ,

I - 0 Lugar Histórico da Filosofia Política de Hegel | 15


Tudo isso contradiz a tradição difusa do filósofo da Res­
tauração. E, no entanto, nada disso é suficiente para demolir
a imagem de que falei e que, falando francamente, me parece
falsa. Pois, se tais objeções são importantes, se a admiração
hegeliana pela Prússia não pode ter sido sentimental e irrefle­
tida, haja vista a atitude crítica de seus inícios, se ela não pode
ter sido total, haja vista a reação do Estado prussiano, não é
menos verdade que a essas observações se opõem outras de
peso ao menos igual: Hegel falou da forma do Estado prussia­
no como da forma perfeita do Estado, afirmou que o espírito
germano-cristão domina o presente, criticou o projeto inglês
de reforma parlamentar em 1830, opondo-lhe o estado de coi­
sas tal como tinha sido cafusado pelo governo de Berlim.4 Aí
estão fatos, e fatos tanto mais expressivos porque expressos
pela boca de Hegel. Hegel admirou ao menos o princípio do
Estado prussiano, e disso não se pode duvidar. Resta pergun­
tar o que significa tal admiração.
***
Lendo o que foi escrito sobre Hegel durante a segunda m e­
tade do século XIX, só encontrei um texto, não propriamente
um texto, alguns fragmentos de cartas em que ele se defende
da,censura clássica, a de ser o filósofo da reação.5 Quanto ao

se m p ro c u ra r nas o b ra s esp eciais, cem a p e n a s d e p e rc o rre r o c a p itu lo d e d ic a d o


à P rú ssia p o r C h . S e ig n o b o s e m su a H istó ria P o lítica d a E uropa C ontem porânea
p a ra v er q u ã o p o u c o o q u e H eg el c h a m a d e E sta d o m o d e rn o c o rre sp o n d e à
P rú ssia h is tó ric a do s a n o s 1 8 1 5 -1 8 2 0 .
* V e r m ais a d ia n te as referências.
5 P a ra se rm o s exatos, d e v e m o s c ita r a in d a ap o lo g ia s c o m o a d e R o se n k ra n z
(^Apologie H egelsgegen ZJr. JR H a ym ), p u b lic a d a é m 1 8 5 8 . bdas, a lém d e o es­
c rito , a p e sa r de u m b o m n ú m e r o d e observações ju sta s e p e rtin e n te s, ser fraco,
seu a u to r (c o m o E . G an s) p e rte n c e à escoia h e g e lia n a q u e m u ito ra p id a m e n te
íb i o b rig a d a a ficar n a d efen siv a e já n ã o te v e in flu ê n c ia a p a rtir d a m e ta d e d o
século X IX . —A h is tó ria d a esco la h e g e lia n a a in d a e stá p o r esçrev en o m e lh o r
re su m o e n c o n tra -se e m J o h a n n E d u a rd E rd m a n n , G rund riss d er C eschichte
d e r PhU osopbie (3* cd . — a q u a rta , feita p o r B enno E rd m a n n , é in u d liz á v e l —,
B erlim , 1 8 7 8 , $ 331 ss). C o m o a tra d iç ã o g rá -a le m ã d o sécu lo a tu a l ju lg a H eg e l
aparece c la ra m e n te n a a p o lo g ia d e su a filosofia fe ita p o r F rie d ric h M e in e c k e (o
m e stre d e R osenzw eig): “P e n sa d o re s co n se rv a d o re s, lib erais e radicais, h is tó ­
rico s e d o u trin á rio s , n a c io n a is e c o sm o p o lita s p o d ia m re c o rre r 1 escola desse
sistem a... E le (i.e., H e g e l) o c u p a o p rim e iro lu g a r e n tr e os g ra n d e s p e n sa d o re s

161 HegdeoEstado
mais, todo o mundo está de acordo: olhemos o velho liberal
que é Haym* - sem falar de espíritos de menor estatura, mas
de não menos influência, como Welcker ou Rotteck, líderes
do Partido Constitucional da Grande Alemanha olhemos
a extrema esquerda com os Bauer e seu grupo: seu veredicto
é unânime.67 Voltemo-nos para a direita, para Schelling, para
os herdeiros do romantismo, para a escola histórica de Savig-
ny; se para eles Hegel não está do seu lado,8 é porque ele não
acompanhou o tempo - pois a “direita” sempre é compos­
ta de pessoas que creem ter enfim compreendido a verdade
eterna é porque ele não captou as aspirações de uma épo­
ca renovada, purificada dos miasmas do século XVIII: ainda
para eles, Hegel é um retardatário.
Um só texto, portanto, é exceção. Eis do que se trata: al­
guém publicou um artigo em que se fala de Hegel; o artigo
aparece num jornal e, por estarmos em 1870 e Hegel estar es­
quecido na Alemanha, o editor julga por bem mandar acres­
centar uma nota para dizer que Hegel é conhecido do grande
público como aquele que descobriu e glorificou a ideia “real-
prussiana” de Estado. Depois disso, o autor do artigo se abor­
rece e escreve a um amigo comum:

d o século XDC q u e d ifu n d ira m em geral o senso d o E stado (Staatsgesinnung) .


a convicção d a necessidade, d a grandeza e d a d ig n id ad e m o ral d o E stad o ”
( W eltbürgertum u n d N a tio na lsta at, 2* cd., M u n iq u e e B erlim , 1911, p . 2 7 2 ).
E m outras palavras, H eg e l n ão é an tip ru ssian o c o m o se diz, em b o ra seja ain d a
universalista (expressa-o M einecke, loc. cie., p. 2 7 8 s). O nacionalista M cinccke
está d c aco rd o co m o liberal H ay m .
6 E n tre os adversários d e H egel, R u d o lf H ay m é d e longe o m ais im p o rta n te ,
ta n to pela qualidade d e seu livro c o m o pela in flu ência deste. H egel u n d seine
Z e it foi escrito sob a im pressão d a p o lítica reacionária que se seguiu ao fracasso
d a R evolução d e 1848. U m a seg u n d a edição (Leipzig, 1927), aos cuidados
d e H . R osenberg, c o n té m n u m ap êndice úteis indicações sobre a evolução de
H ay m e sobre a h istó ria d o hegelianism o.
7 M as cf. m ais acim a, n . 7- — P ara a crítica d o jo v em M arx, ver o A pêndice n o
fim deste livro.
8 N um ero sas inform ações (sem n e n h u m a co m preensão dos p roblem as filosófi­
cos subjacentes) em M . Lenz, G eschichte der U niversitaet B erlin, H alle, 1910­
1918, três tom os d e q u a tro volum es. Seguir-se-á facilm en te aí a evolução da
política m inisterial e d a op in iã o universitária.

1 - 0 Lugar Histórico da Filosofia Política de Hegel 1 17


“Esse animal se permite imprimir notas de rodapé a meu
artigo sem nenhuma indicação de autor, notas que são puras
inépcias. Eu já havia protestado, mas no presente a estupidez
corre tão espessa, que isso não pode mais continuar... Esse
animal que, durante anos, esteve a cavalo na ridícula oposi­
ção entre direito e poder sem com ela poder fazer nada, como
um soldado de infantaria que se pôs sobre um cavalo chucro
e se meteu no picadeiro, este ignorante teve o atrevimento de
querer liquidar um sujeito como Hegel com a palavra ‘prus­
siano’... Estou farto disso... É preferível não ser impresso a
ser apresentado... como um asno.” - Ao que o corresponden­
te responde também por carta: “Eu lhe escrevi que ele faria
melhor se calasse a bocaf em vez de repetir velhas asneiras
de Rotteck e de Welcker... O sujeito é verdadeiramente uma
besta”.9 O pobre editor é Wilhelm Liebknecht, um dos líderes

* E ngels, 8 de m aio d e 1870; M arx , 10 d e m a io d e 1 8 7 0 (cartas n“ 1 .3 6 9 e


1 .3 7 0 , ed. M oscou, vot. IV , 1939, p . 3 8 ss). - Eis o te x to , cu ja trad u ç ã o (cd u l-
corada) oferece apen as u m extrato:
" M it M o nsieur W ilh elm ist es n ic h t zu m A u sh a lten . D u w irst gesehen haben*
w ie ‘d u rch A b w esen h eit des S etzers’ (der also d er eigentliche R edakteu r ist) d er
B auernkrieg in einem D u rch eina n d er g ed ru ckt w ird , das G randperret n ic h t bes­
ser m achen kö nn te, u n d d a b ei u n tersteh t sich das V ieh, m ir Randglossen ohne
je d e A n g a be des Verfassers d ru n te r z u setzen, d ie rein er B lödsinn sin d , u n d d ie
Je d e rm a n n m ir zu sc h re ib e n m uss. Ic h habe es m ir schon e in m a l verbeten u n d er
ta t pifetert, je t z t ko m m t d er B lödsinn aber so dick, dass es n ic h t länger geht. D er
M ensch glossiert a d vocem H egel- dem grössem P u b lik u m b eka n n t als E n td eker
(!) u n d V erherrlichet (!!) d er kön ig lich preussischen S taatsid ee (!!!). Ich hab e ih m
h ie r a u f n u n gehörig g ed ien t u n d ih m eine, u n te r d en U m ständen m öglichst m ild e
E rklä ru n g zu m A b d ru ck zugeschickt. D ieses Vieh, das Jah relan g a u f dem lächerli­
chen G egensatz von R echt u n d M a c h t hülflos h erum geritten w ie ein In fa n terist, den
m a n a u f ein kolleriges P ferd g esetzt u n d in d er R eitb a h n eingeschlossen h a t — dieser
Ig n o ra n t h a t d ie U nverschäm theit, ein en K erl w ie H egel m it dem W ort: ‘P reuss’
abfertigen zu w ollen u n d d a b ei dem P u b liku m w eiszum achen, ich h ä tte das gesagt.
Ic h b in das D in g je tz t: sa tt. W enn W . m ein e E rklä ru n g n ic h t druckt, so w ende ich
m ich a n seine Vorgesetzten, d en 'Ausschuss u n d w en n d ie au ch M a n ö ver m achen,
so verbiete ich d en W eiterdruck. L ieb er g a r n ic h t g ed ru ckt, a ls von W ilh. D adurch
zu m E selp ro k la m ie rt" ( r f 1 3 6 9 ). - *Ich h a tte ih m geschrieben, w enn er ü b er H egel
n u r den alten. R otteck- W elckerschen D reck z u w iederholen wisse, so solle er doch
lieber das M a u l h a lten. D as n e n n t er den H egel 'etw as unzerem öniöser Ubers K n ie
brechen etc. ’ u n d , w en n e r E seleien u n te r Engels A u fsä tze schreibt, so ’E ngels k a n n
j a (!) A usführlicheres ( ! ) sagen’. D er M ensch is t w irklich z u d u m m ”( r f 1 3 7 0 ).
O interesse desse tex to è d u p lo . P o r u m lado, ele m o s tra a d iferen ça e n tr e os
fu n d ad o res d o m arx ism o e seus sucessores: L ie b k n e c h t prevaleceu so b re M a rx
e E ngels, e n o p resen te os “rev o lu cio n ário s” estão d e a c o rd o co m os “reacio n á­
rios" em v er e m H eg e l o ap o lo g ista d o E sta d o p ru ssian o - A in d a a ú ltim a o b ra
da social-democracia alemã, o autor da primeira carta é En­
gels, e a resposta é de Marx.
Isto é surpreendente: Marx e Engels não querem admitir
que Hegel tenha glorificado a ideia “real-prussiana” de Esta­
do, Marx e Engels chamam de animal aquele que coloca Hegel
entre os reacionários - aí estão dois defensores da reputação
política de Hegel que passam tradicionalmente por seus críti­
cos mais severos. Como explicá-lo?
É evidente que uma opinião, ainda que emitida por dois
tão bons conhecedores de Hegel como eram Marx e Engels,
não implica autoridade. No entanto, ela serve para confirmar
nossa suspeita: com efeito, nada seria mais natural que ver re­
tomados os reproches de conformismo, de prussianismo, de
conservadorismo pretendem ser os pensadores da revolução.
Se os que afirmam ter ultrapassado Hegel desdenham servir-
se de tal reproche, como não nos proporíamos a questão de
saber se ele pode ser mantido? Ora, se ela não pode ser dita
evidente, a imagem tradicional de Hegel não será equivocada
em certos detalhes: qualquer correção será impossível, e será
preciso substituí-la por outra.

Para isso, sò pode haver um procedimento legítimo: olhe­


mos os textos, tentemos compreender o que Hegel disse, o
que ele quis dizer, e comparemos os resultados desta investi­
gação com a crítica clássica. Se nossa suspeita se confirmar,

d a escola, G - L u k ic s, D e r ju n g e H egel — U eber d ie B eziehungen V on D u d e k tik


u n d O ekon om ie (Z u riq u e e V ie n a , 1 9 4 8 ), a firm a q u e H eg el, se n d o idealista,
n ã o p o d ia d e ix a r d e ie c o n c ilia r-se c o m a m á realid a d e d e su a época. É v erd ad e
q u e o a u to r n ã o passa e m su a s análises d a F enetnenologia do E sp irito c n ão se
ju lg a o b rig a d o a p ro v a r p e la in te rp r e ta ç ã o d o s te x to s o q u e a n te c ip a d e m an e ira
d e d u tiv a . —P o r o u tr o la d o , o te x to p e rm ite c o m p re e n d e r as razões d a tã o cu rio ­
sa alian ça e n tre “liberais'* e “n acio n a lista s” alem ães: u n s d e fe n d e m a sociedade
c o n tr a o E stad o e os o u tro s o E sta d o c o n tr a a sociedade, re cu san d o -se a m b o s a
p e n sa r a so cied ad e n o E sta d o , e n q u a n to M a rx e E ngels, q u e se p õ e m precisa­
m e n te o p ro b le m a d a u n id a d e d o s d o is, re c o n h e c e m a a u te n tic id a d e filosófica
d a an álise h eg elian a e p ro te s ta m c o n tr a a te n ta tiv a de d ep re c iá -la a p a rtir d e
u m a po sição d o g m á tic a e c o m a a ju d a d e ju lg a m e n to s d e v alo r d c o rd e m p o líti­
ca. —P a ra a d ife re n ç a e n tr e H e g e l e M a rx , cf. o n o sso A pêndicc-

1 - 0 Lugar Histórico da Filosofia Política de Hegel | 19


esta tradição se explicará por si mesma como um acidente
filosófico (se não como acidente tout court).
Desde já se pode indicar uma das razões deste acidente:
Hegel não é um autor fácil. Não é, certamente, que lhe falte
precisão e clareza; mas a precisão e a clareza em matéria de
filosofia têm o inconveniente de prejudicar a elegância do es­
tilo e a facilidade da leitura. Hegel é claro, não ainda que, mas
porque exige de seu leitor um grande esforço de colaboração.
Acrescenta-se a isso outro traço: os filósofos - é por isto
que são filósofos e não homens de ação - evitam tomar po­
sição nas questões políticas em razão (paradoxal apenas
em aparência) de tentaretai compreender a política. Hegel,
não mais que Platão ou Aristóteles, não toma posição nas
questões atuais, e, assim como sua Filosofia da Religião foi
invocada tanto pelos ortodoxos quanto pelos deístas e pelos
ateus, assim também sua teoria política foi atacada (e algu­
mas vezes aprovada) por homens de todas as opiniões - jus­
tamente porque, para ele, não se trata de opiniões, mas de
teoria e de ciência.
Em último lugar (nós o mencionamos, para não mais
voltar a isto, porque de modo algum esta dificuldade inter­
vém nas questões essenciais), Hegel nem sempre foi mais
corajoso que a m aior'parte dos homens de sua época e de
todas as épocas: ele às vezes se acomodou -às condições
existentes (por exemplo, na questão dos morgadios, que ele
reprova em princípio mas admite por razões de “alta políti­
ca”), nem sempre insistiu nos pontos que lhe teriam trazido
problemas (ou coisa pior) daparte do Ministério.dos Cultos,
preferiu indicar o que tinha para dizer com certa discrição,
demonstrando um grande otimismo, aliás justificado, no
que concerne à capacidade dos leitores contemporâneos
de não juntar dois textos que não se encontram na mesma
página, de não tirar conclusões cujas premissas estão todas
dadas junto com o método necessário para concluir. Pode-se
reprovar-lhe isto: ele ficou em seu canto, não quis expor-se
a dissabores. Quem não tiver pecado que atire a primeira

20 [ Hegel eo Estado
pedra. Mas Hegel não parece ter abandonado nunca a m enor
parcela do essencial de sua teoria.

Será útil recordar os acontecimentos que determinaram a


história da Prússia no início do século XIX, na época que, para
Hegel, era o presente.10
História extraordinariamente movimentada: se a Revo­
lução não produz nenhum efeito imediato em Berlim (con­
quanto seja falso pretender que todos os meios tenham sido
hostis ou frios), as guerras napoleônicas tiveram ali repercus­
sões mais profundas do que em qualquer outra das grandes
capitais. O Estado prussiano de Frederico II, monarquia tão
absoluta quanto o Império Russo, e talvez de fato mais centra­
lizada, rui em lena, e rui ainda mais rapidamente porque seu
princípio tinha sido desenvolvido com uma pureza maior. No
espaço de quatro anos, a Prússia se transforma: a propriedade
da terra se tom a alienável (exceto os morgadios), os campo­
neses são liberados, as corveias suprimidas em quase todos os
lugares, as cidades recebem autonomia administrativa, as die­
tas provinciais são refeitas e reformadas, a maior parte dos di­
reitos da nobreza é abolida, a ciência se emancipa do controle
imediato do Estado, o exército de ofício é transformado em
exército popular. Em suma, quase todas as conquistas da Re­
volução são concedidas ao povo da Prússia. Mas não - e isto
é da mais alta importância —porque o povo tenha exigido tais
direitos, e sim porque o governo reconhece claramente que só
uma reforma profunda pode fornecer o meio de dar forças ao
Estado, de preparar eficazmente a nova guerra, de provocar o
despertar nacional sem o qual a luta contra Napoièão não teria
a menor possibilidade de êxito."

19 C f., para o q u e se se g u e , S e ig n o b o s, loc. cit.


11 M ão se p o d e ría in s is tir d e m a s ia d o n e ste ú n ic o fa to q u e exp lica a c o n fia n ç a
d e H eg el n o fu n c io n á rio e s e u c o n h e c im e n to d o s n e g ó c io s e d o s p ro b le m a s d e
E sta d o . M as esse n ã o é , e n te n d a -s e b e m , sen ão u m fa to r b io g rá fic o q u e e x p lic a
se m ju stificar. —P a ra a an álise d e u m caso d c o p o sição e n tr e g o v e rn o “ ilu stra d o ”
e “d ie ta ” re ta rd a tá ria ”, cf. V erh a n d lu n g ett in d e r V ersam m luttg d e r L u n d stã n d e
des K onigreichs W ü rttem b erg (1 8 1 7 , O bras, e d . L asso u , voL V II, p. 1 5 7 -2 8 0 ).

1 - 0 lugar Histórico da Filosofia Política de Hegel | 21


É natural que, após a vitória dos aliados, uma parte de tais
reformas tenha sido, se não ab-rogada, ao menos aplicada
com hesitações; as classes privilegiadas do Ancien Régime,
mais retardando a execução do programa do que voltando
atrás, retomam algumas de suas antigas prerrogativas e muito
de sua influência social, uma vez que a pressão externa dei­
xou de propiciar a unidade interna. No entanto, se o medo
da revolução ainda assalta os espíritos (para dizer a verdade,
após um acesso de febre reacionária, consecutiva às revolu­
ções da Itália e da Espanha, ao assassinato do duque de Berry
e de Kotzebue,12 a política contrarrevolucionária só se insta­
la após a revolução de 1830), se certa política “autoritária” e
“legitimista” impõe suas ideias, antes nos detalhes que nos
princípios, é preciso acrescentar que, comparada à França
da Restauração ou à Inglaterra de antes da Reforma de 1832
e à Áustria de Mettemich, a Prússia é um Estado avançado.
Na França, a reforma de 1830 eleva o número de eleitores a
200.000 em todo o país; em Paris, o número era de 1.850 sob
Carlos X. A Prússia não era, certamente, um Estado demo­
crático no sentido moderno, com suas dietas provinciais,
consultivas, eleitas;13 era tanto e, em certo sentido, mais que,
por exemplo, a Grã-Bretanha, onde, na mesma época, seria
falso falar de um parlamento representativo do povo, e até
de um parlamento eleito (a supressão dos burgos podres , em
1832, fará passar a proporção entre o número de eleitores e o
da população total apenas de 1/32 para 1/22): o parlamento
britânico da época de Hegel, é verdade, decide, mas não é o
povo que decide a composição desse parlamento. E a superio­
ridade da Prússia parece indiscutível no plano administrativo,
pois só as reformas iniciadas em 1832 darão à Grã-Bretanha -

12 C f., n o q u e c o n c e rn e às d ific u ld a d e s su rg id as e n tre a U n iv e rsid a d e d e


B erlim e o M in isté rio a p ó s o' a ffu ire K n tz e b u e -S a n d e p a ra a a titu d e d e H eg el,
L e n i, loc. eit.
13 N ã o i d e stitu íd o de interesse le m b ra r q u e só d o is an o s a p ó s o a p a re c im e n to
d a PhD q u e F rederico G u ilh e rm e III in tro d u z as d ietas p ro v in ciais c o m o ú n ic a
representação d o povo: e m 1 8 2 1 , o p ro je to d e H a rd e n b e rg prevê a in d a u m
parlam enco nacional, e n ã o está exclu íd o q u e H e g e l te n h a d esejad o in te rv ir
com seu livro em favor d e ste m o d o d e rep resen tação .

2 2 1 HegeleoEstado
e ainda muito lentamente - um direito, um sistema admi­
nistrativo local e nacional que não estejam inteiramente nas
mãos das corporações e das grandes famílias, ao passo que a
Prússia mantém em suas províncias ocidentais praticamente
todas as instituições do Império Napoleônico e empreende a
modernização de suas outras possessões.

É na primeira universidade desta Prússia renovada que He­


gel ensina a partir de 1818. Ele toma posse de sua cadeira com
uma aula inaugural que constitui uma primeira homenagem
ao Estado que acaba de chamá-lo.14Ele pensa que o momento
é favorável à filosofia: o Espírito, demasiado ocupado com o
exterior na época precedente, pode agora voltar a seu próprio
domínio. A liberdade foi salva, e nesta luta o Espírito se elevou
acima das opiniões particulares e dos interesses para alcan­
çar a seriedade que permite à filosofia viver e avançar e que
a protege do agnosticismo, apresente-se este sob as espécies
do historicismo, do sentimentalismo ou da reflexão crítica
cara aos kantianos. E, se o momento é favorável, o lugar o é
igualmente: Hegel fala na capital da Prússia, de um Estado que
acaba de se igualar aos Estados mais ricos e maiores. Ela ad­
quiriu todo o seu peso na realidade e na política com a ajuda
do Espírito: é na Prússia que o progresso das ciências constitui
um dos momentos essenciais da vida do Estado. A Prússia é o
Estado do Espírito.

Esse não é o único lugar em que Hegel fala da Prússia no­


meando-a; mais tais lugares são infinitamente menos nume­
rosos do que se seria levado crer escutando a tradição.
Já mencionamos a crítica do jovem Hegel. Outros textos
datam da época berlinense. Nas Lições sobre a Filosofia da
História - uma dessas compilações devidas à piedade dos

'* O tex to e n c o n tra-se , n a ed içã o L asson, n o in íc io d a E nciclopédia (2* ed .,


p . L X X II ss).

1 - 0 Lugar Histórico da Filosofia Política de Hegel j 23


discípulos de Hegel, e portanto sem a autoridade das obras
publicadas por ele mesmo a Prússia aparece como repre­
sentante da nova Igreja, a Igreja luterana, cujo traço essen­
cial é não conhecer mais a separação entre o sagrado e o pro­
fano; é para esta Prússia que se voltou e se voltará ainda o
olhar da liberdade.15
Uma alusão, enfim, à Prússia se encontra no célebre artigo
sobre o Bill de Reforma Inglesa de 1830,16uma alusão somente,
pois o nome da Prússia não aparece ali. Pode-se discutir sobre
o objetivo que Hegel perseguia ao escrever este artigo: quis ele
advertir os ingleses do perigo que correriam se procedessem
a reformas? Isso é pouco provável, dado que desde sempre o
caráter semifeudal da velha Inglaterra pareceu pouco satisfa­
tório a Hegel. Teria querido dizer que paliativos eram insufi­
cientes no ponto a que se tinha chegado? Talvez. Ou teria que­
rido fazer uma advertência ao governo prussiano criticando a
política de um país estrangeiro, exigindo, de forma indireta,
o acabamento de reformas e de transformações que tinham
começado após Jena, mas que se paralisavam cada vez mais?
A história da política interna de Frederico Guilherme III, com
suas hesitações, suas meias medidas, suas iniciativas sempre
abortadas, fossem progressistas ou reacionárias, falaria em
favor desta última hipótese, que poderia encontrar uma es­
pécie de confirmação na proibição real à publicação da ter­
ceira parte do artigo, sob pretexto de que não era conveniente
intervir nas questões internas de outro Estado. Seja qual for,
porém, a opinião que se prefira, a crítica à constituição inglesa
contida neste artigo permite conclusões sobre o que Hegel jul­
gava encontrar na Prússia.
A Inglaterra está historicamente .atrasada, diz-ele, por­
que nela a propriedade não é livre, porque o Estado não

** L asíon, p. 9 0 7 . V . ib id . q u a l í para. H egel o p ap el d a A lem anha:


“E spiritual segundo sua desci nação, a A le m a n h a n ão so ub e dar-se u n id ad e p o lí­
tica. N as suas relações co m o e x te n o t, a A lem an h a é u m a n u lid a d e “. A liberda­
d e em H egel não < co m p reen d id a à m an eira dos “nacionais’1.
16 Lasson, no vol. Schriften z u r P o litik u n d Rechtsphilosophie, 2* ed.,
p . 285 ss.

2 4 1 Hegel e o Estado
desenvolveu um quadro de funcionários profissionais,
porque o direito não está codificado, mas permanece como
segredo e como propriedade de uma corporação, porque
a Coroa é demasiado fraca para permitir a transformação
necessária das instituições sem choques nem violência.17
No continente, declara Hegel, realizou-se há muito tempo
o que os ingleses buscam às cegas: em outras palavras, a
Prússia é para ele o modelo da liberdade realizada, ao me­
nos quanto aos princípios, o Estado do pensamento, da li­
vre propriedade, da administração que só depende da lei, o
Estado de direito. Em 1830 como em 1818, Hegel considera
pois a Prússia como o Estado moderno por excelência (o
que parece exato do ponto de vista do historiador), e a vê
assim porque a vê fundada na liberdade.

Por conseguinte, nossa questão se apresenta sob outra for­


ma e com mais urgência ainda: como Hegel pôde ver a Prússia
por este ângulo? Como pôde opor-se a todas as aspirações do
“liberalismo”, do nacionalismo, da democracia, a toda essa
ideologia de esquerda do século XIX que, em grande medida,
constitui ainda a ideologia de nossos dias e um dos funda­
mentos de todas as propagandas? E não é ainda ficar aquém
dos fatos dizer apenas que ele se opôs a ela? Não chamou o Es­
tado, a polícia à ação contra os movimentos revolucionários?
Não denunciou ele os ideólogos que, a seu ver, envenenavam
o espírito da juventude? Não incitou ele os ministros contra
as doutrinas filosóficas, teológicas, políticas que lhe pareciam
pôr em perigo o Estado tal como ele era?18

17 £ curioso co n statar q u e a crítica hegeliana, q u e perm an ece desconhecida n a


Inglaterra, to ca to d o s os p o n to s e m q u e se basearam as reform as realizadas n o
d eco rrer d o século XDC —salvo n o q u e co n cern e ao reforço d a influência real
(em lugar d o rei, é o p rim e iro -m in istro q u e m decide, n o sen tid o hegeliano). C f.
E lie H alévy, H isto ire d u P euple A ng la is a u XDC Siècle, vol. III, o u , e n tre as n u ­
m erosas histórias d a co n stitu ição inglesa, o m an u al m u ito c ô m o d o d e T asw ell-
L angm ead, EngUsh C onsH tutiorud M istory, 10a ed ., revisada p o r T h . P lu ck n ett.
“ E nco n tra r-se-á a histó ria dessas intervenções e m H ay m e e m Lenz, c o p o n to
d e vista dos defensores d e H egel em R osenkianz.

1 - 0 Lugar Histórico da filosofia Política de Hegel 125


Nâo seria difícil encontrar escusas para Hegel. Como to ­
dos os homens pensantes, ele constatou o fracasso da Re­
volução Francesa, a sucessão de terror, de ditadura e de
derrota. Pode-se acrescentar, e já o mencionamos, que os
acontecimentos dos anos durante os quais a Filosofia do Di­
reito foi escrita, as revoluções abortadas da Itália e da Espa­
nha e os assassinatos políticos insensatos lhe confirmaram
sua desconfiança com relação à “ação direta”; que a obser­
vação não lhe mostrou progresso duradouro na direção de
uma sociedade mais livre do que no único Estado onde esse
progresso tinha sido imposto por um grupo de funcionários
notáveis, agindo por trás do biombo do poder real; que tanto
a velha aristocracia da Iriglaterra quanto os partidos revo­
lucionários dos países latinos se encontravam ainda ou de
novo diante de problemas cuja solução estava, se não reali­
zada, ao menos em via de realização no Estado de que Hegel
acabava de se tornar servidor.
Mas não está aí o verdadeiro problema. Aqui, quando se
trata de filosofia, os termos liberai, conservador, reacioná­
rio não têm nenhum sentido preciso e nãó podem recebê-lo
senão da própria investigação filosófica, uma vez que (e na
medida em que) ela tiver dado uma definição de progresso
e fixado uma orientação para a história. Certamente, muitos
se referem ao empirismo e dizem que a evolução tirou a ra­
zão a Hegel. Mas não se cai assim num círculo vicioso, e não
é pouco lógico ver em Hegel o filósofo deste Estado prussia­
no que foi capaz de ameaçar - e mais que ameaçar - a Euro­
pa durante quase um século e afirmar, ao mesmo tempo, que
os acontecimentos o refutaram? Ademais, suporTse-ia assim
que a História decidiu sobre a questão do Estado tal como
Hegel o concebeu: ora, a História não decide nunca defini­
tivamente (os retrocessos, as “rebarbarizações” são sempre
possíveis), e, se ela tivesse “ultrapassado” a Prússia (o que
parece provável), teria antes provado que Hegel tinha razão
em e para seu tempo; e, ainda que não se tivesse de modo
algum levado em conta esta objeção, não se teria refutado a
concepção hegeliana: seria preciso antes de tudo provar que
ela se aplica exclusivam ente a este Estado. Em sum a, só resta
um cam inho, o de olhar para a Filosofia do Direito, esse li­
vro que, durante os quinze anos que se seguiram à m orte de
Hegel, não conheceu mais críticas do que quando seu autor
estava vivo, para se tornar, a p artir de 1848, o alvo de todos
os “dem olidores” do sistem a hegeliano.

1 - 0 Lugar Histórico da Filosofia Política de Hegel | 27


2. Os F undamentos F ilosóficos
da P olítica

Todos conhecem os “horrores” de que está repleta a Filo­


sofia do Direito. Enumeremos alguns: o Estado, diz-se ali, é o
divino na Terra, a sociedade é subordinada ao Estado, a vida
moral tem uma dignidade menor que a vida política, a forma
perfeita de constituição é a monarquia, o povo deve obedi­
ência ao governo, a nacionalidade é um conceito sem impor­
tância, a lealdade para com o Estado é o dever supremo do
homem que deve ser cidadão, a eleição popular é um mau sis­
tema; e passamos por isso para chegar à mais atroz, à célebre
frase do Prefácio,l essa blasfêmia que, há já mais de um século,
faz tremer todos os bem pensantes de todos os partidos: “O
que é racional é real, o que é real é racional”. É uma afronta ao
bom-senso, o insulto supremo que não se perdoa, é um ultraje
tão chocante que a maior parte dos críticos - é ao menos a
impressão que se tem de seus escritos - não conseguiu ir mais
longe, não digo na leitura, mas na compreensão do livro.

1 W as vern ü n ftig ist, das is t w irklich; u n d w as w irklich ist, das is t vernünftig.


P hD , p. 14 (Prefácio). D a d o q u e n e n h u m a trad u ção d e u m texco hegeliano
p ode oferecer o sen tid o exato d o o riginal (a m en o s q u e se crie u m a convenção
precisa q u a n to à term in o lo g ia, o q u e n a tu ra lm e n te não se tra ta d e lazer aqui),
nós farem os nas n o tas codas as citações q u e im p o rta m n o tex to o riginal. (As
palavras em itálico são destacadas p o r H egel.)
No entanto, Hegel se deu ao trabalho de explicar o que ele
queria dizer. Ele fez observar12que só era preciso abrir sua Ló­
gica para ver que, em sua terminologia, “realidade”3 e “exis­
tência” não se confundiam de modo algum, que a existência
só era realidade em parte e que a outra parte era formada pela
“aparição”: sem sucesso, e Haym, por exemplo, declara que
esta distinção cria justamente a fraqueza profunda de todo o
sistema, permitindo a Hegel contentar-se em sua filosofia do
Estado com a simples realidade empírica.4 Que seja. Mas qual
é o sistema que, em sua moral e em sua política, nos lugares
onde se trata de ação, pode renunciar à distinção entre o real
e o aparente, entre o importante e o negligendável, entre o es­
sencial e o que não o é? t
Ter-se-ia de provar que Hegel pôs mal os acentos, que
ele tomou por real o que não era senão existente. Ora, ele
o fez? Haym, que era um crítico inteligente, não deixou de
dizer claramente o que o separava de Hegel: para ele, Hegel
sacrifica o indivíduo porque o interesse da harmonia pre­
valece sobre o da individualidade concreta e vivente.5 He­
gel responderia (e ele o faz efetivamente): a individualidade
será racional enquanto tal? O racional não é necessariamente
o universal? A individualidade pode exigir mais que ser re­
conciliada com a realidade do racional, que encontrar-se a
si mesma no que é na medida em que o que é é racional?

1 E nciclopédia, 3 ‘ ed., § 6. — D e resto, a P h D já c o n tém (In tro d u ção , $ 1) u m a


definição precisa da diferença.
3 O te rm o alem ão q u e trad u zim o s p o r realidade é W irklichkeit, d e w irken =
“agir crian d o ”, “p ro d u z ir u m efeito na' realidade”,*ao passo q u e ò"term o francês
[e português] rem ete, p o r res, ao objeto, e n q u a n to e n c o n tra d o , passivo, o b jeto
ceorédco. S egundo o valor etim ológico das palavras, seria preciso considerar
p o r realidade antes o q u e H egel cham a d e D asein e q u e nós vertem os p o r exis­
tência (n u m a acepção ev id en tem en te diferen te das d e D asein e d e existência em
H eidegger e nos existencialistas). É im possível trad u zir os te rm o s W irklichh eit e
D asein de m o d o que conservem seus respectivos valores etim ológicos e, ao m es­
m o tem p o , as possibilidades d e em prego q u e são o s seus e m alem ão. É preciso
insistir b astante nos harm ônicos, m u ito diferentes nas d u as línguas.
* H ay m , loc. cit., p. 368 .
3 Id ., ib id ., p. 3 6 9 ss. .
E então a crítica de Haym, se tem algum sentido, não será a
crítica de toda a filosofia?
Fato significativo, Haym teria podido encontrar este argu­
mento sob outra forma no mesmo Prefácio à Filosofia do Direi­
to da qual ele tira sua crítica:
“No que concerne à natureza, admite-se que a filosofia deve
conhecê-la tal como ela é, que a pedra filosofal está oculta em
algum lugar, mas na natureza mesma, que esta é racional em
si mesma e que o saber deve explorar e captar pela compreen­
são esta razão que nela (i.e., na natureza) é presente e real (que
é preciso captar com a razão), não as formações e acidentes
que se mostram na superfície, mas sua eterna harmonia, e
esta como sua lei imanente e como seu ser imanente. Em con­
trapartida, afirma-se que o mundo moral (sittlich), o Estado, a
razão tal como se realiza no elemento da consciência de si, não
desfruta dessa felicidade (que consiste no) que é a razão que,
neste elemento, efetivamente adquiriu força e supremacia,
que é ela que aí se mantém e permanece. Não, afirma-se que o
universo espiritual é entregue ao acaso e ao arbitrário, que ele
é abandonado por Deus, de forma que, segundo este ateísmo
do mundo moral, o Verdadeiro está fora déle (do mundo) e
que, ao mesmo tempo, porque se quer que haja também da
razão nesse mundo, o Verdadeiro não é aí senão problema.”6
Esse paralelo entre a natureza e a política é impressionante:
Hegel se recusa a admitir que a razão só se encontre nos fe­
nômenos naturais, enquanto o domínio da ação e da história *
* "Von d er N a tu r g ib t m a n z u , dass d ie P hilosophie sie z u erkennen habe, w ie
sie ist, dass d er S te in d er W eisen irgendw o, aber in d er N a tu r selbst verborgen
liege, dass sie in sic h v e rn ü n ftig sei u n d das W issen diese in ih r gegenw ärtige,
w irk lich e V ern u n ft, n ic h t d ie a u f d er O berfläche sich zeig en den G estaltungen u n d
Z u fä llig keiten , sondern ih re ew ige H a rm o n ie, aber als ih r im m a n e n te s G esetz u n d
W esen z u erforschen u n d begreifend z u fassen habe. D ie sittlic h e W e lt dagegen,
d er S ta a t, sie, d ie V ern u n ft, w ie sie sich im E lem ente des Selbstbew usstseins ver­
w irklich t, so ll n ic h t des G lücks geniesten, dass es d ie V e rn u n ft ist, w elche in d er
T a t in diesem E lem en te sich z u r K ra ft send G ew alt g eb racht habe, d a rin behaupte
u n d inw ohne. D a s geistige U niversum so ll vielm eh r d em Z u fa ll u n d d er W illk ü r
preisgegeben, es so ll g o ttv erlassen sein, so dass nach diesem A th eism u s der sittlich en
W elt das W a h re sich ausser ih r befinde, u n d zugleich, w e il doch a u c h V ern u n ft
d a rin sein soll, das W ahre n u r ein P roblem a sei. ” P h D . p . 7 (P r e ß c io ).

2 - Os Fundamentos Filosóficos da Política | 31


seria entregue aos sentimentos, aos desejos, às paixões. As­
sim como há ciência da natureza, assim também há ciência
do Estado, e a razão não está mais oculta nas produções da
consciência humana que nos fenômenos naturais, que todavia
são considerados compreensíveis por todo o mundo, ou seja,
racionais quanto ao essencial. O mundo moral é, e até num
sentido infinitamente mais elevado que o mundo da natureza,
da exterioridade.
“De um lado, como objetos, a substância moral (sittlich),
suas leis e suas potências têm com o sujeito essa relação que
elas são, no sentido mais elevado da autonomia - uma autori­
dade e um poder absolutos, infinitamente mais estáveis que o
ser da natureza... A autoridade das leis morais é infinitamente
mais elevada, porque as coisas da natureza não representam
a razão ( Vemünftigkeit) senão de modo exterior e isolado e a
ocultam sob a forma de acaso.”7
Para excluir o mal-entendido clássico segundo o qual se
poderia tentar fundar sobre esse texto a acusação ou de abso­
lutismo ou de relativismo (pois se sabe que o Estado remata a
moral, mas não se está de acordo para decidir se se deve infe­
rir que Hegel foi rigorista em política ou relativista em moral),
basta olhar o “outro lado” que introduz o seguinte parágrafo:
“Do outro lado, elas (i.e., as potências morais) não são para
o sujeito algo estranho, mas no testemunho do espírito ele
(i.e., o sujeito) afirma que elas são sua própria essência, na
qual ele tem o sentimento de si mesmo, na qual ele vive como
em seu elemento, que não é distinto dele.”8

7 “F ü r d as S u b je k t ha b en d ie sittlich e S u b sta n z, ih re G esetze u n d G ew alten e i­


nerseits als G egenstand d a s V erhältnis, dass sie s in d , im höchsten S in n e d er
Selbstä nd igkeit, — ein e absolute, u n en d lich festere A u to r itä t u n d M a c h t als das
S ein d er N a tu r .... D ie A u to ritä t d e r sittlich en G esetze is t u n en d lich höher, w e il d ie
N a tu rd in g e n u r a u f d ie g a n z äiisserLiche u n d v erein zelte W eise d ie V ern ü n ftig keit
darstellen u n d sie u n te r d ie G estalt d er Z u fä llig k e it verbergen. "P h D , $ 146.
* *'Andererseits s in d sie dem S u b jekte n ic h t e in F rem d es, sondern es g ib t das
Z e u g n is des G eistes vo n Urnen a ls v o n se in e m e ig e n e n W e se n , in w elchem es
sein S elbstgefühl h a t, u n d d a rin als seinem von sich ununterschtedenen E lem ente
leb t. "P h D , § 147. •

32 | Hegdeo Estado
A vida do homem é racional, e ele sabe que é assim, ainda
que esse saber só seja (e continue sendo desde sempre) o que
dá o sentimento de sua relação imediata ao mundo moral.
Se nos interessássemos sobretudo pela ontologia hege-
Liana ou pelo fundamento ontológico de sua política, insisti­
ríamos no fato de que o emprego dos conceitos de sentimento
e de saber imediato (o termo se encontra mais adiante em
nosso texto) mostra por si só a necessidade da passagem
do mundo moral e do sentimento ao Estado. Mas o que nos
importa a este respeito é outra coisa: o mundo no qual os
homens vivem, no qual eles se sabem nesse mesmo mundo
(pois mesmo seus descontentamentos só têm sentido com
relação a ele), esse mundo é racional, as leis desta vida são
cognoscíveis, e elas o são eminentemente , porque é nelas que
a razão não só se realiza (ela se realiza também em todas as
partes alhures), mas ainda acaba por saber qiie se realiza.
A teoria do Estado, do Estado que é, não de um Estado ideal
e sonhado, é a teoria da razão realizada no homem, realizada
p o r ela mesma e para ela mesma.
Uma teoria, não um desejo, uma investigação do Estado:
pode-se buscar o bom Estado porque há Estado; mas o que se
busca sob o nome de Estado bom nunca é senão o Estado tout
court, tal como é em si mesmo pela razão. Mais ainda, esta
investigação só poderia ser uma procura teórica, uma busca
do que é real: a ciência, e é de ciência que se trata, ocupa-se
do que é; “a filosofia é sua época captada pelo pensamento”.9
E, todavia, diz Hegel, se se desse ouvido aos que requerem
ou propõem teorias novas e originais do Estado, acreditar-se-ia
“que não teria havido ainda pelo mundo Estado ou cons­
tituição de Estado, e que não existiriam no presente, senão
que se deveria começar do começo agora - e esse agora dura e
persiste - , que o mundo moral esperaria o tempo todo que se
procedesse agora à elaboração e à análise e à construção dos

9 “So is t a u ch d ie P hilosophie, ih re Z e it in G e d a n k e n e rfa sst." P h D , p. 15


(Pre& cio).

2 -Os Fundamentos Filosóficos da Política 1 33


fundamentos”.10Mas nada mais absurdo que esperar da filo­
sofia receitas, um ensinamento que indicasse como o mundo
deve ser feito: muito pelo contrário,
“sendo o pensamento do mundo, ela não aparece senão no
momento em que a realidade terminou o processo de sua for­
mação e se rematou”.11
Há conhecimento do Estado tal como ele é em si mesmo,
conhecimento de uma ideia de Estado, mas de uma ideia que
difere da ideia platônica por ser histórica, por não ser uma
ideia fora do devir, mas uma ideia do devir,12conquanto seja
conhecimento objetivo, conhecimento que não deve ocupàr-
se de sentimentos, de opiniões, de desejos senão na medida
em que esses sentimentos conduzem à ação e formam assim
a realidade, conhecimento que não deve tomar posição senão
em favor da verdade.

Que isso não queira dizer, que isso não possa querer dizer
que qualquer Estado é o Estado perfeito, que qualquer Esta­
do tem razão em tudo o que faz, que o indivíduo sempre tem
de ter obediência cega, isso já decorre dos textos que citamos
mais acima13e que indicam com evidência que a lei, se é rea­
lidade no sentido mais forte, é também a realidade menos es­
tranha ao homem: na concepção hegeliana, toda a história é
esta reconciliação entre o indivíduo e o universal.

10 “ ... so sollte m a n m einen, als ob noch kein S ta a t u n d Staatsverfassung in der


W elt gewesen, noch gegenw ärtig vorhanden sei, sondern als ob m an je tz t —u n d dies
Je tz t d a u ert im m er fo r t —g a n z von vorne anzüforigen, u n d die sittliche W elt n u r
a u f ein solches jetziges A usdenken send E rgründen u n d Begründen gew artet habe. ”
P hD , p. 7 (Prefácio). '
11 “A ls d er G edan k e der W elt erscheint sie erst in d er Z e it, nachdem die
W irklich keit ihren Bildungsprozess vollendet u n d sich firtig -g em a ch t hat. " P hD ,
p, 17 (Prefäcio). ■
11 E sta “ideia” é, pois, norm ativa, n o sen tid o e m q u e e la oferece a o p o rtu n id a d e
de apreciar o qu e existe. M as em o u tro sen tid o ela n ão é n o rm ativ a (e este p o n ­
to é decisivo): ela n ão fornece u m m o d elo atem p o ral o u su p ratem p o ral. C f.,
m ais adiante, o papel d a história.
13 C f. as notas 11/27 e 28.

3 4 1 Hegeleo Estado
Dado, porém, que é sobre esse ponto que se baseia a maior
parte dos ataques dirigidos contra o conformismo de Hegel,
será útil apresentar alguns outros textos que mostram que ele
soube tirar todas as consequências de seu princípio.
“Quando se fala da ideia de Estado, não se devem repre­
sentar Estados particulares nem instituições particulares;
deve-se contemplar a ideia, o Deus real (wirklich) à parte (für
sich). Todo Estado, ainda quando fosse declarado mau segun­
do os princípios que se tenham, ainda quando se lhe reconhe­
cesse tal imperfeição, todo Estado, particularmente quando é
do número dos Estados desenvolvidos de nosso tempo, traz
em si momentos essenciais de sua existência. Dado, todavia,
ser mais fácil encontrar defeitos que compreender o positivo,
incorre-se demasiado facilmente no erro de se fixar em lados
isolados e de esquecer o organismo do Estado. O Estado não
é uma obra de arte; ele se ergue no mundo, partindo, na esfe­
ra do arbitrário, do acaso e do erro, e uma má conduta pode
desfigurá-lo sob muitos aspectos. Mas o homem mais feio,
o criminoso, o aleijado e o doente são ainda homens vivos;
a vida, o positivo, perdura apesar do defeito, e se trata aqui
desse positivo.”14 ,
A volta para o interior (Hegel fala do indivíduo que se afas­
ta do Estado, em particular de Sócrates como aquele que opõe

14 E ste é u m dos aden d o s q u e os p rim e iro s ed ito res das O brai C om pletas extraí­
ra m dos cursos d e H egei. N ó s o citam o s p o rq u e os textos seguintes g a ra n te m
q u e a expressão está to ta lm e n te d e a c o rd o co m as o p in iõ es d e H eg e l — “B ei
d er Id ee des Staates m uss m an n ic h t besondere Staaten vor A ug en haben, n ic h t
besondere In stitu tio n en , m an m uss vielm eh r die Idee, diesen w irklichen G ott,
f i i r sich betrachten. Jeder S ta a t, m an m ag ih n auch nach den G rundsätzen, d ie
m an h at, fü r schlecht erklären, m a n m a g diese oder je n e M a n g elh a ftig keit daran
erkennen, h a t im m er, w enn er n a m en tlich z u den ausgebildeten unserer Z e it ge­
hört, d ie w esentlichen M o m en te seiner E xisten z, in sich. W eil es aber leichter is t
M ä n g el a u fzu fin d en , als das A ffirm a tiv e z u begreifen, verfä llt m an leich t in den
Fehler, über ein zeln e S eiten den inw en d ig en O rganism us des Staates selbst zu
vergessen. D er S ta a t ist kein K unstw erk; e r steh t in d er W elt, so m it in d er Sphäre
der W illkür, des Z u fa lls u n d des Irrtu m s, übles B enehm en ka n n ih n nach vielen
Seiten defigurieren. A b er d er hässlichste M ensch, der 'Verbrecher, ein K ranker u n d
K rüppel ist im m er noch ein lebender M ensch; das A ffirm a tive, das Leben, besteht
tro tz des M angels, u n d um dieses A ffirm a tiv e ist es h ier z u tu n . “P hD , A cr. ao §
2 5 8 , ed. Lasson, p. 3 4 9 ss.

2 - Os Fundamentos Filosóficos da Política 135


ao Estado ateniense o princípio da consciência moral) dá-se
"em épocas em que o que é reconhecido como justo e bom
na realidade e na tradição (Sitte) não é capaz de satisfazer a
melhor vontade; quando o mundo da liberdade existente se
torna infiel (i.e., à melhor vontade), ela já não se encontra nos
deveres em vigor”.13*15
“Uma norma do direito pode ser deduzida como bem fun­
dada e consequente a partir das condições e das instituições
existentes do direito e pode ser, não obstante, em e por si mes­
ma contrária ao direito e não razoável.”16
“A ciência positiva do direito não deve espantar-se... quan­
do se lhe pergunta se.A uma norma do direito é, ademais,
racional.”17
“0 fato de que, historicamente falando, tenha havido
épocas e condições bárbaras, em que tudo o que pertencia
ao domínio elevado do espírito se encontrava na Igreja, em
que o Estado não era senão um regime desse mundo, regime
de violência, de arbitrariedade e de paixão... isso pertence à
história”18- existiu e pode, pois, existir.
O que é comum a todas essas citações - que se poderiam
multiplicar sem dificuldade - é a insistência com que elas
reconhecem ao homem o direito de criticar e de rejeitar tal

13 "... in Epochen, uro das, w as als das Rechte u n d G ute in der 'W irklichkeit u n d
S itte gilt, den besseren W illen n ich t befriedigen ka n n; w enn d ie vorhandene W elt
d er F reiheit ih m ungetreu gew orden, fin d e t er sich in den geltenden P flichten n ich t
m ehr. "P h D , § 138.
,s "Eine Rechtsbestim m ung ka n n sich aus den U m stän d en u n d vorhandenen Rechts­
in stitutionen als vollkom m en gegründet u n d k o n seq u en t zeigen lassen u n d doch
an u n d fü r sich unrechtlich u n d unvernünftig sein. ” P hD , § 3. Cf. T am b d m § 30.
17 "D ie p o sitive Rechtsw issenschaft... darf... sich w enigstens n ich t absolut verw un­
dern, w enn sie es auch als eine Q uerfrage fü r ihre B eschäftigung ansieht, w enn nu n
gefragt w ird, ob denn nach alten diesen Beweisen e in t R echtsbestim m ung v ern ü n f­
tig ist. “P hD , § 212.
la ■Dass es nun geschichtlich Z eiten u n d Z u stä n d e von B arbarei gegeben, wo altes
höhere G eistige in der K irche seinen S itz h a tte u n d d er S ta a t n u r ein w eltliches
R eg m en t d er G ew alttätigkeit, der W illkü r u n d L eidenschaft u n d je n e r abstrakte
G egensatz das H a u p tp rin zip d er W irklich keit w ar, gehört in d ie Geschichte. "P hD ,
p. 2 1 5 . § 2 7 0 .

36 | Hegeleo Estado
Estado. 0 Estado empírico pode ser imperfeito, e nem tudo
é sempre o melhor no melhor dos mundos; o direito positivo
pode ser não razoável, o Estado concreto pode ser ultrapassa­
do pela história. Permanece a verdade simples de que não se
pode dizer nada de válido antes de saber de que se fala, de que
se não pode julgar os Estados sem saber o que é o Estado.
■ ***
Pode-se afirmar que “nada disso tem sentido”, que não há
Estado em si mesmo, que a ideia de um a política filosófica é
absurda, que não há senão que viver e deixar viver, que todas
as opiniões se equivalem, e que ao fim e ao cabo há apenas o
sucesso que decide - não decide quanto a teorias, pois já não
há teoria, mas quanto à sorte dos indivíduos que se servem
de pretensas teorias. Pode-se, em uma palavra, afirmar que
não há história, mas somente uma sequência de acontecimen­
tos destituídos de sentido, porque destituídos de qualquer
estrutura que desse aos acontecimentos coesão e unidade.19
Talvez seja assim, mas então segue-se que aquele que invoca
a violência já não tem direito de protestar contra a violência.
Ê verdade que se pode observar (e amiúde se observou desde
Platão^ que os defensores teóricos da violência tomam o par­
tido da moral a partir do momento em que sofrem violência,
e que os que praticam a violência apelam, ao primeiro fracas­
so, ao tribunal do fa tu m ou da divindade, do sentido da His­
tória, das regras anteriores a toda norm a positiva, sendo os

19 O u v e -se a m iú d e a tr ib u ir e sta te o ria a o p r ó p r io H e g è l: a c o n c e p ç ã o h eg e lia n a


d a ria razão a o q u e prev alece n a lu ta , e seria su a “id eia" q u e se im p o ria . É evi­
d e n te q u e to d a a te o ria d o E sta d o se o p õ e a tal in te rp re ta ç ã o . N o e n c a n to , ela é
co m p re e n sív e l p o r d u as razões: n a esfera p ró -estatal d a lu ta p e lo re c o n h e c im e n to
(cf. a F enom enotogia do E sp irito , c o m o o c o m e n tá rio d e A . K o jiv e , “In tro d u c tio n
à la L e c tu re d e H e g e l", P aris, 1 9 4 7 , s o b r e tu d o p . 11 ss), é, c o m efeito , o resu lta ­
d o d a lu ta o q u e d ecid e . M a s, a lé m d e n ã o se tr a ta r d e u m a lu ta n o in te r io r d o
E s ta d o (q u e só sairá d e sta luca), d eve-se o b se rv a r q u e o p ro g resso d o E sp írito é
o b ra n ão d o v e n c e d o r, m a s d o v e n c id o , d o escravo. P o r o u cro la d o , a h is tó ria se
fàz p ela ação v io le n ta d o h eró i d e u m lad o , e d a g u e rra e n tr e os E sta d o s d e o u tro .
E m a m b o s os casos, tra ta -se d o E sta d o , seja d a fu n d a ç ã o o u d a tra n sfo rm a ç ã o d e
u m E stad o , seja d a c o n se c u ç ã o d a su p re m a c ia p o r u m E sta d o . M i s fu n d a ç õ e s e
v itó rias só tê m v alo r p o sitiv o n a co n c e p ç ã o h e g e lia n a com. a c o n d iç ã o d e d a r u m
n o v o passo p a ra a realização d a lib e rd a d e , o u seja (p a ra H e g e l), d a razão. - C f. o
q u e se d irá e m seg u id a so b re o h eró i e s u a história.

2 r Os Fundamentos Filosóficos da Política | 37


primeiros a lamentar se a organização, ou seja, o Estado, já
não funciona satisfatoriamente. No entanto, dado que se pode
tomar posição a favor de um atomismo social que só reconhe­
ce indivíduos, admitamos, para conceder algo ao adversário,
que alguns homens permanecem fiéis a esse princípio e só
reconhecem sua vontade individual, o que os filósofos têm o
costume de qualificar com o termo de “arbitrário”. Que se se­
gue daí contra a possibilidade de uma teoria do Estado?
Absolutamente nada, responde Hegel. Ao contrário, tal ati­
tude exprime um lado essencial da vida humana, um momento
sem o qual a compreensão mesma do Estado seria impossível
- um momento essencial, mas subordinado. Sabe-se - mas
teremos de voltar a isto '- que para Hegel o direito é anterior
à moral, a moral formal à moral concreta de uma vida em co­
mum, de uma tradição viva (Sittlichkeit), e que esta representa
para o Estado a realidade ( Wirklichckeit) e o acabamento total.
Mas isso significa antes de tudo que o direito e a moral do in­
divíduo são imprescritíveis; isso significa somente, em segui­
da, que o direito e esta moral do indivíduo não bastam; isso
significa, enfim, que sua realidade (e não sua destruição) deve
ser buscada no Estado. Isso não significa que o Estado possa
ou deva suprim ir ou combater o direito e a moral da pessoa
humana - porque isso significa exatamente o contrário; como
sempre em Hegel, o que é suprimido dialeticamente também
é sublimado e conservado e só é plenamente realizado por este
ato do Aufheben.
O problema fundamental se torna, então, o da liberdade ou
(o que vem a dar no mesmo) da vontade. A política - pala­
vra tomada no sentido mais largo, em que compreende toda a
ciência da vida em comum do animal político que é o homem,
ou seja, direito, moral, tradição, organização social e estatal -
não é senão a ciência da vontade.20
Ora, o homem se encontra no mundo - ele se encontra da
mesma forma como encontra algo, como um dado. Para dizer

20 P ara o q u e se seg u e, cf. P h D , I n tro d u ç ã o , § 4 ss.

3 8 1 Hegel eo Estado
a verdade, ele nem sequer se encontra, porque ainda não se
opõe a si mesmo: ele é, e seu ser é ser consciente, não de si,
mas do exterior. É só no momento em que ele começa a se re­
fletirem si mesmo , para empregar a curiosa expressão hegelia-
na, em que é relançado sobre si mesmo, que a vontade já não
é somente, mas aparece para o homem mesmo: ele se toma
consciente de si graças ao fracasso, graças à derrota que ele so­
fre na luta com outra vontade à qual ele não consegue impor-
se;21 mostrando-se assim ao homem, a vontade se mostra a
ele como pensamento.22Nada mais surpreendente à primeira
vista, nada mais evidente à reflexão: com efeito, a vontade que
é minha, que eu sei ser minha, é o pensamento da negação de
toda condição, é o pensamento de minha liberdade, o pensa­
mento cujo dado posso recusar.
Mas, recusando todo dado, toda determinação exterior
(condição natural, necessidade, etc.) e interior (desejo, pen­
dor, instinto, etc.), tomando consciência de mim mesmo
como da negatividade livre e da Uberdade negadora, eu en­
contro ao mesmo tempo uma nova positividade, tão essencial
quanto essa negatividade: eu nego para pôr, eu sou liberdade
absoltita para me determinar a algo em particular, eu recu­
so isto para escolher aquilo, querendo-o até segunda ordem,
sempre certo de poder negar o que eu acabo de escolher, mas
também sempre me determinando em e por esse novo ato da
liberdade. A liberdade, como se proclama hoje em dia, crendo
ter feito uma grande descoberta (ter encontrado uma pana­
ceia filosófica) é Uberdade “em situação”.23

11 C f. K ojève, toe. cit.


22PhD, § 5 ss.
23 A Uberdade em situação n ã o c o n stitu í, p ara d izer a v erdade, u m a descoberta:
o conceito é tSo v elh o q u a n to a filosofia; ele n ã o tin h a sid o fo rm u lad o pela
sim ples razão d e q u e u m a liberdade fo ra d a situação co n c re ta não tin h a sido
im aginada antes d o acosm ism o d e fu n d o m o ral de fCant. A glória d a redes co­
b erta (o u se se preferir, d a descoberta, reservando-se en tão o m érito d a desco­
b erta à form ulação expressa d e u m a tese aceita desde h á m u ito tem p o ) cabe a
H egel, q u e v í ao m esm o te m p o a im p o rtâ n c ia d esta ideia e sua insuficiência
(cf., m ais adiante, p . 4 7 e n . 29). N as rc-descobcrtas m ais recentes, observa-se
u m reto rn o à a titu d e k an tia n a (sem q u e se possa dizer q u e tais investigações
alcancem sem pre a p ro fu n d id a d e e a a ltu ra d o p en sam en to de K ant) com .

2 -Os Fundamentos Filosóficos da Política | 39


Em outras palavras, a vontade, sendo livre, dá-se neces­
sariamente um conteúdo, um fim que deve ser realizado, na
realidade, com os meios da realidade. A liberdade da vontade
é antes de tudo a vontade de realizar o fim, e não é senão isso.
Há liberdade, há consciência de si, mas tanto uma como a
outra ainda não são captadas enquanto tais: o homem quer

adem ais, a exigência d e u m se n tid o d a v id a, d e u m cosm os m o ral cu ja realização


o u realidade são, todavia, co n sid erad as im possíveis d e u m m o d o filosoficam ente
leg itim o o u legicim ável. A fim d e se t c o n se q u e n te , dever-se-ia, a p a rtir desse
p o n to , levar o agnosticism o m u ito m ais lo n g e q u e K an t, p a ra q u e m as palavras
D eus, lib erd a de e im o rta lid a d e a in d a tin h a m u m se n tid o , c o n q u a n to p a ra ele
esse sen tid o n ão se p udesse fo rm u la r teo ric a m e n te : se “o h o m e m é u m a paixão
in ú til” (J.-P . S artre, L £’ tr e e t le N ia n t, Paris, 1 9 4 3 , p. 7 0 8 ) - d efin ição q u e é
equivalente à d e pessoa d e direitef p riv ad o HaHa p o r H eg el e n ã o a ultrap assa —, a
filosofia já n ão p o d e c o m p re e n d e r su a p ró p ria p o ssib ilid ad e e deve d esem b o car
o u n a poesia o u n o a to g ra tu ito , o u seja, n a palavra e n a ação insensatas. D e fato ,
os h o m e n s sab em m u ito b e m o q u e im p o rta e m su a v id a, e atê suas d úvidas
são se m p re form uláveis, p o rq u e su a ex istên cia c o n c re ta lhes a p resen ta q uestões
a q u e eles resp o n d em (b em o u m al: esse m e ro p ro b le m a já m o stra q u e h á u m
sen tid o d a vid a —o q u e n ão q u e r d izer q u e este seja d e sc o b e rto se m d ificu ld a­
de). A dem ais, p ara re m o n ta r à fo n te d e sta n o v a filo so fia da reflexão q u e sep ara
o h o m e m d a razão, M . H e id eg g er v iu b e m q u e a v id a c o n c re ta d o h o m e m se
passa n o m o d o d a Z u h a n d en b eit, n u m m u n d o co n h e c id o e fa m iliar q u e n ão
ap resen ta p ro b lem as sen ão c o m o exceção, n o q u a l o h o m e m e stá tão b e m em
situação q ue, n o rm a lm e n te , ele n ão se se n te e m situ ação (cf. S ein u n d Z e it, 5*
ed ., H alle, 1931, § 16). S eria ú til inv estig ar c o m o e p o r q u e este m u n d o real
se tran sfo rm a e m m u n d o d a in a u te n cicidade, c o m o e p o r q u e u m a existência
au tên tica se a p a rta d a existência de to d o s o s dias, e, se e la n ã o a d q u ire u m valo r
m a io r (p ara H eid eg g er não; h á preferência p o r u m a o u o u tra dessas a titu d e s),
o c u p a ao m en o s o c e n tro d o interesse — H eg el esb o ço u , p a ra rechaçá-la, a fi­
losofia d a situ ação e d a decisão form ais (q u e a in d a se c h a m a nele “v irtu d e ”):
" Q u a n d o se fàla <Ls v irtu d e , frisa-se facilm en te o vazio d a d ecla m ação , p o rq u e
se fala assim so m en te d e algo a b stra to e in d e te rm in a d o , assim c o m o tal d isc u r­
so, co m suas razões e suas im ag en s, se en d ereça ao in d iv íd u o to m a d o c o m o u m
arb itrá rio c u m alvedrio subjetiv o . E m d a d o estad o m o ral, cujas relações estão
plcnam ence desenvolvidas e realizadas, a v irtu d e , e m se n tid o p ró p rio , só te m
lugar e realidade em circu n stâ n cias e x trao rd in árias c e m colisões e x trao rd in árias
dessas relações —nas colisões v erdadeiras, p ois a reflexão m o fa i p o d e em codas as
partes criar p ara si colisões e p o d e p ro p iciar-se a co n sciên cia d e algo p a rtic u la r e
de sacrifícios q u e eia teria feito ” . — *D as R eden aber von d e r T u g en d g re n zt leich t
an leere D ekla m a tio n, w eil d a m it n u r von einem A b ttra k te n u n d U nb estim m ten
gesprochen w ird, sow ie auch solche R ede m it ihren G rü n den u n d D arstellungen sich
a n das In d iv id u u m als an eine W illk ü r u n d subjektives B elieben w endet. U nter
einem vorhandenen sittlich en Z u sta nd e, dessen V erhältnisse vollständig en tw ickelt
u n d verw irklich t sind, h a t d ie e ig e n d ic h e T u g e n d n u r in ausserordentlichen
U m ständen u n d K ollisionen je n e r V erhältnisse ih re S telle u n d W irklich keit; —
in w ahrhaften K ollisionen, d en d ie m oralische R eflexion k a n n sich a llentha lben
K ollisionen erschaffen u n d sich das B ew usstsein von etw as Besonderem u n d von
gebrachten O pfern geben. “P h D , § 150.

40 | HegdeoEstado
livremente, a consciência é consciência de si, mas o homem
em sua vida o ignora; somos nós que constatamos que o ho­
mem atingiu uma etapa que o situa acima dos animais, ao
passo que ele tem o olhar fixo no mundo: o homem é livre em
si (ou seja, para nós, que somos filósofos), não por si; ele tem
certeza de sua liberdade, mas não tem ciência dela.
A consciência "normal" detém-se neste ponto. Ela é e não
é senão esta certeza de poder negar todo e qualquer dado,
de poder opor-se a toda e qualquer limitação, de recusar o
que é imposto, ou simplesmente posto, de fora. Aí está o
que explica os protestos que se elevam em todas as partes a
partir do momento em que os termos da vontade racional,
de vontade universal, são introduzidos. Mas tais protestos
esquecem o positivo que está indissociavelmente ligado a
essa negatividade: a vontade tem sempre um conteúdo, e,
enquanto esse mesmo conteúdo não for determinado pela
vontade, enquanto for aceito ao acaso das preferências, dos
gostos, dos caracteres individuais, enquanto for arbitrário,
será verdadeira a tese do determinismo segundo a qual a
negatiyidade não tem nenhum emprego fora da situação
concreta e que esta é dada como são dadas as "reações” do
indivíduo à situação: que eu escolha, isso resulta de minha
liberdade; como eu escolho (a única coisa que importa), isso
depende da causalidade.
Para Hegel, esta verdade relativa do determinismo se fun­
da no fato de a vontade individual, tal como ela se concebe
a si mesma aqui, não ainda, propriamente falando, vontade
humana, de ainda ir imediatamente a seu objetivo, de não ser
mediatizada pela razão que age, pela organização consciente
da vida em comum, em suma, pelo fato de ser natural (como
tudo o que não é mediatizado). É necessário um novo passo, e
a vontade deve captar-se como vontade que não quer somente
tout court, senão que quer a liberdade. Só quando se dá seu
conteúdo é que a vontade realiza a liberdade: ora, o conteúdo
de uma vontade livre e que não depende de um dado só pode
ser a liberdade mesma.

2 - Os Fundamentos filosóficos da Política J 41


Fórmula paradoxal e, parece, incompreensível. Como a
vontade livre pode querer a Uberdade, querer positivamente
a negatividade? Ela o pode porque não é a negatividade abso­
luta da individualidade dada e não livre, a negatividade nua
que ela quer: ela compreendeu que a negatividade nega todo o
dado enquanto tal, tudo o que não é mediatizado pela ação do
homem, incluído o ser empírico do próprio indivíduo - tudo o
que não satisfaz a razão. Nós veremos que a negatividade não
desaparece nesta compreensão, que ela continuará a desem­
penhar um papel decisivo no plano da vida individual e so­
cial; não obstante, no pensamento, a vontade volta a si mesma,
compreende-se como sendo essencialmente não arbitrária, e
ela pode assim reconhecer, no que é sua obra e produto de sua
criatividade, o que tinha querido sem compreender que o que­
ria. Veremos até como esta tomada de consciência da liberda­
de se elabora nas passagens do direito à moralidade, desta à
moral concreta, e enfim ao Estado. O que importa aqui é atese
de que a vontade livre só pode satisfazer-se compreendendo
que ela busca e sempre buscou a liberdade numa organização
racional, universal da liberdade (e aqui da liberdade é genitivo
tanto do sujeito quanto do objeto): a vontade que é livre não
somente para nós, não somente para si mesma, mas livre em
e por si, esta vontade é o pensamento què se realiza, que sabe
que se realiza, que sabe que se realizou.24Em todas as partes e

** A qu estão q u e se a p re se n ta aq u i, a saber, se e sta realização d a lib e rd a d e é


co m p leta, o u , em o u tra s palavras, se a h istó ria , q u e é a realização d a lib e rd a ­
d e, está co n c lu íd a e te rm in a d a , será d isc u tid a n a ú ltim a p a rte d e ste tra b a lh o .
N o te m o s apenas q u e o q u e foi d ito (e cita d o ) p re c e d e n te m e n te p e rm ite d a r
u m a p rim eira resposta; a c a d a in s ta n te h istó ric o c o n h e c id o pelo p e n sa m e n to ,
a lib erd ad e i realizada, se n ã o n ã o h av eria p e n sa m e n to . M a s éáta realização n ã o
é co m p leta, senSo a h is tó ria n ã o teria c o n tin u a d o . N ã o o b sta n te , ela é se m p re
relativ am en te co m p le ta , o u seja, co rresp o n d e; c m cad a etapa, à co n sciên cia d a
época, assim c o m o o p e n sa m e n to c o rre sp o n d e à realid ad e dessa época. O n o v o
passo n ão será d a d o pelos q u e p o rta m o p e n sa m e n to d a ép o ca co n sid erad a,
m as pelo elem en to in satisfeito , o u seja, aq u ele q u e age p o r paixão. —A c e n su ra
d e “h isto ricism o ” q u e se m p re sé fez c o n tra H cg e l é, p o r co n seg u in te , in ju s­
tificada: a h istó ria possui u m se n tid o d e te rm in a d o em su a o rien tação p a ra a
realização d a liberd ad e-razão , p ara a organização d e u m a v id a e m c o m u m e m
q u e to d o in d iv íd u o e n c o n tra satisfeção e n q u a n to é ra c io n a l (pela su p ressão d e
to d a relação n ão m e d ia tiz a d a e in u m a n a c o m a natureza). O q u e foi a d q u irid o
nesse processo p erm a n e c e p a ra ele, e to d a te n ta tiv a d ê re to m o é, e m se n tid o
sempre, teremos de recordar que a política é a ciência da von­
tade racional em sua realidade eficaz ( Wirklichkeit), a ciência
da realização histórica da liberdade, da realização positiva da
negatividade. A liberdade não é positiva e não age senão na
medida em que objetivamente - esteja ou não consciente dis­
to - é racional, ou seja, universal: a liberdade concreta não é
o arbitrário do indivíduo, impossível de pensar, impossível de
realizar, e o homem é livre na medida em que quer a liberdade
do homem numa comunidade livre.25
***
É isso o que permitirá compreender por que Hegel, falando
da liberdade, não comece por uma dissertação “metafísica”,
mas por uma análise da liberdade concreta em sua forma mais
primitiva, mais simples, mais abstrata, mas na qual ela tam­
bém aparece objetivamente: a forma do direito.
O direito primitivo, primeira expressão objetiva da von­
tade, é a realização empírica da Vontade empírica e natural
do indivíduo. É o direito do indivíduo enquanto tal, o direito
de propriedade,
t
que, para Hegel, se distingue da fortuna, da
r -
estrito, não razoável e, p o rta n to , im o ra l (em b o ra, c o m o se sabe, tais tentativas
p o d em produzir-se e n a d a im p ed e a p rio ri seu sucesso —o q u e teria p o r única
consequência qu e a h istó ria teria d e refazer seu trab alh o ). Q u a n to à m oral d o
in d iv íd u o , ela é co n c re ta m e n te d e te rm in a d a p ela tradição (S im ) d e seu povo c
de seu tem p o ; se ele n ão se c o n fo rm a co m ela, será crim in o so , a m en o s q u e sua
ação, to m a n d o -se universal, ex p rim a u m a n ova consciência q u e deve justificar-
se histo ricam en te e m o ra lm e n te —o q u e v e m a d a r n o m esm o.
a Se q u erem o s conv en cer-n o s d e q u e a tese hegeliana n ã o se justifica apenas
“filosoficam ente” —o q u e, p a ra m u ito s h o m en s, seria quase o c o n trá rio de u m a
d em onstração séria e cientifica —, interessem o -n o s p o r estu d ar o livro de B.
M alinow ski Freedom a n d C iviU zation, L ondres (1947); o au to r, p a rtin d o dos
dados d e su a ciência p articu lar, q u e é a etno lo g ia, desenvolve, apesar ou p o r
causa d e seu p ro fu n d o desprezo pela “m etafísica” em geral e p o r H egel em
particular, a m aior p a rte d as teses hegelianas: e le jam ais está e m c o n flito co m
H egel, m esm o ali o n d e n ão chega a resultados tão p ro fu n d o s o u tão vastos.
Isso é verdade, em particu lar, n o q u e co n cern e à concepção de Uberdade (co n ­
cepção ta n to sua q u a n to d e H egel) com o lib erd ad e p o sitiva , liberdade d e fazer,
n ão liberdade negativa, lib erd ad e de n ão fazer, e que, p o rta n to , ta m b é m p ara
M alinow ski, não po d eria ser en u n c ia d a senão a resp eito d a co n stitu ição de u m a
sociedade, não d a consciência in d iv id u al, essencialm ente arb itrá ria e n q u a n to
individual. A com paração p o d e ria p rosseguir passo a passo. C f. a resenha d o
livro d e M alinow ski in C ritiq u e, 1948, c. IV , n° 2 3 , p . 3 5 6 ss.

2 - Os Fundamentos filosóficos da Política | 43


propriedade que traz e garante a independência econômica
do indivíduo, da família, da sociedade; ela significa a posse de
um objeto natural. Neste ato, o homem natural se tom a pes­
soa: não é a necessidade que está na origem da propriedade;
é a afirmação da individualidade, o ato da vontade, constitu­
tivo a tal ponto da pessoa, que meu corpo só é meu na medi­
da em que tomo posse dele (ainda que para o outro eu seja
sempre meu corpo). E, por outro lado, nada do que pode ser
individualizado está isento dessa tomada de posse, nada se
subtrai ao direito que eu tenho de utilizá-lo como quiser, não
se pode assinalar nenhum limite ao direito de propriedade no
plano do direito abstrato, abstrato justamente por causa da
ausência de uma limitação por uma positividade superior.26
Dado, porém, que foi minha vontade que se colocou nes­
se objeto, ela também pode perfeitamente retirar-se dele, e,
como ela se alienou e exteriorizou (verãussem) na coisa, ela
pode alienar a coisa por sua vez: vê-se a passagem do direito
do indivíduo ao contrato, à formação de uma vontade comum
entre os contratantes, mas que é particular a estes, sem ser
universal. Vê-se também que nada impede esta vontade de se
desfigurar e que ela se distingue da vontade tal como é em e
por si mesma, da vontade racional e universal. Ela permanece
presa ao que é seu outro, no que lhe é exterior e dado: ela está
longe de ser o que é a vontade livre segundo sua definição abs­
trata, “vontade livre que quer a vontade livre”.27
Por isso o dano e o crime entram no domínio do direito,
porque ele é domínio da exterioridade, da natureza, do acaso:
a força e a ação permanecem vinculadas a esta expressão in­
completa da liberdadê: Dado, contudo, que a liberdade, mes­
mo alienada e exteriorizada, não admite coação, que é o con­
trário do direito da pessoa, força e coação se suprimem por
si mesmas: o criminoso, negando a pessoa do outro, negou a
pessoa tout court e, portanto, também a sua; sendo racional

“ P ara o qu e se segue, cf. P h D , p a rte I, O D ireito A bstrato.


17 "D er fre ie W ille, d er den fre ie n W illen w ill " P h D , $ 2 7 .
em sua essência, ele quis (em si, se não por si) que o direito
fosse restabelecido pela contracoação.
Apresenta-se explicitamente, assim, o que até aqui só era
verdadeiro aos olhos do filósofo: a oposição entre a vontade
universal que não é senão em si (ou seja, para nós que proce­
demos a esta investigação partindo do ponto de vista da razão
e do universal, da ciência) e a vontade individual que não é
livre senão para si mesma. São o dano (civil) e o crime (penal)
o que revela a justiça como o objeto da vontade profunda, que
opõe o arbitrário à liberdade, a alienação à razão: o homem
não quer o mal que ele faz, porque ele não quer que o mal seja
feito, dado que o mal suprime não só a liberdade racional, mas
também o arbitrário na medida em que o arbitrário ainda não
afirma somente a autonomia deste homem, mas a autonomia
do homem. Para o homem que compreendeu a injustiça (nada
indica, mas nada tampouco exige que todo indivíduo chegue
a esta compreensão), a pessoa do direito não é mais o homem
todo: ele se sabe vontade individual; mas, em sua vontade in­
dividual, ele se quer universal: para empregar a terminologia
hegeUana, a pessoa torna-se sujeito.
Como a pessoa, o sujeito age; mas ele já não se exteriori­
za inteiramente e ingenuamente. Ele se deu o objetivo de sua
ação e tem consciência disso; o que lhe importa é que a vonta­
de esteja de acordo consigo mesma, que ela não se contradiga
nem se refute. Em outras palavras, a vontade do sujeito quer
ser universal e sabe que só o será se for à medida do conceito
da razão. A boa vontade é a vontade do homem enquanto tal,
e a boa ação tem como determinante o fato de, conquanto seja
minha, reconhecer como regra o conceito, que diz o que ela
deve ser; ela representa, de sua parte, a vontade de todos os
homens. Viemos a dar, assim, na moral de Kant.
***
Insistiu-se amiúde na crítica da concepção kantiana da
moral que encerra esta parte da Filosofia do Direito, crítica
que figura, idêntica quanto ao fundo, em quase todas as obras

2 -Os Fundamentos Filosóficos da Política | 45


de Hegel, desde a Diferença entre os Sistemas de Fichte e de
Schelling até a última edição da Enciclopédia das Ciências Fi­
losóficas. O ponto principal desta crítica é bem conhecido: o
imperativo categórico não permite a ação, porque o conteúdo
concreto que é necessário a toda aplicação do critério moral
é tomado do mundo existente, do domínio da exterioridade e
do arbitrário, e porque o critério moral é puramente formal;
o dever permanece, pois, eternamente puro dever, ou, muito
pior, tem de permanecer assim, porque, se a lei moral nun­
ca fosse seguida por todos os homens, o homem, não tendo
mais tarefa nem problema, já não teria conteúdo de sua cons­
ciência moral.
Mas, para a questão que nos ocupa, o conteúdo positivo
desta parte da Filosofia do Direito importa mais que esta crí­
tica, por mais definitiva que ela seja. Trata-se da ação, e da
ação como minha, ação cuja responsabilidade carrego e recla­
mo para o bem ou para o mal, enquanto mérito ou enquanto
culpa. Esta ação é, pois, por si mesma fruto do meu propósito
deliberado ( Vorsatz); dado, porém, que a ação é feita no m un­
do, dado que ela se expõe aos acasos da realidade exterior,
a vontade termina por se voltar do isolamento do propósito
para a universalidade da intenção (Absicht): o sujeito não bus­
ca o ato separado, mas se busca a si mesmo em seu ato, não
perseguindo isto primeiramente, aquilo em seguida e assim
ao infinito, mas perseguindo sua satisfação. Ora, esta satisfa­
ção, diferente de todo e qualquer conteúdo isolado, não é a da
individualidade, não pode ser senão a do sujeito, do homem
enquanto pensa: é a satisfação do subjetivo, mas no objetivo,
a satisfação na obra. Satisfação que não será imoral, porque é
satisfação de ser livre - ou antes, que não deve ser imoral mas
pode sê-lo, porque o bem do sujeito, dos sujeitos, de todos os
homens ainda não está fixado.
Ora, esse bem se declara agora: ele é a unidade entre a von­
tade particular e a vontade universal. Em outras palavras, o
bem não existe senão como a verdade (o ser revelado) da von­
tade, portanto no pensamento e pelo pensamento, o único que

46 | HegdeoEstado
pode estabelecer esta unidade e julgar as pretensões à unida­
de. E é este o ponto que é preciso notar: o sujeito tem o direito
-absoluto de ser julgado segundo sua intenção, tem o direito
absoluto de só ser julgado segundo uma lei que ele mesmo re­
conheceu, que ele pensou:
“O direito da vontade subjetiva é (exigir) que o que ele
deve reconhecer como válido seja compreendido por ele
como bem.”28
Compreende-se, pois, por que Hegel, por uma vez, fala a
este respeito de Kant com admiração:
“Não foi senão pela filosofia kantiana que o conhecimen­
to da vontade ganhou um fundamento e um ponto de partida
sólidos, graças ao pensamento de sua autonomia infinita.”29
E é ainda falando do princípio da vontade individual que
ele reconhece um mérito a Rousseau, que comumente não en­
contra muito favor de sua parte.
“Rousseau teve o mérito de estabelecer como princípio do
Estado um princípio que é pensamento não somente segundo
a forína (como, por exemplo, o instinto social, a autoridade
divina), mas segundo seu conteúdo, a Saber, o Pensar {das
Denken) mesmo, ou seja, a vontade.”30
É verdade que em seguida Hegel reprovará a Rousseau o ter
transformado o Estado em contrato, o pensar apenas na von­
tade individual e o negligenciar o outro lado da vontade, a ob­
jetividade racional; é verdade ainda que a homenagem a Kant
se segue da observação de que o ponto de vista desta moral

® "D as R eche d a su b jek tiv en W ille n s ist. dass das, usas er als g ü ltig anerkennen
soll, von ih m als g u t ein g e se h e n w erde. "P h D , § 132.
29 " ... w ie d en n d ie E rken n tn is d a W illens erst d u rch d ie K a n tisc h c P hilosophie
ih ren fis te n G ru n d u n d A u sg a n g sp u n kt d u rch den G edanken seiner unendlichen
A u to n o m ie gew onnen h a t. "P h D , $ 135.
h a t R ousseau d a s V erdienst g ehabt, ein P rin zip , dtss n ic h t n u r seiner F orm
nach (w ie etw a S o zia litä tstrieb , d ie g ö ttlich e A u to ritä t), sondern dem In h a lte rsach
G e d a n k e ist, u n d susar das D e n k e n selbst, n ä m lich den W ille n als P rin zip d a
Staa ts ausgestellt z u haben. " P h D , § 2 5 8 , p. 196 ss. - O b serv ar-se-á a fó rm u la:
"o p e n sa r m e s m o ”, o u seja, a v o n ta d e .

2 - Os Fundamentos Filosóficos da Política | 47


abstrata não leva senão a uma lengalenga “de dever por amor
ao dever”, e de que assim nenhuma deontologia concreta é
possível. Isso não impede que “a consciência (moral) exprima
a pertinência absoluta da consciência-de-si subjetiva, a saber,
(o direito) de conhecer em si e por si o que são o justo e o dever
_-e de só reconhecer o que ela conhece, assim, como o Bem, (o
que ela exprime) ao mesmo tempo pela pretensão que o que
ela sabe e quer assim é justo e bem como verdade”.31
O que significa: só se pode em direito exigir do homem o
que a razão reconhece como conveniente para um ser livre e
racional - ou melhor: racionalmente livre, livremente racio­
nal. Mas decorre daí igualmente que a consciência moral,
precisamente porque constitui o santuário inviolável da inte­
rioridade, é essencialmente ambígua, que ela pode tanto ser
sincera quanto mentirosa, assim como o sujeito pode ser bom
ou mau. Não importa o que possa ser justificado pela cons­
ciência moral subjetiva, não importa que meio possa ser de­
fendido sob 0$ nomes de nobre e de bom, não importa que hi­
pocrisia possa sustentar-se, não importa que contraverdade,
pelo simples apelo à convicção pessoal do autor da ação. Pois
a vontade moral é tão somente vontade particular.
Em outras palavras, não há moral concreta fora de uma
situação concreta: é preciso que a vontade compreenda que
o Bem é, que a liberdade existe no mundo objetivamente, que
a ação tem um sentido; é preciso que a vontade vazia e o Bem
formal se reconheçam como de fato realizados, realizados
com uma perfeição maior ou menor, mas realizados no mun­
do, no que Hegel chama de Sittlichkeit, a vida moral histórica,
o costume, esse totum àt regras, de valores, de atitudes, de
reações típicas que forma o que para nós leva os nomes de tra­
dição e de civilização.

31 "Das G ew issen d rü ckt d ie absolute Berechtigung des sujektiven Selbstbewusstseins


aus, näm lich in sich u n d aus sich selbst zu wissen, w as R echt u n d P flich t ist, u n d
nichts anzuerkennen, als w as es so als das G ute weist, zugleich in der B ehauptung,
dass, was es so w eist u n d w ill, *» W a h rh e it R echt u n d P flich t is t." P hD , § 137.
No entanto, se é preciso que a consciência individual se
reconheça no mundo concreto, é preciso também que seja
ela mesma que se reconheça aí. Não há moralidade concreta,
não há tradição que possam forçar os homens ou destruir
os direitos da moral formal e racional. A moral concreta é a
realização da liberdade, é o meio no qual o homem encon­
tra, com o reconhecimento de sua consciência moral pelos
outros, o conteúdo desta consciência que lhe permite agir,
assumir responsabilidades concretas, realizar o Bem. E esta
moral concreta lhe permite realizar o Bem porque esse Bem
já existe, porque já existe um mundo humano da liberdade
real, porque a vida já está orientada. O indivíduo não entra
num espaço moral vazio, ele não se encontra diante de uma
matéria do dever que só toma forma por meio de sua ação;
assim como ele não constitui a propriedade, mas no máxi­
mo sua propriedade, assim como ele não constitui a moral,
mas no máximo sua moral, e constitui uma e outra porque
já há propriedade e moral, assim também ele se compreende
a partir da liberdade de sua vontàde, mas ele só se compre­
ende porque no mundo que ele habita e que o habita já há
razão, compreensão e liberdade. £ preciso que sua reflexão
parta'do mais pobre, do mais abstrato,, pára captar o con­
creto, que é o fúndamento sem o qual o abstrato e a abstra­
ção não seriam. É preciso que ele se faça negatividade, que
ele esteja seguro, em sua consciência (consciência moral e
consciência-de-si, que não são senão a mesma, a única cons-
ciência-de-si), da onipotência e do direito eterno da negati­
vidade; mas o sentido desta negatividade não consiste em ir
para os conteúdos isolados que ela possa destruir e devorar
à medida que eles se apresentem; ela tem por sentido com­
preender que o que está no mundo moral, no mundo dos
homens, é obra da negatividade mesma, compreender que a
lei positiva (não; toda e qualquer lei positiva) é uma vitória
da negatividade sobre o imediato, sobre a natureza no ho­
mem e em face do homem, que o homem pode entregar-se
livremente ao positivo da vida em toda a medida, e somente
na medida em que esse positivo é resultado da negatividade,
em que ele é realidade racional.

2 - Os Fundamentos Filosóficos da Política j 49


3.0 Estado como R ealidade
da Ideia M oral

Afirma-se amiúde que o direito e a moral não contam para


Hegel: não as qualificou ele de abstratos? Os dois não se reali­
zam e não adquirem um sentido concreto apenas no Estado?
Ora, há que repetir, nesta objeção há um erro quase inteira­
mente terminológico. O fato de que uma noção seja chamada
de abstrata, na linguagem hegeliana, não significa de modo
algum que seja falsa e que possa ou deva ser eliminada; ao
contrário, daí decorre que ela é indispensável ainda que in­
completa, que tudo o que se seguir no desenvolvimento do
conceito a deverá levar em conta, a deverá, com a palavra de
Hegel, “aufheben”, ab-rogar, mas ab-rogar somente no que
ela tem de abstrato para guardá-la sublimando-a, para lhe dar
sua função positiva no todo organizado da razão.
No que concerne ao problema da moral, é ademais difícil
ver a dificuldade, se se renuncia aos partis pris e olha o traba­
lho concreto da ciência e da teoria. Todo o mundo parece en­
tão de acordo, e sempre se afirmou que o direito do indivíduo
só se realiza numa organização supraindividual, que uma vida
moral só é possível segundo o que se designa hoje em dia pela
expressão “sistema de valores”, sistema preexistente em que o
indivíduo toma posição sem poder nunca tomar posição com
respeito ao sistema inteiro (a menos que ele se decida pelo
único ceticismo consequente, o da abstenção de toda ação
e do silêncio absoluto). 0 homem pode considerar-se como
proprietário, interpretar-se como consciência moral: sempre
se respondeu que o que se interpreta assim é o homem com­
pleto e que esta interpretação é uma pura abstração. Sempre
se soube, embora algumas vezes se goste de afirmar o contrá­
rio, que não há o h o m em , mas somente homens, com um sexo,
uma idade, uma posição social, um trabalho, pertencente não
À comunidade , mas a uma comunidade, a uma família, a um
povoado, a uma associação, a-um país. 0 homem, diz Hegel,
é livre: isso quer dizer que, num Estado livre, ele pode pos­
suir e utilizar e consumir e se entender com outros homens;
ou seja, por conseguinte, ele não reconhece como válido para
ele o que não reconhece como sua própria decisão racional; o
que quer dizer que esta liberdade é a do homem racional que
só considera como decisão sua a decisão universal que vise ao
Bem universal, a decisão racional, que é decisão do homem
no indivíduo. Mas a liberdade não poderia ser real senão num
mundo da razão, num mundo já (ou seja, historicamente) or­
ganizado, na família, na sociedade, no Estado.
***

Para a análise dessas formas concretas da vida moral, não


vamos seguir, como fizemos até aqui, o desenvolvimento he­
geliano. Sabe-se como este se dá: na família, o homem deixa
de ser abstrato; membro de uma unidade vivente, o indivíduo,
no sentimento de amor confiante, leva uma existência concre­
ta que é existência livre, porque existência no consentimento.
Mas a família, tendo seus fundamentos em parte na natureza,
no dado imediato da individualidade biológica e do acaso da
afeição pessoal, não perdura, e a morte dos pais transforma
o filho adulto em pessoa privada que persegue seus próprios
fins. Este indivíduo trabalha e, trabalhando, se socializa, sen­
do o trabalho a mediação social entre o homem e a natureza.
A propriedade cede assim lugar à fortuna familiar, e esta se

5 2 1 Hegel eo Estado
funda na fortuna social, na qual a pessoa participa por sua
fortuna pessoal: assim, a sociedade se organiza por e para e no
trabalho: estado (Stand) dos que trabalham em contato ime­
diato com a natureza (agricultura)1,estado dos que vivem pelo
trabalho transformando e distribuindo (indústria, comércio),
estado dos que organizam o trabalho social e que são libera­
dos de todo trabalho no sentido primeiro e segundo, seja pela
fortuna pessoal, seja pelo tratamento que lhe dispensa a socie­
dade. Esses estados são fixos, mas, se a sociedade em que ele
vive é livre, o indivíduo, cada indivíduo pode ter acesso a cada
um deles segundo sua capacidade.
É ainda a sociedade (que Hegel também chama, para opô-
la ao Estado da liberdade e da razão - ver-se-á por quê -, de
Estado da necessidade e do entendimento - Notund Verstan­
desstaat) que criou a primeira organização conscientemente
desenvolvida: o sistema judiciário resolve os conflitos entre
as pessoas privadas, a polícia protege os interesses de todos
os indivíduos, as corporações organizam as formas particu­
lares de trabalho.
Passemos rapidamente por esta parte, de um lado porque
temos pressa de chegar à teoria do Estado, e de outro porque
voltaremos aos problemas da sociedade a partir da concep­
ção de Estado: evitaremos assim a objeção clássica segundo
a qual tudo o que é afirmado da sociedade na Filosofia do Di­
reito, ainda que pudesse ser aprovado, não tem consequência,
porquê a teoria do Estado virá suprimir o que a precede. 0 que
se deve pensar desta objeção, já o dissemos mais acima.1Mas
será mais seguro não nos expormos ao risco constituído por
uma tradição bem estabelecida e enfrentarmos antes de tudo
o Estado hegeliano.

“0 Estado”, diz Hegel, “é a realidade da ideia moral (sitt­


liche Idee), o espírito moral enquanto vontade revelada,
dara para si mesma, substancial, que se pensa e se sabe e

' P. 33 e 51 ss.

3 - 0 Estado como Realidade da Ideia Moral 153


que executa o que sabe e enquanto o sabe. Ele tem existência
imediata nos costumes e na tradição (Sitte), existência me-
diatizada na consciência-de-si do indivíduo, no saber e na
atividade deste, e o indivíduo, pela convicção (Gesinnung),
possui sua liberdade substancial nele (i.e., n.o Estado), que é
sua essência, fim e produto de sua atividade.”2
“0 Estado, enquanto realidade da vontade substancial, rea­
lidade que ele possui na consciência particular elevada à sua
universalidade, é o racional em e para si. Esta unidade subs­
tancial é fim em si (Selbstzweck) absoluto e imóvel, (fim) no
qual a liberdade atinge seu direito mais elevado, da mesma
maneira que esse fim último (Endzweck) possui o direito mais
elevado com respeito aos indivíduos, cujo dever supremo é ser
membros do Estado.”3*5

Todo o essencial está contido nesses dois parágrafos. A ideia


moral, existente na família e na sociedade, só se revela como
pensamento no Estado. 0 homem privado age, mas sua ação
não visa ao universal que, no entanto, ela realiza: o membro da
sociedade trabalha, e, trabalhando para si mesmo, trabalha para
todo o mundo; mas ele ignora que seu trabalho é o universal, e
por conseguinte o mundo do trabalho é um mundo exterior a
seus habitantes, um mundo que se faz sem querer se fazer. No
Estado, a razão está presente; pois o cidadão é "a consciência
particular elevada à sua universalidade”, e o Estado é a vontade

2 "D er S ta a t ist die W irklichkeit der sittlichen Idee - der sittliche G eist als der
offenbare, sich seihst deutliche, substanzielle W ille, der sich d en kt u n d weiss u n d
das, was er weiss u n d insofern er es weiss, voüführt. A n der Sitte h a t er seine u n m it­
telbare, u n d an dem Selbstbewusstsein des E inzelnen, dem Wissen u n d T ätigkeit
desselben seine verm ittelte Existenz, sowie dieses durch die G esinnung in ihm , als
seinem Wesen, Z w eck u n d P rodukte seiner Tätigkeit, seine substantielle Freiheic
hat. “PhD , § 257.
5 "Der S ta a t ist als die W irklichkeit des substanziellen Willens, d ie er in dem zu
seiner A llgem einheit erhobenen besonderen Selbstbewusstsein hat, das an u n d Ju r
sich Vernünftige. Diese substantielle E inheit ist absoluter unbewegter Selbstzweck,
in welchem die F reiheit zu ihrem höchsten R echt kom m t, sowie dieser E ndzw eck
das höchste R echt gegen die E inzelnen hat, deren höchste Pflicht es ist, M itglieder
des Staats zu sein .' P hD , § 258.

5 4 1 Hegeleo Estado
do homem enquanto ele quer racionalmente, enquanto ele quer
(lembremo-nos da definição hegeliana) a vontade livre. E isso
sem nenhuma hipóstase mítica ou mágica: este Estado tem rea­
lidade na consciência dos indivíduos, das pessoasyque, por esta
consciência mesma, deixam de ser pessoas puramente priva­
das. 0 Estado é real no sentimento patriótico de seus cidadãos,
assim como o cidadão é concretamente livre ao reconhecer no
Estado a liberdade concreta, ou seja (pois é a mesma coisa), o
campo da ação racional: só o Estado tem fins ao mesmo tempo
conscientes e universais; ou melhor, por sua essência, ele tem
mais que fins - tem um só fim, o fim acima do qual nenhum fim
é pensável: a razão e a realização da razão, a liberdade.
Se, ao que parece, o sentido das afirmações hegelianas
é daro, ele, porém, ao menos pareceu amiúde ameaçador.
0 Estado é a razão realizada; enquanto razão realizada, ele é
a liberdade positiva acima da qual nenhuma liberdade con­
creta é pensável; contra o Estado não há senão a opinião, o
desejo individual, as platitudes do entendimento: que resta
do que ordinariamente se entende por liberdade? Pouca coi­
sa, dir-se-á. A vontade individual já não conta, ao menos se a
vontade individual é o que ela crê ser. A consciência moral é
aufgehoben, sublimada, realizada, mantida, tudo o que se qui­
ser, mas ela também deixou de ser a instância suprema.
***

Nada talvez seja mais apto para ilustrar neste ponto a ati­
tude de Hegel que sua teoria da relação entre o Estado e a reli­
gião. A religião, com efeito, afirma que a Verdade reside nela,
que todo ato humano está sob a jurisdição de seu tribunal, que
a fé, o coração e a consciência não podem reconhecer nenhum
juiz terrestre. A analogia entre os problemas religiosos e os
morais é impressionante.
É evidente que não poderiamos entrar aqui na discussão
da posição religiosa de Hegel.4 Se ele foi cristão ou ateu, isso4

4 A luta entre os hegelianos “de esquerda" e os “de direita" continua nos nos­
sos dias. Cf. para a interpretação “ateia”, Kojève, loc, c it.\ para a interpretação

3 - 0 Estado como Realidade da Ideia Morai 155


é antes de tudo uma questão de ordem biográfica. A. resposta
é, então, simples: não há nenhuma razão para pôr em dúvida
a sinceridade de suas declarações, repetidas em todas as suas
obras, em cada novo prefácio às edições da Enciclopédia, em
suas sinopses, em suas cartas aos amigos e ao ministério. Po­
de-se por conseguinte dizer que seu cristianismo não é o bom,
pode-se defender que seu sistema é objetivamente ateu (desde
que se dê uma definição conveniente de ateísmo); não é menos
verdade que Hegel sempre se considerou cristão e que, sempre,
se esforçou por mostrar que nenhuma de suas teses estava em
contradição com a fé. Como ele o mantém quando se encontra
diante da tarefa de elucidar as relações entre o Estado do pen­
samento e a religião da liberdade que é para ele o cristianismo?
A solução está contida em dois princípios. 0 primeiro de­
clara que o cristianismo é a religião da verdade e da liberdade.
0 segundo rejeita toda teoria da dupla verdade. Se pois tanto
o pensamento como a religião cristã têm por conteúdo a liber­
dade e o valor infinito do indivíduo, não pode haver contradi-.
ção entre eles.5 Precisamente, porém, porque o cristianismo
é a religião da verdade e da liberdade, ele não só pode mas
deve se pensar: enquanto religião, ele se realiza sob a forma de
representação, de imagem, mas de uma representação que a
cada momento admite e requer a transposição para a lingua­
gem do conceito. E, porque o cristianismo é feito de liberdade
e de verdade, um Estado que não fosse cristão em seus funda­
mentos não seria Estado da liberdade.
Mas eis também por que a religião nada tem que ver com
o Estado. “O espírito divino deve penetrar o mundano de
modo imanente”,6 a religião não deve ser algo separado,

"cristã”, o livro de H. N id, D e la M édiation dans la Philosophie d e Hegel, Paris,


1945, e a resenha de M. Kojève do livro de M. Niel (in C ritique, vol. I, 1946, p.
339 ss —exposição bastante completa do ponto de vista “aten”) e a de M. Nie!
sobre o livro de M. Kojève (in C ritique, vol. III, 1947, p. 426 ss).
5 Cf. a longa discussão do problema, PhD, S 270, à qual se pode acrescentar a
importante nota do § 552 da Enciclopédia (31 ed.).
6 “D er göttliche G eist muss das W eltliche im m anent durchdringen, "Enciclopédia,
loc. cit. (p. 468 da 2* ed. Lasson).

56 J Hegeleo Estado
transcendente, superior em relação ao Estado, pois este não
seria então um Estado cristão.7 A fé do indivíduo é invio­
lável, mas somente enquanto ela permanecer fé íntima: a
ação pertence a este mundo. “Não é suficiente que a religião
prescreva: Dai a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus; pois se trata preçisamente de saber o que pertence a
César.”®Se, pois, houvesse conflito entre os representantes
da religião e o Estado - conflito que só poderia ser um con­
flito superficial, dada a identidade do fundamento - , seria o
Estado que teria de decidir: pois é ele que, contra a imagem
e o sentimento, representa o pensamento e a razão, que é a
realidade (racional) da fé (representativa).
Por isso Hégel, com uma severidade que muito o prejudi­
cou na Prússia “cristianíssima” de Frederico Guilherme IV e
dos dois Guilhermes; rejeitou toda e qualquer intervenção da
Igreja nos negócios políticos.
“A religião é a relação com o Absoluto em forma de senti­
mento, dé representação, de fé, e em seu centro, que contém
tudo, não é senão enquanto acidental que tudo desaparece
igualmente...” “Dos que buscam o Senhor e se persuadem de
tudo possuir deforma imediata em sua grosseira opinião, em
lugar de se dar ao trabalho de elevar sua subjetividade ao co­
nhecimento da Verdade e ao saber do direito objetivo e do de­
ver, (desses que assim agem) não pode provir senão a destrui­
ção de todas as relações morais, necedade e abominação...”
É verdade que “o Estado não pode ocupar-se do conteúdo
enquanto se relacione com o interior da representação”, que
“a doutrina tem seu domínio próprio na consciência e se man­
tém no direito da liberdade subjetiva da consciência-de-si -

7 É em estrita analogia com esta concepção de Estado cristão - que, por cristão,
não tem necessidade de controle religioso - que o Estado de direito e da lei não
conhece, em Hegel, uni poder judiciário como poder constitucional à parte,
precisamerire porque a lei é a alma deste Estado.
a "Es ist n ich t genug, dass in d er Religion geboten ist; Gebt dem Kaiser, was
des Kaisers ist, und Gott, was Gottes ist; denn es h a ndelt steh eben darum
zu bestim m en, was des Kaisers sei, d. i. was dem w eltlichen R egim ente gehöre.
E nciclopédia, ibid.

3 - 0 Estado como Realidade da Ideia Moral j 57


essa esfera da interioridade que, enquanto tal, não é do domí­
nio do Estado”. Mas “o espírito como livre e racional é mo­
ral (sittlich) em si mesmo... a verdadeira ideia é a razão real
(wirklich), e é ela que existe como Estado”. ... “Contra a.fé ca.
autoridade (da Igreja) no sujeito da moral concreta, do direi­
to, das leis, das instituições, contra sua convicção subjetiva, o
Estado é aquele que sabe (das Wissende) . ... O princípio de sua
forma enquanto universal é essencialmente o pensamento”.9
O Estado é juiz das ações da Igreja e das Igrejas porque
ele pensa, porque ele sabe. É ele, e só ele, que age em plena
consciência; é ele, e só ele, que é a organização da liberdade no
mundo: ele é esta organização, ele não a faz, o que significaria
que o Estado seria outra coisa que a organização da ação ra­
cional, a razão em ação. Ele é cristão, no sentido de realizar na
Terra e racionalmente o que constitui o conteúdo da religião
sob a forma da representação e no modo do sentimento.10

9 'D ie Religion ist tias Verhältnis zu m A bsoluten in Form des Gefühls, der
Vorstellung, des Glaubens, un d in ihrem altes enthaltenden Z en tru m ist alles n u r
als ein Accidentelles, auch Verschwindendes. ”... "Von denen, d ie den Herrn suchen
u n d in ihrer ungebildeten M einung altes unmittelbar z u haben sich versichern,
sta tt sich die A rb eit aufzulegen, ihre Subjektivität, z u r E rkenntnis der W ahrheit
u n d zu m Wissen des objektiven Rechts u n d der P flicht zu erheben, ka n n n u r
Zertrüm m erung aller sittlichen Verhältnisse, A lbernheit u n d A bscheulichkeit aus­
gehen. ”... "A ufden Inhalt, insofern er sich a u f das Innere der Vorstellung bezieht,
kann sich der S ta a t nicht einlassen. " . . . “D ie Lehre selbst aber h a t ih r G ebiet in
dem Gewissen, steht in dem Rechte der subjektiven F reiheit des Selbstbewusstseins, —
der Sphäre der Innerlichkeit, die als solche n ich t das G ebiet des Staates ausm acht. ”
... “D ie E ntw icklung... h a t erwiesen, dass der Geist, als fr e i u n d vernünftig, an sich
sittlich ist, u n d die w ahrhafte Idee die wirkliche V ernünftigkeit, u n d diese es ist,
welche als S ta a t existiert. ” ... "Gegen ihren Glauben u n d ihre A u to ritä t über dos
Sittliche, Recht, Gesetze, Institutionen, gegen ihre subjektive Ueberzeugung ist der
S ta a t vielm ehr das Wissende. ” ... "W eil das, P rinzip seiner Form als Allgem eines
wesentlich der Gedanke ist... "P hD , 5 270.
10 Aí está o fundamento da crítica hegeliana ao catolicismo, que, separando o
sagrado do profano, não permite ao Estado compreender-se como a realização
da razão. “Pode haver uma relação de não liberdade na forma, ainda que o
conteúdo da religião tal como é em si seja o espirito absoluto. ... Na religião
católica, este espírito (no qual Deus é conhecido) é rigidamente oposto na reali­
dade ( W irklichkeit) ao espírito consciente-de-si. Antes de tudo, na hóstia, Deus
é apresentado à adoração religiosa como uma coisa exterior, ... Dessa primeira
relação de exterioridade, que é a mais elevada, decorrem codas as demais rela­
ções exteriores (que são), portanto, sem liberdade, sem espírito, supersticiosas:
o estado dos laicos que recebem do exterior e de oucro estado o saber da verdade
divina e a direção da vonrade c da consciência moral. ... Ademais, o sujeito

58 j Hegeleo Estado
0 que Hegel diz do sentimento religioso vale para a refle­
xão moral. A supremacia terrestre do Estado decorre de seu
conteúdo espiritual: ele realiza soberanamente, porque realiza
o espírito e a liberdade, “o valor infinito do indivíduo”. Pode
haver - já o vimos - Estados tirânicos, Estados injustos, Esta­
dos que não atingiram a etapa que é a do espírito de sua época,
e veremos como esses Estados serão arrastados ao tribunal da
história, para nele ser condenados.

renuncia a se dirigir dirctamentc a Deus c roga a outros que roguem por ele.
... A esse princípio, a esse desenvolvimento da não liberdade no domínio da
religião, corresponde no Estado real uma legislação e uma constituição da não
liberdade jurídica c moral (sittlich ) c um estado de coisas feito de injustiça e de
imoralidade... A não liberdade da forma, ou seja, do saber e da subjetividade,
tem por consequência, no que concerne ao conteúdo moral, que a consciência-
de-si não é representada como imanente (i.e., ao conteúdo moral), que ele (i.e.,
esse conteúdo) é representado como transcendente (entrückt) a esta, de modo
que é considerado como verdadeiro somente enquanto negativo com respeito à
realidade da conscíência-de-si. Nesta não verdade, o conteúdo moral se chama
‘o sagrado’. Mas, quando o espirito divino se introduz na realidade, quando a
realidade <í libertada (para ir) para ele, (então) o que deve ser no mundo san­
tidade é substituído pela moral concreta (S itd ich keit). ... (Segundo a distinção
católica entre o profano e o sagrado), as leis aparecem como obra humana nesta
oposição contra o que a religião declara sagrado. ... É por isso que de rais leis
(baseadas nos princípios racionais), ainda que seu conteúdo seja verdadeiro,
esbarram na consciência morai (cacólica) cujo espírico difere do espírito das
leis e não as sanciona. ... £ cão somente no princípio (protestante) do espírito
que sabe sua essência, que em si é absolutamente livre e que tem realidade na
atividade de sua própria libertação, 6 tão somente nesse principio que exiscem
a possibilidade e a necessidade absolutas de que o poder do Escado, a religião
e o princípio da filosofia coincidem, que se conclui a reconciliação da realida­
de enquanto tal com o espírito, do Estado com a consciência moral religiosa
e também com o saber filosófico. ... Assim a moral concreta do (Sittlichkeit)
Estado e o espírito religioso do Estado constituem um para o outro garantias
mútuas e sólidas”. Enciclopédia, 3a ed., § 552, particularmente p. 466 e 469
(2a ed. Lasson). —Cf. também Philosophie der Weltgeschichie, ed. Lasson, p.
889, 899 ss, e P hD , § 270, p. 214 ss.
Segundo Hegel, nenhum compromisso é possível entre a transcendência ca­
tólica e o Estado moderno, que não é moderno e Estado da razão senão na
medida em que realiza na realidade viva o que a religião opõe como princípio
transcendental à vida terrestre. Não hí, para Hegel, Estado católico e racional­
mente livre, porque a consciência católica considera o Estado como essencial­
mente imoral (ou amoral): a liberdade poderá ser imposta a um povo católico,
mas, enquanto imposta, não será reconhecida como moral (» realização da
liberdade). - Qualquer que seja o julgamento que se faça desta apreciação, ela
mostra que Hegel está muito longe de conceber o Estado como aparelho de
poder: a autoridade exterior e a falta de uma moral da liberdade caracterizam
para ele o Escado defeituoso.

3 - 0 Estado como Realidade da Ideia Moral | 59


Mas a-este respeito, em que temos de nos haver com os crí­
ticos do “estatismo” e do “relativismo moral”, devemos antes
de:tudo considerar o que Hegel diz de uma teoria legitimista
e absolutista, fundada e fundando o conceito de Estado sobre
o conceito de poder. A Filosofia do Direito consagra uma lon­
ga nota ao pensador da Restauração, Cari Ludwig von Haller,
que, depois, viria a ser o teórico preferido de Frederico Gui­
lherme IV, esse romântico no trono da Prússia.
Eis pois o texto do parágrafo que exprime com perfeita cla­
reza o que é a razão no Estado:
“Segundo o conteúdo, a razão ( Vemünftigkeit) consiste
aqui concretamente na unidade da liberdade objetiva, ou seja,
da vontade substancial e universal, e da liberdade subjetiva
enquanto saber do indivíduo e vontade que persegue fins par­
ticulares - e eis por que, segundo a forma, ela (i.e., a razão)
consiste numa atividade (Handeln) que se determina segundo
leis e princípios pensados, ou seja, universais.”"
A liberdade é a lei, enquanto a lei é racional, enquanto ela
exprime o conteúdo da vontade individual racional, enquanto
ela se apresenta como princípio pensado, pensavel e que assim
pode ser e é reconhecido pelos cidadãos.
Ora, o que afirma Haller? Que a ordem divina (“pensado­
res” mais modernos da mesma escola falariam de ordem da
natureza ou da vida) quer a supremacia do mais forte sobre
o mais fraco, do grande sobre o pequeno; que a lei e as leis só
fazem falsear essa relação querida por Deus; que, por outro
lado, tudo é assim para o melhor, porque o sentimento da pró­
pria superioridade eleva o caráter do grande e produz no se­
nhor precisamente as virtudes que são mais favoráveis a seus
inferiores. Palavra divina?, responde Hegel; “mas a palavra
divina distingue muito expressamente entre suas revelações e1

11 "D ie V ernünftigkeit besteht... konkret dem In h a lte nach in der E inheit der ob­
jek tiv en F reiheit, d. i. des allgem einen substantiellen W illens, u n d der subjekti­
ven F reiheit als des individuellen Wissens u n d seines besondere Zw ecke suchenden
W ilens — u n d deswegen der Form nach in einem nach gedachten, d h. allgemei­
nen Gesetzen a n d G rundsätzen sich bestim m enden H andelns. "PhD, § 258.

60 | Hegeleo Estado
os apotegmas da natureza e do homem natural.... M. de Haller
teria devido lamentar como a mais dura das punições divinas
ele ter-se extraviado (da via) do pensamento e da razão, da
veneração das leis-e do conhecimento (que ensina) que é de
importância infinita, que é divino (saber) que os deveres do
Estado e os direitos de cidadãos, assim como os direitos do
Estado e os deveres dos cidadãos, são determinados pela lei -
ter-se extraviado a ponto de tomar o absurdo por palavra de
Deus.... G ódio à lei, ao direito fixado pela lei, é o Schibboíeth12
que revela e faz conhecer infalivelmente o que são o fanatis­
mo, a idiotice e a hipocrisia das boas intenções”.13
A essência do Estado é a lei, não a lei do mais forte, a lei do
capricho, a lei da “generosidade natural”, mas a lei da razão
em que todo ser racional pode reconhecer sua própria vonta­
de racional. É verdade que o Estado se apresenta nas esferas
do direito privado, da família e até da sociedade do trabalho
como uma necessidade exterior, como um poder superior;
mas, “por outro lado, ele é seu fim imanente, e sua força re­
side na unidade de seu fim último universal e dos interesses
particulares dos indivíduos, no fato de eles terem deveres para
com ele na medida em que, ao mesmo tempo, têm direitos.
... Escravos não têm deveres, porque eles não têm direitos, e
vice-versa”.14

12 Cf. Jz 12,5-6,
13 “D as W ort Gottes unterscheidet vielm ehr seine O ffenbarungen von den
Aussprüchen der N a tu r un d des natürlichen M enschen sehr ausdrücklich. ”... "Hr.
v. H . hätte es aus R eligiosität vielm ehr als das härteste Strafgericht Gottes bewei­
nen müssen, —denn es ist das H ärteste, was dem M enschen widerfahren kann, —
vom D enken u n d der V ernünftigkeit, von der Verehrung der Gesetze u n d von der
E rkenntnis, w ie unendlich wichtig, göttlich es ist, dass die P flichten des Staates u nd
die Rechte der Bürger, w ie die Rechte des Staats u n d d ie Pflichten der Bürger ge­
setzlich bestim m t sind, sow eit abgekomm en zu sein, dass sich ihm das Absurde fü r
das Wort Gottes unterschiebt. f>... “Der Hass des Gesetzes, gesetzlich bestim m ­
ten Rechts ist das Scbiboleth, an dem sich der Fanatism us, der Schwachsinn un d
die Heuchelei der guten Absichten offenbaren u n d unfehlbar zu erkennen geben. ”
P hD , § 258, nota no fim do §.
14 “Andrerseits ist er ih r immanenter Z w eck u n d hat seine Stärke in der E inheit
seines allgem einen Endzw ecks u n d des besonderen Interesses der Individuen * dar­
in , dass sie insofern Pflichten gegen ihn haben, als sie zugleich Rechte haben. ...
Sklaven haben deswegen keine P flichten, w eil sie keine Rechte haben; u n d umge­
kehrt. "PhD, § 261.

3 - 0 Estado como Realidade da Ideia Moral 1 61


0 que inquieta o sentimento contemporâneo (dizemos
bem: sentimento) é esse laço instituído entre liberdade e ra­
zão, a tese segundo a qual não há liberdade política fora da
razão, que as preferências e as convicções individuais, em sua
individualidade, em sua não universalidade, em sua preten­
são a uma liberdade contra a razão, não podem ser reconhe­
cidas pelo Estado. Mas o fato é que a convicção diz ao, mesmo
tempo, que ela constitui a lei moral e que ela pode se enganar:
nada importa além do fato de eu ter reconhecido tal máxima,
tal princípio, e, no entanto, se eu não quero cair num ceticis­
mo, num niilismo absolutos, eu direi, ao mesma tempo, que
minha convicção pode ter um conteúdo errôneo. Ora, o Estado
não pode contentar-se com convicções, boas ou más, porque
ele é a realidade da vida organizada:
“A consciência está sujeita a esse julgamento que pergunta
se ela é verdadeira (wahrhaft) ou não, e o recurso da consciên­
cia moral à sua ipseidade (sem Selbst) está em oposição ime­
diata com o que ela quer ser, a saber, a regra de ação racional,
válida em e para si, universal. Aí está por que o Estado não
pode reconhecer a consciência moral em sua forma específica,
ou seja, como saber subjetivo, assim como na ciência não têm
validade a opinião, a (simples) afirmação e o fato de apelar
a uma opinião subjetiva.”15 Pois “aquele que quer agir nesta
realidade (de um mundo real) já se submeteu por isso mesmo
às leis desta e reconheceu o direito da objetividade”.16
0 Estado e qualquer outra organização não podem con­
formar-se com a consciência moral, com a livre apreciação,
com a convicção pessoal: não porque a construção filosófica
padeceria com isso, mas porque de outra forma já não haveria

15 "Das Gewissen ist daher diesem U rteil unterworfen, ob es wahrhaft ist oder
nicht, u n d seine B erufung n u r auf sein Selbst ist unm ittelbar dem entgegen, was
es sein w ill, die Regel einer vernünftigen, an u n d fü r sich gültigen allgem einen
H andlungsweise. D er S ta a t kann deswegen das Gewissen in seiner eigentüm li­
chen Form, d. i. als subjektives Wissen nicht anerkennen, so w enig als in der
W issenschaft die subjektive Meinung, die Versicherung u n d Berufung a u f eine
subjektive M ein u n g eine G ültigkeit hat.” P hD , % 137.
Iä "W er in dieser W irklichkeit handeln w ill, h a t sich eben damit ihren Gesetzen
unterworfen, u n d das Recht der O b jektivitä t anerkannt,” P hD , § 32. '

621 Hegeleo Estado


Estado. A liberdade só pode ser enunciada do Estado; é ele que
é ou não é a realização da Uberdade: a liberdade do indivíduo,
na medida em que de se recusa a reconhecer o universal e a
objetividade da lei, na medida em que ele quer manter-se em
sua individualidade enquanto ela não é senão subjetiva, não é
nada mais que o arbitrário.

Contra tal arbitrariedade, o Estado encarna a razão; contra


o sentimento e a representação e a imagem da fé, ele desen­
volve racionalmente o conteúdo racional da religião; ao va­
zio da reflexão moral, ele fornece o único conteúdo que dá ao
homem a possibilidade de viver moralmente; à tradição viva
e vivida, ele dá a consciência-de-si que lhe faltava. É que o
Estado é razão na e pela lei - não por uma lei transcendente e
misteriosa, mas por suas leis, por seu regulamento universal
dos assuntos particulares, pelo pensamento que ele consagra
à elaboração cada vez mais pura dos princípios de uma exis­
tência livre, de uma forma de comunidade que dá satisfação
a todo cidadão pensante, a todo homem instruído e civilizado
(gebildet)17e que deixou tanto a grosseria do desejo imediato
como a passividade do puro sacrifício para se elevar ao pen­
samento racional ( verständig ) da interdependência dos inte­
resses: o Estado é livre se o cidadão racional pode encontrar
nele a satisfação de seus desejos e de seus interesses racionais,
dos interesses que enquanto ser pensante ele pode justificar
diante de si mesmo, se o cidadão reconhece nas leis do Esta­
do a expressão dos sentimentos e da tradição que o guiaram
(ainda quando ele não o tivesse sabido), se essas leis não são
justas tão somente do ponto de vista de um tirano esclarecido,
mas se elas podem e devem ser reconhecidas como tais por
todos os que querem a justiça, pelos que buscam sua liberta­
ção de todo dado imediato, incluído seu próprio caráter empí­
rico, natural, dado, pelos que compreenderam que o homem
natural não é livre, que só o ser racional, universal, pode sê-lo.
0 Estado é racional porque ele fala universalmente, por todos

17 Cf. PhD, § 187.

3 - 0 Estado como Realidade da Ideia Moral j 63


e por cada um, em suas leis, e porque todos e cada um encon­
tram reconhecido por suas leis o que constitui o sentido, o
valor, a honra de sua existência. .
Pode-se rejeitar a razão, assim como se pode afirmar qual­
quer coisa; apenas, fica-se assim privado do meio de conven­
cer e de refutar, do meio de falar racionalmente do Estado.
Alguém pode optar pela paixão contra a vontade, pela arbi­
trariedade contra a liberdade: será preciso apenas ser conse­
quente (se se quer discuti-lo) e admitir que, de sua parte, se
opõe ao Estado, a qualquer Estado, que assim se destrói toda
organização e toda liberdade positiva, toda liberdade de agir,
de planejar, de realizar e de se satisfazer pela ação racional,
que é a organização racional da comunidade e das comunida­
des dos homens.19 '

18 Gostaríamos, uma vez mais, de remeter a Malinowski, loc. cit., onde se en­
contrará uma excelente crítica da concepção negativa de liberdade e uma ótima
exposição da liberdade “positiva”, ambas fundadas numa reflexão científica que
se toma filosófica apesar dela mesma e sem que se perceba.

641 Hegeleo Estado

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