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CADERNO TEMÁTICO

"Arte: o indivíduo e a sociedade"

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A morfologia mínima e comum
The minimum and common morphology
Gerd Bornheim
Livre docente pela UFRGS.
Professor do Curso de Filosofia da UERJ.

Tento, em brevíssimas e até impossí- a arte e a estética, em tempos recentes, exau-


veis linhas, o delineamento geral da arte con- riu-se na exploração de duas diretivas que
temporânea. Não a sucessão de escolas e de pareciam esgotar o campo dos possíveis: a
diretivas estéticas a delimitar os capítulos de arte que diz o sujeito e a que diz o objeto; é
sua já pródiga evolução. Interessa-me outra apenas então que surge com propriedade, por
coisa: o descortino dos traços mais amplos e exemplo, a arte do retrato, ou a natureza-
comuns, os elementos que funcionam à ma- morta. O curto espaço de tempo em que
neira de pressupostos, os mínimos indepen- isso sucedeu contrasta com a extensa prodi-
dentes dos inteiros, os acasos que chegam a galidade das obras produzidas. E no entanto,
indicar certas convergências. Tarefa, dir-se-á, tudo parecia predestinado a inventariar os
e não sem razão, inexeqüível. Mas penso an- caminhos de sua própria impossibilidade; tudo
tes nas matrizes que emprestam à arte de se passa como se esse rosto, esta maçã já
nosso século o seu estatuto por assim dizer não pudessem disfarçar o inesperado e arra-
irredutível; penso nas experiências de ponta, sador desinteresse pelas coisas vinculadas ao
naquelas que conferem a essa arte os seus plano dos referenciais: parece assim que o
gabaritos de originalidade inconfundíveis, na- plano ôntico já não comporta e apenas sufo-
quilo que torna possível falar, justamente, em ca as exigências maiores da criatividade. E o
arte de nosso tempo. que passa a interessar então, e eis-nos enfim
despertos, está na elaboração da linguagem
O primeiríssimo ponto a ser ressalta- artística em si mesma. O referencial pode até
do concentra-se por inteiro na questão da oferecer o faux semblant de ainda estar aí,
linguagem. A tentação, talvez demasiado fácil, mas o que importa concerta-se agora ao ní-
estaria em asseverar que a extensa e vel da especificidade dos meios de que a arte
diversificada história geral da arte insistiu em se serve: por que não explorar o traço, a cor
explorar o plano ôntico da realidade. O pri- em si mesmos? E por que não avançar em
vilégio, claro está, cabia à representação dos rumo à tridimensionalidade do volume? Por
deuses e a de seus pertences, eles roubavam que não ousar sempre mais?
a cena daquilo que se criou de mais significa-
tivo. E se certos espaços eram cedidos às Assim, tudo passa a dar-se no plano da
realidades outras que não as divinas, foi ape- linguagem. A alternativa entre o figurativo e
nas com o desaparecimento dos deuses que o não-figurativo revela-se ardilosa, pela sim-

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ples razão de que o figurativo já não interes- recantos mais remotos dos modos como se
sa, de texto transmuda-se em pretexto. Com vê a arte do passado. Destaco, pois, um ter-
outras palavras, as artes se fazem fundamen- ceiro ponto. Claro que a arte sempre foi um
talmente abstratas. As coisas se mostram ago- diálogo com a sua vizinhança, normalmente
ra como se tudo decorrese apenas da pró- com a de mais alto gabarito; sempre foi um
pria criatividade do artista. Parte-se então, comércio entre os pares dos artistas de seu
simplesmente, da convicção – e isso já vale tempo; e mais do que tudo isso, a arte sem-
até mesmo para as atividades curriculares das pre foi, precipuamente, uma interpretação
crianças em qualquer escolinha de arte – de daquilo que se pretendia fossem as origens –
que a criatividade integra a condição humana talvez toda arte seja essencialmente a releitura
em si própria, o homem torna-se o criador das origens, sempre renovada. Ora, de nos-
no sentido de que ele já não depende de ins- so tempo cabe dizer que tal releitura vê-se
tâncias superiores, já não precisa submeter- levada a conseqüências extremas: parece que
se a modelos estereotipados – a arte de nos- ela põe em causa a própria natureza das ori-
sos dias situa-se exatamente no desfavor aos gens. Digamos que a releitura se faz em dois
modelos, quaisquer que sejam eles. E a ativi- níveis principais. Um, através do próprio ato
dade artística passa a concentrar-se na intei- de assumir as linguagens do passado; assu-
ra responsabilidade, assumida por parte do mir, no caso, quer dizer: tudo transpor, tra-
artista, em tudo o que ditar a sua ação. Vale duzir tudo para o tempo de hoje; nossos ar-
dizer que, entre tantas outras coisas, a arte tistas guardam em seu olho, pela primeira vez,
contemporânea – mas isto está longe de cons- a totalidade da história da arte; por aí, o diá-
tituir um privilégio exclusivo das artes – em- logo termina fatal, e então, como evitar que
presta uma intensidade inédita ao elemento tudo seja transposto para a dita pesquisa da
lúdico. O homem, já anunciava Schiller, só é linguagem? Picasso não é apenas, neste parti-
inteiramente homem na ação lúdica. A par cular, uma ilustre exceção. Mas há ainda ou-
disso, essa ação revela-se também um modo tro nível: é que, mesmo para o desprevenido
de desvelamento do mundo – ela nada tem a e apressado visitador de museus, tudo o que
ver com a inconseqüência imotivada. Ou ele vê se torna abstrato, é abstratamente que
melhor: por vezes, essa arte integra o desa- ele vê. Em nosso tempo a arte que povoa os
fio da inconseqüência em seu próprio jogo. A museus, arrancada que foi de seu contexto
pergunta base, aqui, seria a seguinte: por que primevo, esquecida das viscerais conotações
o nosso tempo compraz-se na arte abstrata? que a alimentavam num passado tão remoto,
Pergunta muito menos “profunda” do que esvaziados os valores que iluminavam o fer-
possa parecer. E há nisso tudo o que se qui- vor que a fazia nascer – hoje toda arte tor-
ser: a arte de nossos dias está toda no culti- nou-se abstrata, e o principal atestado disso
vo do elemento abstrato. deve ser visto precisamente no museu – essa
casa da incoerência, como dizia Malraux. E,
E nem se despreze o caráter bem vistas as coisas, não há nenhum desdoiro
avassalador de tal cultivo – ele alcança os em reconhecer esse esforço do com-

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prazimento do homem contemporâneo nas Depreende-se das afirmações feitas
coisas abstratas. uma nova temática, nosso quinto ponto.Nem
aventaria tanto aqui a inexistência de normas
As observações feitas levam-me direta- na hodierna composição artística – já não
mente a um novo tópico. E é que agora tudo se existem estéticas normativas; mas apontaria,
fez problema. Não seria o problema a própria sim, a mudança constatável na própria
determinação de base da condição humana? conceituação de seu sentido. Diria que o
Veja-se, entretanto, o passado: tudo parecia ser conceito de norma, através dos tempos, pas-
essencialmente resposta; cada deus, cada Cris- sa por três fases, sendo que as duas primei-
to, cada Virgem – a arte sempre foi a confirma- ras, ao que tudo indica, terminam superadas
ção da certeza, o compromisso com uma Ver- de modo irretorquível. Em quase todo o pas-
dade inquestionadamente aceita. Mas onde es- sado, a norma impõe-se enquanto realidade
tão agora as seqüelas do incrível e majestático inteiramente objetiva, ela nem conhece for-
vigor religioso do barroco? As respostas desfi- mulação. A deusa justiça é a norma que com-
zeram-se no ar, perderam justamente a sua põe a tragédia grega, razão de ser de seus
característica de resposta, ou seja, de verdade mínimos detalhes; na representação medie-
universalmente admitida. Desse modo, a res- val a norma é o Cristo – caminho, verdade e
posta se metamorfoseia em problema. Contu- vida; para S. Tomás, a beleza é o esplendor da
do, veja-se bem: o problema não é simples si- verdade, a promoção da verdade do próprio
nônimo de esvaziamento, de sem-sentido, do Cristo. Mas nos alvores dos tempos moder-
absurdo – as coisas podem até passar por aí. nos as coisas começam a complicar-se: é que
Desamparado do conforto de qualquer possí- a Poética de Aristóteles, por exemplo, passa a
vel resposta, o problema se vê obrigado a in- ser lida como um repositório de normas,
ventar os seus caminhos. Digamos que o pró- coisa que nunca passara e nem poderia pas-
prio caminho se faz invenção, mergulha na sar pela cabeça do velho grego. Ou seja, a
criatividade. Claro que há análises norma começa a ostentar uma realidade
inconformadas: como aceitar esse imenso va- conceitual, e passa a ser condição prévia a
zio, esse elogio do que parece ser o ser obedecida na confecção da obra de arte.
descompromisso? Entretanto, examine-se me- Essa preeminência da norma enquanto con-
lhor o panorama: a arte contemporânea é, an- ceito, a idéia de uma certa representação
tes de tudo, a criação de um extenso e daquilo que a arte deve ser, começa a veicu-
variadíssimo acervo de invenções de linguagem lar caminhos em tudo suspeitos, que sem
– precisamente o que ela pretende ser. A na- dúvida levariam a justificar aquilo que Hegel
tureza do problema reside invariavelmente tentará elucidar através de seu conceito de
neste lugar preciso: qualquer resposta leva a dissolução da arte – entenda-se: daquilo que
criatividade a inventar novos e sempre ou- nosso filósofo preconiza como devendo ser
tros problemas. E o que parece sem saída a grande arte. Tal arte, realmente, morreu.
confirma tão-somente novos e novos rumos Morreu, mas em contrapartida terminou por
da criatividade. abrir as vias, através de uma bela controver-

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tida evolução em tempos mais próximos, não se façam mais cedências à nostalgia da
daquilo que iria configurar uma terceira fase, famosa aura – sem aura tudo é válido; mas
na qual se verificaria a calculada morte da- não se infira por isso que a beleza desapare-
quela normatividade tradicional, em qualquer ça de vez ou seja esquecida. Não espanta,
de seus sentidos. Percebe-se, por aí, porque em conseqüência, que nossa arte se queira
já não se fabricam mais estéticas normativas tão freqüentemente transgressora. Os deu-
à maneira tradicional. Evidentemente que, ses morrem, os reis morrem, as categorias
como seria de esperar, despontam aqui e ali, morrem, e com eles certa nobreza dos ma-
nas formas do despotismo político, alguns de teriais. Quero dizer que nunca a arte esteve
seus arremedos, que apenas confirmam aquela tão próxima de um determinado nível de re-
morte da arte. Mas, nem importam as intem- alidade quanto hoje: ela se serve, como que
péries, salva-se o essencial: desaparece a nor- inescrupulosamente, dos materiais os mais
ma exterior, seja divina, seja aquela construída diversos. É como se, de repente, essa diver-
pelo próprio homem, e alcança-se uma con- sidade de materiais passasse a evidenciar no-
cepção da norma que, enquanto superada, vas modalidades de possível ostentação, ou
integra o ato criativo em si mesmo. Digamos de simples exibicionismo do cotidiano, ou de
então que cada obra exibe agora a sua pró- uma nova forma de dignidade, ou meramen-
pria norma, com a vantagem de essa norma te da vontade de fazer-se ver. É essa falta de
já não oferecer nenhum grau de autonomia – pudor que estou chamando de concessão às
a não ser como resquício, como concessão diferenças. Mas observe-se que por trás da
ao menor. Quero dizer que a criação de uma admissão dessas diferenças está nada menos
obra passa a trazer consigo também a cria- do que o questionamento do espaço – que
ção de uma normatividade, de uma estética agora se quer plural, tridimensional, a assu-
que lhe é imanente, e tudo brota da intimida- mir amiúde toda ausência de suporte. Pare-
de do ato criativo. Neste sentido, a criação ce que a obra quer adotar as dimensões da
termina sendo, afinal, um absoluto. A medida variedade do mundo, e qualquer tropeço –
da arte instala-se precisamente nessa coinci- qualquer pedra no meio do caminho – pode
dência da norma com o ato criador. A seu estar na origem de uma insuspeita criatividade
modo, cada obra se torna exemplar – mas – a agulha, a inutilidade do dedal, a exata gota
não repetível. de sangue: uma obra, três obras, mas tam-
bém o risco de não ser absolutamente nada.
Outro item importante está no que Pois acontece que para a criatividade o nada
pode ser caracterizado como concessão às é nada menos que o melhor dos pontos de
diferenças. É que com o esvaziamento das partida.
normas vão-se também as grandes e solenes
categorias estéticas – tais como a proporção, Uma última observação sobre um tema
a simetria, a perspectiva, o contraponto e, especialmente delicado: o da relação entre
principalissimamente, o conceito de beleza. as artes plásticas e a palavra. Também neste
Em verdade, tudo pode acontecer, desde que ponto encontramos algo de inédito. Se tal

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relação existe, tratar-se-ia de procurar saber Aliás, impressiona a freqüência com que
de onde sorve ela a sua necessidade, que teor os artistas sentem-se atraídos, como que le-
oferece. Não penso aqui nessa relação mais vados por uma necessidade interior, a verem-
exterior e de sua breve história de menos de se perscrutados pela ingerência da palavra. Nem
dois séculos, a da crítica de arte. Penso numa é tão raro que se tope com obras que já inclu-
relação mais de raiz e que nada tem a ver em algum tipo de palavra em sua composição,
com a crítica. É como se a insuficiência geral e não se quer simplesmente a ilustração, ou o
de todas as coisas devesse afetar também a comentário subordinado a transmitir um reca-
obra de arte. Portanto, então, se a própria do. O nível é outro: é como se a densidade do
natureza da arte de nossos dias não traz em sentido do mundo já não pudesse ofertar-se
seu bojo uma espécie de velada solicitação com o esplendor ultrapassado dos velhos tem-
que está como que a exigir a presença da pos. Digamos que de certa forma a composi-
palavra, algo como um discurso paralelo, ção e o discurso ficam agora sempre como que
alheio à atividade judicatória da crítica que a meio caminho, justamente porque o sentido
limita-se a ver a obra como um objeto a ser não é dado por antecipação, ele é antes
julgado. Penso mais numa palavra que de cer- construído no silencioso alvoroço da criação
ta maneira se quer autônoma, mas que busca da obra. Está claro: não há mais sentido, já nem
inserir-se na intimidade do ato criador de uma se quer mais o sentido, mas tão-somente a sua
obra. Por aí, a palavra seria uma criação a seu fabricação. Fabricação que traz consigo a exi-
modo, que não quer nem julgar nem repetir, gência de uma velada ressonância, e é nesse
mas desdobrar-se à maneira de um des- espaço que a palavra descobre o seu preciso
velamento ainda que de segundo grau. lugar de enamoramento.

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