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Anotações de

Filosofia

Ricardo Ernesto Rose


Ricardo Ernesto Rose

Graduado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano


Pós-Graduado em Filosofia pela Universidade Cândido Mendes
Pós-Graduado em Sociologia pela Universidade Gama Filho

Anotações de
Filosofia

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Copyright © Ricardo Ernesto Rose (outubro 2018)

O conteúdo desta obra é de responsabilidade do autor, proprietário dos direitos


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Natureza e da Cultura” (www.danaturezaedacultura.blogspot.com.br), editado
por Ricardo Ernesto Rose, proprietário dos direitos autorais destes textos.

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devidamente citada a fonte.

Coordenação, revisão, design e diagramação:


Ricardo Ernesto Rose

Capa:
gravura de Erich Heckel (1883-1970)

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Índice

Antropologia filosófica (6-7)


A crise da metafísica e o pensamento pós-moderno (8-10)
A crítica da modernidade (11-13)
A Crítica da Razão Pura de Kant e o desenvolvimento da ciência (14-15)
A ética e a Ética a Nicômaco, algumas considerações (16-18)
A filosofia e interação com a educação: Sócrates, Platão e Aristóteles (19-21)
A filosofia no ensino médio (22-23)
A História, os fatos e a interpretação (24-25)
A metafísica (26-28)
A origem das instituições em Marx (29-30)
Alguns aspectos do pensamento de Descartes (31-32)
Aspectos do imaginário popular na Idade Média (33-35)
Comentando Marilena Chauí e Edmund Husserl (36)
Comentários sobre o texto “Reflexões sobre a racionalidade científica:
problemas, apostas e respostas” (37-38)
Como percebemos o mundo (39-41)
Desafios atuais da filosofia política (42-44)
Direitos humanos: origens e fundamentos (45-48)
Divagando sobre o tempo (49-50)
Dualismo e sentido da história (51-54)
É possível a neutralidade do pensamento científico? (55-56)
É possível ensinar filosofia no Ensino Médio? (57-58)
Economia e relação com ciência e tecnologia: pressupostos teóricos (59-61)
Erasmo de Rotterdam e a Reforma (62-64)
Eric Hoffer, o filósofo-estivador (65-68)
Heráclito e Parmênides (69)
História e generalização (70-73)
John Locke e o liberalismo político (74-75)
Kropotkin (e Hume) e as leis da natureza (76)
Materialismo histórico e materialismo dialético (77-78)

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Metafísica: alguns aspectos (79-80)
O mundo sensível e ideal no pensamento de Platão (81)
Nietzsche e Heidegger: convergências e divergências (82-83)
O ambiente científico-filosófico do Renascimento italiano (84-87)
Alberto Caraco, filósofo do caos (88-93)
O muro está lá (94)
O papel do pesquisador teórico na contemporaneidade (95-96)
O pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (97-98)
O ser humano e sua essência (99)
Origens do pensamento filosófico brasileiro (100-102)
Razão científica e racionalidade (103-104)
Sartre e a liberdade (105-106)
Sartre e o marxismo (107,108)
Senso comum (108-111)
Vida eterna, prazer eterno (112-113)

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A antropologia filosófica

Pressupostos

A ideia de que o homem está situado em dois mudos, o material e o ideal (espiritual, mítico,
intelectual, psíquico) sempre permeou o pensamento da maior parte dos filósofos. Um dos
precursores da antropologia filosófica (AF), segundo Abbagnano, foi o viajante, cientista e
intelectual Alexandre von Humboldt. Este já no início do século XIX pretendia que a antropologia,
além de determinar as condições naturais do homem (temperamento, raça, nacionalidade, entre
outros) também descobrisse, através destas condições, o próprio ideal da humanidade; o padrão
que continua sendo o objetivo para o qual todos os indivíduos tendem.

Max Scheler, filósofo alemão do início do século XX e considerado o fundador da AF, coloca sua
filosofia como situada entre a ciência positiva e a metafísica, no que se refere à sua análise do
homem. Scheler fazia uma nítida distinção entre os diversos tipos de conhecimento e, talvez,
seja por isso que tenha conseguido afirmar tantas coisas que – mesmo à sua época – conflitavam
com o conhecimento científico. “Aquilo que pertence à esfera da crença religiosa, nasce no
âmbito da história, cresce definha e morre. Nunca será estabelecido à maneira de uma
proposição científica, provado e, mais tarde refutado” (Scheler, 1993).

Objetivo

A AF se propõe a ser uma ciência antropológica (ao lado das outras antropologias, como a física
e a cultural) que estuda o homem além de seus aspectos físicos, biológicos e psicológicos;
estudando “o lugar do homem no universo” e respondendo às eternas perguntas sobre sua
situação (quem sou?), sua origem (de onde vim?) e seu destino (para onde vou?). Scheler em
seu “A posição do homem no universo”, escreve: “É tarefa de uma antropologia filosófica mostrar
exatamente como emergem a partir da estrutura fundamental do ser homem, tal como ela foi
transcrita de maneira apenas resumida em nossas exposições, todos os monopólios específicos,
as realizações e as obras do homem: assim a linguagem, a voz da consciência, o instrumento,
as armas, as idéias de certo e errado, o estado, o governo, as funções representativas das artes,
do mito, da religião, da ciência, da historicidade e da sociabilidade” (Scheler, 2003).

A AF pretende ter, pelo exposto, uma visão completa das atividades do homem, considerando
sua especificidade separada dos outros seres vivos. Em seu método se vale de “um discurso
racional sobre o ser humano para explicar a essência do ser humano, as categorias abstratas,
para isso precisa das contribuições do saber científico e do ontológico, precisa das contribuições
das ciências do homem” (Acha e Piva, 2007).

Histórico

Os antecedentes da AF encontram-se em diversos pensadores que, de uma maneira ou outra,


contribuíram para a formação desta disciplina. Entre os principais filósofos que influenciaram a
AF, estão:

- Kierkegaard e sua ideia do valor absoluto do homem diante de Deus, sem intermediários;

- Herder, pensador influenciado pelo iluminismo e defensor da liberdade e da responsabilidade


do homem;

- Toda a escola dos pensadores considerados existencialistas (a prioridade da existência sobre


a essência), como Heidegger, Jaspers, Buber, Sartre, Marcel, Hartmann, entre outros;

- Pensadores da corrente personalista, de forte influência católica, como Mounier, Lesch e Jolif.

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Uma das grandes preocupações de grande parte dos filósofos, desde a Antiguidade, foi o homem
em sua concretude. Cada um, a seu modo, procurou definir qual seria o papel do homem no
cosmos. Nesta tentativa, cada pensador, evidentemente, tentou dar seu parecer sobre a situação
do ser humano em sua visão do de mundo. Desde Heráclito e Parmênides, passando por
Sócrates, Platão e Aristóteles; até a Idade Média com Agostinho e Tomás de Aquino; a pergunta
principal da filosofia foi: “o que é o homem e qual seu papel no universo?”

Ernst Cassirer, em sua obra “Ensaio sobre o Homem”, escreve em relação a esta pergunta: “Que
o conhecimento de si mesmo é a mais alta meta da indagação filosófica parece ser geralmente
reconhecido. Em todos os conflitos entre as diversas escolas filosóficas, esse objeto permaneceu
invariável e inabalado: foi sempre o ponto de Arquimedes, o centro fixo e inamovível, de todo o
pensamento” (Cassirer, 2005).

O que é o homem?

Quanto à pergunta sobre o que é o homem, a AF tenta respondê-la a seu modo, considerando a
criatura humana como sujeita a fatores físicos, biológicos, psicológicos e sociais, e ao mesmo
tempo dotando-a de uma “dimensão espiritual”. “Enquanto o Eu e o corpo permanecem
relegados à finitude do ambiente, a pessoa espiritual pura consegue alçar-se ao absoluto. Sua
dimensão é o mundo como mais alta representação de valores e ideais absolutos, como lugar
de atributos puramente espirituais e divinos. O ser humano pertence a ambos os reinos; ele
enquanto o ser cindido tem de se reconciliar entre si e o corpo e o centro espiritual pessoal.
Neste sentido, refletem-se nele enquanto microcosmo as relações (metafísicas) do macrocosmo”
(Arlt, 2008).

Considerações

A AF é baseada em pressupostos metafísicos. No entanto estes conceitos, como o das Ideias


de Platão, o hilomorfismo de Aristóteles, a essência e existência de Tomás de Aquino, o res
cogitans e res extensa de Descartes; os conceitos de substância, alma, entre outros, têm mais
interesse histórico mas não são mais temas correntes na filosofia moderna. A AF, no entanto, se
baseia em grande parte nestes conceitos. No pensamento de Scheler, iniciador da moderna AF,
encontram-se temas que caberiam mais nos tomos de metafísica ou até na apologética cristã.

Sob muitos aspectos, a AF não dispõe mais uma mensagem atual para o mundo moderno
e tornou-se, assim, mais uma corrente filosófica relegada aos tomos de história do pensamento
filosófico.

Referências
Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes. São Paulo: 2007, 1210 p.
Acha, Juan A.; Piva, Sérgio I. Antropologia Filosófica. CEUCLAR. Batatais: 2007, 71 p.
Arlt, Gerhard. Antropologia Filosófica. Editora Vozes. Petrópolis: 2008, 299 p.
Cassirer, Ernst. Ensaios sobre o Homem. Martins Fontes. São Paulo: 2005, 391 p.
Scheler, Max. A posição do homem no Cosmos. Forense Universitária. Rio de Janeiro: 2003, 123
p.
Scheler, Max. Morte e sobrevivência. Edições 70. Lisboa: 1993, 103 p.

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A crise da metafísica e o pensamento pós-moderno

A crise da metafísica ocorre quando esta disciplina tem os seus princípios criticados e, de uma
forma efetiva, colocados em questão. O processo, todavia, estende-se por um longo período na
história da filosofia e não é causado por um só pensador.

No final do período medieval a filosofia tomista, desenvolvida por Tomás de Aquino (1225-1274)
e dominante desde o século XIII até o século XVI, perde sua hegemonia e passa a ser criticada
(este o destino de qualquer escola filosófica) em seus diversos aspectos. Um dos primeiros
pensadores críticos da filosofia da Baixa Idade Média foi o inglês Roger Bacon (1210-1294). Para
este franciscano, são três as fontes do saber: a autoridade, a razão e a experiência. Em suas
obras, Roger Bacon sempre deu ênfase ao empirismo e à matemática, tendo sido o primeiro
pensador ocidental a empregar a expressão “leis da natureza”.

Um dos primeiros críticos do pensamento tomista foi o escocês John Duns Scotus (1265-1308).
Segundo este teólogo e filósofo franciscano, as verdades da fé não poderiam ser compreendidas
pela razão. Por esse motivo, defendia uma separação entre a filosofia e a teologia. Sua ênfase
nos aspectos volitivos da fé contribuem para que gradualmente a razão perca sua força para
demonstrar aspectos da religião, isto é, da metafísica. Guilherme de Ockham (1285-1347),
discípulo de Scotus, dá o passo seguinte nessa crítica, enfatizando que o conhecimento empírico
é superior ao intelectual.

Vemos neste movimento o desenvolvimento do experimentalismo inglês, cujos mais importantes


representantes atuavam na Universidade de Oxford. A experiência torna-se cada vez mais
importante, abrindo caminho para o empirismo e o enfraquecimento dos diversos conceitos
metafísicos. Ideias como "Deus" e "alma", não sendo sensíveis, não poderiam ser cognoscíveis.
Da mesma forma que não são experienciáveis as noções de "substância", derivadas da filosofia
aristotélica e incorporadas no tomismo.

No século XV e XVI aumenta a disponibilidade de traduções de textos da Antiguidade grega e


romana, popularizando entre a elite letrada autores clássicos da filosofia, como Platão e
Aristóteles, e textos de escolas do período do helenístico. Pensadores das escolas atomista,
epicurista, cética, cínica, cirenaica e filósofos romanos; todos desconhecidos durante a maior
parte da Idade Média, tornaram-se acessíveis aos humanistas da Europa renascentista. Grande
parte destas escolas não se ocupava da metafísica, dando mais atenção à ética, à lógica e à
física.

Outro aspecto da gradual erosão da metafísica clássica é o surgimento da ciência teórica e do


método experimental no século XVI e XVII, com Leonardo da Vinci (1452-1519); Galileu Galilei
(1564-1642); Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes (1596-1650), entre seus principais
teóricos. Descartes, filósofo francês, foi o introdutor da moderna filosofia (metafísica) e da
moderna matemática aplicada aos experimentos científicos. Na Inglaterra, desde o final do
século XIV, desenvolve-se uma corrente de pensamento com forte tendência empirista contrária
à metafísica, que iniciada por Scotus e Ockham, passa por Francis Bacon e Thomas Hobbes
(1588-1679) até chegar a John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776).

A metafísica antiga e medieval, desenvolvida por Aristóteles e mantida em grande parte


inalterada pelos pensadores da Idade Média, baseava-se no pressuposto de que a realidade
existe em si mesma e assim se apresenta ao pensamento, à razão. No século XVII, Descartes
reformulou as bases da moderna filosofia e com isso criou a moderna metafísica ou metafísica
clássica. Esta estava baseada na ideia de que a mente humana ou a razão, poderia conhecer a
realidade através de raciocínios ou conceitos, que representando as coisas, as transformam em
objetos de conhecimento. Em suma, a mente, com o uso da razão, poderia conhecer a

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realidade. Descartes em sua obra Discurso sobre o método, estabeleceu que a razão humana
pode apreender o mundo, baseada no fato de que um ser infinito (Deus) garantia a realidade e
sua inteligibilidade.

O pensador empirista inglês David Hume, tendo como base a teoria do conhecimento, argumenta
que o pensamento atua fazendo a associação de sensações, percepções e impressões,
recebidas pelos sentidos e guardadas na memória. Assim, continua Hume, as ideias nada mais
são do que hábitos mentais que operam baseados em associações de impressões semelhantes
e sucessivas. A própria noção de causalidade é negada por Hume, não passando de um hábito
repetido diversas vezes por nossa mente e levando-nos à crença de que existe uma causalidade
real.

A crítica de Hume foi devastadora. Com ela perdem valor todos os conceitos da metafísica –
Deus, alma, infinito, mundo, céu, perfeição, etc. – já que não passam de constructos mentais e
não tendo nenhuma realidade objetiva. As ideias do pensador inglês demoraram algumas
décadas para serem amplamente divulgadas entre outros filósofos europeus, mas desde então
a metafísica, como existia desde os gregos, não era mais possível.

O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), ao ler o Tratado da Natureza humana de Hume,
afirmou que este o havia “despertado do sono dogmático”, isto é, de sua crença inquestionável
na metafísica clássica. Com isso dá início a uma crítica da razão teórica, ou seja, um estudo para
determinar o que a razão pode ou não efetivamente conhecer. O filósofo realiza uma verdadeira
“revolução copernicana” na filosofia, estabelecendo que não é a realidade que determina nossa
maneira de pensar, como Hume argumenta, mas que é nossa maneira de pensar que determina
a realidade. Através das formas a priori de sensibilidade (aquelas que existem antes da
experiência) e dos conceitos a priori do entendimento, Kant demonstra que existem dois tipos de
realidade: a) aquela que apreendemos através dos nossos “filtros” apriorísticos, os chamados
fenômenos e b) a que é inapreensível à experiência e que Kant chama de noumeno. No entanto,
é exatamente noumeno ou “coisa-em-si” (Ding-an-sich, no original alemão) o objeto da
metafísica. Esta, então, não é possível. Escreve Marilena Chauí sobre este tema:

“A ideia metafísica de um Deus é a ideia de um ser que não pode nos aparecer sob forma de
espaço e tempo; de um ser ao qual a categoria de causalidade não se aplica; de um ser que,
nunca tendo sido dado a nós, é posto, entretanto, como fundamento e princípio de toda a
realidade e de toda a verdade. Assim, a ideia metafísica de Deus escapa de todas as condições
de possibilidade do conhecimento humano e, portanto, a metafísica usa ilegitimamente essa
ideia para afirmar que Deus existe e para dizer o que ele é. Kant emprega uma argumentação
semelhante para dois outros objetos da metafísica: a existência da alma ou substância pensante
e a discussão da finitude ou infinitude do mundo.” (Chauí, p. 200).

A partir de Kant a metafísica deixa de ser realista (a realidade pode ser conhecida pelos sentidos)
para se tornar idealista, ou seja, “a realidade estruturada pelas ideias produzidas pelo sujeito”
(Chauí, p. 201). A escola idealista terá como seu maior representante o filósofo alemão Georg
W.F. Hegel (1770-1831) e ao longo do século XIX terá como opositora a escola de pensamento
materialista (Karl Marx, Ludwig Feuerbach, Friedrich Nietzsche, entre outros).

Um dos principais aspectos da pós-modernidade é a morte da ideologia ou de qualquer


metanarrativa; seja religiosa (cristianismo e sua explicação do mundo e da história humana) ou
política (o marxismo que pretendia estabelecer uma sociedade sem classes). Os acontecimentos
históricos dos últimos 70 anos mostraram à humanidade que a crença
em constructos metafísicos como “o progresso”, “a humanidade”, “a revolução”, só trouxeram
mais sofrimento e destruição ao invés do “paraíso terrestre”. As guerras, a evolução da
tecnologia, e a falência das grandes ideologias políticas, são fatos que ajudaram a formar nossa
visão de mundo pós-moderno.

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Os pensadores em sua maioria se convenceram de que os sistemas políticos, religiosos e
filosóficos não podem mais apresentar uma explicação da realidade, nem indicar os caminhos
que a humanidade deve seguir. Não se formulam mais sistemas filosóficos; o que sobrou foi a
pluralidade de ideias, opiniões e pequenas narrativas, sob a égide do debate democrático. As
verdades não existem mais, “só interpretações”, como escreveu Nietzsche.

O pensamento pós-moderno é herdeiro filosófico de Nietzsche e de Heidegger. De Nietzsche o


pensamento pós-moderno herdou a crítica a todo tipo de idealismo; filosófico, ideológico e
científico. A frase “Deus está morto” sintetiza a falência de todos os fundacionismos e a
impossibilidade do pensamento metafísico. Heidegger, em parte herdeiro de Nietzsche, ainda
aprofunda mais esta crítica, colocando-a como fato dado. Ernildo Stein filósofo, discípulo e
tradutor da obra de Heidegger para o português fala em uma entrevista:

“Talvez convenha dizer que Heidegger finalmente, sem nenhuma inibição, libertou o ser humano
como ser no mundo de qualquer amarra metafísica, deixando como tarefa sua, a instauração da
verdade. Heidegger declara que não há verdades absolutas ou literalmente ‘não há verdades
eternas’. A verdade só existe porque o ser humano opera com ela” (IHU On-Line, s/d).

E referindo-se especificamente à pós-modernidade:

“Assim como vivemos a chamada pós-modernidade e nela identificamos a fragmentação de toda


a unidade entre a ciência, arte e religião, assim temos que reconhecer que, se ainda procuramos
razões que não sejam razões da ciência, essas não são mais razões ou fundamentos
metafísicos. O pós-metafísico é um mundo sem fundamentos absolutos.” (IHU-On-line, s/d –
negrito nosso)

Referências
A escolástica pós-tomista. Disponível em:
<http://www.mundodosfilosofos.com.br/escolastica2.htm>. Acesso em 29/7/2013.
A superação da metafísica e o fim das verdades eternas. Disponível em:
http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7197&cod_canal=41.
Acesso em 29/09/2013
Chauí, Marilena. Convite à filosofia – 13ª edição. São Paulo. Editora Ática: 2006, 424 p.

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A crítica da modernidade

A modernidade foi um período na história cultural da humanidade que se estendeu


aproximadamente da Revolução Francesa, no final do século XVIII, até meados do século XX.
Estes critérios não são unânimes, porque alguns historiadores e sociólogos consideram o século
XVI como início deste período. Outros afirmam que a modernidade ainda não terminou e que a
expressão “pós-moderno” não tem razão de ser.

A divisão da história em períodos (Antiguidade, Idade Média e Modernidade), iniciada pelo


historiador alemão Christoph Cellarius (1634-1707), não é isenta de influências ideológicas,
representando interpretações de períodos da história da humanidade, baseadas em paradigmas
culturais. No entanto, para seguir a interpretação majoritária, consideraremos que a modernidade
teve início com a Revolução Francesa e terminou na metade do século XX, por razões que
explicaremos ao longo do texto.

O ponto principal da discussão sobre a modernidade tem a ver com a “mentalidade moderna”;
uma maneira diferente de encarar o mundo; uma nova cultura – em comparação e oposição à
mentalidade e cultura medieval. A temática não é nova e já ocupou os enciclopedistas, que foram
os principais propagandistas da ideia de que a Idade Média foi um período de ignorância e
opressão, o “período das trevas”. Sob esta perspectiva, pode-se considerar que o surgimento do
protestantismo, da imprensa e o contato com as novas culturas das terras recém-descobertas
no século XVI, já contribuíram para a formação de uma mentalidade moderna.

Outro grande marco na formação da modernidade foi o surgimento da moderna ciência com
Francis Bacon (1561-1626) e Galileu (1564-1642) junto com o desenvolvimento da matemática
(geometria analítica) e da moderna filosofia (metafísica) por Descartes. A física newtoniana, que
tanto influenciou o filósofo Voltaire – um dos inspiradores da Revolução Francesa – também é
considerada um grande marco na formação da mentalidade moderna. Na França o século XVIII
vê nascer a Enciclopédie, a enciclopédia; reunião de todos os conhecimentos disponíveis à
época e colocados à disposição em livros para aqueles que os podiam comprar. Teoricamente,
todo o conhecimento acumulado pela humanidade – artes, tecnologias, história, ciências –
estava disponível para o cidadão.

A divulgação da cultura e da educação foi uma revolução nunca vista e só ultrapassada pela
Revolução Francesa, o mais importante evento político da humanidade – na perspectiva dos
modernos. A revolta representou um marco no surgimento do indivíduo político; o cidadão com
seus direitos, não mais passível de escravidão e opressão. Em síntese: o início do homem
moderno e da modernidade.

A Revolução Francesa abria novas perspectivas para a humanidade em todas as áreas. Se, por
um lado, a Igreja Católica ainda forte na França, perdia gradualmente seu poder opressor, a
filosofia alemã – com Kant, Fichte, Schelling e Hegel – saudava o evento como grande marco na
história e absorvia sua ideologia de valorização do homem moderno – mesmo que Hegel mais
tarde ficasse desiludido com os rumos tomados pela revolução.

Além da cultura – chamada de superestrutura pelos marxistas – também contribuíram na


formação do homem moderno os inventos tecnológicos e as mudanças na estrutura econômica
(infraestrutura, segundo Marx). O mercantilismo, entre os séculos XVI e XVIII, foi responsável
por modificar as estruturas sociais, aproximando povos através do comércio mundial. Alguns
autores localizam neste período o início de um processo de globalização das relações
econômicas, culturais, ambientais, que se tornou cada vez mais acentuado até nossos dias.

O desenvolvimento da economia cria novas demandas tecnológicas e propiciou o aparecimento


de novos inventos, dando início à industrialização da sociedade ocidental, iniciada no final do

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século XVIII em cidades como Manchester e Liverpool, na Inglaterra, para daí espalhar-se para
a Europa, Estados Unidos e o resto do mundo.

O avanço da industrialização da Europa e a sucessão de descobertas científicas e invenções


tecnológicas aumentavam cada vez mais a fé no progresso e na gradual melhoria da condição
de vida humana, pelo menos para os grupos política e economicamente dominantes – como,
aliás, sempre aconteceu em todas as civilizações.

Foi também nesse ambiente social e econômico que entre o final do século XIX e as primeiras
décadas do século XX surgiram ideologias que julgavam possuir a solução para todos os males
da humanidade, através da instituição de novas ordenações políticas e econômicas: anarquistas,
socialistas, comunistas, social democratas, fascistas e nacional-socialistas (nazistas). Havia – e
ainda os há em pouca quantidade felizmente – uma vasta gama de reformadores, que imbuídos
de um messianismo fanático diziam querer melhorar a condição da humana. Demonstrou a
história que só seguiam seus mais baixos interesses ou, no melhor dos casos, seus delírios
insanos.

Temos então, resumidamente, alguns aspectos da chamada “modernidade” fortemente


valorizados (em parte até nossos dias), mas considerados grandes engodos pela crítica pós-
moderna. Algumas destas falácias da modernidade incluem:

A) Supostos valores da modernidade: valorização do indivíduo, associado a paradigmas


como democracia e direitos humanos;

A1) A crítica da pós-modernidade: o imperialismo capitalista, propiciando a exploração de


países fornecedores de matéria-prima e mão de obra desde o início do século XX; países
transformados em colônias; duas guerras mundiais; genocídios; Hiroshima e Nagasaki, entre
outros exemplos não muito edificantes;

B) Supostos valores da modernidade: racionalidade atuando em benefício da humanidade;


educação e cultura elevando o padrão de vida;

B1) Crítica da pós-modernidade: uso da ciência para fins bélicos; massificação da cultura
utilizada para fins econômicos; educação como formadora de mão-de-obra; destruição dos
ecossistemas e recursos naturais da Terra;

C) Supostos valores da modernidade: sistemas filosóficos e ideológicos capazes de explicar


e dar um sentido às sociedades humanas e à história; ciência como detentora da verdade
em substituição às religiões;

C1) Crítica da pós-modernidade: ideologias que escravizaram os povos e os indivíduos


impedindo seu livre desenvolvimento; doutrinas políticas racistas, classistas, promovendo
destruição e morte: Stalin, Hitler, Pol Pot, Mao Dze Dong e outros açougueiros; ciência como
forma de interpretar a realidade, sempre sujeita a mudança de paradigmas; acabaram-se as
verdades definitivas.

Associar a modernidade a valores políticos, culturais, econômicos, religiosos e sociais


apresentados como “modernos”, “libertadores”, “progressistas”, justifica a crítica ao moderno. O
futuro radiante avistado por entusiastas de todos os matizes nos séculos XVIII, XIX e parte do
XX, não se concretizou. No final, depois de tantas ideologias, os valores efetivamente
importantes que nos sobraram foram a democracia, que nunca será completa, e a liberdade
individual do ser humano.

Que seja bem-vinda a era pós-moderna!

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Referências
Um panorama da modernidade: origem, formação e perspectivas. Disponível em:
<http://www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/imp29art06.pdf>. Acesso em 13/12/2013.
Modernidade. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Modernidade> . Acesso em
13/12/2013.
Mahavishnu Orchestra – The lost Trident sessions. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=C7lDW1OHK9k>. Acesso em 13/12/2013.
Periodização da história. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Periodiza%C3%A7%C3%A3o_da_Hist%C3%B3ria>. Acesso em
13/12/2013.

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A Crítica da Razão Pura de Kant e o desenvolvimento da
ciência

A ciência, como a conhecemos, surgiu a partir do Renascimento, com a introdução da


matemática e da experimentação ao processo de pesquisa científica.

Efetivamente, tais práticas não existiam – pelo menos como método regular – na Idade Média,
já que neste período vigorava uma ideia do funcionamento do mundo baseada na filosofia de
Aristóteles. O filósofo grego influenciou o pensamento oficial da Igreja Católica a partir do século
XIII, tornando-se o inspirador da filosofia tomista. Para esta escola filosófica a natureza estava
explicada; o que não se conseguia explicar com os conhecimentos disponíveis era objeto de fé.

No período do Renascimento os artistas-cientistas, como Leonardo da Vinci e os cientistas-


filósofos, como Francis Bacon, passam a valorizar o uso da matemática (da Vinci) e do
experimento (Bacon) nas ciências. Além disso, Copérnico e Kepler, ambos fazendo uso de
cálculos matemáticos, provocam uma revolução na visão de mundo da época, quando
demonstram (mais tarde comprovado com o uso de telescópios) de que a Terra não era o centro
do universo (conhecido na época), mas sim o Sol.

Entre os séculos XVII e XVIII surge Isaac Newton, cientista e matemático, que irá influenciar
profundamente a filosofia de Kant. Newton desenvolve a teoria da gravitação universal, que
explicará grande parte do funcionamento do universo em sua época, com a ajuda da matemática.
Por outro lado, também na Inglaterra, surge no mesmo século o pensador David Hume, que com
seu ceticismo colocará em dúvida a ciência da época e, principalmente, todo o conhecimento.
Hume critica o princípio de causalidade, como um simples hábito mental, baseado na experiência
freqüente de certos acontecimentos. Entre a lei de gravitação de Newton e a negação do princípio
de causalidade por Hume, Kant tem um choque e acordou de seu “sono dogmático”.

A crítica de Hume não é somente contra a metafísica e a estrutura da ciência, mas contra a razão
em si. Kant decide, depois de longo período de meditação, escrever uma obra que descrevesse
o método pelo qual podemos obter um verdadeiro conhecimento do mundo, baseado em critérios
racionais. Tal obra é a “Crítica da Razão Pura”.

Inicialmente, Kant estabelece uma distinção entre o conhecimento “a priori”, que independe de
qualquer sensação, e o conhecimento “a posteriori”, que depende de uma sensação. Em
seguida, Kant propõe a distinção entre juízos analíticos, “aqueles em que a conexão do predicado
e do sujeito for pensada por identidade” (Kant, p.10) e juízos sintéticos, “aqueles em que esta
conexão for pensada sem identidade” (Kant p.10). Daí Kant conclui que os juízos da experiência
são todos sintéticos, mas que “a física contém, como princípios, juízos sintéticos a priori. Como
exemplo, citarei duas proposições: nas alterações do mundo corpóreo a quantidade de matéria
continua sempre a mesma, ou, nas comunicações de movimento, ação e reação precisam ser
sempre iguais” (Kant p.13).

Na Introdução da Crítica da Razão Pura, Kant pergunta: “Como a matemática pura é possível?”
e “Como a ciência pura da natureza é possível?” Através de sua obra o pensador estabelece as
condições nas quais a matemática (a priori sintético) e a ciência são possíveis, na pessoa do
Sujeito Transcendental; princípios admitidos por Kant que possibilitam o conhecimento.

Com isso, a principal influência de Kant sobre o desenvolvimento da ciência foi estabelecer novas
teorias epistemológicas, que (pelo menos por um certo período na história do pensamento
ocidental) estabeleciam as condições, nas quais poderíamos dizer que nossa interação com o
mundo tem base real, de modo a validar nossos raciocínios, inclusive a interpretação científica
da realidade.

14
O pensamento kantiano, posteriormente, foi criticado por diversos autores, sob diversos
aspectos, não sendo mais universalmente aceito como critério de validação da ciência. Mas isto
já é outro capítulo do pensamento filosófico ocidental.

Referências
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo. Ícone Editora: 2007, 541 p.

15
A ética e a “Ética a Nicômaco”, algumas considerações

Os atos morais são aqueles passíveis de aprovação ou desaprovação, de acordo com as normas
aceitas. A este conjunto de atos e normas chama-se moral. A ética, por outro lado, é o estudo
dos atos e fatos morais. A liberdade ética é a capacidade de autodeterminação do ser humano,
sem a qual a moral não pode existir. Usando de sua liberdade, o homem aspira a ser feliz e para
este fim se dirigem todos os seus atos.

A ética investiga racionalmente os atos morais; é uma ciência porque investiga sistematicamente
e de uma maneira racional os atos humanos. Os princípios universais nos quais a ética se baseia
são, todavia, sujeitos as condições sociais de cada grupo humano. A moral é relativa no sentido
de se adaptar cada vez mais às condições socioculturais, e não no sentido de ter valor relativo.
O pensamento usado na análise ética é o do tipo sintético, no qual se parte de um caso ou casos
particulares para então generalizar a regra (dentro de uma determinada sociedade, uma lei moral
é geralmente válida de uma maneira universal). O objeto de estudo da ética são os atos
humanos, baseado no que há neles de bom ou mau, com o objetivo de dar aos homens critérios
de valores, para que eles possam julgar e balizar suas atitudes.

A moral se estabelece em sociedade, para orientar e estabelecer a correção dos atos humanos,
em relação aos outros membros da sociedade. A criação de uma sociedade de classes acaba
propiciando o aparecimento da moral dos dominadores e a dos dominados; uma direcionada a
manter o status quo, e a outra com um posicionamento crítico e contestador (o posicionamento
dos dominados).

A ética de Sócrates era baseada no autoconhecimento (“conhece-te a ti mesmo”). Segundo o


pensador ateniense, ninguém é mau porque quer, mas porque é ignorante da verdade. A ética
só pode ser desenvolvida através da convivência social – daí a íntima relação da ética e da
política. A ética fundamenta-se em três princípios: liberdade, virtude e bem. Para Aristóteles a
virtude é ao mesmo tempo liberdade e bem. Protágoras de Abdera, por sua vez, advogava um
relativismo que influía na própria ética, já que “o homem é a medida de todas as coisas”. Em
suas atividades filosóficas Sócrates se colocava contra este ceticismo ético, defendido pelos
sofistas.

Quando os homens se agrupam para viver em sociedade, criam governos que, segundo Platão,
permitem o aparecimento de homens que não são éticos, nem sábios. Estes tipos de governos
são: a timocracia, representada pelos donos de terras na antiga Grécia, a forma tradicional de
governo. Depois desta fase original aparecem, segundo Platão, a oligarquia, que é o governo
dos ricos, sem participação dos pobres; a democracia, onde reina o gosto de cada um,
ocasionando a anarquia; e a tirania, onde o tirano torna-se vítima dos seus próprios apetites. No
entanto, o Estado ideal, apresentado por Platão na obra A República, é formado por reis-filósofos
que dirigem o governo com sabedoria.

Aristóteles, discípulo de Platão, constrói sua filosofia baseada na experiência; todas as ideias
são resultantes da experiência. Por isso mesmo, para Aristóteles, a ética não é intuída pelo
espírito, mas desenvolvida através da prática social. Desta maneira, para ser feliz, justo e sábio,
o homem deve manter-se longe dos excessos e encontrar a prudência, baseado em ações
práticas. A ética, para Aristóteles, consiste em procurar a felicidade, organizando sua vida para
trilhar o caminho da virtude. A Ética a Nicômaco é uma das obras fundamentais nesta área, tendo
influenciado todo o pensamento ético ocidental, junto com a doutrina moral e religiosa judaico-
cristã. Com sua obra filosófica, Aristóteles influencia toda a sociedade ocidental, desde a Idade
Média.

16
Na história do pensamento, a ética apresentou principalmente três modelos de conduta: a
felicidade ou o prazer, o dever ou a obrigação e a perfeição. A vida em sociedade força o
indivíduo a guiar suas ações livres por alguma regra e a moralidade consiste em viver de acordo
com estas regras. Desta forma, a ordem moral é o conjunto de relações de utilidade; quem age
de acordo com elas age bem, quem as desrespeita age mal.

A maior parte dos pensadores aceita que a ação moral só pode ser executada por um ser livre
dotado de inteligência. Este pressuposto, no entanto, é colocado em dúvida por filósofos como
Espinoza, Hume, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche, entre outros, e vem sendo bastante
discutido pela moderna neurologia e psicologia. Mas é regra aceita que a conduta humana só
tem significado se existe liberdade. O filósofo espanhol Adolfo Sanchez Vazquez (1915-2011),
em sua obra “Ética”, escreve, entre outras coisas, que o conceito de consciência está relacionado
ao da obrigatoriedade; a consciência é o juiz dos nossos atos morais. Apesar de livre, a
consciência é determinada por fatores históricos e sociais e desenvolve-se através da prática
social. Mas, apesar dos diversos determinismos aos quais somos sujeitos, gozamos todos de
liberdade suficiente para exercermos nossos atos morais – pelo menos precisamos aceitar este
fato para que nossa sociedade continue razoavelmente funcionando.

O principal filósofo a estudar a ética na Idade Média foi São Tomás de Aquino, que fez um
trabalho de harmonização do cristianismo e do aristotelismo. Nesse trabalho, Aquino omitiu
certos aspectos do pensamento de Aristóteles e adaptou outros aos princípios cristãos. A moral
de Tomás de Aquino é essencialista: a moralidade de uma ação é determinada por seu objeto e
pela sua intenção. Além disso, Tomás de Aquino também afirmou que assim como existem
diversos grupos humanos, existe uma diversidade de leis. A importância de Tomás de Aquino na
síntese filosófica e moral da Idade Média são enormes.

Os problemas do campo da ética são caracterizados por sua generalidade, diferentemente dos
problemas morais, aqueles com os quais nos deparamos no dia-a-dia. O valor da ética está em
suas explicações e não em suas prescrições.

Em sua Ética a Nicômaco, no capítulo X, Aristóteles analisa se o prazer é bom ou mau. Afirma
que existem várias opiniões e inicia a análise da questão. Apresenta inicialmente a opinião de
Eudoxo, que dizia que o que é mais desejado é o maior de todos os bens. Aquilo que é bom para
todas as coisas e a que todas elas tendem, é o bem por excelência. Platão, segundo o texto, diz
que o prazer não é um bem e que a vida agradável é mais desejável quando acompanhada de
sabedoria.

Mais à frente, Aristóteles conclui que, baseado no raciocínio de alguns pensadores, o prazer
também tem graduações e não pode ser o preenchimento de alguma carência, já que isto seria
somente a supressão de sofrimento. Então, fazendo referência ao prazer de aprender, o prazer
dos sentidos e de sensações, afirma que estes não envolvem sofrimento. Conclui seu raciocínio,
afirmando que “meu prazer é o bem, nem todo prazer é desejável, e que alguns prazeres são
efetivamente desejáveis por si mesmos, distinguindo-se eles dos outros em espécie ou quanto
às suas fontes. Acerca das opiniões correntes sobre o prazer e o sofrimento, basta o que
dissemos.” (Aristóteles, 2002, pg.221).

Continuando sua análise do prazer, Aristóteles se pergunta o porquê de ninguém sentir prazer
continuamente, já que isto seria impossível para o ser humano, como atividade constante.
Quanto à questão de escolher, escolher a vida, tendo em vista o prazer, ou o prazer tendo em
vista a vida, a questão fica, por enquanto, sem análise, já que os dois permanecem ligados, visto
que sem atividade não há prazer. Mais à frente o texto afirma que algumas atividades têm efeitos
contrários, sendo que prazer e certas atividades podem estar em lados opostos. Além disso,
como existem atividades diferentes, há diferentes tipos de prazer; uns superiores e outros
inferiores.

17
Depois de falar das virtudes, as formas de amizade e as várias espécies de prazer, Aristóteles
passa a discutir a natureza da felicidade, já que ela é o fim da natureza humana. O Estagirita
inicia sua argumentação afirmando que à felicidade nada falta; ela é auto suficiente. As atividades
desejáveis não visam mais nada do que a si mesmas, e as ações virtuosas são desta natureza.
Já que muitos encontram o bem-estar em algum passatempo, Aristóteles inicia a discussão deste
tema e conclui que a felicidade não está no divertimento. Todavia, não nega que o divertimento
é necessário para o relaxamento, após muito trabalho. Em seguida, Aristóteles discute sobre a
superioridade das atividades sérias sobre as risíveis. Conclui que a felicidade não está em
passatempos, mas sim nas atividades virtuosas. Ao final da argumentação, conclui que “a
sabedoria filosófica é reconhecidamente a mais agradável das atividades virtuosas”. (Aristóteles,
2002, pg. 229).

Ainda sobre a contemplação filosófica, Aristóteles afirma que esta atividade será a felicidade
completa do homem. Em outro ponto diz que não devemos nos ocupar com coisas humanas e
mortais, já que nós próprios o somos. Devemos sim, assim que possível, ocupar-nos com
assuntos imortais, “esforçando-nos para viver de acordo com o que há de melhor em nós.”
(Aristóteles, 2002, pg.230).

Comparando a vida dos deuses, Aristóteles afirma que a atividade perfeita é uma vida
contemplativa equivalente aquela dos deuses, que vivem em bem-aventurança. O homem é feliz
enquanto consegue imitar os deuses nesta atividade na contemplação; a contemplação e o
cultivo da razão, aliadas a uma vida virtuosa, são exatamente as qualidades do filósofo, o mais
feliz dos homens e querido dos deuses. Discutindo sobre como os homens adquirem vontade,
Aristóteles conclui que a virtude é em grande parte motivada por uma predisposição dada pelos
deuses, aliada ao cultivo de virtudes através da convivência social. “É indispensável que o caráter
tenha alguma afinidade com a virtude, amando o que é nobre e detestando o que é vil.”
(Aristóteles, 2002, pg.235). Aristóteles afirma que os homens que se empenham em tornar outros
melhores, devem ser capazes de legislar. As leis e as constituições, segundo o Estagirita, podem
tornar as pessoas melhores.

Rerefências
Aristóteles. Ética a Nicômano. Editora Martin Claret: São Paulo, 2002, 240 pgs.

18
A filosofia e sua interação com a educação: Sócrates, Platão e
Aristóteles

A Apologia de Sócrates apresenta o julgamento do filósofo Sócrates e sua defesa perante seus
juízes. É acusado de que “pesquisa sem discrição o que existe sob a terra e nos céus, de fazer
que prevaleça a razão mais fraca e de ensinar aos outros o mesmo comportamento”. Em outras
palavras, acusam Sócrates de negar os deuses e de ensinar estas teorias aos jovens, desviando-
os dos costumes dos antepassados.

Sócrates começa sua defesa dizendo que, ao contrário dos sofistas, não cobra pelo seu
ensinamento. Além disso, nada ensina, já que afirma que “sabe que nada sabe”. O que faz é
dialogar na rua com todos os que o procuram; ricos ou pobres, instruídos ou tolos; todos porém
certos de que possuem um conhecimento definitivo.

Os acusadores do filósofo insistem em acusá-lo de ateísmo, mas Sócrates afirma acreditar nos
deuses “se bem que não sejam os deuses do povo”. Em sua defesa afirma que mesmo sob
perigo de vida, não deixaria de filosofar. Confirma a importância do conhecimento ao responder
aos seus acusadores: “Meu caro, tu, ateniense, da cidade mais importante e mais renomada por
sua cultura e poderio, não te envergonhas de tentares adquirir o máximo de riqueza, fama e
honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão da verdade e de melhorar quanto mais
tua alma” (Platão, 1999, pág.56).

Ainda em sua defesa, Sócrates afirma nunca ter sido mestre de ninguém, apesar de não ter se
oposto a que o ouvissem. Desta forma, tornou-se mestre do questionamento. Não estabeleceu
doutrinas ou criou sistemas, apenas ensinou a perguntar; algo muito semelhante ao moderno
método científico.

O início do livro VII d’ A República de Platão descreve o universalmente famoso “Mito da


Caverna”. A alegoria é, provavelmente, a mais citada em toda a história da filosofia. O
personagem principal de todo o livro da República é o mestre de Platão, Sócrates, que na obra
é transformado em arauto das ideias de Platão.

O Mito da Caverna discute basicamente a percepção e os pensamentos que têm as pessoas que
vivem acorrentadas no fundo de uma caverna, e que de nosso mundo exterior só enxergam as
sombras projetadas na parede de sua prisão, escutando as vozes e os ruídos.

Um dos prisioneiros da caverna consegue escapar para o mundo exterior e com o que vê altera
toda a sua percepção da realidade. Compreende então, que aquilo que via em sua caverna eram
apenas toscas impressões do mundo real. No texto de Platão, Sócrates comenta a libertação de
um preso da caverna: “Considera agora o que lhe acontecerá, naturalmente, se forem libertados
das suas cadeias e curados de sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja
ele obrigado a endireitar-se imediatamente, voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para
a luz; ao fazer todos estes movimentos, sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir
objetos de que antes via as sombras. Que acha que responderá se alguém lhe vier dizer que não
viu até agora senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos
mais reais, vê com mais justeza?” (Platão, 2004, pág. 226).

Em seguida Platão, pela boca de Sócrates, expõe suas teorias sobre o supremo bem, fonte da
verdade e da inteligência e necessário para se comportar com sabedoria na vida privada e na
vida pública. O bem, para Sócrates, surge quando a alma se afasta das trevas (novamente a
analogia da saída da caverna com a ascensão para o bem) e do que se altera (o contingente
da existência humana) e se torna capaz de visualizar o que há de mais luminoso no Ser, ou seja,
o Bem.

19
Para Platão no livro A República – especificamente no Livro VII – a educação é um processo de
aprimoramento constante que visa capacitar certos cidadãos a desempenharem tarefas políticas
importantes no governo da polis. Mas, este privilégio não é concedido a todos, mesmo dentre
aqueles que se dedicaram ao aprendizado: “Não é igualmente verossímil, de acordo com que
dissemos, que nem as pessoas sem educação, sem conhecimento da verdade nem as que
deixamos passar toda a vida no estudo são aptos para o governo da cidade, umas porque não
tem nenhum objetivo determinado a que possam referir tudo o que fazem na vida privada ou na
vida pública, as outras porque não consentirão em encarregar-se disso, julgando-se já
transportadas em vida para ilhas dos mais afortunados?” (Platão, pág.230).

Pelas palavras de Sócrates, Platão argumenta que a educação dos futuros governadores se fará
com uma educação voltada para valores mais elevados, afastando-os das preocupações com os
bens materiais. Mas, para chegar a governadores os cidadãos deverão passar por várias fases,
sendo que somente alguns passarão por todo o processo educativo. Terão que percorrer a fase
de guerreiros e como tal aprenderão a ginástica e a música. Em uma etapa seguinte aprenderão
a matemática e a geometria. Os que apresentarem mais aptidões neste processo, aprofundarão
seus conhecimentos, como diz Sócrates: “Seria excelente, portanto, Glauco, impor este estudo
por uma lei e persuadir os que têm de desempenhar altas funções públicas a dedicarem-se à
ciência do cálculo, não de modo superficial, mas até chegarem à contemplação da natureza dos
números pela pura inteligência e a se dedicar a esta ciência não por interesse de vendas e das
compras, como os negociantes e os mercadores, mas da guerra, e para facilitar a ascensão da
alma do mundo da geração para a unidade da essência” (Platão, pág. 238).

Ao final do processo, o objetivo desta formação proposta por Platão é possibilitar uma visão
panorâmica de todas as ciências, como descreve através da fala de Sócrates: "Tenho para
mim que, se o estudo de todas as ciências que examinamos conduz à descoberta das relações
e do parentesco existente entre elas e mostra natureza do elo que as une, este estudo nos
ajudará a alcançar o objetivo que nos propomos, e o nosso trabalho não terá sido inútil; caso
contrário teremos labutado em vão” (Platão, pág. 245). Munido deste domínio das ciências, o
aluno estará preparado para aprender o método dialético que se propõe “sem o auxílio de
nenhum sentido, mas por meio da razão, alcançar a essência de cada coisa e não se detêm
antes de ter apreendido apenas pela inteligência a essência do bem...” (Platão, pág. 246).

A dialética é pois “a conclusão suprema dos estudos” e aqueles que se dedicam a este estudo
serão, depois de um longo e cuidadoso processo de seleção, os governantes da polis, como diz
Sócrates: [...] “Então, quando tiverem vislumbrado o bem em si mesmo, usá-lo-ão como um
modelo para organizar a cidade; os particulares e a sua própria pessoa, cada um por sua vez,
pelo resta da sua vida” (Platão pág. 255).

O livro VII da República descreve um verdadeiro processo educacional, destinado a formação


do cidadão, se aplicado ao indivíduo e à formação do estadista, se aplicado à sociedade.

Para Aristóteles, na abertura de sua Ética a Nicômaco toda atividade tem um fim. Por outro lado,
o fim último de todas as coisas que fazemos (já que o processo não é infinito) é o bem, ou melhor,
o sumo bem. O conhecimento deste bem tem grande influência sobre nossa vida. A ciência
política é a ciência que estuda o sumo bem; que determina quais ciências cada cidadão deve
aprender. Portanto, segundo Aristóteles, já que a ciência política tem tanta influência, legislando
sobre ações, sobre a finalidade das outras ciências, sua finalidade deve ser o bem humano. Ao
determinar o objeto de estudo da ciência política deduz que este é a felicidade. Mas, resta
estabelecer o que é a felicidade, a vida feliz, já que existem diversas opiniões, de acordo com o
grau de educação do indivíduo. Desta forma, estabelece Aristóteles que existem três tipos de
vida: a vida dos prazeres, a vida política e a vida contemplativa.

Mencionando os diversos tipos de bens considerados pelos diversos tipos de pessoas,


Aristóteles chega à conclusão de que o bem “não é uma espécie de elemento comum que

20
corresponde a uma Ideia única”. Desenvolvendo seu argumento e apontando as diversas
concepções de felicidade, o Estagirita afirma que: “A felicidade é, portanto, a melhor, a mais
nobre e a mais aprazível coisa do mundo, e esses atributos não devem estar separados como
na inscrição existente em Delos: ‘das coisas, a mais nobre é a mais justa, e a melhor é a saúde;
porém a mais doce é ter o que amamos’. Todos estes atributos estão presentes nas mais
excelentes atividades, e entre essas a melhor, nós a identificamos como felicidade.” (Aristóteles,
2002, pág.30).

Em seguida, Aristóteles se pergunta se a felicidade deve ser adquirida pelo aprendizado, pelo
hábito ou se ela nos é dada por alguma providência divina ou pelo acaso. Deduz então que a
felicidade não vem do exterior, mas está ligada à disposição interna do sujeito. Mesmo que sofra
desgraças ou desventuras, recuperará em pouco tempo sua felicidade. Deste modo, a felicidade,
o objeto de estudo da ciência política, está ligada à virtude e o “homem verdadeiro político é
aquele que estudou a virtude acima de todas as coisas, visto que ele deseja tornar cidadãos
homens bons e obedientes às leis.” (Aristóteles, pág. 36).

A principal relação entre as três obras; A Apologia de Sócrates, A República e A Ética a Nicômaco
é que todas afirmam – cada uma à sua maneira – que o conhecimento filosófico visa a felicidade.
Na Apologia, Sócrates menciona que o conhecimento é o verdadeiro motivo de felicidade. Ao
final de sua defesa declara-se mais feliz – apesar de condenado à morte – do que seus algozes.
A vida dedicada à filosofia e à virtude proporciona-lhe uma tranquilidade perante a perspectiva
concreta da morte.

Na República, o objetivo de todo o processo de aprendizado é formar cidadãos sábios e virtuosos


que, por sua vez, seriam felizes e, sendo governantes, fariam feliz a sociedade que
administravam. Aristóteles, na Ética a Nicômano, também apresenta a felicidade como condição
dos virtuosos; daqueles que se dedicam aos verdadeiros bens. Assim, o político – o filósofo-
administrador da República de Platão – estuda a virtude profundamente, já que quer tornar seus
concidadãos virtuosos, ou seja, felizes.

Portanto, em última instância, o objetivo das três obras é a felicidade humana através do
conhecimento correto.

Referências
Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo. Martin Claret: 2002, 239 p.
Platão. Apologia de Sócrates. São Paulo. Editora Nova Cultural: 2004, pp. 59-97
Platão. A República. São Paulo. Editora Nova Cultural: 2004, 352 p.

21
A filosofia no ensino médio

Houve um período durante o governo militar (1964-1984) em que o ensino da filosofia foi
dificultado, se não eliminado. O processo de supressão da filosofia dos currículos escolares
começou no final da década de 1960, quando foi dada às escolas a opção de não ensinarem a
matéria. As escolas, que já não tinham muito interessem em ministrar a disciplina (e de maneira
nenhuma queriam se indispor com o governo), acataram a lei como mandatória. Finalmente, em
1971, o Ministério da Educação editou uma nova lei que proibia o ensino da filosofia nas escolas
de todo o país. Ficamos assim um longo período sem ensino da filosofia. Quais as razões e as
consequências disso?

Por um lado, o país estava sob jugo de um regime militar autoritário, sem eleições livres, sem
liberdade de imprensa e de expressão. Como todos os países do planeta entre os anos 1950 e
1980, éramos protagonistas de uma grande batalha entre os Estados Unidos, representando o
sistema capitalista, e a União Soviética, representando o mundo comunista. Internamente
tínhamos um capitalismo em desenvolvimento; o país estava começando seu processo de
industrialização e urbanização. Havia uma pequena classe média ascendente, que pela primeira
vez na história do país tinha acesso a bens com os quais no passado havia apenas sonhado.
Sob o aspecto das carreiras profissionais, a grande maioria dos poucos brasileiros que chegava
ao ensino superior optava pelas áreas de medicina, engenharia, administração de empresas e
direito. Dentro deste contexto político, socioeconômico e educacional, a carreira de filósofo
parecia, no mínimo, estranha. Além disso, com as revoltas estudantis em todo o mundo durante
o mês de maio de 1968 – no Brasil especificamente encabeçadas pelos estudantes de filosofia
da USP, da Rua Maria Antônia – os estudantes de filosofia acabaram adquirindo a pecha de
“baderneiros e comunistas”. Definitivamente, no período da ditadura militar a filosofia não gozava
de boa fama.

Outro fator que no imaginário brasileiro causou desinteresse pela filosofia foi a imagem de ser
uma matéria teórica, pouco afeita à prática. Os filósofos, com seus sistemas, eram retratados
como estudiosos que viviam longe dos problemas diários do país – que envolviam o mundo do
mercado e da produção, do trabalho e das grandes obras – com as quais o pensador
supostamente, pelo menos segundo a caricatura criada pela mídia, nada tinha a ver. A profissão
não tinha mercado de trabalho, já que a ênfase da época no país era o crescimento, a produção
a mobilidade e não a análise, a crítica ou o questionamento. Os cursos em quase sua totalidade
estavam extintos e a grande maioria dos filósofos ocupava cargos em outras áreas da cultura.
Este período no Brasil pode ser comparado à segunda metade do século XIX na Inglaterra, tão
criticado por Nietzsche, que chamava os ingleses de “povo de negociantes e industriais”, sem
qualquer preocupação filosófica.

Em 1984 inicia-se o período de redemocratização. As instituições voltam a funcionar, recupera-


se a liberdade de imprensa e de crítica. Antecedendo em alguns anos a volta da democracia, o
país vivia iludido com a ideia de que bastaria a volta das instituições democráticas, para que a
maior parte das estruturas voltasse a funcionar normalmente como antes, entre outros o sistema
de ensino. Aqui convêm lembrar que durante o período militar a qualidade do ensino no Brasil
caiu vertiginosamente.

Muito mais do que uma intenção premeditada em manter o povo na ignorância, segundo Darcy
Ribeiro, a queda na qualidade do ensino se deve à sua massificação; à intenção de pulverizá-lo,
sem atentar para a qualidade. Todavia, é fato que depois da volta da democracia, a deterioração
do ensino público foi ainda maior. A impressão que se tem é que desde o regime ditatorial a
educação nunca mais achou seu caminho, sendo vítima de experiências educacionais diversas,
que não conseguem melhorar a qualidade da estrutura responsável pelo ensino: planejadores,
professores e escolas. Além disso, os próprios alunos muitas vezes não reúnem condições

22
físicas e psicológicas para receber o ensino sem um acompanhamento especial, já que passam
por problemas de carência de alimentação, de apoio familiar e de autoestima.

A consequência desta situação é que todo sistema de ensino acabou se deteriorando. A


reintrodução do ensino da filosofia, obrigatório a partir de 2008, também ficou comprometida com
o baixo índice de qualidade do sistema educacional. Se, teoricamente, a Lei das Diretrizes e
Bases da educação nacional prevê que o ensino secundário deve preparar o aluno para ter uma
visão ampla sobre os diversos conhecimentos humanos – ciências naturais e humanas – e assim
a filosofia seria como que um coroamento deste processo, capacitando o futuro cidadão a fazer
uma síntese deste conhecimento, o objetivo não tem sido alcançado até o momento.

Recentemente o governo Temer introduziu outra reforma do ensino, no qual as matérias tornadas
obrigatórias no ensino médio a partir de 2008, filosofia e sociologia, já não o serão mais.
Aparentemente, a formação do aluno no ensino médio deverá se tornar mais específica,
abandonando a ênfase universalista, em benefício de uma educação voltada às áreas mais
específicas e técnicas.

Não é possível que com um ensino fundamental incipiente, no qual o aluno muitas vezes não
chega a aprender a ler ou escrever corretamente, seja construída a base para o ensino da
filosofia no ensino médio – ou outras matérias que venham a ser adicionadas ao currículo. A
filosofia pode ampliar substancialmente o horizonte cultural dos alunos do ensino médio, mas
nada ou pouco pode fazer se o solo está estéril e os alunos não têm a mínima capacidade – e,
consequentemente interesse – em se aprofundar nos textos e nas ideias dos filósofos. Se não
houver uma melhoria da qualidade do ensino no período fundamental e médio, o ensino da
filosofia, da sociologia e de outras matérias técnicas, poderá ser mais um engodo, como o foram
os outros planos para reforma do ensino ao longo da história do Brasil.

23
A História, os fatos e a interpretação

São diversas e infindas as causas dos fatos históricos; analisar-lhes as origens principais implica
um posicionamento cultural, político e ideológico. A própria classificação de algo como fato
histórico já remete a uma determinada maneira de interpretar os fatos passados. A maneira mais
tradicional – que remonta a Tucídides (460 a.C.– 400 a.C.) com sua História da Guerra do
Peloponeso e a Heródoto (485 a.C. – 420 a.C.) com As histórias de Heródoto – é o relato de
fatos relevantes, envolvendo personagens importantes ou até aspectos estranhos e bizarros,
como ocorre algumas vezes nos escritos de Heródoto, despertando a imaginação dos leitores
ao longo dos tempos.

O registro da história surgiu dentro do universo da cultura grega. Não que outras civilizações –
como os sumérios, assírios, babilônios e egípcios – não mantivessem um registro dos fatos
passados. Mas as compilações destes povos não tinham caráter pedagógico; não se procurava
tirar algum ensinamento dos fatos passados. Os registros das batalhas realizadas por
determinado soberano listando número de prisioneiros, quantidade de cidades incendiadas ou o
nome dos filhos, têm essencialmente um caráter propagandístico. Não existe o objetivo
pedagógico de ensinar à geração atual ou futura, através do registro dos fatos; o fim da
compilação dos acontecimentos é político: impressionar e intimidar os contemporâneos,
eventuais rivais.

Outro aspecto é que na Antiguidade os fatos realmente importantes eram as guerras, a vida dos
governantes e os costumes de povos estranhos; temas que já vinham sendo tratados desde as
origens da história, com Tucídides e Heródoto. Esta mesma linha de análise seguem também
quase todos os historiadores romanos, como Catão, Salústio, Tito Lívio, Tácito, Suetônio e Plínio
o Velho, entre outros. Em muitos casos, no entanto, como nos escritos de Salústio e Tito Lívio,
a história e seu relato têm nitidamente um caráter pedagógico, visando imprimir aos ouvintes as
virtudes da honra e do patriotismo.

A grande revolução na maneira de interpretar os fatos históricos aconteceu quando o cristianismo


assumiu a hegemonia política – e principalmente cultural – na Europa do século IV. As culturas
não cristãs – a exceção do judaísmo do qual o cristianismo é herdeiro – não enxergavam a
história como tendo um sentido cósmico, global. No máximo, o desenrolar histórico – se pudesse
contar com a ajuda dos deuses – visava a supremacia de certo povo sobre os outros, assim
como Roma se enxergava pela pena de seus historiadores. Na ausência de uma ideologia
hegemônica, compartilhada por várias nações e povos, cada cultura tinha a sua visão da limitada
duração de sua própria organização social e influência sobre o meio, considerando outros povos
apenas como figurantes dessa sua história.

Culturalmente, antes do surgimento da visão cristã da história, cada cultura tinha sua visão
particular da história e não havia um centro unificador a partir do qual todas as histórias – dos
povos, das cidades, das instituições e até dos indivíduos – se uniam e faziam parte de um todo.
Mesmo durante o período da hegemonia romana em parte do Mundo Antigo, povos como os
egípcios, gregos e judeus, não se sentiam como parte de uma história maior; a história romana.
Cada povo centrado em suas próprias tradições explicava a criação do mundo, das leis, das
instituições e os fatos relevantes a partir de seu próprio ponto de vista (principalmente os judeus,
que a partir do retorno do exílio babilônico desenvolveram toda uma teodiceia, que incluía os
outros povos, mas na qual eles mesmos se consideram o protagonista principal).

A hegemonia da religião cristã e de sua doutrina universalista teve uma profunda influência na
cultura. Para o cristianismo, a criação do mundo e de todos os povos que o habitam tinha um
objetivo único, válido para todos os tempos: a união de todos com Deus. Com o Deus cristão,
evidentemente. Com a formação de uma cultura (literatura, filosofia, artes, arquitetura, história)

24
especificamente cristã, a visão que o cristianismo tem do processo histórico passa a ser
incorporado pela cultura oficial.

Assim, o indivíduo concreto, a sociedade a que pertence, o período histórico em que vive, as
instituições que respeita e mantêm, os ideais que compartilha; tudo é visto sob a ótica da
ideologia cristã, que passa a conferir um sentido ao devir histórico e ao universo. No início está
a criação (da qual até o moderno conceito cosmológico de Big-Bang ainda guarda
reminiscências) e no final o Juízo Final ou a Parúsia (a vinda do Cristo).

É a partir deste ponto de vista cristão, no qual todo o devir histórico tem um sentido e é dirigido
por Deus para um determinado fim, que o estudo da história começa a se desenvolver. Desde o
final da Antiguidade com Agostinho e sua obra A cidade de Deus, até os modernos historiadores
marxistas, que substituíram Deus pelas forças econômicas, o Juízo Final pela Revolução e a
Parúsia pelo advento da sociedade comunista. Toda esta introdução foi para mostrar que em
última instância a história é sempre uma questão de interpretação; não existe um ponto de vista
absoluto. Toda a visão cristã (ou hegeliana, ou marxista, ou nacionalista) da história é somente
uma maneira de ver e analisar a sucessão de fatos que se consideram importantes e encaixá-
los em determinada interpretação, como se querendo provar algo: o cristão, de que o Reino de
Deus se aproxima e o socialista de que a sociedade sem classes está próxima.

O historiador contemporâneo John Lukacs em seu O fim de uma era escreve: “A história é real,
mas não se pode fazê-la “funcionar” por causa de sua imprevisibilidade. Um paradoxo curioso é
que, embora a ciência seja abstrata, pode-se fazê-la funcionar”. (Lukacs, 2005, p.57). Em outras
palavras, pode-se dizer que o campo de aplicação da ciência – os fatos do mundo físico – permite
a repetibilidade. Qualquer um, munido de instrumentos e conhecimento necessários, poderá
repetir as experiências científicas e deve chegar às mesmas conclusões que outros cientistas.
Se não chegar, talvez tenha descoberto um erro na teoria científica oficialmente aceita e seja aí
que ocorrerá a mudança de um paradigma científico. Com relação aos fatos históricos
(considerados) relevantes o mesmo não ocorre. Assim, na impossibilidade de comprovar as
principais causas de um fato histórico e premido pela necessidade de compreender, a mente do
homem passa a interpretar.

Não se trata de discutir a comprovação da existência dos fatos considerados históricos, não é
esta a questão. É perfeitamente demonstrável que a tomada da cidade de Constantinopla pelos
turcos comandados pelo sultão Maomé II, finalizando a destruição do Império Romano do
Oriente, se deu no dia 29 de maio de 1453. A interpretação começa quando se quer determinar
as principais consequências da queda de Constantinopla – uma delas, por exemplo, fixando
aleatoriamente a data como o final da Idade Média.

O objetivo deste comentário é lembrar que os fatos históricos merecem ser tratados com um
pouco de ceticismo, já que o que se coloca como história oficial, é um relato em grande parte
influenciado por fatores culturais, epistemológicos e políticos; na pior hipótese por interesses de
grupos e ideologias.

Referências
BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental – Vol II. Porto Alegre. Editora Globo:
1971, 1052 p.
LUKACS, John. O fim de uma era. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 2005, 216 p.

25
A metafísica

Até o século XVII, quando teve início o desenvolvimento do pensamento científico com Galileu
(1564-1642) e Bacon (1561-1626) e do moderno pensamento (metafísico) filosófico com
Descartes (1596-1650), não se cogitava sobre o objeto do conhecimento, o mundo exterior. A
filosofia grega e a medieval partiam do pressuposto de que a realidade (o mundo, a natureza)
estava dada. Perguntavam-se os pensadores o que era esta realidade, que a razão podia
conhecer. Este pressuposto filosófico, de que a realidade exterior era o que representava e podia
ser conhecida pelo pensamento, chamava-se realismo. Foi neste contexto que surgiu a
metafísica, que durante a maior parte da história da filosofia sempre foi a sua mais importante
disciplina.

As perguntas iniciais da filosofia foram: “O que existe?”; “O que é isto que existe?”; “Como é isso
que existe?”; e “Por que existe?”. Estas questões marcaram o primeiro período da filosofia,
quando esta ainda perguntava sobre a natureza e constituição última do cosmos. Daí Aristóteles
escrever que os primeiros filósofos eram físicos, já que se ocupavam do estudo da physis, a
natureza. Atualmente conhecemos os principais filósofos deste período como pré-socráticos, por
terem atuado antes do aparecimento do filósofo Sócrates.

A cosmologia (ou fisiologia) era a forma que pensadores como Tales de Mileto (624-546 AEC),
Anaximandro (610-546 AEC), Anaxímenes (588-524 AEC), Pitágoras (570-495 AEC), Heráclito,
Parmênides, só para citar alguns, procuravam – cada um à sua maneira – para explicar a
constituição última do universo, a mudança das coisas e as oposições (frio/calor, verão/inverno,
vida/morte). Ponto comum entre todos estes pensadores era a tentativa de estabelecer um
elemento originário, a partir do qual os seres e suas transformações pudessem ser explicados.

Água, ar, apeíron (ilimitado, indefinido), números, foram algumas explicações desenvolvidas por
estes pensadores. Dentre os cosmologistas ou pré-socráticos destacaram-se dois filósofos, por
sua originalidade, oposição de conceitos e importância no posterior desenvolvimento da
metafísica grega e cristã: Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia.

Heráclito (535-475 AEC) dizia que a realidade era o devir, a constante transformação de tudo;
tudo flui e se transforma em seu oposto: o menino se transforma em um homem adulto e depois
em um velho; a neve se transforma em água e depois volta a se congelar; uma estação sucede
à outra. A metáfora que tornou este pensador famoso foi a do rio: “É impossível entrar no mesmo
rio duas vezes”, já que nem as águas nem nós somos os mesmos. O Logos (o discurso sobre o
ser) é a mudança e a contradição.

Parmênides (530-460 AEC) negava o movimento e a mudança do Ser, da realidade. Se


houvesse realmente mudança, afirmava, seria possível o Não-Ser, o que é uma contradição. O
Não-Ser não existe, o que leva à conclusão de que só existe o Ser, a imutabilidade. Em seu
poema épico Sobre a natureza e sua permanência, Parmênides defende três pontos principais a
respeito do Ser: 1) O Ser é único. Se fosse múltiplo cada ser seria e não seria, o que é
contraditório; 2) O Ser é eterno. Se fosse substituído por outro existiriam dois Seres, o que é
absurdo. Se tivesse um fim, seria o Não-Ser, o que é absurdo; e 3) O Ser é imutável. Se o Ser
mudasse, se transformaria no Não-Ser, o que é impossível que ocorra. Assim, o devir aparente
do ser é uma ilusão.

Parmênides estabelece uma importante diferença entre o pensar e o perceber. Ao mudar o foco
do pensamento das coisas que se transformam – característica dos físicos que estudavam
a physis – para o Ser imutável, o filósofo inaugura a ontologia (o estudo do Ser enquanto Ser),
também chamada na história do pensamento ocidental de “metafísica”. Todavia, o pensamento
de Parmênides, se levado às suas últimas consequências, também coloca um fim definitivo à

26
história da metafísica. De acordo com seu pensamento, só eram possíveis três afirmações sobre
o Ser: “o Ser é”; “o Não-Ser não é”; e “o Ser é único, idêntico e imutável”, nada mais.

Platão (427-347 AEC), discípulo de Sócrates (469-399 AEC), é considerado pela tradição
filosófica como o fundador da metafísica. Não por tê-la criado como disciplina, mas por ter
colocado os fundamentos teóricos para que seu discípulo Aristóteles criasse a disciplina. Platão
concorda com Heráclito no que se refere à constante mudança que ocorre na natureza, no mundo
das aparências. Por outro lado está de acordo com Parmênides, quando este diz que o
pensamento deve se concentrar no Ser imutável, único e eterno. No entanto, diferentemente de
Parmênides, que não conferia nenhuma existência ao mundo das aparências, classificando-o de
Não-Ser, Platão concede-lhe uma existência “fraca” no mundo, a fim de poder construir todo um
arcabouço de ideias que se tornarão a base da filosofia ocidental. O filósofo inglês Alfred North
Withehead (1861-1947) dizia que toda a filosofia era apenas comentário, notas de rodapé, ao
sistema filosófico platônico.

Platão provavelmente era discípulo ou conhecia bastante os mistérios órficos. Este culto é
baseado na lenda do herói Orfeu que desceu ao reino dos mortos, o Hades, para salvar sua
esposa Eurídice. A narrativa é bastante complexa e é citada por Homero, Píndaro e Eurípedes.
Os cultos órficos eram secretos (daí o nome “mistérios”) e sua doutrina era aparentada com o
pitagorismo, tendo também influência dos cultos orientais. Cogitam alguns autores, que a
influência do orfismo tenha sido decisivo para que Platão desenvolvesse o conceito dos “Ideais”
ou “Ideias”. Este sistema representa de certo modo a síntese das ideias que vinham sendo
desenvolvidas pelos pensadores fisiologistas, por Heráclito e Parmênides. Explicava o
fundamento último da realidade, a mudança constante e o imutável pelo conceito das Ideias,
contraposto ao mundo material.

Cada Ideia ou Ideal é equiparável ao Ser de Parmênides; eterno e imutável. Assim, em sua
alegoria Platão afirma que existem Ideias de todas as coisas que encontramos no mundo do
devir; existe uma Ideia de cavalo, do qual os demais exemplares vivos da espécie equus ferus
caballus são apenas uma cópia. As mesas, as cadeiras também têm suas Ideias neste mundo
da perfeição, que também é habitado por conceitos como justiça, beleza e amor, dos quais
nossas versões terrenas são apenas cópias. Para completar a função de sua alegoria, Platão
afirma que nossas almas antes de nascerem convivem e contemplam todas as Ideias. Ao voltar
a viver no mundo das aparências, a alma se esquece das Ideias que contemplou. É através da
prática da filosofia, que o homem pode recordá-las e tornando-se consciente delas, como Platão
descreveu na famosa Alegoria da Caverna no livro A República.

A metafísica tem início efetivamente com Aristóteles (384-322 AEC). Diferentemente de seu
mestre Platão, o Estagirita não julga a natureza como mundo das aparências, ilusório e
contraposto a um mundo perfeito, o das Ideias. Aristóteles parte do pressuposto de que o devir
é verdadeiro e que sua característica é exatamente a multiplicidade e a transitoriedade. A
essência das coisas não está em um além de Ideias, mas nas próprias coisas, cuja essência é
estudada pela metafísica. No livro IV da sua Metafísica, escreve Aristóteles: “Há uma ciência que
investiga o ser como ser e as propriedades que lhe são inerentes devido a sua própria natureza”
(Aristóteles, 2006). Outros aspectos do ser são estudados pelas ciências específicas – física,
geometria, biologia, etc. A metafísica estudará o que é a essência e aquilo que faz com que haja
essências particulares e diferenciadas. Em outras palavras, a ciência que estuda o Ser enquanto
ser, sem levar em conta as diferenças entre os seres.

Aristóteles desenvolveria a metafísica, transformando-a em uma ciência que estudaria


fundamentalmente três coisas: 1) O ser divino, a realidade imutável, o que Aristóteles chamou
de Primeiro Motor. Todas as coisas estão em constante mudança porque existe nelas um impulso
que faz com que almejem a perfeição do Primeiro Motor; estado que, segundo Aristóteles, nunca
alcançarão; 2) As causas primeiras de todos os seres, que explicam o porquê, o quê e o como
das coisas; 3) Atributos e propriedades de todos os seres, através dos quais podemos determinar

27
a essência de um ser particular. Esta essência é a realidade última de um ser, sem a qual não
existe. A essência é chamada de “substância”, foco de estudo da metafísica; termo que será
muito importante durante toda a filosofia medieval – principalmente a tomista – até os modernos
como Descartes, Leibniz e Espinosa.

A metafísica aristotélica será a base de toda a metafísica ocidental e é balizada por alguns
conceitos, como: 1) Primeiros princípios: causalidade, não contradição e terceiro excluído;
princípios lógicos que também são ontológicos; 2) Causas primeiras: que explicam o que é a
essência de determinado ser, assim como origem e motivos de sua existência; e 3) Outros
atributos como: matéria, forma, potência, ato, essência, acidente, substância e predicados.

A metafísica cristã é uma adaptação da metafísica aristotélica ao cristianismo. Contribuíram para


esta fusão de sistemas e ideias correntes de pensamento como o neoplatonismo, o estoicismo
e o gnosticismo. O maior desafio do nascente cristianismo era contemporizar a nascente fé –
que partia de conceitos oriundos do judaísmo tardio – com a filosofia grega racionalista.

Entre os séculos V e XII a filosofia, e com esta a metafísica, ainda era fortemente influenciada
pelas ideias de Platão, pois em suas origens a síntese do cristianismo com a filosofia grega
ocorreu sob a égide o neoplatonismo de Plotino (205-270) e Porfírio (234-309), já que por esta
época a obra de Platão e Aristóteles era desconhecida para a cultura latina. No século XII
aparecem as primeiras traduções do árabe para o latim de textos originais dos dois pensadores,
e a partir daí as ideias de Aristóteles passariam a exercer influência hegemônica, tanto sobre a
filosofia como a teologia, através de Tomás de Aquino.

No século XVI e XVII surgem novas formas de interpretação da metafísica. Pensadores da época
já não aceitavam mais ideias que não pudessem ser estabelecidas pelo intelecto. Esta nova
mentalidade assume as seguintes características: 1) Incompatibilidade entre fé e
razão; 2) Redefinição do termo “substância”, elemento importante na metafísica aristotélica e
medieval. Para Descartes, por exemplo, há três substâncias: a pensante (alma intelecto), a
extensa (corpos) e a infinita (Deus). Já Hobbes (1588-1679), negava a capacidade de conhecer
a substância divina (Deus) e a anímica (alma). Aos sentidos era dada somente a substância
corpórea (a matéria).

Em sua filosofia Hobbes nega a possibilidade de elaboração de uma metafísica, permanecendo


limitado ao âmbito da física. O pensador foi assim um dos primeiros detratores modernos da
metafísica, inaugurando uma linha de pensamento que a partir do século XVII e XVIII –
notadamente depois da crítica de Kant (1724-1804) – teria um número cada vez maior de
adeptos. Ao longo de século XIX a metafísica, em sua forma tradicional, não estaria mais
presente nas principais correntes de pensamento.

Referências
A evolução da metafísica e a crítica kantiana. Disponível em:
<http://www.consciencia.org/a-evolucao-da-metafisica-e-a-critica-kantiana>. Acesso em
28/07/2013.
Chauí, Marilena. Convite à filosofia 13ª edição. São Paulo. Editora Ática: 2006, 424 p.
História da Filosofia Orfeu, orfismo e mistérios órficos. Disponível em:
<http://www.freemasons-freemasonry.com/8carvalho.html>. Acesso em 28/7/2013
Reale, G.; Antiseri D. História da Filosofia Vol I. São Paulo. Paulus Editora: 1991, 683p.

28
A origem das instituições em Marx

A filosofia de Marx teve como ponto de partida o pensamento de Hegel (1770-1831). Mas Marx,
de certo modo, fez jus àquela máxima que diz que “o bom discípulo é aquele que ultrapassa o
mestre”. Valendo-se do pensamento de seu mestre, Marx criou sua própria linha de pensamento
para análise do mundo.

O pensamento de Hegel era fortemente influenciado pelo devir histórico; o desenrolar histórico
tinha um papel fundamental na explicitação da filosofia hegeliana. Este pensador explicava as
instituições humanas como resultado de uma racionalidade inerente ao mundo. Esta
racionalidade era uma manifestação do desenvolvimento do Espírito; uma entidade abstrata
elaborada por Hegel, e que seria o impulsionador, principal personagem e o próprio sujeito da
história humana e do cosmo (daí a importância da história). Segundo Hegel, todo o devir da
história humana e do próprio desenvolvimento do universo é um processo (palavra importante
no pensamento de Hegel) por que passa o Espírito – conceito que pouco ou nada tem a ver com
o conceito de Deus do cristianismo, assemelhando-se mais ao conceito de Brahma do
hinduísmo.

Sobre este aspecto da filosofia de Hegel escrevem Reale e Antiseri:

“Na Fenomenologia do Espírito (a principal obra de Hegel), como se evidencia do que foi dito,
existem dois planos que se interseccionam e se justapõem:

1) há o plano constituído pelo caminho percorrido pelo Espírito para chegar a si mesmo ao longo
de todos os acontecimentos da história do mundo que, para Hegel, é o caminho ao longo do qual
o Espírito se realizou e se conheceu; 2) mas há também o plano próprio simples do indivíduo
empírico, que deve percorrer novamente aquele caminho e apropriar-se dele. A história da
consciência do indivíduo, portanto, outra coisa não pode ser senão o percorrer a História do
Espírito.” (Reale, Antiseri, 1991, V. III, p. 112)

Para Hegel, a estrutura social com todas as suas instituições, era efetivamente uma necessidade
racional; algo no interior das cabeças dos homens que se exteriorizava (por serem estes, de
certo modo, uma manifestação do Espírito). O mundo e todas as relações sociais eram –
coerente com o papel que Hegel dava ao Espírito na história – a manifestação de uma
racionalidade que gradualmente se exteriorizava no desenrolar histórico. Hegel estava tão
convencido deste processo que escrevia que “o real é racional e o racional é real” – já que o real
é manifestação de uma ordem racional, o Espírito.

Hegel foi o maior expoente da filosofia idealista, cuja genealogia remonta a Platão (século V
AEC). De modo simplificado, pode-se descrever a filosofia idealista como a que pressupõe que
a realidade com a qual lidamos oculta uma ordem, ou uma dimensão que não é perceptível
empiricamente. No entanto, através do conhecimento, da filosofia (ou da matemática para alguns
pensadores) podemos apreender esta racionalidade oculta. Para alguns filósofos, esta realidade
ou racionalidade oculta era Deus ou por ele era mantida.

Estudando Hegel, Marx compreendeu que o surgimento, a mudança e a substituição das


instituições jurídicas e políticas – o desenrolar da história humana – só poderia ser explicada
pelas condições materiais e suas mudanças. Fortemente influenciado pelo materialismo, Marx
não podia aceitar as teses idealistas de Hegel, que para ele eram ideologia, ou seja, uma
idealização da realidade. Já em sua tese de doutorado “Diferença entre as filosofias da natureza
em Demócrito e Epicuro”, Marx escreve:

29
“Quando a filosofia, enquanto vontade, se opõe ao mundo fenomênico, o sistema se transforma
em uma totalidade abstrata, num lado do mundo, ao qual se opõe um outro lado. Na medida em
que tende a refleti-lo, ao desejar realizar-se, entra em luta com o Outro.” (Marx, s/d, p.30).

Marx defendia que a filosofia de Hegel interpretava o mundo de cabeça para baixo. Daí ocorreu-
lhe a grande ideia, munido das noções do materialismo e com profundos conhecimentos de
história, de que ocorre exatamente o contrário: são as condições materiais que propiciam as
alterações na sociedade civil, ou seja, nas instituições e ideias. Escreve Marx:

“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus
estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens
contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de
produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças
produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual
correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida
material condiciona o processo em geral da vida social, político e espiritual. Não é a consciência
dos homens que determina o seu ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua
consciência.” (Marx, 1974, p. 136).

Identificar os fatos econômicos como sendo a base – mas não o único fator causador – das
alterações na estrutura social, foi o grande passo para que Marx pudesse desenvolver toda uma
nova interpretação da história e das relações entre os homens. Convencido de que são as
relações de produção que dão rumo à história, Marx escreve com Engels em seu Manifesto do
Partido Comunista:

“Será preciso uma excepcional inteligência para compreender que, quando forem modificadas
as condições de vida dos homens, as suas relações sociais e sua existência social, mudarão
também em suas representações, as suas concepções, os seus conceitos – numa palavra, a sua
consciência? O que prova a história das idéias senão que a produção espiritual se transforma
com a transformação da produção material? As idéias dominantes de uma época sempre foram
as idéias da classe dominante.” (Marx, Engels, 2001, p.57).

Referências
MARX, KARL e ENGELS, FRIEDRICH. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo. Editora e
Livraria Anita: 2001, 80 p.
MARX, KARL. Para Crítica da Economia Política in Coleção Os Pensadores. São Paulo. Abril
Cultural: 1974, 410 p.
MARX, KARL. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. São Paulo.
Global Editora: s/d, 128 p.
REALE, GIOVANNI e ANTISERI, DARIO. História da Filosofia Vol. III. São Paulo. Paulus Editora:
1991, 1111 p.

30
Alguns aspectos do pensamento de Descartes

O filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650) foi o fundador da filosofia moderna.
Se, na Antiguidade, a filosofia como disciplina organizada teve início com Platão (427-347 AEC),
a filosofia moderna foi estruturada pelo pensador francês. Alfred North Whitehead (1861-1947),
filósofo e matemático inglês, escreveu que toda a filosofia era apenas nota de rodapé ao
pensamento de Platão. Da mesma forma, referindo-se a Descartes registrou que “a história da
filosofia moderna é a história do desenvolvimento do cartesianismo em seu duplo aspecto, de
idealismo e mecanicismo”.

Descartes teve uma educação esmerada, tendo frequentando uma das melhores escolas de sua
época, conduzida pela jesuítas. Sendo de origem nobre, teve recursos financeiros para acessar
a maior parte do conhecimento disponível a sua época. Em linguagem atual pode-se dizer que
Descartes, além de muito inteligente, era um dos mais capacitados intelectuais de seu tempo.
Além disso, teve oportunidade para viajar pela Europa, conhecendo outros povos, culturas e
costumes, o que contribuiu para lhe dar uma mentalidade mais aberta e, principalmente,
inquiridora.

Além disso, havia todo um novo ambiente intelectual na Europa na qual Descartes circulava. A
filosofia ainda dominante à época, bastante influenciada pelo tomismo (a filosofia oficial da igreja
católica, elaborada por Tomás de Aquino), não tinha mais como incorporar todas as novas
descobertas das ciências físicas e matemáticas. A invenção de novos instrumentos científicos,
como o telescópio ou o microscópio, abrindo novas fronteiras no espaço imenso e diminuto,
requeriam urgentemente uma nova filosofia que justificasse a confiança na razão. Reale e
Antiseri escrevem que “só era possível opor ao ceticismo desagregador uma razão
metafisicamente fundada, capaz de se sustentar na busca da verdade, e um método universal e
fecundo.”

Influenciado pela nova física de Galileu, Descartes desenvolveu um pensamento fundado em


novos pressupostos, baseado no pensamento matemático. A metafísica de Descartes teve
grande peso em todo o pensamento filosófico posterior, pois conseguiu interpretar os resultados
da ciência de sua época, também influenciando toda a ciência posterior com seu mecanicismo.
Como escreve Descartes em seus Princípios de filosofia “toda a filosofia é como uma árvore,
cujas raízes são a metafísica, o tronco é a metafísica e os ramos que procedem do tronco são
todas as outras ciências”.

Para apreender e explicar o mundo Descartes precisava de um método, uma metodologia de


pensamento para avaliar as informações, julgá-las e a partir delas estabelecer um sistema de
pensamento que pudesse interpretar a realidade de uma forma racional. Escreve Descartes:

“O método consiste na ordem e na disposição das coisas, para as quais é preciso direcionar as
forças do espírito para se descobrir alguma verdade. Nós o estaremos seguindo exatamente se
reduzirmos gradualmente as proposições complicadas e obscuras às mais simples e se, em
seguida, partindo das intuições das mais simples, procurarmos nos elevar pelos mesmos
degraus ao conhecimento de todas as outras” (DESCARTES apud Reale e Antiseri).

Ao desenvolver seu método, Descartes não faz uma divisão entre a filosofia e a ciência. Mais
importante que tudo, é desenvolver um método que lhe traga segurança nos raciocínios
posteriores, seja em seus trabalhos de matemática, quanto de filosofia. Em seu Discurso sobre
o método, Descartes estabelece quatro regras, que conforme o filósofo são “regras certas e
fáceis que, sendo observadas exatamente por quem quer que seja, tornem impossível tomar o
falso por verdadeiro e, sem qualquer esforço mental inútil, mas aumentando sempre

31
gradualmente a ciência, levem ao conhecimento verdadeiro de tudo o que se é capaz de
conhecer” (Ibidem, p. 361).

A primeira regra é a da evidência, enunciada da seguinte maneira por Descartes: “Não se deve
acatar nunca como verdadeiro aquilo que não se reconhece ser tal pela evidência”, ou seja, evitar
juízos apressados sobre aquilo de que não se tem certeza.

A segunda regra é a de “dividir cada problema que se estuda em tantas partes menores quantas
for possível e necessário para melhor resolvê-lo”. Trata-se de uma regra que hoje nos parece
evidente, sendo usada na pesquisa científica, na moderna tecnologia e administração de
empresas e em diversos setores da economia atual. No início dos tempos modernos, à época
de Descartes, o método era revolucionário.

Como terceira regra, Descartes estabeleceu “conduzir com ordem meus pensamentos,
começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-se pouco a pouco,
como por degraus, até o conhecimento dos mais complexos.” A última e quarta regra do método
cartesiano é a “de fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais a ponto de se
ficar seguro de não ter omitido nada.”

O método cartesiano serviu como base para toda a filosofia e metafísica posterior. A validade ou
não do argumento da certeza fundamental – o cogito ergo sum – e a prova da existência de Deus
como seu corolário, são pontos que no estágio atual do desenvolvimento da filosofia não são
mais decisivos. O principal legado de Descartes, a nosso ver, foi ter colocado as bases para o
desenvolvimento do moderno pensamento filosófico e científico.

Referências
Reale, Giovanni; Antiseri Dario. História da Filosofia – Vol II. São Paulo. Paulus: 1990, 956 p.
Rose, Ricardo. A religião e o riso & outros textos de filosofia e sociologia. São Paulo. Editora
LpB: 2013, 221 p.

32
Aspectos do imaginário popular na Baixa Idade Média

Neste artigo sobre o período medieval, utilizei duas obras bastante importantes, que tratam do
imaginário social deste período, abordando principalmente a Baixa Idade Média. Refiro-me à
obra o Outono da Idade Média, obra seminal sobre o período, do historiador holandês Johan
Huizinga (1872-1945), da qual utilizamos o capítulo A imagem da morte. Outra obra consultada
foi História do Riso e do Escárnio, do historiador Georges Minois (1946-), especificamente seus
capítulos 6 – Rir e fazer rir na Idade Média; e 7 - O riso e o medo na Baixa Idade Média. No
âmbito destas obras, me concentrei nos aspectos do imaginário social; o que causava medo e o
que divertia o homem deste período extremamente rico em contradições.

A Idade Média, sempre convêm lembrar, é um período histórico muito longo - vai do século V ao
século XV - durante o qual praticamente se estruturou cultural e socialmente aquilo que a partir
do século XVIII (hoje quase um termo anacrônico) se convencionou chamar de civilização
ocidental. Mas a Idade Média é muito mais do que um período relativamente obscuro de
transição, entre o império romano e o mundo moderno surgido no século XVI. A riqueza deste
período - seja sob o aspecto social, cultural, religioso - ainda nos reserva grandes surpresas,
constantemente estudadas e divulgadas por historiadores como Georges Duby (1919-1996),
Jacques Le Goff (1924-), Michel de Certeau (1925-1986), entre outros.

O período sobre o qual trato neste artigo vai de aproximadamente 1300 a 1500. Não farei
referência aos aspectos econômicos e políticos. Tampouco farei menção à cultura oficial, já
permeada pelo humanismo com todas as suas implicações desde o século XIII, a começar na
Itália. O tema deste artigo é o imaginário popular, o que hoje talvez pudesse ser comparado à
cultura popular e cultura de massa.

Minois afirma que este período se caracteriza pela crise, afetando todos os aspectos da vida
humana e provocando uma verdadeira mutação das mentalidades. Alguns dos aspectos sociais
do período são:

- A volta da escassez dos alimentos, já que a população apresentava um crescimento desde o


século XII;

- O início da Guerra dos Cem Anos, que com todas as suas implicações foi a mais longa da
história da humanidade;

- O aparecimento da Peste Negra, cujo auge foi entre os anos 1346 a 1352, se estendendo até
pelos menos 1460, gerou recessão econômica, tensões sociais e revoltas nas cidades e no
campo;

- no plano religioso ocorre o Grande Cisma da Igreja (1378-1477), quando existiam


concomitantemente dois papados; um com sede em Roma e o outro em Avignon (França).

Todos estes acontecimentos, agravados pelas mudanças econômicas e políticas, como a


gradual erosão do sistema econômico feudal e o desaparecimento dos feudos substituídos pelo
poder central, levaram a um clima de insegurança coletiva e individual em toda a Europa. Medo
da morte individual iminente; medo do inferno, da vinda do Anticristo e do fim do mundo;
proliferação de heresias. Sobre estes aspectos escreve Minois:

“... a Igreja dava aos fiéis meios de suportar essas angústias que ela própria suscitava.
Procissões, bênçãos, intercessão dos santos, indulgências, novas devoções, sem dúvida,
ajudaram as gerações do fim da Idade Média a não cair por completo no desespero e na neurose
coletiva." (MINOIS, 2003).

33
O clima de medo era geral, especialmente o medo da morte e da condenação eterna. Escreve
Huizinga:

"Eram três os temas que forneciam a melodia para aquele eterno lamento sobre o final de toda
a glória terrena. Primeiro havia o motivo que perguntava: onde estavam todos aqueles que
outrora encheram o mundo com sua glória? Depois havia o tema da visão horripilante da
decomposição de tudo aquilo que um dia fora beleza humana. Por fim, o motivo da dança
macabra, a morte que arrasta consigo as pessoas de qualquer profissão, de qualquer idade."
(HUIZINGA, 2011).

O pavor fazia com que centenas ou milhares de pessoas - muitas delas mendigos, sem-teto,
fanáticos religiosos, deficientes e leprosos - vagassem pela Europa, esmolando, se
autoflagelando, rezando e clamando por perdão por seus supostos pecados; eram os flagelantes.
É famosa a cena do filme O Sétimo Selo (1957) de Igmar Bergman, que retrata o final da Idade
Média, e em uma de suas cenas mostra um grupo de flagelantes entrando em uma aldeia,
aterrorizando seus moradores. Outra cena do mesmo filme mostra um cadáver insepulto de
alguém atacado pela peste.

A morte era um dos principais temas na meditação religiosa do fiel. As imagens das danças
macabras, representando esqueletos conduzindo pessoas de diversas classes sociais para
morte, se tornaram famosas em livros de orações, nas capelas e nas paredes dos cemitérios.
Monges, nobres, mulheres e camponeses sendo conduzidos por esqueletos cobertos de trapos,
a caminho de sepulturas abertas. São os memento mori (do latim: lembra-te da tua morte);
imagens que representadas de diversas formas sempre lembram o tema da finitude humana:

"Em torno da dança macabra agrupam-se algumas ideias afins em relação à morte, igualmente
apropriadas para serem usadas como elemento de advertência e terror. O conto dos três mortos
e dos três vivos antecede a danse macabre. Já no século XIII, ela surge na literatura francesa:
três jovens da nobreza encontram subitamente três mortos hediondos que lhes contam sobre a
própria glória terrena e os alertam para o rápido fim que os aguarda." (MINOIS, 2011).

Outro forte tema do imaginário social daquela época era a Segunda vinda do Cristo, que deveria
julgar vivos e mortos conforme falavam os Evangelhos, sendo precedido pelo Anticristo. A
mensagem era repetida nas cidades e nas estradas pelos pregadores e pelos próprios membros
da Igreja. Minois escreve que:

"O dominicano espanhol Vincent Ferrier deixa atrás de si um rastro de angústia. Em 8 de outubro
de 1398, em uma visão, Cristo lhe confiou a missão de pregar o exemplo de Domingos e de
Francisco para obter a conversão de multidões ante a vinda iminente do anticristo. Ele vai seguir
esta ordem sem relaxar, acrescentando profecias de sua lavra." (ibidem, 2011).

No entanto, segundo Minois, o homem da Baixa Idade Média foi salvo pelo riso. A grande pressão
exercida pelo medo sobre o indivíduo e a sociedade também acabou provocando o riso. Nas
festas populares, as autoridades políticas e religiosas são ridicularizadas; fazem-se paródias
engraçadas das missas, abundam as piadas sobre as relíquias de santos, sobre os monges.
Orações da liturgia recebiam novas palavras; muitas vezes deboches de baixo nível. As crenças
populares são transformadas em fábulas. Boccacio em seu Decameron escreve:

"Eles afirmam que beber muito, usufruir, ir de um lado para outro cantando e se satisfazendo de
todas as formas, segundo o seu apetite, e rir e zombar do que pudessem rir era remédio mais
certo para tão grande mal." (Bocaccio apud Minois).

Se nada sagrado escapa à zombaria e ao escárnio o mesmo também acontece com o Diabo.
Nas festas de Carnaval, realizadas nas cidades medievais e atraindo até milhares de visitantes,
o “coisa ruim” apanha, é enganado e escorraçado.

34
"Rir do diabo e do inferno é exorcizar o medo que se tem dele. Ora o diabo está em toda parte,
essa época. Zomba-se dele e ele zomba dos homens, em uma bufonaria trágica. Ele é
representado, às vezes, mantendo seu fogo nos mistérios, com orelhas de asno, o capuz de
guizos, a túnica verde amarela." (Ibidem, 2011).

Os homens, premidos por tantas desgraças reais e imaginárias parecem não ter outra alternativa
senão rir. E neste processo fazem troça de tudo: dos pobres coitados, dos poderosos, da loucura,
da morte, da miséria, das doenças, do Diabo e até de Deus. Em sua amarga revolta, sem
conhecer outra possibilidade de protestar contra um universo que o oprime, agride, mata e por
fim o joga nas mãos de um deus raivoso, o homem ri. Ri amargamente.

Referências:
Huizinga, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo. Cosac Naify: 2010, 652p.
Minois, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo. Editora UNESP: 2003, 653 p.

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Comentando Marilena Chauí e Edmund Husserl

Em Convite à Filosofia a filósofa Marilena Chauí faz a seguinte afirmação: [...] “não há 'coisa em
si' incognoscível. Tudo o que existe é fenômeno e só existem fenômenos. Fenômeno é a
presença real de coisas reais diante da consciência; é aquilo que se apresenta diretamente, 'em
pessoa', em 'carne e osso', à consciência”.

A fenomenologia parte do pressuposto da realidade e da verdade dos fenômenos, das coisas


que “aparecem”, dos dados que se nos apresentam à consciência. Não se trata, como na filosofia
kantiana, de que as coisas estão só na mente, na percepção e que além desta percepção se
estende o misterioso mundo da “coisa-em-si”. Todavia, de Kant o filósofo Husserl ainda conserva
a afirmação de que não conhecemos uma realidade em si mesma, mas a realidade estruturada
a priori pela razão. Esta realidade que captamos pela razão é a essência dos fenômenos, o eidos.
Husserl afirma que a filosofia é eidética, pois apreende a essência dos fenômenos.

Para Husserl a fenomenologia (diferente da psicologia que é uma ciência dos fatos) é a ciência
das essências. A fenomenologia utiliza-se da redução eidética, através da qual expurga os
fenômenos psicológicos de suas características reais ou empíricas, levando-os ao plano da
generalidade essencial, transformando-os em essências, em universais.

Para conhecer as essências, os universais, segundo Husserl, partimos de uma intuição das
essências. Assim, redução eidética e o processo de intuir para conhecer as essências dos
fenômenos, é a mesma coisa.

Todavia, para que possamos conhecer a essência do fenômeno, é preciso utilizar-se


da epoché, que é um movimento mental de “colocar entre parênteses” as próprias convicções
filosóficas, científicas e nosso senso comum. Suspendendo todo tipo de juízo sobre as coisas e
olhando-as em sua essência, alcançamos a consciência daquilo que é absolutamente evidente
(fico pensando se Hume teria a mesma opinião sobre estas “ginásticas mentais” e se Husserl
alguma vez efetivamente atingiu o estado de “ver a essência do fenômeno”).

Como corolário desta investigação, Husserl chega à conclusão de que o movimento da


consciência é intencional, já que toda a consciência é consciência de alguma coisa. Isto quer
dizer que todo pensamento tem sempre um objeto. Por toda esta atividade que exerce, Husserl
afirma que a consciência é “doadora de sentido”, já que as essências nada mais são do que
significações produzidas pela consciência, tendo como matéria prima os fenômenos (por que
será que sinto um cheiro forte de kantismo aqui?). A realidade adquire sentido através da ação
da consciência.

A consequência do pensamento fenomenológico em relação à metafísica é que esta deixa de


existir como algo além do sujeito, para tornar-se algo que o sujeito, através do pensamento,
transmite à realidade – cujo sentido, aliás, é dado pelo próprio sujeito.

Referências
ABBAGNANNO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo. Martins Fontes: 2007, 1.210 p.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo. Editora Atica: 2010, 424 p.
CRESPO, Luís F.; COLOMBINI, Elaine A. M. Filosofia Geral: Problemas metafísicos II. Batatais.
CEUCLAR: 2007, 37p.
SOKOLOWSKI, Robert. Introdução à fenomenologia. São Paulo. Edições Loyola: 2004, 247

36
Comentários sobre o texto “Reflexões sobre a racionalidade
científica: problemas, apostas e propostas”

O texto Reflexões sobre a Racionalidade Científica: problemas, apostas e propostas é de autoria


de Daniel Durante Pereira Alves, professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Neste curto artigo comentaremos este trabalho, que analisa a atividade científica e a
epistemologia.

No início de seu texto o autor afirma querer fazer uma crítica sobre alguns aspectos cognitivos
da ciência, em seus pressupostos herdados de Descartes e defendidos pelo empirismo lógico.
O texto também pretende apontar a conexão íntima existente entre certos problemas
epistemológicos e éticos, considerando a extrema inter-relação entre ambos. Em sua
argumentação, o texto elabora uma crítica ética da ciência, dadas as “consequências muitas
vezes nocivas do conhecimento científico”. Assim, para iniciar sua apresentação, o autor começa
seu texto com uma explicação do que considera as características mais fundamentais da
racionalidade científica hegemônica: o atomismo e o método axiomático.

O conhecimento científico é socialmente construído e não “temos nenhum motivo intransponível


que nos impeça de procurarmos novas formas de fazer ciência”. A ciência é uma construção
histórica e sua maneira de ser feita não se deve necessariamente à natureza ou a estrutura de
nossa racionalidade (racionalismo). Esta visão da prática científica, baseada no construtivismo,
não se fundamenta em nenhuma teoria sobre a realidade (ontologia), mas na prática do sujeito;
em seu próprio ponto de vista. Assim, as diferentes interpretações da natureza são baseadas na
interação do observador com o mundo; construções (constructos) que visam dar sentido aos
seus projetos subjetivos. O conhecimento científico não é uma descrição exata da realidade;
trata-se muito mais de uma teoria descritiva que na prática funciona.

Um dos fundamentos da teoria científica é baseado no atomismo de Demócrito: o átomo (ou


outras partículas e subpartículas) como sendo as últimas partes constituintes da realidade. A
epistemologia atomista leva a uma visão dualista da realidade, formada pela interação entre o
sujeito (o que observa a realidade) e o objetivo (tudo o que é observado). Outro fundamento do
pensamento científico é o método axiomático, herdado do geômetra Euclides e desenvolvido
pelo pensador francês do século XVII René Descartes. Segundo esta metodologia de análise –
mais tarde aplicada por Descartes também à geometria analítica – os problemas devem ser
desmembrados em partes, de modo a facilitar sua apreensão. Desta forma, segundo o autor,
pode-se ver a teoria científica como um conjunto de propostas (axiomas da antiga geometria
euclidiana), organizados na forma de um todo harmônico, capaz de explicar certo fato científico.

No entanto, ao longo do desenvolvimento da ciência e da matemática durante os últimos 350


anos, foram aparecendo fatos que gradualmente colocaram em cheque a visão ortodoxa da
racionalidade científica. O matemático Kurt Gödel (1906-1978) provou com seu Teorema da
Incompletude, que resumidamente diz que em um sistema de axiomas auto consistentes sempre
existirão proposições que não poderão ser comprovadas pelo sistema, ou seja, o sistema é
incompleto e incapaz de dar uma explicação total às questões que ele mesmo coloca. Outro
exemplo é dado pela física de partículas, com o Princípio de Indeterminação, elaborado pelo
físico Werner Heisenberg (1901-1976). Segundo este princípio, nunca será possível determinar
a posição e a velocidade de um elétron. Isto porque, o fóton emitido pelo equipamento de
medição já tira o elétron de sua posição original. O mesmo acontece se os cientistas tentarem
medir o sentido de sua rotação (spin).

Na física quântica também ocorrem fenômenos que colocam em cheque muitos aspectos da
suposta racionalidade da ciência: partículas que têm o mesmo comportamento como se
formassem pares, mesmo que situadas a longas distâncias. Outras, que têm um comportamento

37
completamente aleatório, imprevisível. Isso tudo sem falar nos paradoxos (aparentes) da Teoria
da Relatividade, segundo a qual objetos se deslocando a velocidades diferentes em relação a
um mesmo ponto de referência, têm diferente percepção do desenrolar do tempo.

Em suma, a visão de que a realidade material pode ser explicada através de teorias simples,
num encadeamento lógico que ganha em complexidade, não é mais possível. A matemática e a
física têm levantado tantas questões, que a ciência convencional – e com ela a epistemologia –
já não pode mais explicar a realidade em sua totalidade e de uma maneira harmônica.

Outro aspecto que o autor levanta é com relação à ética na ciência. O desenvolvimento científico,
além de não resolver grande parte dos problemas sociais, acabou criando novos; como os
impactos ambientais, as armas de destruição em massa ou o descontrole da prática científica
(os perigos da nanotecnologia e da inteligência artificial sem limites). Além disso, aponta o artigo
o problema da superespecialização de setores da ciência, gerando um conhecimento cada vez
mais fragmentado, compartimentado, com profusão de teorias; situação característica do modelo
axiomática de ciência.

O autor também coloca a questão sobre quais interesses estão por trás da prática científica.
Além de sua função utilitária de fazer prognósticos, a quem servem estes prognósticos? Se a
ciência reflete os projetos e interesses do observador, de que observador estamos falando?
Recomenda o autor que a ciência não seja distante da ética e que seja mais responsável e
reflexiva, considerando que há uma crescente desconfiança por parte da opinião pública em
relação à prática científica.

Paralelamente desenvolvem-se novas visões do pensamento científico; mais abrangentes e


englobando ideias como a transdisciplinaridade, o pensamento complexo, a holística,
ultrapassando os paradigmas do atomismo e do método axiomático. Ao invés de “prognosticar
para manipular e controlar” as novas correntes epistemológicas são orientadas para “mapear
para equilibrar e dar autonomia”. A frase do autor conclui nosso texto: “Ainda que tenhamos nos
concentrado neste ensaio apenas nos aspectos epistemológicos e éticos da ciência, ela é uma
atividade coletiva e social, sendo este aspecto extremamente importante para qualquer
consideração, pois a ciência só mudará quando os cientistas mudarem, quando nós,
coletivamente, aceitarmos e praticarmos novas formas de cientificidade.”

38
Como percebemos o mundo

Quem é que não se emociona, ou pelo menos fica admirado com uma bela paisagem natural?
O pôr do sol em uma tarde de outono, o céu estrelado à noite ou cheio de nuvens, à beira mar.
Montanhas cobertas por florestas em meio à neblina, a imensidão de um deserto, um lago
congelado... A natureza, não importa a paisagem, desde que inusitada, atrai nossa atenção e
admiração; espanto e arrebatamento. Desperta em nós um misto de emoções influenciadas por
nosso condicionamento cultural e lembranças individuais.

Interessante observar como nosso modo de perceber uma paisagem é bastante influenciado
pelas experiências que tivemos ao longo de nossa vida. No entanto, este aspecto quase não é
mais percebido em nossa civilização do século XXI, na qual a fotografia e o cinema, a TV e a
internet tornaram comuns para qualquer pessoa – mesmo para aquela que nunca tenha saído
de sua pequena cidade do interior – as paisagens mais distantes e diferentes. Todavia, há relatos
sobre nativos africanos, que levados pelos europeus para montanhas, não sabiam num primeiro
instante como interpretar a perspectiva inédita através da qual estavam enxergando a paisagem
abaixo, que sempre havia habitado. O mesmo ocorre ainda modernamente – apesar da
quantidade de informações de que dispomos –, quando alguém embarca em avião pela primeira
vez e observa a paisagem de cima.

Pelo que se sabe até hoje, somos a única espécie de animal que tem esta capacidade de
contemplar paisagens ou fenômenos naturais, de lhes dedicar atenção e sentir outras emoções,
além do medo. Várias espécies de mamíferos, aves e até répteis temem os clarões dos raios e
o ribombar dos trovões, a beira dos precipícios ou a escuridão, por causa de seu instinto de
preservação. O animal percebe em seu íntimo que aquela situação está ligada ao perigo.

O sentimento de espanto ou estranheza perante uma paisagem, cena ou fenômeno natural


incomum, deve ter contribuído para despertar em nossa espécie os sentimentos que levaram
nossos antepassados longínquos a iniciar as primeiras práticas de adoração, de reconhecimento
de forças ou entidades mais poderosas. Poderiam ter intuído que por trás de tais paisagens ou
fenômenos haveriam entidades, que premeditadamente as criaram ou os provocaram.

Voltemos agora ao ser humano do século XXI, vivendo e atuando em uma civilização mundial,
contando com ininterrupto fluxo de informações e dados sobre os mais diversos assuntos e
interesses. Um universo cultural e tecnológico baseado na ciência, cujas origens remontam à
Idade Moderna; período a partir do qual se impôs uma visão antropocêntrica do universo e da
história.

Foi preciso um demorado desenvolvimento da ciência e cultura, notadamente na física, na


psicologia, na biologia e na filosofia – além de uma série de outras disciplinas a elas relacionadas
– para que a visão antropocêntrica do universo, da história e do ser humano fosse colocada em
questão. Avanços em diversas áreas como a física quântica, a neurologia e a epistemologia
colocam em discussão, sob diversos aspectos, o antropocentrismo sobre o qual se baseou, para
o bem ou para o mal, todo o desenvolvimento cultural da sociedade ocidental desde o século
XV. O salto na cultura, que para a maior parte das pessoas ainda é imperceptível, talvez seja
equivalente àquele que ocorreu no início do período do Renascimento (século XIV), quando o
foco principal da cultura passou do teocentrismo para o antropocentrismo.

Os principais aspectos que colocam em discussão a visão antropocêntrica baseiam-se em


alguns pontos que, sem conhecimento aprofundado nas ciências envolvidas, tento resumir da
seguinte maneira:

- O princípio da incerteza da física quântica, enunciado pelo físico Werner Heisenberg (1901-
1976) afirma, colocado de maneira bastante simples, que a partir do momento em que tentamos

39
observar uma subpartícula, não conseguiremos mais determinar sua posição ou velocidade. A
descoberta não afetou somente a física quântica, e mostra como, a partir de um certo nível – o
nível subatômico – nossas certezas desaparecem e os fatos transforma-se em suposições.
Baseados nesta teoria alteram-se nossas visões do mundo e dos fenômenos. Isto quer dizer que
na escala humana os fatos e fenômenos são o que parecem ser, mas em escala quântica são
possibilidades. As implicações filosóficas são evidentes e não podem passar despercebidas;

- Ainda com relação às ciências, é atualmente bastante consistente a visão de que as teorias
científicas não são explicações da natureza e dos fenômenos. São muito mais maneiras de
interpretar ambos, natureza e fenômenos particulares, baseadas em determinadas informações
e experiências disponíveis num determinado momento histórico. A lei da gravitação universal de
Isaac Newton (1643-1727), explicou e ainda explica determinados fenômenos em certo nível e
ainda se aplica muito bem às situações comuns, seja na engenharia ou na física básica. Já para
a astronáutica, astronomia, a cosmologia e até as modernas aplicações tecnológicas, a lei da
gravitação é suplantada pela teoria da relatividade geral, de Albert Einstein (1879-1955). Esta
teoria física atende a todas as necessidades da ciência atual, mas não permanecerá para
sempre. O físico e filósofo da ciência Thomas Kuhn (1922-1996) escreveu em seu A estrutura
das revoluções científicas que a ciência tem “paradigmas”; teorias que explicam determinados
fatos em determinadas épocas, que são substituídos por outros paradigmas em períodos
sequentes;

- A psicologia, que como ciência independente da filosofia teve início na segunda metade do
século XIX, alcançou grande desenvolvimento com as teorias de Freud – ao estabelecer o
conceito de inconsciente – e demais psicólogos que a partir do século XX conduziram pesquisas
de laboratório, descobrindo diversos aspectos do funcionamento da mente. A partir dos anos
1980, juntou-se a este esforço a neurologia, ramo da medicina que estuda o cérebro e o sistema
nervoso, que vem dando importantíssimas contribuições ao conhecimento deste órgão. Estas
pesquisas revolucionaram a visão atual sobre o que é a mente e como funciona; a interação
mente/cérebro; a maneira como percebemos o mundo, a questão do livre arbítrio, etc.;

- A filosofia deixou de ser “a mais importante das ciência” para ser uma ciência entre outras, com
determinados objetos de estudo, adotando técnicas específicas. Não deixa de chamar a atenção
de que os estudos filosóficos atuais, ainda que se baseando em uma tradição própria milenar,
têm na ciência um grande aliado e quase que um parâmetro para muitas de suas conclusões.
Tendo o ser humano como sua principal meta em seus estudos, a filosofia moderna abandonou
em grande parte os conceitos metafísicos com os quais trabalhava no passado; a transcendência
foi substituída pela imanência.

As grandes teorias que dedutivamente tentavam explicar toda a realidade humana e universal
estão ultrapassadas. Pelo desenvolvimento da própria filosofia, pela experiência da história e
pelos exemplos da ciência, a maior parte dos filósofos atuais entende que não é mais possível
desenvolver sistemas que tentem abarcar toda a realidade. Não há mais “verdades eternas” ou
“princípios” a serem descobertos ou explicados – e muito menos implantados, como no caso
comunismo. A filosofia, assim como a ciência, concluiu que a realidade natural e humana é
complexa e que não pode ser abarcada por teorias abrangentes, com pretensão de serem
universais.

Conclui-se, apenas ressaltando estes três ramos do conhecimento atual, de que civilização
ocidental; a cultura ocidental que foi gestada no continente europeu e que ao longo da história
recebeu influências da África e da Ásia, navega por um amplo mar, do qual não enxerga mais os
limites. Chegamos a um ponto no qual já acumulamos muito conhecimento sobre o mundo e
sobre nós e, paradoxalmente, descobrimos que tudo o que sabemos não é definitivo e não é
exato; são conhecimentos mudarão ao longo do tempo, além de nunca representarem “o que é”,
sendo apenas uma interpretação. Isto nos possibilita saber: a) que o que sabemos ainda é muito

40
pouco em relação ao que sabemos que não sabemos; e b) o que sabemos é quase nada em
relação ao que nem sabemos que não sabemos.

No entanto, mesmo aquilo que pensamos saber, o que pensamos não saber e o que nem
pensamos não saber, é apenas conhecimento humano; produto das elucubrações de uma
espécie animal específica, surgida há cerca de 150 mil anos, em um dos bilhões de sistemas
solares existentes em uma galáxia de porte médio, dentre as bilhões de outras galáxias
existentes no universo; este talvez contemporâneo de bilhões ou trilhões de outros.

No passado acreditávamos que o universo e a vida humana haviam sido explicados pela crença.
Mais tarde pensamos que ambos, universo e vida humana, quase estavam sendo explicados
pela ciência. Hoje sabemos que crença e ciência são constructos, elaborações de nossas mentes
– das quais também pouco conhecemos – tentando explicar “algo”, o mundo, que nem
apreendemos efetivamente. O universo físico e o universo mental; os dois únicos possíveis para
nós, e nos quais existimos por um curto período, são muito, mas muito mais complexos do que
(vagamente) pensamos.

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Desafios atuais da filosofia política
Nimirum insanus paucis videatur, eo quod
Máxima pars hominum morbo jactatur eodem

(No entanto poucos os julgam loucos,


porque quase todos padecem do mesmo mal)

Horácio, Sátiras

Política é a prática e o conhecimento utilizados para tomar o poder e gerir um Estado ou


organização humana, com objetivos determinados. Toda instituição humana está sujeita a
regras, mesmo que estas não tenham sido escritas. Estas regras foram estabelecidas por grupos
ou indivíduos e refletem a ideologia – a maneira de administrar – que rege cada organização.
Clubes, igrejas, empresas, condomínios, associações, sindicatos, times de futebol, municípios e
estados; todos têm as suas regras e suas políticas (ou ideologias). A palavra tem origem na
língua grega, na qual o termo politiká é uma derivação da palavra polis que designa aquilo que
é público. Marilena Chauí apresenta três significados distintos para a palavra política:

“1. O significado de governo, entendido como direção e administração


do poder público, na forma de Estado. O senso comum social tende a
identificar governo e Estado, mas governo e Estado são diferentes,
pois o primeiro diz respeito a programas e projetos que uma parte da
sociedade propõe para o todo que a compõe, enquanto o segundo é
formado por um conjunto de instituições permanentes que permitem a
ação dos governos.” (CHAUÍ, 2006, p. 346)

“2. O significado de atividade realizada por especialistas (os


administradores) e profissionais (políticos), pertencentes a um certo
tipo de organização sociopolítica (os partidos), que disputam o direito
de governar, ocupando cargos e postos no Estado.” (Ibidem, p. 347)

“3. O significado, derivado do anterior, de conduta duvidosa, não muito


confiável, um tanto secreta, cheia de interesses particulares
dissimulados e frequentemente contrários aos interesses gerais da
sociedade e obtidos por meios ilícitos ou ilegítimos.” (Ibidem p. 347).

A política em sua forma mais simples, não é atividade exclusivamente humana. O primatólogo
holandês Frans de Waal, autor de diversas publicações sobre o comportamentos de macacos –
principalmente chimpanzés e bonobos – descreve várias situações onde já se encontra uma
primitiva prática política. Esta, portanto, não é exclusiva da espécie homo sapiens, mas
provavelmente influiu e foi influenciada pelo comportamento gregário humano, tendo sido
aprimorada através dos variados processos culturais.

A filosofia política é a disciplina da filosofia que envolve o estudo dos fenômenos políticos. A
disciplina surgiu quando os estudos filosóficos passaram a se concentrar no ser humano,
enfocando suas atividades e convivência com os outros. Esta atenção aos temas humanos
apareceu pela primeira vez na filosofia da Grécia antiga, no final do 5º século AEC, com os
filósofos da escola sofista. O primeiro e mais famoso pensador a tratar exclusivamente dos temas
humanos foi o ateniense Sócrates (470 – 399 AEC), mestre de Platão. Este último foi o primeiro
filósofo a se ocupar especificamente da política; da administração de um estado. Seus escritos
estabeleceram a filosofia política (ou filosofia da política) como disciplina específica dentro do
estudo da filosofia.

42
Segundo o filósofo Norberto Bobbio (1909-2004), existem quatro caracterizações principais da
filosofia política. A primeira é aquela que busca a melhor forma de governar. Nesta categoria se
incluem todos os pensadores que procuraram construir ou idealizar um estado ideal, como
Platão, Thomas Morus, Thomas Müntzer, entre outros. Platão foi o primeiro filósofo a apresentar
o quadro de um estado ideal (em sua avaliação), cujo principal objetivo era promover uma
convivência harmônica entre os homens, submetendo-os às leis e dividindo-os em hierarquias.
Segundo alguns autores, esta ordenação do Estado platônico é na realidade uma metáfora da
alma humana: as três classes representam tendências inatas no homem que levam a alma para
o desejo, para a ira e para a sabedoria. Sob esta ótica, a obra A República, apesar dos detalhes
quanto ao governo que apresenta, é uma analogia sobre a vida humana, sob a ótica das Ideias.
Sobre este ponto escreve o historiador alemão Werner Jaeger:

“O Estado de Platão versa, em última análise, sobre a Alma do


Homem. O que ele nos diz do Estado como tal e da sua estrutura, a
chamada concepção orgânica do Estado, onde muitos veem a medula
da República platônica, não tem outra função senão apresentar-nos a
“imagem reflexa ampliada” da alma e da sua estrutura respectiva. E
nem é nunca atitude primariamente teórica que Platão se situa diante
do problema da alma, mas antes numa atitude prática: na atitude do
modelador de almas. A formação da alma é a alavanca com a qual ele
faz o seu Sócrates mover todo o Estado.” (Jaeger: 2003, p. 752).

As diversas formas de governo, Platão trata mais profundamente em suas obras A Política e As
Leis. Nestes escritos Platão considera a hipótese – bastante real, aliás – de que nem todos os
Estados teriam governantes perfeitos como a sua República.

A segunda categoria de filosofia política, segundo Bobbio, é aquela que procura identificar o
fundamento último do poder. Nesta categoria se incluem todos os pensadores que se
preocuparam com a origem do Estado, como Hobbes, Locke e Rousseau. Para Thomas Hobbes
(1588-1679), o Estado é efetivamente a única possibilidade de os homens poderem viver de uma
maneira relativamente aceitável sobre a Terra. Em seu estado natural, utilizando seu direito
natural a tudo que querem, os homens necessariamente viveriam em constante guerra entre si.
Decididos a abrirem mão de parte de seus direitos naturais em benefício de outras vantagens,
os homens fundam o Estado para garantir a paz e a possibilidade de alcançar os seus outros
objetivos. Nesse processo, segundo Hobbes, restringirmos nossa liberdade natural, nos
submetendo a um poder soberano, formado por um indivíduo (monarquia), um grupo
(aristocracia) ou todo um povo (democracia). Hobbes não é necessariamente defensor de uma
monarquia absolutista, mas de um estado, seja de que tipo for, com força para manter a coesão
social.

A terceira categoria de filosofia política refere-se a todos os pensadores que se perguntam sobre
características peculiares da política, ou seja, o que distingue esta atividade humana das outras.
Entre os filósofos representantes desta escola distinguem-se o italiano Benedetto Croce (1866-
1952) e o alemão Carl Schmitt (1888-1985).

A quarta classificação de filosofia política, segundo Bobbio, interpreta a filosofia política como
uma ciência destinada ao estudo das linguagens e dos métodos da ciência política. Alguns
pensadores desta escola interpretaram a filosofia política como tendo função de pesquisa
descritiva, baseada nos critérios do empirismo, isenta completamente de valores. Sobre esta
corrente de pensamento da filosofia política, escreve Abbagnano:

“Nascida como teoria do ‘bem viver’ e como ‘ciência coordenadora e


arquitetônica’ da convivência humana, a filosofia política acabou assim
por reduzir-se a um filosofar asséptico e metateórico sobre a política e

43
sobre suas estruturas linguísticas e conceituais.” (Abbagnano, 2007,
p. 906)

À parte a classificação elaborada pelo pensador Norberto Bobbio, a filosofia política teve vários
temas como foco central de suas preocupações, ao longo de sua bimilenar história. Assim,
associado a determinados assuntos, podemos elencar filósofos que sobre eles escreveram:

- O tema do “bem comum”, característica da filosofia política de Aristóteles (384 – 322 a.C.;

- A “servidão voluntária” (a irracionalidade da submissão a um poder absoluto) analisada por


Etienne de La Boétie (1530-1563);

- Os limites da organização do Estado frente ao indivíduos, analisada por pensadores como


Hobbes, John Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755) e Jean Jacques Rousseau (1712-
1778);

- As relações entre a economia, o Estado e a Moral, que aparece nas obras de Nicolau Maquiavel
(1469-1527) e Augusto Comte (1798-1857);

- A questão da liberdade individual, tema nos trabalhos de John Stuart Mill (1806-1873),
Raymond Aron (1905-1983) e Norberto Bobbio;

- Os temas da justiça e do direito, discutidos por Immanuel Kant (1724-1804), Georg W.F. Hegel
(1770-1831), John Rawls (1921-2002) e Jürgen Habermas (1929-).

No século XX, sob influência de pensadores como Hanna Arendt, Jürgen Habermas, Norberto
Bobbio e, principalmente, John Rawls, a filosofia política deixou de ser disciplina descritiva e
voltou a se preocupar com os grandes temas. A questão da liberdade política, da justiça social,
dos direitos individuais, da autonomia dos povos, das relações internacionais, entre outros, são
assuntos discutidos pela moderna filosofia política. Sob a égide da ética e da epistemologia,
filósofos discutem a natureza das leis, dos governos, a origem da organização social e a melhor
forma de convivência entre os indivíduos e os povos.

O mais destacado pensador da moderna filosofia política é o americano John Rawls, autor da
obra Uma teoria da justiça (1971) que influenciou profundamente todos os pensadores que
posteriormente vieram a falar sobre o tema. Rawls, influenciado por Kant é um grande defensor
da liberdade para o indivíduo e da igualdade de oportunidades (sociais, econômicas e políticas)
para todos. O individualismo e o liberalismo econômico implícitos na filosofia de Rawls têm sido
motivo de crítica de várias correntes (marxistas, anarquistas) ao longo dos últimos anos.

Referências
Abbagnano, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo. Editora Martim Fontes: 2007, 1210 p.
Chauí, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo. Editora Àtica: 2006, 424 p.
Filosofia Política em <www.sites.google.com/site/filosofiapopular/filosofia/filsofia-política>.
Acesso em 29/08/2013
Jaeger, Werner. Paidéia. São Paulo. Martins Fontes: 2003, 1413 p.
Primatas têm algo próximo ao senso de justiça humano. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2013-jul-26/ideias-milenio-frans-waal-primatologo-holandes>. Acesso
em 29/08/2013

44
Direitos humanos: origens e fundamentos

Existem diversas interpretações sobre a origem e o desenvolvimento da ideia dos direitos


humanos. No entanto, dada a complexidade do assunto, e por ser difícil se traçar uma gênese
das ideias e conceitos filosóficos, apresentaremos a seguir um resumo do desenvolvimento mais
provável do conceito, de acordo com nossa visão.

Não resta dúvida que o conceito dos direitos humanos muito deve ao cristianismo. A religião
cristã foi a primeira que em sua doutrina estabelecia um relacionamento direto entre a criatura e
o Criador; ideia esta que fortalecia a noção da responsabilidade individual da criatura perante o
Criador. Tanto assim, que – segundo o que estabeleceu a tradição cristã no Concílio de Nicéia
em 325 – o próprio Deus fez-se homem e como este viveu, sofreu e morreu. A ideia era
revolucionária no universo religioso da época. Não mais os deuses egípcios ou da Babilônia, os
gregos e romanos, que afastados dos homens raramente se preocupavam com o indivíduo e
desconheciam a realidade humana sob ponto de vista do homem concreto e individual; homem
“de carne, sangue e ossos”, como escrevia o filósofo Miguel de Unamuno.

O cristianismo trouxe a noção de ser humano para um patamar mais alto. Deus se (pre)ocupava
com o fiel individualmente e a Igreja era união de todos os fiéis, membros da comunidade de
crentes. Muito diferente da impassibilidade dos deuses antigos, que através de seus sacerdotes
tratavam com uma massa de servidores e cujo contato se baseava principalmente em sacrifícios
e oferendas, para aplacar a ira ou obter a simpatia de uma divindade instável.

No entanto, esta relação que existia entre o crente e a divindade no início do movimento cristão
foi sendo deturpada ao longo da história da igreja católica. Esta se considerava a única detentora
da verdade cristã, da mensagem oficial do Cristo, e como toda instituição hegemônica criou
verdadeiras cadeias de comando entre o fiel e Deus, formada por sacerdotes, bispos, arcebispos,
cardeais e o pelo papa. A hierarquia católica era responsável exclusiva pela manutenção e o
ensino da doutrina, pela distribuição dos sacramentos e, principalmente, pelo contato da Igreja
(a totalidade de seus membros o “corpo dos fiéis”) com Deus.

No século XVI, eclodem mudanças que há muito tempo estavam em gestação na sociedade
medieval europeia. Na economia, o sistema de produção feudal entra em decadência, sendo
gradualmente substituído por uma economia baseada no mercantilismo. A consequência política
dessa mudança é que os senhores feudais perdem sua força, passando a ser comandados por
um único rei, que se torna o chefe da nação. No aspecto cultural o Renascimento, surgido na
Itália com a revalorização da cultura clássica grega e romana, difunde-se por grande parte da
Europa, formando uma nova classe de intelectuais, críticos de muitos aspectos do cristianismo
católico. Erasmo de Rotterdam, chamado de "Príncipe dos Humanistas", foi o maior
representante deste novo tipo de intelectual, bastante crítico ao catolicismo. Um de seus textos
diz, por exemplo: "O cristianismo hoje, em lugar de pregar Jesus Cristo, deixa no esquecimento
o seu nome e o põe de lado com leis lucrativas, alteram a sua doutrina com interpretações
forçadas e, finalmente, o destroem com exemplos pestilentos."

No aspecto religioso ocorre a Reforma protestante; concretização de varias mudanças no


cristianismo, tanto na doutrina quanto na instituição, que já vinham sendo fomentadas desde o
século XIV por toda a Europa. Martinho Lutero, um monge agostiniano, que colocou em
discussão aspectos da doutrina católica e se rebelou contra uma hierarquia corrompida por
práticas desonestas, foi o líder desta verdadeira revolução. Em sua interpretação do cristianismo,
Lutero dizia que o aspecto mais importante da vida do crente era a fé – sola fide (somente a fé).
Por esta apenas o homem poderia se salvar, e não através das obras - como enfatizava a
doutrina católica depois de ter incorporado muitos aspectos da filosofia de Tomás de Aquino. A

45
fé, no entanto, era algo concedido por Deus ao homem; este só poderia aceitá-la e passar a viver
inspirado por ela.
A nova interpretação de Lutero colocava em cheque toda a estrutura católica, baseada na
hierarquia, nos sacramentos e na exclusividade de interpretação das escrituras (e consequente
desenvolvimento da doutrina). O novo fiel não poderia e não precisaria mais usar de
intermediários para contatar a divindade; ele sozinho deveria colocar-se perante Deus, tornando-
se mais responsável e autônomo.

A Reforma Protestante influenciou profundamente o pensamento da civilização ocidental; sua


filosofia e a maneira desta encarar a dignidade e a liberdade do ser humano. Grandes filósofos,
principalmente da escola alemã como Leibniz, Kant, Schelling, Hegel, Feuerbach e Nietzsche
levaram a interpretação cristã do homem aos extremos.

Nos anos 1960 a escola teológica da "morte de Deus", fortemente influenciada pelos teólogos e
filósofos alemães do início do século XX, teorizava que o cristianismo necessariamente levaria a
uma completa imanência de Deus e à total secularização da sociedade. Em relação a isto o
filósofo Giuseppe Cantarano, pesquisado da Universidade da Calábria, escreve em artigo no
jornal L`Unità:

"Do céu do cristianismo, o sagrado - aquela dimensão do divino


inacessível e indiferenciada, temível e ao mesmo tempo atraente -
teria saído em êxodo. Emigrado para a terra. Já que, fazendo-se
homem, Deus não perde apenas a transcendência. Com ela, Ele
também perde irremediavelmente a sua sacralidade." (Cantarano,
2013)

No aspecto político, a gênese dos Direitos Humanos remonta ao filósofo inglês, John Locke
(1602-1704), considerado o precursor do liberalismo político. Ponto importante de sua doutrina
política é que:

a) Todos os homens ao nascerem tinham direitos naturais; direito à vida, à liberdade e à


propriedade;

b) Para garantir estes direitos, os homens acordaram entre si formarem governos, que
garantiriam seus direitos naturais;

c) Esquecidos estes direitos inatos e este contrato social originário, surgiram os reis por direito
divino - situação que, segundo o filósofo, absolutamente não existe e deve ser combatida.

O liberalismo de Locke influenciou a Revolução Gloriosa, ocorrida na Inglaterra em 1688,


abolindo o absolutismo e introduzindo a monarquia parlamentarista. O pensamento político do
inglês também foi parcialmente absorvido por filósofos franceses, que colocaram as bases
ideológicas da Revolução Francesa (1789) como Voltaire, Rousseau, Diderot, D`Alembert e
muitos outros. Críticos dos reis absolutistas da França e de outras nações, estes pensadores
foram autores de obras que analisavam e procuravam identificar as origens das monarquias
autocráticas, apontando-lhes os erros.

As ideias liberais inglesas também exerceram forte influência sobre a elite econômica da mais
importante colônia britânica, as "Treze Colônias" da América do Norte. Depois de uma guerra
revolucionária que se estendeu de 1775 a 1783, na qual a nascente nação também recebeu
apoio da França, Espanha e dos Países Baixos - inimigos históricos da Inglaterra - os Estados
Unidos se tornaram o primeiro país do mundo a dispor de uma constituição embasada por
princípios democráticos. A Declaração da Independência, documento votado e ratificado pelo
Congresso em 4 de julho de 1776, contêm uma das mais famosas frases da língua inglesa, que
exerceria muita influência sobre movimentos sociais ao longo da história desde então:
"Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais,

46
que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade
e busca da felicidade."

Em 14 de julho de 1789, com um sistema monárquico odiado pelo povo e passando por uma
crise econômica que faz parte do povo passar fome, ocorre a Revolução Francesa, iniciada com
a tomada da prisão da Bastilha, ocupada por muitos opositores do regime e desafetos pessoais
do rei Luiz XVI. A revolta passa por diversas fases, alternando períodos de relativa calmaria
social com outros de extremo terror, com milhares de execuções públicas. A comoção social
termina definitivamente em 9 de novembro de 1799, quando ocorreu o chamado "golpe de 18 de
Brumário" (extensamente analisado por Karl Marx), durante o qual as forças conservadores
voltam a tomar o poder, para logo depois instituírem uma ditadura. Foi, no entanto, em 2 de
outubro de 1789 que a Assembleia Nacional Constituinte da França revolucionária aprovou os
17 artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento completamente
inovador para a época, ultrapassando inclusive a Declaração americana.

Em 1948, passados os horrores da 2ª Guerra Mundial (1938-1945) e criada a Organização das


Nações Unidas - ONU (1945), os países membro resolvem promulgar a Declaração Universal
dos Direitos Humanos (1948). A declaração começa em seu primeiro artigo com a seguinte
declaração: "Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de
razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade".

Passados 67 anos desde sua promulgação, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
exerceu muita influência na história. Seus princípios foram incorporados às constituições de
países, às instituições e, consequentemente, à consciência dos cidadãos da maior parte dos
países. A questão de que se estes princípios são de inspiração divina, ou o simples coroamento
de um processo evolutivo da cultura que tem suas origens na biologia, pouco importa. O
importante é de que os princípios dos direitos humanos são considerados por grande parcela da
humanidade como conceitos fundamentais para a convivência e para a condução de uma vida
digna.

Ainda com relação à questão da validade universal dos direitos humanos não é possível, penso,
transigir. É evidente que esta é uma posição filosófica pessoal sem validade universal, assim
como o relativismo cultural. Se existem argumentos suficientes para condenar certas práticas
consideradas degradantes – a opressão da mulher, a homofobia, os castigos brutais e a tortura,
entre outros - por outro lado também há sociedades onde estas práticas são fundamentadas na
religião, tradição e na prática política.

Nossa sociedade, no entanto, optou pelos direitos humanos, seguindo a tradição deixada pelo
cristianismo, pela filosofia liberal, pelas lutas dos povos por liberdade e dignidade. Milhões de
seres humanos que nos antecederam na história, sacrificaram bens, saúde e a própria vida em
nome destes direitos.

É neste contexto que toma significado a frase de Sartre: "O importante não é o que fizeram de
nós, mas o que nós próprios faremos com aquilo que fizeram de nós”. Para este filósofo a
liberdade humana tem valor absoluto. O ser humano, segundo Sartre, está "condenado a ser
livre", sendo responsável pela construção de sua vida e da sociedade em que vive.

“Em sua consciência, o homem está direcionado para algo que não é
ele próprio, ou seja, em sua consciência está sempre fora de si; voltado
para fora de si mesmo. Disso resulta que na concepção de Sartre a
consciência do homem, o “ser-para-si”, é vazia, baseado no nada
(melhor seria dizer no “vazio”). Com isso, Sartre deduz que o homem
não é determinado por uma essência anterior, algum tipo de “natureza
humana”, seja do tipo que for. Ao contrário, como a consciência do
“ser-para-si” é vazia, e direcionada para o mundo, para um “ser que

47
não é o que ele é”, o homem é determinado por sua existência e só
cria uma essência a partir de seus projetos e de suas ações, de sua
relação com o mundo – o “ser-no-mundo”.

É a partir desta estrutura, segundo Sartre, que o homem pode ser


efetivamente livre. Para Sartre, como para outros existencialistas,
existir é para o homem fixar alvos, persegui-los, projetar-se a si próprio
em direção ao futuro. É ultrapassando os obstáculos que impedem a
consecução destes objetivos, que o homem é livre. É através do
transcender dos obstáculos que o “ser-para-si”, com base no nada
(vazio) de sua existência, é livre a cada momento – já que Sartre nega
o efeito de condicionamentos passados sobre a consciência. Desta
forma Sartre afirma que “o homem é condicionado a ser livre”; por sua
própria condição ontológica. Mas a liberdade só se forma através do
confronto, do embate; daquilo que Sartre chama de “situação”,
obstáculo. Por isso o filósofo afirma que “só existe liberdade em
situação e só há situação por meio da liberdade”. (Rose, 2011)

Assim, o homem é completamente livre para fazer de si o que quiser, seguindo os ditames de
sua consciência. Possa a sociedade brasileira neste importante momento histórico ter
discernimento para conduzir-se cada vez mais seguindo os princípios dos direitos humanos.

Referências:
Declaração da independência dos Estados Unidos. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_da_Independ%C3%AAncia_dos_Esta
dos_Unidos>. Acesso em 21/06/2012.
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_Homem_e_do_Cida
d%C3%A3o>. Acesso em 21/6/2012.
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
<http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em
21/6/2012.
Erasmo de Rotterdam. Disponível em:
<http://pensador.uol.com.br/autor/erasmo_de_rotterdam/>. Acesso em 21/6/2013.
Galimberti e a religião do céu vazio. Disponível em:
<http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521063-galimberti-e-a-religiao-do-ceu-vazio>. Acesso em
17/06/2013.
John Locke. Disponível em:
< http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Locke>. Acesso em 21/06/2012
Sartre e a liberdade. Disponível em:
<http://ricardorose.blogspot.com.br/2011/01/sartre-e-liberdade.html>. Acesso em 21/6/2013.

48
Divagando sobre o tempo

"Do mesmo modo, o triste plantador de uma vinha hoje velha e enfezada acusa a ação do tempo,
queixa-se repetidamente da sua geração e resmunga que os homens antigos, cheios de piedade,
passavam uma vida fácil num pequeno campo, quando era menor a quantidade de terra que
cabia a cada um: e não vê que tudo se enfraquece pouco a pouco e se dirige para o esquife,
fatigado pelo decrépito tempo da idade."

Tito Lucrécio Caro - Da natureza

Platão falava “que tudo está se tornando, nada é”.

Lembro-me de quando era criança e passava férias na praia. Ao lado de nossa casa havia uma
família de caiçaras, que morava em uma casa de madeira, um pouco melhor que um barraco.
Pois bem, passou o tempo e alguns anos depois estas pessoas construíram uma casa de tijolos.
Viveram lá por mais alguns anos. Depois, morreu o patriarca da família e eles também se
mudaram, vendendo a casa para veranistas de São Paulo.

Pergunto-me onde está aquela casa de madeira que primeiro conheci e como tudo foi se
transformar em outra coisa, no mesmo espaço, mas completamente diferente, habitado por
outros indivíduos, com histórias completamente diferentes.

Como entender esta mudança?

É este processo de mudança completamente aleatório, sem qualquer vínculo com o passado?
Em outras palavras, o que uma coisa – neste caso a casa de madeira, habitada por caiçaras,
que lá viviam suas vidas – tem a ver com o que existe lá agora, a casa de tijolos, eventualmente
visitada por pessoas em férias e vazia na maior parte do tempo, fora da época de temporada?

Existe uma ordem de mudança nisto, ou seja, há uma maneira de, partindo do presente,
fazermos uma ideia do passado? Talvez olhando o fato de certa maneira sim, com relação à
substituição da casa de madeira pela de tijolos. O que não sabemos é porque esta mudança
ocorreu – como saberemos o que levou os antigos habitantes construir uma casa de tijolos e
depois vendê-la?

Isto nos leva a outra questão, muito antiga e não respondida ainda, mas tratada por inúmeros
filósofos e físicos: o que é o fluxo do tempo? Penso que não há fluxo nenhum. O que ocorre são
transformações na matéria; movimento no espaço, mudanças na aparência (quebra,
envelhecimento, doença, destruição por substâncias ou organismos, por exemplo). Trata-se,
essencialmente, de transformação da matéria, principalmente no nível atômico e subatômico (as
menores partículas das quais é constituída a matéria).

Imagino que se fosse possível cessar completamente o movimento dos átomos, dos elétrons,
fótons e todas as outras subpartículas, não haveria mais qualquer movimento na matéria, não
ocorreriam mais interações e transformações e o que nós chamamos de fluxo do tempo pararia.
Não havendo mais qualquer tipo de transformação na matéria, não há mais escoamento do
tempo. Um universo congelado.

Mas, voltando ao exemplo inicial, da casa do caiçara transformada em casa de praia. A


transformação das coisas ocorre porque na natureza (penso aqui nos fatores não-humanos)
existem duas principais tendências: a entropia crescente, ou seja, a desagregação e perda de
energia e organização, como afirma o segundo princípio da termodinâmica. A outra tendência,
presente em todos os seres vivos, é a tendência de aumentar e manter a organização – a entropia

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decrescente. (Fica a pergunta se formações cristalinas podem ser incluídas nessa segunda
tendência). Todos os seres vivos lutam contra a desagregação, representados pelo desgaste do
organismo (gradual falência dos órgãos e demais sistemas de manutenção da vida) e doenças
(ataques de outros seres vivos, como bactérias e fungos e não vivos, como os vírus).

50
Dualismo e sentido da história

O filósofo Heráclito de Éfeso (535-475 AEC) dizia que tudo muda, uma coisa se transforma em
outra e que nunca conseguimos entrar no mesmo rio; as águas não são as mesmas e nós
também não. Seu colega quase contemporâneo da cidade de Eléia, no sul da Itália, Parmênides
(530-460 AEC), dizia que só existia o Uno, que a mudança era aparente. Mais tarde, Platão (428-
348 AEC), influenciado por ambos, criou o mundo dos Ideais. Este é eterno e nunca muda,
contraposto ao mundo onde vivemos, que Platão considerava uma cópia sempre efêmera e
mutável do mundo eterno e imutável dos Ideais.

O mundo ideal de Platão tinha influência dos cultos órficos e foi incorporado conceptualmente
pelo nascente cristianismo. Esta religião já continha uma carga considerável de dualismo, que
herdou em sua maior parte dos conceitos dualistas da religião judaica. O judaísmo trazia em seu
bojo conceitos religiosos dualistas diversos: de que haveriam dois princípios, um bom e outro
mau, tentando dominar o mundo; a ideia de que ocorreria um Final dos Tempos, quando o
princípio Bom e o Mau travariam uma batalha definitiva pelo domínio do universo; a crença de
que os mortos ressuscitariam para serem julgados e separados em salvos e condenados. Todas
são ideias que o judaísmo incorporou da religião persa, o zoroastrismo.

No judaísmo as ideias religiosas originadas no zoroastrismo e assimiladas depois do exílio


babilônico (século VI AEC) concretizaram-se em concepções como a implantação do um Reino
de Deus, em contraposição ao mundo real da época, no qual os judeus eram dominados por
uma cultura grega e por uma política romana. A instituição do Reino de Javé significaria a
destruição do império romano e o domínio de um reino judeu comandado por Javé. Estas ideias
foram defendidas pelas correntes apocalípticas, que mais tarde também exerceram forte
influência no nascente cristianismo, como mostra o livro cristão do Apocalipse. As crenças
apocalípticas e escatológicas eram correntes entre grupos judeus do século II AEC até o século
I EC, como os fariseus, os essênios e os zelotes.

O cristianismo em sua fase de estruturação, entre os séculos II e V, absorveu conceitos


platônicos através da filosofia de Plotino (204-270 EC), corrente nas principais cidades do império
romano no início da era cristã. Líderes dos primeiros séculos da religião, como Orígenes e
Agostinho, ajudaram a construir conceitos e dogmas do cristianismo, fortemente influenciados
pela filosofia de raízes platônicas de Plotino. Assim, o dualismo herdado pelo cristianismo do
zoroastrismo através do judaísmo, passou a permear a doutrina cristã, com apoio da doutrina de
Platão, transmitida por Plotino.

Foi, provavelmente, sob influência do zoroastrismo persa que o judaísmo passou a enxergar a
história - mais especificamente a história do povo judeu - como tendo um objetivo; como um
processo em direção à implantação do Reino de Deus na terra, junto com a vinda de um Messias.
Interessante notar, que o nascente cristianismo interpretou este fato de maneira diferente. Isto
porque ainda na segunda metade do século I EC, passou a firmar-se a ideia de que Jesus de
Nazaré era o Messias prometido. Assim, de certo modo, para a primeira e segunda geração de
cristãos restava apenas esperar pelo "Fim do Mundo", pela Parúsia; quando todos os mortos
ressuscitariam para um julgamento e seria implantado o reino de Deus, com a vitória de Jesus
Cristo sobre o Demônio. Muitos cristãos de primeira hora, como Paulo, estavam certos de que
ainda em vida veriam a chegada do Fim do Mundo.

Mas, a vinda do Reino demorava para chegar, apesar do que diziam os escritos apocalípticos -
e haviam vários Apocalipses circulando na região do Mediterrâneo no início da era cristã entre
as comunidades de crentes. Assim, aos poucos, as igrejas locais se agruparam em torno de uma
igreja única, com crenças (quase) comuns, com seus ritos e sua doutrina.

51
Desta forma, a nascente igreja cristã incorporou do judaísmo as noções escatológicas e dos fins
últimos do homem e da filosofia grega o platonismo dualista. A ideia grega de uma história cíclica
não foi adotada pelos pensadores cristãos, já que esta não coadunava com a visão herdada do
judaísmo.

Desde o início, para o cristianismo a história humana tinha um sentido que girava em torno da
mensagem de Jesus - ou daquilo que as comunidades cristãs primitivas acreditavam que fosse
sua pregação. O sentido da história da humanidade dizia respeito especificamente a Cristo e seu
reino, e a atitude que cada ser humano teria em relação à sua mensagem. A ideia filosófica de
que a história tivesse um sentido, uma direção, um desenvolvimento, foi defendida
principalmente por Santo Agostinho em sua obra A Cidade de Deus. Nessa o patriarca da Igreja
interpreta a história como sendo basicamente uma luta do Bem contra o Mal. Em suas ações,
cidadãos, reis e estados se perfilam de um lado ou de outro desta titânica luta. No final Deus,
que é o Bem Supremo, vencerá o Demônio, quando então se dará fim à história como a
conhecemos.

Ao longo da Média surgiram diversas interpretações, populares e intelectuais, deste processo


que em pouco tempo, esperava-se, levaria à Parúsia, ao Final dos Tempos. Perto do ano 1000
a Europa passava por uma crise econômica e social bastante grave. A Igreja enfrentava
problemas internos. Interpretações de partes da Bíblia pareciam predizer que na virada do
primeiro milênio da história da cristandade ocorreria a implantação do Reino de Deus, com todas
as suas implicações. Assim, alguns anos antes da virada do milênio, espalharam-se os
movimentos formados principalmente por camponeses, pobres e peregrinos, que defendiam uma
volta à vida ascética dos Evangelhos e o arrependimento, frente ao Julgamento Final iminente.

Intelectuais da Igreja mais tarde também incorporaram a ideia de que Deus era o "senhor da
História", mas de uma forma bem mais sofisticada. Joaquim de Fiore (1135-1202), monge
cisterciense italiano, criou, baseado no livro do Apocalipse, a teoria das Três Eras. Fiore dividia
a história humana em três períodos distintos: o período do Pai, o do Filho e pregava a chegada
(em sua época, no século XIII) do período (ou reino) do Espírito Santo. A Era do Pai correspondia
ao período histórico relatado pelo Antigo Testamento, o período de obediência aos mandamentos
de Deus. O período do Filho compreendia o tempo desde o aparecimento do Cristo até 1260,
quando o homem havia se tornado filho de Deus.

O terceiro tempo referia-se ao do Espírito Santo, o mais importante da história, que seria aquele
no qual a humanidade teria contato direto com Deus e quando a ordem eclesiástica seria
substituído pela “ordem do justo”, que na época, se pensava, referia-se ao aparecimento da
ordem religiosa franciscana. Este terceiro período da história da humanidade seria de paz e nele
a humanidade teria um contato diretor com a divindade, o que eliminaria a necessidade de uma
estrutura eclesiástica. A doutrina de Fiore, evidentemente, foi condenada pela Igreja e pelos
escritos de seus teólogos oficiais, como Tomás de Aquino. Os conceitos principais de Fiore, no
entanto, continuaram presentes na ideologia de diversos movimentos milenaristas durante a
Idade Média e o Renascimento. As ideia das “Três Eras Históricas” exerceram forte influência
em pensadores posteriores, como o historiador italiano Giambattista Vico (1668-1744) e o filósofo
alemão Georg F. Hegel (1770-1831).

A história, que para os gregos como para várias outras culturas (hindus, chineses, entre outros)
era um processo cíclico, formada por fases que regularmente se repetiam, assumiu uma forma
linear, tanto no judaísmo quanto no cristianismo. A origem disso encontra-se, provavelmente,
nos mitos da criação que eram comuns a diversos povos do Oriente Médio e que também foram
incorporados pelos antigos judeus ao seu corpo de crenças. Os judeus, provavelmente em
tempos mais recentes, transformaram este em um mito fundador de seu povo, como vários outros
povos o fizeram, e passaram a ver a sua história de uma maneira linear - visão fortalecida pelos
dois exílios e pelas profecias da reinstituição do reino de Israel através da interferência de Javé.
A história do povo judeu tinha assim seu mito de Criação e do surgimento de seu povo, com as

52
histórias de Abraão e Moisés. Mais tarde, após o segundo exílio, esta visão teleológica da história
foi ainda mais fortalecida com as visões apocalípticas, cujo teor era essencialmente de destruição
da dominação grega e mais tarde romana, e instituição do domínio de Javé.

Tudo isto foi incorporado pelo cristianismo e através dele à filosofia cristã. A discussão se a
filosofia moderna ainda pode ser chamada de cristã ainda está em aberto. Inegavelmente nossa
filosofia, mesmo aquela posterior à Revolução Francesa, tem muitos pressupostos que tiveram
sua origem na cultura cristã.

A filosofia ocidental contemporânea teria conseguido equacionar a eterna discussão entre


Heráclito e Parmênides - a dicotomia entre o mundo das Ideias (ou dos Ideais) e o mundo criado
pelo Demiurgo, segundo Platão? Seria possível conciliar a visão de ambos os filósofos gregos?
Sob ponto de vista de Heráclito tudo muda, mas para Parmênides é apenas a superfície que
muda, o Uno não. O que seria este Uno? O fundamento do universo? Sob certo aspecto a história
muda, mas, de certa forma permanece a mesma. Dependendo dos parâmetros que
consideramos, Heráclito está certo; tendo por base outros aspectos, a razão fica com
Parmênides. É, por exemplo, o caso da dialética de Hegel, que numa primeira visão parece ir de
encontro ao pensamento de Heráclito. No entanto, todo o processo dialético da história é a
manifestação e crescente presença do "Espírito Absoluto", ou seja, a velha ideia do Uno, já
defendida por Parmênides.

Influenciada pelo cristianismo e pelo filosofia, a civilização ocidental incorporou dois conceitos
bastante importantes na história da cultura: a ideia de que existem dois mundos; um material e
o outro oculto, “espiritual”, como afirma a religião cristã e a metafísica. O segundo conceito diz
respeito à história, quando afirma que o desenrolar das ações humanas, dos grupos e da
civilização, tem um direcionamento e finalidade. Para a religião esta finalidade é algum tipo de
união com a divindade, seja no mundo ou em um plano espiritual.

----------------------------------------------------------------------

No entanto, o pensamento moderno acabou com o dualismo “matéria – espírito”, pelo menos
como o enxerga a religião. A tendência no pensamento filosófico de uma forma geral, pelo menos
a partir do final do século XIX é o de um monismo materialista ou fisicalista. Assim, para a
predominante linha filosófica não existe nenhum mundo ou dimensão além deste que vivemos,
dominado pela matéria e pela energia. Com relação ao sentido da história é conceito comum
entre a maioria dos pensadores contemporâneos, que a história não tem qualquer sentido além
daquele que o homem possa lhe dar. Diferente do que pensam as religiões, a visão moderna,
influenciada principalmente pela ciência, não vê sentido algum na história humana ou na história
do universo. Este, passa por diversas fases de desenvolvimento desde seu surgimento com uma
explosão inicial (conhecida como “big-bang”) até acabar em morte térmica daqui a centenas de
bilhões de anos, segundo as modernas teorias da cosmologia e da física.

O avanço da astrofísica e da cosmologia permite atualmente a construção de teorias – baseadas


em projeções matemáticas – que apresentam outras variantes do surgimento e evolução do
universo. A hipótese do “universo cíclico” diz que o atual universo no qual existimos não é o único
nem o primeiro; cálculos baseados em teoria físicas permitem afirmar que antes existiam outros
e ao atual se seguirão novos. Outra teoria, a dos multiversos, diz que além do nosso também
existe um número muito grande de outros universos, cada um com características diferentes do
nosso.

Assim, fora de uma visão religiosa da história do universo e da humana, a moderna ciência e a
filosofia não pensam mais em um “sentido último” ou em uma “outra dimensão”, na forma de um
mundo além deste. Tal visão já vinha se delineando no final do século XIX com as descobertas
das ciências físicas, e com as ideias da filosofia. A ideia do universo e do desenrolar histórico

53
completamente “dessacralizado”, como dizia o sociólogo Max Weber, tornou hegemônica ao
longo do século XX.

54
É possível a neutralidade do pensamento científico?

Usualmente divide-se a ciência em naturais, que incluem todas as ciências físicas e biológicas;
e ciências humanas, aquelas que se dedicam ao estudo das atividades humanas. Até há cerca
de quarenta anos, era comum o conceito de que as ciências naturais tinham condições de
oferecer uma maior previsibilidade do que as ciências humanas. Por essa razão, ainda se
classificava as ciências em exatas, relativas àquelas que faziam uso de processos verificáveis e,
principalmente, matematicamente calculáveis; biológicas, relativas a todas as ciências que
envolviam o estudo dos seres vivos, inclusive a medicina; e as ciências humanas. A origem desta
classificação remota ao século XIX, quando as ciências físicas e biológicas apresentaram um
grande desenvolvimento e a pesquisa científica passou a basear-se em experiências que podiam
ser repetidas, criando-se o conceito da repetitibilidade.

Uma hipótese só poderia ser admitida como teoria, caso pudesse ser comprovada por
experiências controladas, que repetidas nas mesmas condições, sempre dariam o mesmo
resultado. Através da indução, a ciência pode afirmar que o que acontece na experiência –
repetidas inúmeras vezes – acontecerá sempre. Assim, por um raciocínio, elabora-se uma lei
universal. O método dedutivo, largamente utilizado pela ciência tem muitos críticos na filosofia,
como David Hume (1711-1776), Karl Popper (1902-1994) e Paul Feyerabend (1924-1994).

Todavia, o conceito de “ciências exatas” já passa por uma crise na década de 1930, quando o
físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976) desenvolve o conceito de “princípio de
indeterminação” na física atômica. Basicamente, o conceito diz que não se pode determinar a
posição de uma partícula (no caso o elétron) na estrutura do átomo. Isto porque, a partir do
momento em que procurássemos identificar a posição da partícula através de luz ou radiação, o
fóton emitido por nosso equipamento deslocaria o elétron de sua posição original. Deste modo,
só podemos saber estatisticamente, probabilisticamente, a posição de uma partícula. Escreve
Werner Heisenberg: “Na física clássica a ciência partia da crença – ou devemos dizer da ilusão?
– de que podíamos descrever o mundo em suas menores partes, sem alguma referência a nós
mesmos” (Heisenberg, 2007 – tradução nossa). Esta teoria abalou a certeza do processo da
repetitibilidade na física, colocando em cheque todo o conceito de “ciência exata”.

A descoberta também influenciou a filosofia. Pensadores como Popper e Feyerabend passaram


a tratar a ciência em geral como uma maneira especial de enxergar o funcionamento da natureza;
uma maneira de interpretá-la. A ciência não era um retrato fidedigno da natureza, apenas a nossa
interpretação desta. Escolas pós-modernas de pensamento (como Derrida e Baudrillard) vão
mais longe: negam a neutralidade do pensamento científico, argumentando que as teorias
científicas são influenciadas pela posição ideológica do cientista (ou de grupos financiadores) e
que justificavam e validavam determinada posição de classe ou de grupos dominantes.

A história tem demonstrado que determinadas ideologias podem influenciar a ciência, tirando-
lhe a neutralidade. Este tipo de manipulação da ciência por regimes ou grupos ocorre, pelo
menos em sua forma mais violenta, em regimes autoritários. Basta lembrar dos processos da
Inquisição da igreja católica e do que ocorreu, mais recentemente, na antiga União Soviética
stalinista, quando a ideologia do materialismo dialético exerceu nefasta influência sobre as
pesquisas genéticas.

Todavia, dado o próprio desenvolvimento da ciência, através da constante pesquisa, é


improvável que sempre haja interferência ideológica no pensamento científico. A ciência é
dinâmica e baseia-se, principalmente no princípio da verificabilidade. Caso um grupo de
cientistas falseie um resultado, visando certos interesses, outro grupo cedo ou tarde descobrirá
o embuste. O que limita a ciência são principalmente os nossos instrumentos, que foram
desenvolvidos baseados em nossos sentidos.

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Assim, a neutralidade do pensamento científico poderá ser atingida na maior parte das vezes, já
que as teorias serão sempre testadas por diversos agentes. Por outro lado, admitindo-se a teoria
de que a ciência nunca poderá apresentar neutralidade, qual é a garantia que temos de que esta
mesma teoria tem neutralidade? É um falso dilema.

É importante lembrar de que, todavia, a ciência não é uma “verdade”. Trata-se apenas de uma
interpretação da natureza, limitada pelos recursos de pesquisa e pelo conhecimento geral
disponível em um determinado período histórico. Escreveu sobre isso o pensador Milton Vargas:
“Em princípio, é possível fazer teoria sobre tudo o que se encontra e tal como se o encontra. Isto
é, sobre a realidade. É, entretanto, de se lembrar, que uma teoria sobre a realidade já é, em si,
outra realidade.” (Vargas, 1994).

Referências:
HEISENBERG, Werner. Physics and philosophy. New York. HarperCollins Publishers: 2007, 201
p.
VARGAS, Milton. Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo. Editora Alfa –Ômega: 1994, 285
p.

56
É possível ensinar filosofia no Ensino Médio?

Recentemente, o governo do presidente Michel Temer (2015-2018) introduziu novas mudanças


no curriculum escolar, fazendo com que o ensino da filosofia e da sociologia perdesse
importância. Historicamente, no entanto, a filosofia tornou-se matéria obrigatória (depois de longo
período de proibição) por força da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394,
de 20 de dezembro de 1997) e da Lei 11.684 de 2/6/2008. O ensino da filosofia já era reclamado
há muitos anos, desde que se tornou matéria optativa em 1968, sendo excluída dos currículos
em 1971, com a Lei 5.692/71, durante o período da ditadura militar.

A estratégia por trás da abolição do ensino da filosofia era evidentemente político. A filosofia,
pelas características de seu ensino, promove o debate, a análise dos fatos; práticas pouco
incentivadas em regimes autoritários. Manter o espírito crítico dos estudantes paralisado era uma
das maneiras de fazer com que a parcela instruída da população aceitasse o sistema político-
econômico implantado pelo golpe de Estado de março de 1964. Vale lembrar que o ensino
público daquela época ainda tinha um bom nível e formava grande parte da população instruída.

A abolição (ou proibição velada) do ensino da filosofia dava-se em uma situação política e
econômica mundial bastante característica. O mundo era dominado por dois blocos antagônicos.
De um lado, o sistema comunista, liderado pela União Soviética, seguida de seus países satélite.
De outro o regime capitalista, auto proclamado “mundo livre” (o que, todos sabiam, era uma farsa,
já que era formado por uma série de ditaduras militares), capitaneado pelos Estados Unidos e
seus acólitos europeus. O embate destas duas forças econômica e politicamente antagônicas
era chamado de Guerra Fria.

O próprio contexto da Guerra Fria era desfavorável ao debate filosófico. De ambos os lados a
liberdade de expressão era pouco valorizada e o debate era proibido, ou tolerado no melhor dos
casos. Escrevendo neste período, um dos filósofos mais lidos à época e ídolo das revoltas
estudantis de 1968 (nos EUA, México, Brasil, Argentina, França, Alemanha e vários outros
países), Herbert Marcuse, afirmava: “Numa sociedade baseada no trabalho alienado, a
sensibilidade humana está embotada: os homens só percebem as coisas nas formas e funções
em que lhes são dadas, feitas, usadas pela sociedade existente; e só percebem as possibilidades
de transformação tal como são definidas e limitadas na sociedade existente” (Marcuse, 1973).

Além disso, a maior parte da filosofia das décadas de 1960 e 1970 tinha influência do
estruturalismo e, principalmente, do marxismo, sendo muito crítica em relação à economia de
mercado. Mais um motivo para desfavorecer o ensino e o debate filosófico. Fato interessante é
que foi exatamente neste período de exceção, quando não havia ensino da filosofia no Brasil,
que foi lançada pela primeira vez a coleção de textos filosóficos clássicos Os Pensadores, pela
editora Abril, no início dos anos 1970.

O período entre 1964 e 1984 foi de repressão cultural; proibição de livros, filmes, peças de teatro.
Jornais (tablóides) de caráter político e cultural, que por vezes traziam artigos sobre temas
filosóficos – como Versus, Ex, Politika, Opinião, Pasquim – eram censurados e, eventualmente,
confiscados pela Polícia Federal e pelo DOPS (a temida Delegacia de Ordem Política e Social).

A cultura e o estudo da filosofia só sobreviveram porque ainda havia um número suficiente de


pessoas que – formadas em grande parte na antiga escola pública – se interessava pelo assunto.

Voltou a democracia (1984), caiu o Muro de Berlim (1989) e com ele todo o sistema de socialismo
de Estado (eufemisticamente chamado de comunismo). O livre-mercado (leia-se liberalismo) se
expande em todo o mundo. Instala-se um sistema econômico e social voltado para a produção
e o consumo exagerado, mesmo que às expensas dos recursos naturais e de milhões de
subempregados e miseráveis.

57
É neste contexto social e econômico que ressurge o interesse pelo ensino da filosofia no Brasil.
Qual o significado deste retorno? Porque não voltou também o ensino do latim, do francês e de
outras matérias? Dadas as condições sociais e econômicas é compreensível que o latim e o
francês não seriam muito producentes; teriam pouca aplicabilidade para os alunos em sua
carreira futura.

Mas, e a filosofia? Que ela tenha uma função de integração de conhecimentos, que seja
instrumento de análise e de crítica da realidade, é ponto pacífico; isto consta em qualquer manual
para iniciantes no estudo da matéria. Mas, chegaremos efetivamente a isto? Conseguiremos
formar estudantes que com o estudo da filosofia tenham uma visão mais crítica da sociedade,
de seu papel no mundo?

Louis Althusser em sua obra Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado faz uma análise do
que seriam os aparelhos ideológicos de Estado (aiE) e sua função. Os aiE, segundo os lista o
pensador, são instituições como: igrejas; sistemas escolares públicos e privados; ambiente
familiar, instituições jurídicas; o sistema político e seus diversos partidos; a organização sindical;
a informação (imprensa, TV, rádio) a cultura (artes, desportos). A função dos aiE é de formar a
mente dos cidadãos; influenciá-los. Escreve Althusser: “Mas vamos ao essencial. O que
distingue os aiE do aparelho repressivo do Estado é a diferença fundamental seguinte: o aparelho
repressivo de Estado funciona pela violência, enquanto os aiEs funcionam pela ideologia.”
(Althusser, 1974).

Assim, a pergunta que se faz não é “É possível ensinar filosofia no ensino médio?”, mas “A quem
interessa (ou não) o ensino da filosofia no ensino médio e em que condições?” Outra questão
que se coloca é se claramente existe a vontade política em promover o ensino e,
especificamente, o ensino da filosofia. Existe efetivamente interesse por parte dos grupos
dominantes – os que dominam os aparelhos ideológicos de Estado que Althusser menciona –
em formar cidadãos capacitados e críticos? Darcy Ribeiro escreveu referindo-se ao ensino: “...o
pressuposto mais importante para a sobrevivência e manutenção do poder de nossa classe
dominante constituía em manter o povo na ignorância. Ter um povo ignorante é naturalmente o
melhor que se pode imaginar em um mundo onde o ensino é oferecido de maneira tão superficial
e despreocupado. Se o povo é mantido na ignorância, não será capaz de eleger seus
representantes políticos...” (Ribeiro, 1980, tradução minha).

Há intenção real em se promover o ensino da filosofia? Se este é o caso, ela poderá contribuir
para um debate sobre a situação socioeconômica do País? Ainda em caso afirmativo, o que se
pretenderá com este debate? Mudanças, ou a simples constatação de que temos muitos
problemas, temos algumas possíveis soluções, mas falta iniciativa para sua efetivação?

Talvez esteja aí um tema de debate para a filosofia brasileira: quem estabelece a “agenda”
política, social e econômica do País?

Referências:
Ribeiro, Darcy, Ungewöhnliche Versuche (Ensaios Insólitos), Suhrkamp, Frankfurt a.M., 1980,
396 p.
Althusser, Louis, Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, Editorial Presença, Lisboa, 1974,
120 p.
Marcuse, Herbert, Contra-Revolução e Revolta, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1973, 129 p.
Pimenta, A., Ensino de filosofia no Brasil: um estudo introdutório sobre sua história, método e
perspectiva, disponível em:
http://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=265&Itemid=255
Consulta em 19/03/09

58
Economia e sua relação com a ciência e a tecnologia:
pressupostos teóricos

Nossa atividade econômica está em grande parte baseada em certos princípios científicos e
desenvolvimentos tecnológicos que tiveram sua origem no Renascimento. A efervescência social
deste período, aliada às Grandes Navegações e uma série de outros eventos culturais e políticos
(e.g. a Reforma protestante, o despertar do pensamento científico, o aparecimento dos Estados
absolutistas) deram um impulso econômico e técnico à Europa como nunca houvera acontecido
antes. O desenvolvimento do comércio, aliado às novas rotas abertas pelos navegadores
portugueses e espanhóis – oferecendo acesso a novos mercados fornecedores –, revolucionou
a economia europeia, criando demanda para novas técnicas no comércio, na agricultura, na
navegação e no artesanato industrial. Sobre este período, escreve o historiador Fernand Braudel:

“Em suma, bem ou mal, uma certa economia liga entre si os diferentes mercados do mundo, uma
economia que não só traz em sua esteira algumas mercadorias excepcionais, mas também os
metais preciosos, viajantes privilegiados que já dão a volta ao mundo. Os dobrões espanhóis,
cunhados com o metal branco da América, atravessam o Mediterrâneo, atravessam o império
turco e a Pérsia, atingem a Índia e a China. A partir de 1572, via Manila, o metal branco americano
atravessa também o Pacífico e, em fim de viagem, chega uma vez mais à China, agora por essa
nova rota.” (Braudel, 1987, p.30)

A classe social que representa esta nova fase da história, a burguesia comercial, tem forte
influência no desenvolvimento da política, economia e ciências deste período. Sobre a relação
desta nova elite com o desenvolvimento científico da época, comenta Escobar:

“Na leitura que ‘espontaneamente’ se faz da revolução no pensamento provocado pela Física,
se situam, sobretudo os temas colonialistas do poder do ‘homem sobre os meios’, mas de um
poder decididamente do ‘homem burguês’, que então sentia-se o ‘homem universal’ e
contrastava com o homem medieval contemplativo. A Física é aqui compreendida como ciência
ativa (física de Galileu, de Descartes, de Hobbes), como um testemunho do homo faber, como a
estratégia e a prática desta dominação da natureza.” (Escobar, 1975, p. 91)

No desenvolvimento do capitalismo, desde sua fase mercantilista entre 1400 e 1700 (BURNS,
1971), passando pelo início da industrialização no final do século XVIII até os dias atuais, sempre
houve estreita interação das atividades econômicas com a ciência e tecnologia. No campo das
ideias, a ciência desenvolveu teorias explicativas da realidade, que posteriormente seriam
aplicadas à prática, através da tecnologia, atendendo demandas econômicas concretas.
Exemplo desta relação é o desenvolvimento da balança hidrostática. Em 1586 o filósofo e
cientista Galileu Galilei (1564-1642) construiu um mecanismo experimental, destinado ao estudo
da força de impulsão exercida pelos líquidos sobre os corpos nele mergulhados. Este invento,
conhecido como balança hidrostática, contribuiu para a posterior criação do relógio de pêndulo
e desenvolvimento de uma bomba destinada à irrigação (GOMES, s/d).

A física de Isaac Newton (1642–1727) é outro exemplo deste processo. Elaborada com base nos
princípios da física de Kepler e Galileu e utilizando-se de conhecimentos matemáticos de
Euclides, sua Lei da Gravitação Universal transformou-se no fundamento da mecânica clássica.
De sua teoria, resultariam entre o século XVIII e XIX a física clássica, a mecânica, a descrição
da eletricidade, o magnetismo, a ótica e a termodinâmica (FEULNER, 2010). Formulações
teóricas somadas a experiências práticas resultariam em conhecimentos, que posteriormente
possibilitariam o aparecimento de vários inventos, como a máquina a vapor. No entanto, segundo
Granger (1994) “(...) podemos afirmar que as teorias científicas só tiveram realmente relações
estreitas e orgânicas com a técnica a partir da Grande Revolução Industrial europeia do século
XVIII”.

59
Ainda com relação à interação das atividades econômicas com a ciência e a tecnologia, é preciso
considerar que este processo sempre foi largamente influenciado pela realidade material da
sociedade onde se desenvolveu. Comentando a relação da economia com as atividades
intelectuais (nas quais se incluem a elaboração de teorias científicas e o desenvolvimento de
novas tecnologias), escreve Marx:

(...) “na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas,
necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a
uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade
destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a
qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais
determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em
geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu
ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.” (Marx, 1974, p. 135-
136)

Como exemplo desta influência da realidade material sobre a vida social, tome-se o uso do vapor
para a geração de energia e mecanização de processos industriais. Esta tecnologia foi
desenvolvida por James Watt na Inglaterra do final do século XVIII e aplicada inicialmente ao
setor de tecelagem e mineração, disseminando-se depois para vários outros usos industriais, a
partir do início do século XIX (BURNS, 1971) e (DOBB, 1974). Graças a estas inovações
tecnológicas, barateando e aumentando a produção, a Inglaterra atingiu uma posição de
hegemonia na produção e venda mundial de vários produtos industrializados. Assim, os
industriais ingleses tornaram-se a nova classe dominante da sociedade inglesa, desbancando a
antiga elite dos donos de terra. Sobre a relação da economia com a tecnologia, atendendo a
interesses de classe, escreve Andrew Feenberg:

“Escolhas sociais intervêm na seleção da definição do problema, bem como de sua solução. A
tecnologia é socialmente relativa e o resultado das escolhas técnicas é um mundo que sustenta
a maneira de vida de um ou outro influente grupo social. Nesses termos as tendências
tecnocráticas das sociedades modernas poderiam ser interpretadas como efeito de limitar os
grupos que podem interferir no design junto a peritos técnicos e às elites corporativas e políticas
a que servem” (Feenberg, s/d, p. 8)

A crise ambiental que atravessamos é representada pela crescente exaustão dos recursos
naturais, como resultado da atividade econômica, aliada aos avanços tecnológicos da ciência.
Todavia, a condução da economia, em seus aspectos práticos, atende aos interesses das “elites
corporativas e políticas” (Feenberg); os “proprietários dos meios de produção”, na expressão de
Marx. A ciência e a tecnologia se desenvolvem influenciadas pelas demandas práticas e teóricas
levantadas pela economia. Assim, condicionada pela agenda de interesses dos grupos
dominantes, a atividade científica acaba projetando sobre a natureza esta influência recebida.
Sob este ponto de vista, ciência e a tecnologia funcionam como uma metafísica (no sentido
aristotélico de uma ciência que fornece o fundamento a todas as outras); uma interpretação ou
leitura da natureza feita por grupos sociais que partem de premissas supostamente validadas
(através de sua visão de mundo) e têm o poder de impor esta visão aos demais grupos.
Heidegger, em A questão da técnica, escreve a respeito desta relação do homem com a ciência
e a tecnologia:

“O comportamento de “investidor” vindo do homem, de uma forma correspondente, revela-se em


primeiro lugar na aparição da ciência moderna, exacta da natureza. O modo de representação
próprio desta ciência persegue a natureza considerada como um complexo calculável de forças.
A física moderna não é uma física experimental por aplicar à natureza aparelhos que a
interroguem, mas inversamente; é porque a física – já como pura teoria – a coloca na situação
(stellt), de se mostrar complexo calculável e previsível de forças que a experimentação é (bestellt)

60
encarregada de interrogar a fim de que se saiba se e como a natureza assim intimada (stellt)
responde ao apelo” (Heidegger apud Macedo 1985, p. 119)

Nesta linha de análise fica evidente que a crise ambiental tem origem nas atividades econômicas,
influenciadas pelas ideias e expectativas das classes ou grupos política e economicamente
dominantes em todo o mundo. A crise ambiental é, portanto, essencialmente uma crise de visão
do mundo, da natureza e do papel do ser humano neste contexto. Para que possamos
ultrapassar esta situação crítica, seria necessário no plano das ideias: a) renunciar a uma visão
metafísica da natureza, fruto de uma visão elaborada pelos grupos dominantes, que se manifesta
também no funcionamento da economia e sua relação com a natureza; e, consequentemente b)
reavaliar os paradigmas que devem nortear os objetivos e a condução da economia, visando
gradualmente reduzir seu impacto sobre a biosfera e sobre os recursos não renováveis e
proporcionar bem estar a um número maior de pessoas.

Referências
BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro. Editora Rocco: 1987, 76 p.
BURNS, Edward M. História da civilização ocidental – Vol. 1 e Vol. 2. Porto Alegre. Editora Globo:
1971, 581 p.
DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo – 4ª edição. Rio de Janeiro. Zahar Editores: 1974,
482 p.
DUARTE, André. Heidegger e Foucault, críticos da modernidade: humanismo, técnica e
biopolítica. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0101-
31732006000200008&script=sci_arttext>. Acesso em 24/08/10
ESCOBAR, Carlos Henrique. Epistemologia das Ciências Hoje. Rio de Janeiro. Pallas Editora:
1975, 176 p.
FEENBERG, Andrew. Teoria crítica da tecnologia.
Disponível em: https://www.sfu.ca/~andrewf/critport.pdf Acesso em 23/10/18
FEULNER, Georg. Os grandes físicos que mudaram o mundo. Escala Editora. São Paulo: 2010,
127 p.
GIANOTTI, José Arthur. Karl Marx – Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos
escolhidos in Os Pensadores. São Paulo. Abril Cultural: 1974, 413 p.
GOMES, Morgana. A vida e o pensamento de Galileu Galilei. São Paulo. Editora Minuano: s/d,
98 p.
GRANGER, Gilles-Gaston. A ciência e as ciências. São Paulo. Editora UNESP: 1994, 122 p.

61
Erasmo de Rotterdam e a Reforma

Usualmente encara-se a Revolução Protestante do século XVI como sendo a irrupção de algo
inesperado, quando muito de disposições religiosas e sociais vagamente em maturação, se
levamos em conta as críticas de pré reformadores como Wyclif e Huss. Superficialmente, muitas
análises daquele período histórico consideram que em seu início a Reforma não tenha tido amplo
apoio, e que a oposição à Igreja Católica era algo social e geograficamente localizado. Esta
posição, porém, não é historicamente defensável.

Para analisar este tema precisamos voltar à Idade Média. Com relação aos movimentos sociais
faz-se geralmente uma precária caricatura histórica do período medieval; como se este fosse um
intervalo de domínio hegemônico da Igreja Católica. Na realidade, através da pesquisa histórica
– principalmente a chamada “História do cotidiano” – chegou-se presentemente à conclusão de
que a Idade medieval era bem mais interessante, criativa e insubmissa do que se imaginava.
Esquematicamente, podemos separar os acontecimentos do período em seus aspectos
socioeconômicos, socioculturais e religiosos. Considerada em seus fatores socioeconômicos, a
Baixa Idade Média apresenta as seguintes características:

- A partir do ano 1.100, impulsionado por alguns progressos tecnológicos (reintrodução do


moinho a vento, cela, arado com roda, entre outros) há um reaparecimento do comércio em toda
a Europa, propiciando o crescimento das cidades, a circulação do dinheiro e a formação de uma
classe social que – apesar de ainda ser vista com desconfiança pela Igreja e pelos senhores
feudais – representava a nova classe econômica em formação: o burguês.

- Inicia-se uma mobilidade social desconhecida nos cerca de 1.000 anos anteriores. Servos
tornam-se independentes de seus senhores ou simplesmente fogem para as cidades maiores,
onde os senhores não tinham mais poder, para se dedicarem ao artesanato, trabalhando em
oficinas muitas vezes financiadas pelos mercadores. Estes, por sua vez, compravam os produtos
fabricados pelos artesãos e os trocavam ou vendiam por outros produtos. Fortalecia-se o
comércio regional e internacional e surgiam as cidades-mercantes (Veneza, Gênova, Florença,
Hamburgo, Londres, entre outras), que atraiam comerciantes, artistas e artesãos especializados.

- A relutância dos nobres em propiciar melhores condições para seus servos (supressão de
restrições ao comércio de produtos, introdução do trabalho assalariado, etc.) provoca revoltas
sociais e levantes de camponeses em toda a Europa. John Ball foi um clérigo que chefiou uma
destas revoltas, a Revolta Camponesa da Inglaterra em 1381. Outras revoltas importantes que
antecederam esta foi a Revolta de Flandres, entre 1323 e 1328 e a “Jacquerie” na França, em
1358.

Sob o aspecto sociocultural e religioso o período se marca pelos seguintes aspectos:

- A retomada do comércio, significava que as ideias também voltavam a circular. As informações


e o conhecimento passavam de uma cidade para outra e não estavam mais concentrados
somente nos mosteiros ou em universidades. Veja-se o exemplo do filósofo São Tomás de
Aquino, que ensinou em Bolonha, Colônia e em Paris. O grande filósofo alemão Meister Eckart,
estudou na Alemanha e foi ser professor em Paris. Quase todos os grandes filósofos medievais
viajaram e ensinaram em diversos centros universitários, disseminando seus conhecimentos
entre inúmeros alunos.

- A hegemonia da crença em Deus não é inconteste. “A importância dada à busca das provas da
existência de Deus, por exemplo, com Santo Anselmo e São Tomás, deveria bastar para
despertar as dúvidas. Se a fé se impusesse por si, essa preocupação seria supérflua” (Minois,
pg.79, 2004). “...ao redor de Aristóteles, Averróis, dos nominalistas e de Siger de Brabante, a
expressão de um agnosticismo, de um materialismo e de um ateísmo implícitos, disfarçados por

62
razões de segurança, longe das disputas formais” (Minois, pg 79, 2004). Pouco conhecidos do
público leigo, Davi de Dinan, Boécio de Dácia, Siger de Brabante, Amaury de Bennes, no século
XIII e Nicolas d´Autrecourt no século XIV, eram pensadores cujas obras haviam sido condenadas
em parte ou em sua totalidade pela Igreja, por esta considerar seus escritos ateus. Incluso à
crítica dos conceitos filosófico-teológicos da religião, estava a crítica à hierarquia e aos dogmas
da instituição. Vê-se assim, que a crença na religião não era absolutamente hegemônica, apesar
da terrível repressão no período (acentuada mais ainda depois da criação da Inquisição, no
século XIII).

- O período da Baixa Idade Média também era palco do surgimento de diversas heresias,
geralmente de cunho milenarista (anunciando o fim do mundo), pregando a libertação dos
pobres, a destruição da Igreja e a abolição dos poderes do corpo eclesiástico. Algumas destas
seitas heréticas pregavam pobreza voluntária, como a dos valdenses, criada por Pierre Valdo,
um mercador de Lyon, que em 1173 abandonou todos os bens e passou à pregação. Outra “falsa
doutrina”, mais radical, era a dos Irmãos do Livre-Espírito, aparente fundada pela mística
Marguerite Poret em 1310, mas provavelmente mais antiga. Um dos líderes dos Irmãos do Livre-
Espírito, Konrad Schmid, capturado pela Inquisição em 1317, declarava que “O homem
verdadeiramente livre é rei e senhor de todas as criaturas. Todas as coisas lhe pertencem e ele
tem o direito de fazer uso de seja o que for que lhe agrade” (Cohn, pg.151, 1981).

A própria Ordem dos Irmãos Menores, nome inicialmente dado aos Franciscanos, teve
dificuldades em ser aceita pelo papa. Somente depois que membros da Ordem foram acusados
de heresia na França, na Holanda e na Alemanha – o que fez São Francisco aceitar a alteração
de certos pontos da Regra da Ordem –, é que esta foi aceita pelo papa Gregório IX.

No século XII dissemina-se na Itália e no sul da França a seita dos cátaros, que acreditavam em
um forte dualismo inspirado no gnosticismo antigo. O mundo, diziam, foi criado pelo Diabo –
associado a Javé do Antigo Testamento – e será salvo por Jesus, enviado por um Deus bom e
luminoso.

Assim como estas, ainda existiam dezenas – ou centenas – de outras seitas heréticas, como os
albigenses, os flagelantes e muitos outros. Interessante notar, que é no século XIII que a Igreja
institui oficialmente a existência do Purgatório (1259), abrindo a possibilidade de um estado
intermediário entre o céu e o inferno. Com isso, era possível que mesmo os comerciantes e
banqueiros – apesar de visarem o lucro condenado pela Igreja – tivessem a chance de salvar
suas almas.

Depreende-se de que no final da Idade Média existia uma forte oposição ao sistema econômico,
social e cultural sustentado pela Igreja, o feudalismo. Ao começar a Era Moderna em 1453, com
a Queda de Constantinopla - capital do remanescente Império Romano do Oriente, que havia
sobrevivido por cerca de 1.000 anos – o universo cultural e religioso da Europa se encontrava
em uma situação tal, que seria inevitável uma comoção envolvendo a Igreja Católica. Zwinglio,
Lutero, Karstadt, Melachton, Calvino e outros de menor importância, que apareceram
posteriormente ainda no século XVI (Menon, Münzer, entre outros), representam os furos de um
dique que não podia mais comportar a pressão da imensa oposição à Igreja, externando-se na
teologia, mas de abrangência muito mais ampla.

Iniciada a Reforma, a Igreja perdeu muitos territórios, junto com os fiéis. O avanço da Reforma
só foi barrado através da ação da Inquisição, da Contra Reforma e da intervenção de novas
ordens religiosas, principalmente a dos jesuítas.

A simples incorporação de fracas reformas sugeridas pelo filósofo Erasmo de Rotterdam –


hipótese histórica aventada por alguns especialistas modernos – que no fundo seguia a política
dos “panos quentes”, por não querer um confronto com a Igreja e ao mesmo tempo querer manter
certa autonomia individual frente à instituição, não poderia estancar o movimento da Reforma. O

63
fato é que todas as ideias de Erasmo: a crítica aos rituais, a pilhéria à venialidade dos religiosos,
a sátira ao enclausuramento, a philosophia Christi, a noção da máscara; praticamente cada uma
de suas reflexões, já haviam sido levantadas por grupos opositores e seitas heréticas na Idade
Média. A ideia de reforma da Igreja é tão velha quanto à própria instituição. Além disso, a
implementação destas reformas sugeridas pelo filósofo holandês não seriam possíveis. A
oposição interna na Igreja contra tais mudanças, dados a inércia e o apego aos privilégios por
parte de seus membros, era muito grande. Isto é comum em qualquer instituição autoritária,
dominadora e burocrática, haja vista os exemplos das máquinas estatais dos regimes despóticos
como a da antiga União Soviética, e a Alemanha nazista e outros já desaparecidos.

Admitindo-se que o fosse possível reformar a Igreja, isto não seria realizável em curto espaço de
tempo. O próprio Concílio de Trento, destinado a reorganizar a Igreja depois que a Reforma já
havia se alastrado, teve início em 1545 e só acabou em 1563. Mesmo assim, as reforma
instituídas por Trento – aquelas que em parte Erasmo havia defendido – só foram implementadas
ao longo de várias décadas ou séculos.

Outro fator que teve muito peso na ocorrência da Reforma, foi a grande oposição que existia nos
países situados longe de Roma, como por exemplo a Suíça, a Alemanha, os Países Baixos e a
Inglaterra, em relação à autoridade e à influência do papa. Por outro lado, havia grande interesse
dos nobres destes países em tomarem posse dos bens da Igreja. A Reforma era uma ótima
razão para isso.

Finalizando, concluímos que:

- 1. A Igreja não aceitaria as reformas propostas por Erasmo – julgava-se muito forte.

- 2. Mesmo que as aceitasse, levaria muito tempo para implementá-las – não o fez, em alguns
pontos, até hoje.

- Admitindo 1 e 2, mesmo assim a Reforma aconteceria, pois as propostas de Erasmo não eram
novas, já haviam sido cobradas há pelo menos 300 anos pela sociedade e, desta forma, não
teriam mais impacto – o tempo da Igreja se reestruturar já havia passado.

Referências
Cohn, Norman, Na Senda do Milênio – Milenaristas Revolucionários e Anarquistas Místicos na
Idade Média, Editorial Presença: Lisboa, 1981, 333 pgs.
Dobb, Maurice, A Evolução do Capitalismo, Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1974, 482 pgs.
Eliade, Mircea, História da Crenças e das Idéias Religiosas – Tomo III, Zahar Editores: Rio de
Janeiro, 1984, 400 pgs.
Minois, Georges, História do Ateísmo – Os Descrentes no Mundo Ocidental das Origens aos
Nossos Dias, Editorial Teorema: Lisboa, 2004, 739 pgs.

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Eric Hoffer, o filósofo-estivador

"Meus textos são feitos nos pátios das ferrovias, enquanto espero um comboio, nos campos
enquanto espero por um caminhão e à noite, depois da janta. Cidades são muito distrativas."
Eric Hoffer

As chances de ascensão econômica e social através do trabalho são mais acentuadas em


economias em crescimento. Nestas sociedades é comum que indivíduos ultrapassem as
condições em que nasceram e através do esforço individual se transformem em grandes
empresários, políticos e intelectuais. Esta foi a situação da sociedade norte-americana, entre o
final do século XIX e parte do século XX. A rápida expansão da atividade econômica, aliada às
mudanças tecnológicas e incorporação de grande número de trabalhadores, inclusive
emigrantes, fazia com que as estruturas sociais mudassem rápida e constantemente, facilitando
a mobilidade social, como ocorreu em poucas sociedades ao longo da história.

Foi neste período que Eric Hoffer nasceu na cidade de Nova York, no então bairro pobre do
Bronx, em 1902. Filho de um casal de emigrantes alemães da Alsácia, Elsa e Knut Hoffer, Eric
aprendeu a falar e ler o idioma inglês e alemão ainda pequeno. Aos cinco anos, caiu do colo da
mãe, rolou por uma escada, e ficou com a cicatriz da lesão na cabeça para o resto da vida.
Aos sete anos, falece sua mãe, o que fez com que o menino entrasse em choque, perdendo a
memória e a visão, para somente recuperá-la aos quinze anos. Durante esse período o pequeno
Eric tinha pouco contato com o pai, que exercia a profissão de carpinteiro e estava
constantemente fora de casa. Foi cuidado por uma amiga dos pais, Martha Bauer, também
alemã, de quem Eric guardou boas recordações. Ainda cego, quando ficava entediado, Eric
passava o tempo arrumando os poucos livros da estante do pai.

Assim que recuperou a visão, Hoffer passou a ler com voracidade, com medo de voltar a perder
a visão. Nunca chegou a frequentar regularmente uma escola ou a aprender uma profissão,
vivendo apenas de biscates e lendo tudo que era possível comprar nos sebos ou emprestar nas
bibliotecas públicas de seu bairro. Seu pai morreu quando tinha 19 anos. O sindicato dos
carpinteiros pagou pelo enterro e entregou ao rapaz um seguro de 300 dólares, feito por seu pai,
com o qual comprou uma passagem de ônibus para Los Angeles. Lá se estabeleceu no bairro
central de Skid Row, à época frequentado por vagabundos, marginais e trabalhadores pobres.
Hoffer viveu em Los Angeles por dez anos, mantendo-se através de empregos baratos, sem, no
entanto, abandonar seu grande interesse pela leitura.

Em 1933, passando por uma profunda crise pessoal, Hoffer pensou em suicídio. Aos poucos
mudou de ideia e deu início a um longo período de viagens através de várias regiões da
Califórnia, trabalhando principalmente como trabalhador nas colheitas. Algumas vezes, durante
este período, também tentou a vida como garimpeiro de ouro. Em seus deslocamentos, fixava-
se em pequenas cidades, e se hospedava perto das modestas bibliotecas municipais, das quais
emprestava livros. Tempos depois, em um determinado inverno, Eric adquiriu em um sebo de
São Francisco um exemplar dos Ensaios do filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592).
A obra o impressionou de tal maneira, que permaneceu uma forte influência por toda a sua vida.
Nesse período Eric começa a escrever algumas novelas e tenta alistar-se como soldado, para
lutar na Segunda Guerra. Impedido por uma hérnia, Hoffer arranja trabalho como estivador nas
docas do porto de São Francisco. Permaneceu nessa atividade por muitos anos, vindo a
aposentar-se em 1964. Ao trabalho no porto aliou a atividade literária e filosófica, escrevendo a
maior parte das obras que depois o tornariam famoso. Através de suas pesquisas, passou a
interessar-se pelos problemas de todos aqueles com os quais se identificava: os imigrantes, os

65
trabalhadores migrantes, os deficientes, e todos aqueles que não tinham encontrado um lugar
ao sol na sociedade americana, no "sonho americano".

Seu livro mais famoso, lançado em 1951 chama-se The True Believer: Thoughts on the Nature
of Mass Movements (Do Fanatismo: O Verdadeiro Crente e a Natureza dos Movimentos de
Massa), que em língua portuguesa teve somente uma edição em Portugal, já esgotada. Neste
livro Hoffer analisa como e por que tem origem aos movimentos de massa. Descreve as
similaridades entre os diversos tipos de movimento; os políticos radicais e reacionários e os
religiosos. Hoffer argumenta que apesar de seus objetivos e valores serem diferentes, os
movimentos de massa e suas motivações são intercambiáveis, de maneira que seus aderentes
mudam de uma corrente para outra. Assim, movimentos nacionalistas, sociais e religiosos, sejam
radicais ou reacionários, tendem, estruturalmente, a atrair o mesmo tipo de seguidores,
comportam-se da mesma maneira e tendem a usar as mesma táticas e discursos retóricos. Como
exemplo Hoffer cita o comunismo, o fascismo, o nacional socialismo (nazismo), o cristianismo, o
protestantismo e o islamismo. A publicação, apesar de desconhecida na Brasil, teve influência
nos estudos de sociologia e antropologia nos Estados Unidos e é considerada uma das 100 mais
influentes obras do século XX.

Depois deste livro, Hoffer escreve uma série de ensaios acadêmicos, discutindo a intervenção
americana na Ásia após a 2ª Guerra Mundial, analisando a Guerra da Coréia e a Guerra do
Vietnã. Nestes trabalhos Hoffer defende o ponto de vista de que os Estados Unidos deveria
diminuir sua ingerência nos assuntos internos destes países. Estas suas ideias influenciaram
bastante a geração que nos anos 1960 e 1970, contribuindo na fundamentação teórica dos
movimentos que dariam início à luta pelos direitos civis e que se colocaria radicalmente contra a
guerra do Vietnã.

Ao longo de sua carreira, depois de lançar The True Believer, Hoffer ainda publicou diversas
outras obras (todas inéditas no Brasil), dentre as quais se destacam:

The Passionate State of Mind, and Other Aphorisms, 1955 (O estado de espírito apaixonado e
outros aforismos);
The Temper of Our Time, 1967 (O temperamento de nosso tempo);
Reflections on the Human Condition, 1973 (Reflexões sobre a condição humana);
Before the Sabbath,1979 (Antes do Sabá).

Hoffer passou longos anos entre a carreira de acadêmico, como pesquisador tratando de temas
políticos e sociais da sociedade americana, e a de estivador. Certos dias da semana frequentava
a Universidade da Califórnia, pesquisando e discutindo com professores e alunos, enquanto que
outros trabalhava nos escritórios das docas do porto de São Francisco. Em 1971 o filósofo
recebeu o título Doutor Honoris Causa da Faculdade Stonehill, e em 1983 a Medalha Presidencial
da Liberdade, do presidente Ronald Reagan.

Sempre voltado às suas origens na classe trabalhadora, Hoffer, quando chamado de intelectual,
dizia ser apenas um estivador. Por isso, muitos autores o designavam como "o filósofo-
estivador". Tendo exercido grande influência no meio acadêmico e nos nascentes movimentos
sociais, Hoffer faleceu em sua casa, em São Francisco, em 1983 aos 84 anos. Abaixo
apresentamos algumas citações do filósofo, extraídas de diversas publicações:

"Pessoas que ferem a mão que os alimenta, usualmente lambem as botas de quem os chuta."
(Reflections on the Human Condition);

"Quando as pessoas estão livres para fazer o que gostam, geralmente imitam as outras."
(Reflections on the Human Condition);

66
"A melhor educação não imunizará uma pessoa contra a corrupção do poder. A melhor educação
não fará, automaticamente, as pessoas mais compassivas. Nós sabemos disso mais claramente
do que qualquer geração precedente. Em nosso tempo, existe a sociedade melhor educada,
situada no coração da mais civilizada parte do mundo, dando nascimento ao mais assassino e
vingativo governo da história." (Before the Sabbath);

"A natureza não tem compaixão...[Ela] não aceita desculpas e a única punição que conhece é a
morte." (Reflections on the Human Condition);

"Marx nunca trabalhou um dia de sua vida e sabia tanto sobre o proletariado quanto eu sei sobre
coristas." (Before the Sabbath);

"Uma cabeça vazia não é realmente vazia; está entulhada de lixo. Por isso a dificuldade em
empurrar algo para dentro de uma cabeça vazia." (Reflections on the Human Condition);

"O século dezenove semeou as palavras que o século vinte colheu nas atrocidades de Stalin e
Hitler. Dificilmente há uma atrocidade cometida no século vinte, que não tenha sido prenunciada
ou mesmo defendida nas palavras de alguns homens nobres do século dezenove." (Reflections
on the Human Condition);

"A proporção entre o pessoal de supervisão e o de produção é sempre alta onde intelectuais
estão no poder. Em países comunistas, é necessária uma parte da população para supervisionar
a outra." (The Temper of our time);

"Orgulho é um senso de valor derivado de algo que não é organicamente parte de nós, enquanto
que a autoestima deriva de nossas potencialidades e de nossos ganhos. Somos orgulhosos
quando nos identificamos com um eu imaginário, um líder, uma causa sagrada, um corpo coletivo
ou bens materiais. Há um medo e uma intolerância no orgulho; é sensível e intransigente. Quanto
menos promessa e potencia na pessoa, mais imperativa é a necessidade de orgulho. O âmago
do orgulho é a autorejeição. É verdade que quando o orgulho libera energias e atua como um
incentivo para a realização, pode levar a uma reconciliação entre o eu e a conquista de uma
autoestima genuína." (The Passionate State of Mind);

"Para algumas pessoas a solidão não é uma fuga dos outros, mas delas mesmas. Isto porque,
veem nos olhos dos outros apenas um reflexo delas mesmas." (The Passionate State of Mind);

"Mentimos mais alto, quando mentimos para nós mesmos." (The Passionate State of Mind);

"Como é mais fácil o autossacrifício, do que a autorrealização." (Reflections on The Human


Condition);

"O homem é um animal que ama o luxo. Tire dele o jogo, as fantasias e a pompa, e você o
transformará em uma criatura estúpida e indolente, quase incapaz de obter a simples
subsistência. A sociedade torna-se estagnada quando seus membros são excessivamente
racionais, ou sérios demais para serem seduzidos por fantasias." (The Passionate State of Mind);

"Agressividade é a imitação da força, feita pelo homem fraco." (The Passionate State of Mind);

"Somente Deus está satisfeito com o que é, e pode proclamar: 'Eu sou o que sou.' Diferente de
Deus, o homem anseia com toda a sua força a ser o que ele não é. Ele incessantemente
proclama: 'Eu sou o que não sou.” (The Passionate State of Mind);

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"Homens livres sabem da imperfeição inerente aos assuntos humanos, e estão preparados para
lutar e morrer pelo que não é perfeito. Eles sabem que problemas humanos básicos podem não
ter uma solução definitiva, que nossa liberdade, justiça, equidade, etc, estão longe do absoluto,
e que a boa vida é composta por meias medidas, compromissos, males menores e tentativas em
direção ao perfeito. A rejeição de aproximações e a insistência em absolutos são a manifestação
de um niilismo que rejeita a liberdade, a tolerância e a equidade." (The Temper of Our Time);

"Fé em uma causa sagrada é, em considerável extensão, um substituto à fé em nós mesmos."


(The True Believer);

"Quanto menos o homem está decidido em reivindicar importância para si próprio, mais está
pronto para dar importância para sua nação, sua religião, sua raça ou sua santa causa." (The
True Believer).

Referências:
Eric Hoffer, disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Eric_Hoffer> Acesso em 10/11/2017;
Eric Hoffer Quotes, disponível em: <http://erichoffer.blogspot.com.br/ > Acesso em 15/11/2017;
The True Believer, disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/The_True_Believer> Acesso em
15/11/2017;
Brainy Quote, Eric Hoffer Quotes, disponível em:
<https://www.brainyquote.com/quotes/authors/e/eric_hoffer.html> Acesso em 15/11/2017;

68
Heráclito e Parmênides

A oposição entre o pensamento de Heráclito e Parmênides é clássico na história da filosofia e


marcou também o desenvolvimento da ciência. A oposição entre o devir heraclitiano e a
imutabilidade parmenidiana, são paradigmas que influenciaram todo o pensamento ocidental e
cuja harmonia muitos pensadores e intelectuais encontraram no pensamento oriental.
Quanto a questão da mutabilidade e imutabilidade do ser, básica na filosofia ocidental, a posição
de Heráclito era que o Ser está permanentemente em mutação; o ser é e logo depois já não é
mais.
É assim que ocorre na natureza: as estações, os ciclos de vida dos animais – tudo está em
constante transformação. Processos físico-químicos e biológicos se sucedem e toda vida se
transforma.
Darwin já afirmava que não existem dois indivíduos de uma mesma espécie exatamente iguais,
ou seja, a espécie não é imutável. Alguns biólogos levantam a questão se o conceito de “espécie”
é, de fato, absolutamente válido – qual espécime seria o “padrão” da espécie? O acúmulo de
diferenças vai propiciando o aparecimento de indivíduos cada vez mais diferentes de seu
ancestral original. Assim a mutabilidade proporciona a transmutação (evolução) das espécies.
Esta constante mudança se aplica a toda a natureza; desde as partículas subatômicas, ao
homem e às outras espécies, e destes às galáxias e ao próprio universo.
A principal ideia do pensamento de Heráclito está expresso no seguinte texto escrito pelo filósofo
Plotino: “Em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo, segundo Heráclito, nem substância
mortal tocar duas vezes na mesma condição; mas pela intensidade e rapidez da mudança
dispersa e de novo reúne (ou melhor, nem mesmo de novo nem depois, mas ao mesmo tempo)
compõe-se e desiste, aproxima-se e afasta-se”. Como tudo no universo heraclitiano está sempre
em mutação, o filósofo alemão Hegel mais tarde argumentou que a essência deste processo é o
tempo.
Parmênides, por outro lado, afirma a imutabilidade; o Ser é e não-ser não pode não ser. O
argumento principal do pensador é que não é possível pensar o não-ser, porque se o pensarmos,
ele é. Daí argumenta que o pensar e o ser são o mesmo. Com estes argumentos, Parmênides
conclui que admitindo que seja possível existir o não-ser, este seria a negação do ser, sua
mudança, o que é impossível. Portanto, o ser é eterno e imutável.
O mundo das aparências, onde ocorrem as mudanças, é somente uma concessão que
Parmênides faz. Em seu pensamento não existe o mundo das mudanças, do não-ser.
Parmênides abstrai seu pensamento daquele nível que nós chamamos realidade e coloca o Ser
em uma outra esfera, classificando-o como uno, eterno e imutável. O pensador eleata foi o
precursor da lógica, já que de suas ideias deduziram-se raciocínios como o princípio de
identidade (o Ser é, cujo equivalente é A=A) e o princípio de não-contradição (o Ser é e não pode
não ser, cujo equivalente é A=A e não pode ser A diferente de A).

69
História e generalização

"Uma linha que não é reta apresenta singularidades intrínsecas, ou seja, é uma linha de inflexões
[...] isso quer dizer que o que conta é o acontecimento. O acontecimento é a inflexão. A inflexão
é a figura abstrata do acontecimento. O acontecimento é o caso concreto de inflexões. E o
mundo, o que é? É uma sucessão infinita de inflexões ou acontecimentos que são chamados
estados do mundo."
Gilles Deleuze, citado por Djalma L. Benette em Em branco não sai - Um olhar semiótico sobre
o jornal impresso diário)

"Para onde caminha o nosso país?", perguntamos.

Será que faz algum sentido dizer que uma sociedade, um movimento cultural, a economia, ou o
desenvolvimento de uma espécie estavam "ali" (ou "assim") - significando isso determinada
condição, com características específicas em um tempo passado -, e agora está "aqui" (ou
"dessa nova forma"), representando isso uma nova situação sob diversos pontos de vista, em
um tempo posterior?

Esta é uma forma bastante comum de encarar um fato ou um acontecimento, que se estende
por certo tempo (a queda de um meteorito, uma revolução, um movimento literário, a construção
de uma hidrelétrica). É a tentativa de ressaltar certos aspectos de um acontecimento e através
deles caracterizar o fato em determinado instante no tempo. Por exemplo, a divisão da escola
impressionista de pintura em impressionismo, pós-impressionismo e neo-impressionismo. Em
cada uma dessas fases, o movimento apresenta certas características pictóricas expressas por
determinados pintores.

No entanto, a delimitação de períodos históricos e situações servem apenas para facilitar seu
entendimento, através da generalização. Reunimos certo número de fatos - muitas vezes pouco
numerosos - a respeito de determinado tema ou período de tempo, e disso tiramos conclusões.
Geralmente generalizações, baseadas em informações, amalgamadas por pressupostos
ideológicos. É desta maneira que, conscientemente ou não, com maior ou menor profundidade
de análise e quantidade de dados, se formam as teorias históricas.

Os diversos fatos históricos são, assim, como que "instantes congelados" de um longo processo,
que a nosso ver é limitado, por considerar o fluxo histórico (a própria expressão "fluxo" já
transmite a ideia) como um processo linear. Não considera a complexa inter-relação entre fatos
desconhecidos, que antecedem ou são contemporâneos ao fato histórico em consideração e
sobre ele exercem influência.

O ponto fulcral da questão é que não há como exatamente caracterizar cada fase de processos
deste tipo; são fatos naturais (que incluem fatores humanos) onde um número imenso de fatores
exerce sua influência no processo que se observa. São o que modernamente se denomina
sistemas complexos. O clima, a bolsa de valores, revoluções, períodos econômicos,
desenvolvimento de movimentos culturais, etc. Falaremos disso mais adiante.
_________________________________________

A delimitação de períodos e fatos históricos serve apenas para facilitar seu entendimento, por
meio de generalizações. Apontamos certos fatos de um determinado período histórico dos quais
temos conhecimento e tentamos formar um quadro do período, identificando tendências - que,
já o sabemos de antemão, depois se confirmaram.

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Mesmo assim, quanto à pergunta com a qual abrimos nosso texto, perguntando sobre a direção
para onde caminhavam reinos, impérios e repúblicas (ou nosso país), esta sempre existiu em
todos os lugares ao longo da história humana. Profetas do antigo reino de Israel perguntavam-
se qual seria o destino reservado ao seu povo, afastado da prática da Lei. Cônsules romanos
condenavam a lassidão de uma sucessão de imperadores, enquanto se preocupavam com o
futuro do Estado. Paladas de Alexandria, poeta do século IV, lamentavam o gradual
esquecimento da cultura grega, suplantada pela expansão de um culto popular, o cristianismo, e
se indagava sobre o que seria da fenecente tradição helênica.

A resposta a estas perguntas que os antigos se faziam, ou seja, o que ocorreria ao reino de
Israel, ao império romano e à cultura da Grécia Antiga no período cristão, hoje nos é clara.
Causada por acontecimentos, ações de indivíduos, fenômenos naturais e outros fatores, a
história tomou determinado rumo. E as sociedades que existiram posteriormente interpretaram
os fatos antigos de determinada maneira - à sua maneira.

A esta interpretação, esta "leitura" dos fatos antigos (ditos históricos) - baseada em condições
culturais, econômicas e sociais atuais, já que o "ambiente" do reino de Israel ou da Antiga Roma
não existiam mais -, convencionamos chamar de história. Ou História, como preferem alguns que
acreditam na história como uma coisa única possível; como se esta sucessão de fatos aceitos,
batizados de "história", fosse a única maneira de olhar este vasto universo de acontecimentos
ocorridos em determinado período; como se fosse a verdade (esta, outra palavra sempre dada
a interpretações).

Chamamos de história aquela quase infinita sucessão de fatos que ocorrem em um tempo e
espaço definidos, dos quais, por diversas razões culturais, políticas e econômicas, escolhemos
alguns em uma sucessão e interligação, e lhe damos o nome de "história". A história sob o ponto
de vista de determinado grupo étnico e cultural. É dessa forma que se contam e escrevem as
"histórias" das nações, por exemplo - preponderantemente sob o ponto de vista da ótica cultural
de grupos que detêm o domínio da cultura; os que dominam direta ou indiretamente a produção
e reprodução da cultura nessa sociedade. O mesmo ocorreu com o cristianismo em seus alvores.
A Bacia do Mediterrâneo pululava de seitas cristãs entre os séculos II e IV. Foi somente através
dos concílios eclesiásticos, que grupos (política e economicamente) dominantes puderam impor
sua maneira de interpretar a nascente religião ao restante das comunidades cristãs. Assim, aos
poucos foi sendo estabelecida a ortodoxia e a ortopraxia, sob o comando de um grupo que se
tornou hegemônico, que se denominou Igreja Católica (do grego katholikos, universal).

Se nos aprofundarmos na análise do assunto, podemos também chegar a concluir que não existe
uma só História, mas várias histórias. Histórias do Brasil, histórias da religião cristã, histórias da
ciência, histórias (ou biografias) da vida de Thomas Edison e Pelé, histórias da rede de lanches
McDonalds, histórias do hospital das Clínicas, histórias do conceito de crime político... Diversas
maneiras de interpretar uma sucessão de fatos biológicos, culturais, econômicos, políticos,
religiosos, etc. (prefiro usar o termo "teia de fatos" ao invés de "sucessão de fatos", já que
"sucessão" me parece por demais linear e, assim, unidimensional).

Estas histórias particulares sobre cada assunto (Brasil, cristianismo, Pelé, McDonalds, crimes,
etc.) são incorporadas a um "relato maior"; a história universal. Vários aspectos em comum são
encontrados entre as duas narrativas e, assim, minha história pessoal e a da minha dor nas
costas se inserem perfeitamente na história da humanidade. Mas, todas as "histórias", não
esqueçamos, são elaboradas sob determinada ótica; o relato da minha biografia junto com minha
dor lombar é narrado de acordo com aquilo que penso que seja a "minha" visão de minha
situação no mundo - visão ideológica que reúne os fatos num todo.

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As interpretações da "grande história" são baseadas em certos pressupostos, muitas vezes sob
uma perspectiva teleológica, isto é, com a intenção de dar um objetivo ou sentido àquela
"história" que se interpreta. Este é, aliás, mais um aspecto implícito e pouco percebido por trás
da história. A grande maioria das pessoas sempre tem em mente que a história, seja qual for,
sempre teve ou tem um sentido, um objetivo. Como se o sentido implícito da Revolução Francesa
fosse disseminar os ideais do Iluminismo por toda a civilização ocidental da época. Como se a
história tivesse alguma meta, objetivo, a "realização do Espírito", segundo o filósofo G. F. Hegel
ou o conceito de Parusia do cristianismo. A noção de que a história humana tem algum sentido
- uma história linear, muitas vezes conduzida por e em direção a uma divindade ou seu reino - é
comum a diversas religiões, que tomaram este conceito por diversas rotas culturais do
Zoroastrismo, religião persa fundada pelo mítico taumaturgo Zoroastro, que supostamente
floresceu no XI século AEC na Pérsia.

O que defendo aqui, junto com muitos outros autores modernos, é que não existe um conceito
único de história. Aquilo que assim denominamos é apenas uma generalização para facilitar o
entendimento de certos fatos e estabelecer um parâmetro comum, uma "linguagem", que possa
ser compreendida e usada por todos pertencentes a determinado grupo. Algo comparável ao
Sistema Métrico Decimal, sistema de medidas criado durante a Revolução Francesa, que foi
adotado como padrão na maior parte do mundo. É assim que, por exemplo, países orientais
como a China ou a Arábia, em negociações com governos ocidentais, aceitam certos parâmetros
da nossa maneira ocidental de ver a história - mas isto somente nestas ocasiões, já que países
com longa herança cultural (e histórica) são muito zelosos de suas tradições (leia-se de suas
visões culturalmente particulares de interpretar a história).
_____________________________________

Para concluir, gostaria de agregar e sintetizar os pontos que tentei defender neste curto ensaio:

- A chamada história, História ou "Grande história" reúne relatos, os quais, devido a inúmeros
aspectos culturais, políticos, econômicos, técnicos, religiosos e históricos formam a maneira
comum, universal e mais simples de disseminar conhecimentos relevantes sobre períodos de
tempo na história da humanidade, de um povo, de ideias ou de outra coisa qualquer. Esta
maneira de "contar" o que supostamente ocorreu em detalhes no passado é uma interpretação;

- Os reais acontecimentos e seus encadeamentos (se é que os houve) nunca poderão ser
recuperados. (Apenas, talvez, através de um "túnel do tempo", como imagina a ficção científica.
Isto, no entanto, suscita outra pergunta: caso seja possível, como teoriza a ciência, um dia viajar
através do tempo, que "tempos" encontraremos? A volta ao passado teria que ocorrer
alcançando-se exatamente um instante no tempo e um ponto específico no espaço. Não sendo
assim, o viajante do tempo poderia, tentando presenciar o "fato histórico" da chegada de
Colombo à América, aterrizar na costa brasileira, exatamente no dia 12 de outubro de 1492, e
não encontrar frota alguma);

- Não existe a história sob o ponto de vista do "Olho que tudo vê"; um ponto de vista absoluto,
divino. Essencialmente há quase infinitas "histórias". Cada diferente maneira de associar os
fatos, agregados por variadas ideologias, forma uma diferente visão da história. A visão que os
índios têm do processo de colonização das terras brasileiras é bem diferente daquela do
civilizado. A visão que membros de um partido têm de um período histórico, é bem diferente da
de indivíduos de outra agremiação política rival;

- Outro aspecto é que existem histórias ignoradas, se desenrolado paralelamente à história oficial
- outras visões do processo, outros pontos de vista. Sob o aspecto político, será que a história
do império no Brasil terminou? Descendentes da Casa Real brasileira ainda estão vivos - os
Orleãs e Bragança - e seguramente existem dezenas, se não centenas de milhares de brasileiros

72
que se colocam a favor da volta da monarquia; muitos deles de uma forma ou outra lutam por
isso. Assim, podemos considerar que existe uma história da monarquia no Brasil, que ainda se
desenrola. Paralelamente à história da monarquia, existe a história da padaria da esquina, a
história do grão de areia da praia e a história da árvore da floresta amazônica; aquela que nunca
ninguém viu cair;

- A história não é linear. O conceito hegeliano de "tese-antítese-síntese" é linear (pelo menos em


sua ideia original) e tem influência na maneira como a maior parte dos estudiosos encara o
estudo desta disciplina. Para teóricos de história influenciados por correntes políticas - marxistas,
socialistas, fascistas, liberais, etc. -, o devir histórico tem uma meta, que coincide com os anseios
políticos do próprio intelectual - o caso de Marx e do comunismo é o mais famoso;

- O conceito de "teia de acontecimentos", que tomamos da moderna ecologia (Odum, Capra) e


do budismo, dá uma dimensão mais rica à inter-relação que existe entre os fatos; qualquer fato
que ocorra. O devir histórico não é assim linear, mas um nó em uma extensa rede (que
poderíamos representar mentalmente como uma estrutura tridimensional onde nos nós se juntam
às linhas e cada nó representasse aquilo que chamamos de fato histórico - vide:
(https://thumbs.dreamstime.com/b/estrutura-de-rede-tridimensional-abstrata-do-wireframe-do-
pol%C3%ADgono-70049972.jpg). Nessa rede, interpretamos apenas alguns nós (os maiores?)
como sendo os fatos que consideramos na elaboração do relato histórico "oficial". Haverá, assim,
a possibilidade de inúmeras história, dependendo do ângulo de visão do intérprete;

- Assim como todas as "histórias" a "Grande história" não tem sentido algum fora dela. Não há
algo ou algum ente externo a ela - seja um Deus, um Princípio Último, um Controlador Alienígena
ou uma Ordem Oculta. Nada do que ocorre - do Big-Bang e anterior a ele, até a morte térmica
deste universo, incluindo os prováveis multiversos - está fora do âmbito da história.

Mas, sob qual ponto de vista?

73
John Locke e o liberalismo político

John Locke foi um filósofo inglês do século XVIII que exerceu muita influência sobre todo o
pensamento político desde então. Um dos aspectos importantes da filosofia de Locke foi o
conceito de “tabula rasa”, a ideia da “folha em branco”. Segundo este filósofo, todas as pessoas
nascem sem qualquer ideia ou conceito sobre algo. Isto quer dizer que não nascemos sabendo
o que é certo ou errado, o que é bonito ou feio, entre outras coisas. Ninguém quando nasce já
sabe se existe Deus ou não, qual a forma certa de educar os filhos ou qual o lugar que deve
ocupar na sociedade. Tudo o que sabemos na vida, seja o que for, aprendemos com a educação,
com a convivência, isto é, socialmente. Fora da vida social não se aprende nada.

Esta noção é importante para nós, já que ficamos sabendo de que todo conhecimento, de
qualquer pessoa, também foi aprendido e só varia do nosso em grau. Isto quer dizer, como o
próprio Locke afirmava, que ninguém é infalível, não existem instituições e pessoas livres de
erro. É preciso, pois, que haja o respeito às opiniões, já que se ninguém é dono da verdade, todo
mundo só tem opinião, adquirida através das experiências e da incorporação de ideias e
conceitos.

Apesar de hoje existirem teorias mais elaboradas, ainda existe a alegoria comum de que em
determinado ponto do desenvolvimento do homem, este se juntou aos seus semelhantes para
formar o Estado primitivo. A coisa evidentemente não sucedeu de maneira tão simples assim,
pois desde quando evoluíram de ancestrais primitivos, os antepassados do homem sempre
viveram em pequenos bandos, formados por algumas famílias, como seus primos mais próximos,
os macacos. As teorias mais recentes dizem que depois de viver por dezenas de milhares de
anos em bandos nômades, os humanos, provavelmente, por fatores climáticos, não encontraram
mais abundância de caça e viram como alternativa a prática mais intensiva da agricultura – eles
já conheciam o processo de semear e colher certos vegetais. Com a prática mais intensiva da
agricultura tiveram que se fixar em determinada região, perto de um lago ou rio, onde houvesse
abundância de água. Ali, provavelmente, cada um foi tomando conta de um pedaço de terra e
iniciando a plantação.

O tempo foi passando e outras famílias se fixaram na região. As relações sociais foram se
tornando cada vez mais complexas; era necessário criar certas regras sobre como trocar
produtos (o que vale mais, a cevada ou o sal?); como evitar fraudes e roubos, como defender
propriedades de estrangeiros mal intencionados, etc. Foi, muito provavelmente, durante
condições de convivência como essa que os homens daquela aldeia se reuniram, foram pra casa
do mais forte (ou o que tinha mais armas) e pediram que se tornasse chefe, rei, protetor,
legislador, ou algo assim.

Esta é apenas uma hipótese, parecida com a teoria da formação do Estado, segundo Locke.
Este dizia que os homens, antes de se juntarem para formar um Estado, de acertarem o “contrato
social”, já tinham certos “direitos naturais”, ou seja, direito à propriedade, à liberdade e à defesa.
Quando os homens voluntariamente se juntaram para formar um Estado, não queriam abrir mão
destas liberdades que já detinham antes.

É por este motivo que, para Locke, não podem existir opressores e oprimidos dentro de um
Estado. O filósofo inglês dizia que as injustiças começam quando certos grupos passam a ter
mais poder econômico (Locke se referia à propriedade da terra) e com isso dominam o governo
e a sociedade.

Locke foi chamado de liberal porque era a favor da liberdade para todos os súditos, já que vivia
em uma monarquia. Hoje em dia pode parecer uma coisa banal e evidente, mas no século XVIII
isto não era nada comum. Salvo a Inglaterra e talvez a Suíça e a Holanda, o restante da Europa

74
(e do mudo) era constituído por reinos absolutistas. O Brasil nesta época era uma colônia
abandonada e explorada por uma monarquia decadente e absolutista, que sobrevivia
principalmente por causa do ouro extraído em Minas Gerais.

Baseado em sua visão da formação do Estado, Locke também estabeleceu que o fundamento
do Estado fosse a liberdade, considerando o fato de que todos são iguais perante a lei, de que
todos têm direito à felicidade, à liberdade e de decidir que rumo dar às suas vidas, desde que
não prejudiquem a liberdade do outro indivíduo.

O Estado deve fazer as leis através do poder legislativo e colocá-las em execução através do
poder executivo. A ação do Estado é limitada pelos direitos naturais dos cidadãos (direito à
propriedade, à liberdade e à defesa) e se este interferir nestes direitos, os cidadãos podem reagir
e se rebelar. Como consequência disso, os governantes são sempre sujeitos ao julgamento do
povo. Mais uma vez vale lembrar que estes conceitos são bastante revolucionários para a época
em que foram elaborados. “O Estado deve temer o povo e não o contrário”, máxima adotada
posteriormente pelo patriarcas da independência americana e pelos revolucionários franceses.

Na França, a filosofia de Locke foi estudada por Voltaire e por Montesquieu. Este utilizou o
liberalismo de Locke para desenvolver seu sistema de governo escrevendo “O Espírito das Leis”.
Nesta obra, classifica os tipos de governo e acrescenta à proposta de Locke um terceiro poder:
o poder Judiciário (ficando então os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário). O livro de
Montesquieu serviu de fundamento para os revolucionários da Revolução Francesa em 1789.

Nos Estados Unidos, então colônia da Inglaterra, o pensamento de Locke influenciou os


mentores da independência; George Washington, John Adams e Thomas Jefferson
(respectivamente 1º, 2º e 3º presidentes na nova nação).

Em todas as nações do mundo, o ideal do liberalismo político – que muito tem a ver com o
liberalismo econômico desenvolvido por Adam Smith – tornou-se conhecido e acabou quase
sinônimo de democracia. O estudo do filósofo John Locke nos permite pensar sobre conceitos
banalizados e por isso esquecidos, como liberdade individual, direito à propriedade e legalidade
de um governo. Trazendo o pensamento de Locke para os nossos dias, podemos nos dar conta
de quanto suas ideias ainda não foram totalmente colocadas em prática.

Referência
Reale, Giovanni, Antiseri Dario, História da Filosofia Vol. II, Paulus Editora: São Paulo, 1990, 889
pgs.
História da Civilização Ocidental Vol I, Editora Globo: Porto Alegre, 1971, 581 pgs.

75
Kropotkin (e Hume) e as leis da natureza

Texto interessante de Kropotkin (1842-1921) sobre o anarquismo. Em determinado ponto o autor


diz que não existem "leis da natureza". Trata-se, segundo ele, do fato de que a suposta lei toma
aspecto de causalidade: "Se tal fenômeno é produzido sob certas condições, outro fenômeno
necessariamente se seguirá. Não existe uma lei colocada fora do fenômeno: todo fenômeno
governa aquele que o segue, não há lei."

A questão das "leis da natureza", de certa forma já foi analisada pelo filósofo David Hume (1711-
1776), que coloca em discussão até a lei de causalidade. Hume se pergunta se a repetição
constante de sequências de acontecimentos pode ser vista como uma regra invariável da
natureza, uma "lei", ou se é apenas uma coincidência que sempre se repete. O filósofo inglês
quer com isso mostrar que nossa interpretação da natureza é uma generalização de um processo
que ocorre da mesma maneira; o que, no entanto não quer dizer que ocorrerá sempre.

Fatos ocorrem na natureza, quando determinadas condições são dadas. São, em outras palavras
"acontecimentos que ocorrem, invariavelmente, quando determinadas condições são dadas no
início da sequência de acontecimentos que estamos analisando".

Por exemplo, se damos início a um "acontecimento observável" impulsionando uma esfera que
estava em repouso sobre uma mesa. Dependendo da aceleração que dermos à esfera e do
tamanho da mesa, aquela se deslocará até cair no chão, rolar e perder o impulso, parando.

Podemos analisar esta sequência de acontecimentos como sendo uma demonstração da lei da
causalidade. No entanto, nestas dadas condições a causalidade ocorre de determinada maneira,
que podemos chamar de lei da física (envolvendo aceleração, atrito, gravidade, etc.).

A "lei" efetivamente não está colocada fora do fenômeno; ela não existe por si só. A lei da
natureza é apenas um acontecimento que destacamos do mundo físico, e que invariavelmente
ocorre, quando certas condições são dadas. Algo como "Se P => S". Como disse Kropotkin "não
existe lei colocada fora do fenômeno", como se esta fosse alguma entidade à parte da natureza,
como por exemplo os números.

76
Materialismo histórico e materialismo dialético

Ao longo de seus debates com os membros da “esquerda hegeliana” e através de suas


pesquisas de economia, Marx havia chegado à conclusão de que “não é a consciência dos
homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, o seu ser social que determina a sua
consciência”. Ou seja, são as condições econômicas, as relações de produção, que determinam
os aspectos espirituais de uma sociedade, as ideias e as instituições; a síntese do materialismo
histórico. Escreve Marx no prefácio à Para a Crítica da Economia Política:

“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus
estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens
contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de
produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças
produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual
correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida
material condiciona o processo em geral da vida social, político e espiritual. Não é a consciência
dos homens que determina o seu ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua
consciência.” (Marx, 1974, p. 136).

A descoberta de que as condições materiais de uma sociedade condicionavam a superestrutura


– a cultura, a religião, as leis, os costumes, a ciência e a tecnologia, entre outros fatores – foi
muito importante nos estudos posteriores de Marx. A conclusão seguinte à qual chegou Marx é
que aqueles que dominavam os meios de produção – a classe dominante – sejam patrícios
romanos, nobres feudais, burgueses comerciantes ou industriais; ditavam a superestrutura,
utilizando-a para perpetuar sua situação de dominação. Em outras palavras, a superestrutura é
uma reprodução, sob certos aspectos, da infraestrutura.

Sobre esta análise dos aspectos materiais e espirituais da sociedade, escreve Stalin: “O ser da
sociedade, as condições da vida material da sociedade, eis o que determina as suas ideias, as
suas teorias, as suas opiniões políticas, as suas instituições políticas.” (Stalin, s/d, p. 29).

Com o desenvolvimento do capitalismo, principalmente depois da 2ª Guerra Mundial, a


complexidade das relações econômicas e sociais fez com que ficasse cada vez mais difícil este
tipo de análise. Na década de 1960 Louis Althusser, filósofo marxista francês, ainda tentou
explicar através de sua obra Aparelhos Ideológicos de Estado a maneira como a superestrutura
– os aparelhos ideológicos de Estado: a família, a escola, a estrutura jurídica, a organização
sindical, a cultura, entre outros – era manipulada pela classe dominante.

Hoje, no entanto a superestrutura se tornou ainda mais complexa. Em nossa moderna sociedade
de consumo, baseada nas telecomunicações e na informática, como determinar qual será a
influência destes instrumentos – a linguagem e as imagens digitais – sobre a superestrutura?
Será que efetivamente a “classe dominante” tem real controle sobre estes meios, sobre esta
superestrutura? Ainda quanto a isso, o que nos mostraram as revoluções nos países árabes, a
chamada “primavera árabe”, ou as eleições por todo o mundo – inclusive no Brasil –, com a ação
das redes sociais?

O materialismo dialético de Marx é baseado na dialética de Hegel. Para este, todo o processo
do “ser” (da totalidade) continha três “momentos”, que Marx transformou em três “fases” do
processo de perpétuo desenvolvimento da matéria e do desenrolar histórico: a tese, a antítese e
a síntese. Marx, por assim dizer, inverteu a dialética hegeliana e a apontou para o mundo
material, para a história. A dialética materialista não é um processo mental (do espírito), idealista,

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como o via Hegel, mas um processo inerente à natureza e ao devir histórico. Sobre este ponto
escreve Henri Lefebvre:

“O método é assim a expressão do devir em geral e das leis universais de todo o


desenvolvimento: essas leis são abstractas em si mesmas, mas reecontram-se sob formas
específicas em todos os conteúdos concretos. O método parte do encadeamento lógico das
categorias fundamentais, encadeamento pelo qual se encontra o devir de que elas são a
expressão concentrada.” (Lefebvre, s/d, p. 95)

Materialista, Marx não seguia o “materialismo vulgar” (como o chamava Engels); o materialismo
mecanicista e metafísico dos iluministas franceses, da esquerda hegeliana ou de Feuerbach,
entre outros. Marx havia descoberto uma dinâmica, que se aplica aos fatos históricos e à
natureza.

O materialismo dialético foi fortemente propagado por Friedrich Engels, em obras como Anti-
Dühring (1877) e A dialética da natureza (1870), onde deu ao materialismo dialético um caráter
filosófico, aplicando-o às várias ciências e quase o transformando em uma metafísica disfarçada.
Depois da Revolução Russa, na União Soviética, o materialismo dialético acabou transformando-
se no “Diamat”, instrumento de análise e de verificação da ortodoxia marxista nas ciências sociais
e naturais.

Atualmente a maioria dos filósofos não marxistas considera o materialismo histórico e o


materialismo dialético como ideias filosóficas, com pouco ou nenhuma fundamentação científica,
comparáveis às teorias psicanalíticas de Freud.

Referências
LEFEBVRE, HENRI. O materialismo dialético. Alfragide (Portugal). Edições Acrópole: s/d, 160 p.
MARX, KARL. Manuscritos Econômico-Filosóficos e outros textos escolhidos in Os
Pensadores. São Paulo. Abril Cultural: 1974, 413 p.
REALE, GIOVANNI, ANTISERI, DARIO. História da Filosofia Vol. III. São Paulo. Paulus Editora:
1991, 1113 p.
STALIN, JOSEPH. Materialismo dialético e materialismo histórico. São Paulo. Global Editora:
s/d, 63 p.

78
Metafísica: alguns aspectos

A questão do ente, “o que é?”, foi uma das principais ideias que deram origem à metafísica.
Historicamente, a metafísica remonta a Aristóteles, que a chamava de “filosofia primeira”, pois a
partir dela é que construiu todo o seu sistema filosófico. No livro IV da Metafísica, Aristóteles
escreve: “Há uma ciência que investiga o ser como ser e as propriedades que lhe são inerentes
devido a sua própria natureza” (Aristóteles, 2006). Na própria obra Metafísica, Aristóteles faz um
relato histórico, mostrando como a partir dos pré-socráticos a filosofia sempre procurou uma base
imutável para seus raciocínios, ou seja, um princípio único material (água, ar) ou imaterial (O
Número, As Formas) a partir do qual toda a physis (mundo material) fosse constituída. O grande
passo na filosofia foi quando o enfoque passou da cosmologia (que estudava o mundo em sua
diversidade, mudança e multiplicidade) para a ontologia (que pensa a unidade, a identidade e a
imutabilidade). Esta mudança se deu com o pensamento de Parmênides (século VI AEC),
quando pela primeira vez na filosofia se empregou o termo “ser” na acepção que depois foi usada
na metafísica aristoteliana.

A história da questão sobre o ser (“por que os entes existem se simplesmente nada poderia
existir?”) é, de certo modo, a história da própria metafísica. O termo “metafísica”, tinha o sentido
de "além dos livros de física”, na acepção “os livros que aparecem depois dos livros de física”
(Andrônico de Rodes, séc. I AEC). Apesar da interpretação diferente, a disciplina passou a ser
chamada por esse nome, já que se propunha a estudar a essência das coisas, daquilo que elas
são além das aparências, “além da física” (o que é o sentido original da disciplina). No século
XVII o filósofo alemão Thomasius criou a palavra “ontologia” (no sentido de “estudo do ser”) para
substituir a expressão “metafísica”, mas não teve grande sucesso. A expressão ficou restrita
principalmente aos países que foram influenciados pela filosofia alemã.

A metafísica divide-se historicamente em três períodos principais (Chauí e outros autores):

- O período que vai de Platão e Aristóteles (séc. IV e III AEC) até David Hume (séc. XVIII).

Este primeiro período caracteriza-se pela investigação do que é, da realidade em si. Todavia,
seus raciocínios baseiam-se mais em conceitos do que na realidade; o conhecimento é
sistemático, interligado, enfatizando a distinção entre a aparência e a realidade. Este período
termina quando Hume esclarece que os conceitos metafísicos não correspondem a uma
realidade existente em si mesma, sendo apenas ideias e conceitos.

- O período que vai de Kant (séc. XVIII) até Husserl (séc. XX);

Este segundo período inicia-se com Kant, que demonstra ser impossível manter uma metafísica
tradicional. A partir desse período a metafísica, mesmo usando os mesmos termos, não se
referirá mais a algo que exista em si, mas que existe no nosso conhecimento.

- A metafísica contemporânea, a partir dos anos 20 do século XX.

A metafísica contemporânea investiga aspectos como os modos de existência do ente, a


significação/sentido destes entes, as maneiras diversas como estes entes se apresentam a
nossa consciência. A metafísica atual é descritiva porque não apresenta mais uma explicação
causal da realidade. A disciplina se ocupa atualmente do estudo de temas como a liberdade e o
livre arbítrio, o tempo, Deus, a questão da individualidade, e ética, entre outros.

Sob o aspecto ontológico (investigação filosófica dos entes) a pergunta pelo ser das coisas ainda
é válida. A ontologia estuda “os entes ou seres antes que sejam investigados pelas ciências e
depois que se tornaram enigmáticos para nossa vida cotidiana” (Chauí, 2006). A ontologia,
portanto, ainda continua estudando o ser, a essência ou o sentido das coisas; o sentido do ente
físico ou natural, do ente psíquico, do lógico, matemático, estético, moral, etc. Neste aspecto os

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entes podem ser reais (“as coisas”), ideais (as ideias, as instituições, tudo que é produto do
raciocínio humano), valorizados (os valores) e podem mudar de acordo com as alterações na
cultura das sociedades, não sendo mais eternos e imutáveis, como no passado.

Quanto à questão “por que há simplesmente o ente e não antes o Nada”, colocada primeiramente
por Leibniz e depois ampliada em importância por Heidegger, continua sendo uma das mais
importantes questões da filosofia (dependendo, evidentemente, da escola filosófica). Alguns
pensadores afirmam que a única resposta para esta questão é Deus, ente que não poderá ser
provado.

Outros respondem que a resposta não tem sentido. Já outros argumentam que a questão se
baseia em uma hipótese falsa – “a hipótese segundo a qual poderia não existir literalmente nada,
um mundo absolutamente vazio” (Garret, 2008)

Referências
Aristóteles. Metafísica. Edipro. São Paulo: 2006, 363 p.
Chauí, Marilena. Convite à filosofia. Editora Ática. São Paulo: 2006, 424 p.
Crespo, Luis F.; Colombini, Elaine, A.M. Filosofia Geral – Problemas metafísicos I. CEUCLAR.
Batatais: 2008, 68 p.
Garrett, Brian. Metafísica. Artmed. Porto Alegre: 2008, 190 p.
Taylor, Richard. Metafísica. Zahar Editores. Rio de Janeiro: 1969, 141 p.

80
O mundo sensível e ideal no pensamento de Platão

O princípio das coisas sensíveis, segundo Platão, tem origem no antagonismo entre o
pensamento de Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia. Cada um dos dois pensadores, a seu
modo, procurou dar uma explicação para o problema do ser.

Enquanto os filósofos cosmológicos como Tales de Mileto, Anaxímenes e Anaximandro,


buscavam um princípio do ser na própria physis, na natureza, Heráclito de Éfeso colocou como
princípio de todo o ser a mudança. “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não
somos”, escrevia Heráclito. Todo o ser estava sujeito ao devir e em constante alteração cíclica.
No final, todo o ser (a physis, a natureza) será destruído pelo fogo e então o processo começará
novamente: “Por fogo se trocam todas (as coisas) e fogo por todas, tal como por ouro
mercadorias e por mercadorias ouro.” (Heráclito, 1996).

Já Parmênides parte do princípio (talvez influenciado pelo pensamento de Pitágoras) de que o


mundo das mudanças e das aparências é ilusório e é sobre ele que formamos as nossas
opiniões, diferentes do conhecimento. A este quadro permanentemente mutável Parmênides
contrapõe o Ser – to on, on – aquilo que é e não muda; é sempre idêntico a si mesmo, eterno,
imperecível e invisível aos nossos olhos. A este Ser imutável, o filósofo contrapôs o Não-Ser, o
qual declarou não existir efetivamente, apenas nas aparências.

Parte da obra de Platão foi dedicada a resolver este antagonismo entre a filosofia de Heráclito e
a de Parmênides. Por um lado, Platão é influenciado pelo pensamento de Heráclito no que se
refere à natureza impermanente e imperfeita do mundo material, sempre em mutação. Por outro,
o pensador ateniense concorda com o filósofo eleata de que para verdadeiramente conhecer o
“Ser das coisas” a filosofia deveria abandonar o mundo sensível – da aparência, da mutabilidade,
dos contrários – para se dedicar à esfera do inteligível. Nesta última imperam a verdade, o
conhecimento puro e a imutabilidade. O primeiro mundo, vislumbrado por Heráclito, é a realidade
sensível, é o reino das coisas, o mundo do Não-Ser. O segundo, é o mundo das ideias ou das
essências verdadeiras, o mundo do Ser, como imaginado por Parmênides.

A diferença básica entre Parmênides e Platão é que para o primeiro o mundo sensível é o do
Não-Ser em sentido efetivo, sem nenhuma realidade. Para Platão o mundo do Não-Ser é um
mundo real, mas que apenas é uma cópia daquele do Ser, das Ideias ou Ideais. Este um dos
principais aspectos do pensamento platônico: para resolver a dicotomia entre o fluxo heraclitiano
(o mundo da realidade sensível) e a imutabilidade parmediana (o mundo da imutabilidade do
Ser). Platão introduziu o conceito das Ideias, que irá influenciar toda a filosofia ocidental,
notadamente a metafísica. Dentro desta visão, as coisas têm então dois princípios: um sensível,
sujeito à mutação e a desintegração e o outro inteligível (as ideias) imutável perfeito e modelo
para toda a realidade sensível. A partir do século III o nascente cristianismo, influenciado pelo
neoplatonismo, construirá os alicerces de sua teologia com estas ideias elaboradas por Platão.

Mais tarde, Aristóteles fará em sua obra "Metafísica" uma crítica das posições dos cosmologistas,
de Heráclito e de Parmênides, sem, inclusive poupar o conceitos das ideias de seu mestre Platão.
Aristóteles introduzirá um novo conceito do ser. Mas isto já é história para um próximo texto.

Referências
Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo. Editora Ática: 2006, 424 p.
Souza, José Cavalcante. Os Pré-Socráticos. São Paulo. Editora Nova Cultural: 1996, 319 p.

81
Nietzsche e Heidegger: convergências e divergências

Toda a filosofia moderna foi influenciada pelo pensamento de Nietzsche. Seu pensamento foi o
coroamento de um processo de constante crítica à metafísica moderna, a qual tendo origem em
Descartes, passa por Hume e Kant. A crítica de Nietzsche, todavia, foi mais longe que as outras.
Em seu pensamento criticava qualquer verdade metafísica, até os conceitos defendidos pela
ciência de seu tempo. Escreve Viviane Mosé “Ao fazer uma avaliação da filosofia, da mora, da
religião, da arte, da política, enfim, da cultura, o que a genealogia de Nietzsche faz é uma crítica
da racionalidade, do conhecimento, colocando em questão a crença em todo e qualquer
fundamento originário: verdade, ser essência, identidade, unidade, princípio, causa.” (Mosé,
2005, p. 31).

Martin Heidegger, evidentemente, não poderia escapar à influência de seu conterrâneo e afirma
dele: "Nietzsche é o primeiro pensador que, perante a história universal pela primeira vez aflorada
em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a reflete internamente em toda a sua extensão
metafísica. Essa pergunta reza: como homem, em sua essência até aqui, está o homem
preparado para assumir o domínio da terra?" (Heidegger apud Giacóia Junior, 2000).

Alguns dos pontos de convergência entre os dois grandes pensadores são:

1. Ambos se ocupavam primordialmente com a metafísica. Toda a crítica de Nietzsche, em


última instância, é a crítica da metafísica de seu tempo. Heidegger, da mesma forma,
tem na metafísica o tema focal de sua filosofia. Paradoxalmente, ambos os pensadores
afirmavam que a metafísica estava morta; Heidegger queria fundar uma nova, em outras
bases;

2. Tanto Heidegger quanto Nietzsche foram bastante influenciados pelos filósofos pré-
socráticos, principalmente Heráclito de Éfeso. Para Nietzsche, a filosofia se tornou
racionalista e dualista (no sentido de contrapor um mundo ideal platônico-cristão a outro
do dia-a-dia) a partir de Sócrates e Platão. Heidegger, por sua vez, pensa que o discurso
racional da metafísica provocou o “esquecimento do ser”;

3. Ambos têm uma posição bastante crítica em relação à tecnologia, como solução para
todos os problemas humanos. Nietzsche de certo modo a desprezava e Heidegger temia
sua ação na história futura do homem.

Os principais pontos de divergência entre ambos são:

1. Nietzsche valorizava a vida, o princípio dionisíaco; tinha uma aversão contra a morbidez
da doutrina cristã em sua negação da vida e dos princípios vitais. Heidegger, por sua
vez, afirmava que é através do enfrentamento do pensamento da morte, da finitude, que
o homem poderia alcançar uma nova mentalidade. A angústia, produto deste processo
de pensamento, levaria o homem a sair de sua mentalidade do dia-a-dia, a mentalidade
do homem comum (Das Man);

2. Heidegger, talvez por suas origens humildes, valorizasse sobremodo a cultura e a


tradição alemã, a ponto de contrapô-la no pós-guerra à influência da União Soviética e
dos Estados Unidos. Nietzsche, por outro lado, não era entusiasta das tradições alemãs.
Desdenhava certos costumes da então sociedade alemã (o anti-semitismo e o costume
de tomar cerveja), como costumes pequeno-burgueses (os filisteus). Admirava, a
exemplo de seu mestre Schopenhauer, a cultura italiana e os costumes mediterrâneos.

82
Referências
CRAGNOLINI, Mônica. Nietzsche por Heidegger: contrafiguras para uma perda. Cadernos
Nietzsche, 10 p.11-25, 2001, disponível em < http://www.fflch.usp.br/df/gen/pdf/cn_010_02.pdf >
Acesso em 9/8/2009
JUNIOR GIACÓIA, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo. Publifolha: 2000, 96 p.
MOSÉ, Viviane. Nietzsche e a grande política da linguagem. Rio de Janeiro. Civilização
Brasileira: 2005, 237 p.

83
O ambiente científico-filosófico do Renascimento italiano

“É próprio do ceticismo ser perigoso. Ele desafia as


instituições estabelecidas. Se ensinarmos a todo mundo,
inclusive os estudantes do segundo grau, os hábitos do
pensamento cético, eles provavelmente não vão restringir seu
ceticismo aos UFOs, comerciais de aspirina e às mentes
canalizadas de 35 mil anos de idade. Talvez comecem a fazer
perguntas incômodas sobre as instituições econômicas,
sociais políticas e religiosas. Talvez desafiem a opinião de
quem está no poder. Então, o que aconteceria conosco?”

Carl Sagan, O mundo assombrado pelos demônios

O Renascimento em seus diversos aspectos


A diferença básica entre o homem medieval e o homem renascentista era a maneira como ambos
encaravam o mundo. O homem medieval habitava um universo ordenado por Deus que, segundo
a crença, havia dividido a sociedade em religiosos, nobres e camponeses; não havia
possibilidade de mudar esta ordem social. Cada classe devia, à sua maneira, contribuir para o
funcionamento e manutenção da sociedade. Os interesses do todos os membros da sociedade
estavam submetidos à vontade de Deus e, como esta já estava estabelecida (segundo a
intérprete da vontade de Deus, a igreja) não havia o que mudar – tratava-se de uma sociedade
estática.

Já que não havia muito no que pensar, as pessoas se preocupavam constantemente com a
salvação da própria alma – sobre a qual não tinham certeza – e assim descuidavam-se dos
assuntos mundanos (e por que se importar se Deus estava cuidando disso?). A religião tinha um
papel primordial para estas vastas populações ignorantes e supersticiosas. Foi somente na Alta
Idade Média, a partir do século XIII, que aos poucos a sociedade européia passou por alterações
de caráter econômico, social e cultural, o que acabou provocando profundas alterações nos
interesses intelectuais e espirituais do homem, mudando suas expectativas em relação à vida.

Já o sucessor do homem medieval, o homem renascentista, enxergava o mundo com outros


olhos. Seus interesses começavam, pouco a pouco, a se direcionar para este lado da vida: festas
populares, comércio, crescimento das cidades, camponeses abandonando seus senhores e
emigrando para as cidades. As estruturas sociais haviam se tornado mais flexíveis e os
interesses pelos aspectos agradáveis da vida – antes condenados pela Igreja e por uma visão
apocalíptica na religiosidade popular – haviam aumentado. Este novo tipo de mentalidade teve
importância em vários campos.

O homem mais característico do Renascimento, Leonardo da Vinci (1452-1519), foi uma mente
universal. A princípio dedicou-se à pintura e à escultura. Espírito curioso, estudou anatomia,
botânica, geologia, astronomia, mecânica e matemática. Leonardo é considerado por muitos
autores como o típico cientista do Renascimento, já que foi o primeiro a enfatizar a importância
do uso da matemática nas ciências. Além de artista e pesquisador, Leonardo também foi
inventor, músico, poeta, sendo considerado um dos maiores gênios da humanidade.

Nas artes, retorna o interesse pelos autores antigos clássicos. A Antigüidade grega e latina volta
a ser estudada: a filosofia de Platão, Aristóteles, o epicurismo, o cinismo e o ceticismo, Cícero
Sêneca e Lucrécio; todos voltam a se tornar acessíveis para um maior número de pessoas. Os

84
historiadores gregos Tucídides e Heródoto, os romanos Salústio, Lívio e Tácito voltam a ser lidos
e comentados; a Ilíada e a Odisséia de Homero, a Teogonia de Hesíodo, são textos que voltam
a figurar na ordem do dia. Na literatura, como na pintura, os temas relacionados com a mitologia
da Antigüidade tornam-se assunto principal. Um dos aspectos mais importantes do renascimento
é o humanismo. Originalmente, humanista era no século XIV aquele que se dedicava à
reestruturação dos estudos universitários. Mais tarde, o conceito foi estendido a todos os
intelectuais que se dedicavam aos estudos humanísticos, ou seja: a filosofia, a história, a
literatura e a poesia, etc.

Não é que os autores clássicos não fossem conhecidos dos intelectuais da Idade Média. Mas o
homem renascentista comparou o ideal clássico ao seu próprio mundo e daí tentou tirar novas
conclusões. Neste contexto Francisco Petrarca (1304-1374) foi considerado o primeiro
humanista, distanciando-se de Aristóteles e valorizando o socratismo, mais voltado ao
conhecimento de si mesmo. Outro aspecto importante da cultura humanista é a retomada dos
textos originais do Evangelho, em sua versão grega. Principiava então a reavaliação dos escritos
originais da religião cristã, antes exclusividade da igreja católica, passando pelo crivo dos
humanistas, que identificavam inserções realizadas ao longo dos séculos pelos diversos copistas
nos mosteiros. Um dos primeiros filólogos a enveredarem por esse caminho e iniciar uma forte
tradição nesta área foi Lourenço Valla, que provou a falsidade de um documento no qual o
imperador Constantino (séc.IV) supostamente transferia o controle do império ao papa.

Na filosofia o Renascimento caracterizou-se pela retomada dos textos originais dos filósofos
clássicos, que então estavam disponíveis em primeira mão e não através de traduções do árabe,
como na Baixa Idade Média. Com relação à filosofia platônica, seu maior expoente foi Marcílio
Ficino, que em 1462 recebeu de Cosme Médici uma vila nos arredores de Florença, onde
fundaria a “Academia Platônica”. Em suas atividades, traduziu para o latim todos os principais
textos do platonismo e iniciou a divulgação das doutrinas herméticas (ensinamentos
supostamente relacionados com a mítica figura egípcia Hermes Trimegistro).

Outro expoente do platonismo renascentista foi o pensador Pico de Mirândola, que ao lado do
platonismo também divulgou a cabala, ensinamento místico com origem no judaísmo medieval.
Pedro Pomponazzi (1462-1525) foi um dos maiores aristotélicos do período renascentista. Em
seus escritos o filósofo discute a imortalidade da alma e demonstra que não há necessidade de
explicações sobrenaturais para fenômenos naturais, antecipando um posicionamento logo
seguido pela ciência.

O maior expoente da filosofia política neste período foi Nicolau Maquiavel (1469-1527), autor de
uma das obras mais importantes da história da filosofia política, O Príncipe. Neste livro,
Maquiavel parte das condições sócio-políticas reinantes na península itálica em seu tempo e
desenvolve um manual para que o príncipe ou governante conquiste e mantenha o poder. A obra
não considera aspectos morais. Efetivamente, explorando as fraquezas humanas (cobiça, inveja,
sede de poder) o príncipe consegue tomar e manter o poder. Por esta visão amoral do
comportamento humano, a obra popularizou a expressão “os fins justificam os meios”.

Diferença entre a ciência renascentista e a medieval

A visão do universo na Idade Média era bastante diferente da visão renascentista. Na sociedade
medieval, o foco das preocupações humanas era para assuntos relacionados com a divindade.
O universo havia sido criado por Deus e neste o homem tinha apenas um papel de personagem
na história da Salvação. A sociedade, por sua vez, era mantida por Deus e não havia uma
possibilidade de mudança, de progresso. Analisando a visão medieval, W.H. Werkmeister, em
seu livro A Philosophy of Science escreve:

85
“No que concerne à ciência e à filosofia, a síntese medieval culminou no todo-abrangente sistema
de Tomás de Aquino. O racionalismo escolástico foi aqui fundido ao misticismo cristão, e o
conhecimento dos gregos foi soldado aos ensinamentos da Igreja, formando uma visão única do
universo. Fins últimos eram vistos por trás de todo processo da natureza. Uma inteligência divina
permeava o todo. E a vontade de Deus – mesmo incompreensível em detalhes – dava
racionalidade e sentido a todas as coisas. O fato de que uma criatura de Deus pudesse existir à
parte do curso da Providência, de que uma única pedra pudesse cair sem o conhecimento e o
planejamento do Construtor do Céu e da Terra, era um pensamento intolerável.” [...]” esta visão
tomística do mundo era sublime em sua concepção. Foi pelo menos, como exaltado, comparável
à melhor criação do gênio grego. Mas, infelizmente, era amarrada pelas falsas concepções das
leis naturais feitas por Aristóteles e o esquema geocêntrico de Ptolomeu.” (Werkmeister, 1940,
p. 3, tradução nossa).

Com as mudanças sociais, econômicas e culturais proporcionados por diversos fatores já citados
e ocorridas no período do Renascimento, a ciência deixou de considerar o universo explicado
por uma filosofia, o aristotelismo; deixou de se preocupar com o “por que” medieval e passou a
se interessar pelo “como”. Os filósofos-cientistas deste período (Copérnico, Kepler, Leonardo,
Galileu, Servet, entre outros) passaram a realizar experiências. Por sua vez, desta maneira
descobriram a existência de “leis” inerentes aos fenômenos naturais, o que permitiu a aplicação
cada vez maior da matemática. O desenvolvimento gradual da ciência fez com que o homem
vislumbrasse a possibilidade de dominar a natureza, compreendendo suas leis, e ao mesmo
tempo podendo extrair dela as riquezas. Em Epistemologia das Ciências Hoje, Carlos Henrique
Escobar, escreve:

“Na leitura que “espontaneamente” se faz da revolução no pensamento provocado pela física, se
situam, sobretudo, os temas colonialistas do poder do “homem sobre os meios”, mas de um
poder decididamente do “homem burguês”, que então se sentia o “homem universal” e
contrastava com o homem medieval contemplativo.” (Escobar, 1975, p. 91).

Foi no período do Renascimento que se desenvolveu o fundamento do que se convencionou


chamar de “redução naturalista”, isto é, a “exigência de encontrar em todas as coisas e em cada
uma delas o princípio explicativo natural, excluindo todos os outros.” (Reale, Antiseri, 1990, p.
151). Galileu, o grande cientista do período, foi o iniciador de uma atividade que hoje domina o
universo cultural da sociedade: a pesquisa científica.

O aspecto religioso no Renascimento

O período medieval foi dominado pela presença quase hegemônica da igreja católica. Apesar do
grande número de seitas heréticas – combatidas fortemente pela Inquisição criada no século XIII
– e de opositores à visão tomística, o catolicismo conseguiu manter-se por mais de um milênio.
Todavia, por diversos fatores, o paradigma medieval acabou se exaurindo, permitindo o
aparecimento de novas interpretações. Thomas Kuhn, referindo-se a mudanças de paradigmas,
escreve:

“A transição de um paradigma em crise a outro novo, do qual possa surgir uma nova tradição de
ciência normal, está longe de ser um processo de acumulação, ao qual se chega por meio de
uma articulação ou ampliação do antigo paradigma. É muito mais uma reconstrução do terreno,
a partir de novos fundamentos, reconstrução que muda algumas das generalizações teóricas
mais elementares do terreno, assim como também muito dos métodos e aplicações do
paradigma.” (Kuhn, 2006, p.139).

A análise aqui feita sobre a mudança de paradigma na ciência, aplica-se também aos paradigmas
religiosos. O homem deixou sua visão fatalista, sua completa submissão a Deus e a seus
desígnios, e cogitou da possibilidade de uma participação humana maior na história da Salvação.

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A partir desta visão, iniciam-se os questionamentos da hierarquia e dos dogmas da igreja
católica, (já ocorridos a partir do final da Idade Média) e a possibilidade de um contato com a
divindade, sem ação de intermediários (os sacerdotes). Paralelamente a este questionamento
da teologia e da organização da igreja, surgiram novas forças, que reinvindicavam uma maior
autonomia social, econômica e política, sem o controle da instituição religiosa.

A proibição dos lucros, a posse das terras da Igreja e a influência junto ao governante, eram
campos onde a hierarquia religiosa competia com a ascendente burguesia comercial. Esta,
então, tinha o maior interesse possível em apoiar os movimentos que se antepunham ao ainda
restante poderio da Igreja. Neste contexto, a Reforma Protestante e outros movimentos de
ruptura institucional com a Igreja, foram apenas o coroamento de um longo processo, que já se
iniciara no século XII, após as Cruzadas.

Conclusão

O Renascimento foi uma das fases mais revolucionárias de mudanças de paradigmas da


humanidade – se não a maior. Neste período se encontram as origens daquilo que no decorrer
dos próximos 600 anos veio a constituir a civilização moderna ocidental. No Renascimento
encontramos:

a) Uma nova visão do homem; agente de seu próprio destino, não mais sujeito a Deus, mas
sujeito da história. O homem é chamado a construir nações através de sua própria ação; da
ação do Príncipe (Maquiavel);
b) O mundo é para ser estudado; o homem deve conhecer as leis da natureza, a fim de dominá-
la e desenvolver a tecnologia. “Saber é poder” (Francis Bacon);
c) O homem não precisa de intermediários para conhecer a vontade de Deus ou para contatá-
Lo. Não precisa da hierarquia sacerdotal para comunicar-se com a divindade, já que todo
crente é um sacerdote e pode interpretar livremente a Sagrada Escritura (Lutero);
d) O homem não aspira mais ao ascetismo, como o homem medieval. A nova maneira de
agradar a Deus é através do trabalho duro, no comércio e na manufatura. O sucesso
econômico de um homem é indício de ter sido escolhido por Deus (Calvino).

Referências
ADLER, M ; WOLFF P. Foundations of Science and Mathematics. Encyclopaedia Britannica, Inc.:
Chicago, 1960, 233 p.
BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental Vol. I. Editora Globo: Porto Alegre,
1971, 581 p.
ESCOBAR, Carlos Henrique. Epistemologia da Ciências Hoje. Pallas S.A.: Rio de Janeiro, 1975,
176 p.
GOMES, Morgana. A vida e o pensamento de Galileu Galilei. São Paulo: Editora Minuano, 2007,
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KUHN. T. S. La Estrutura de las Revoluciones Cientificas. Fondo de Cultura Economica de
Argentina S.A.: Buenos Aires, 2006, 319 p.
REALE, G. ANTISERI, D. História da Filosofia – Volume II, Paulus Editora: São Paulo, 1990, 233
p.
SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios, Editora Schwarcz Ltda.: São Paulo, 2006,
509 p.
WERKMEISTER, W. H. A Philosophy of Science. Harper & Brothers Publishers: New York, 1940,
551 p.

87
Albert Caraco, filósofo do caos
"Eu nasci para mim mesmo entre 1946 e 1948, foi então que abri meus olhos para o mundo, até
este momento era cego."

Albert Caraco em "Ma Confession" (Minha Confissão)

As primeiras três décadas do século XX foram um período de grandes movimentos sociais,


econômicos e culturais. Depois da guerra entre a Rússia e o Japão (1905), ocorreram uma série
de eventos catastróficos que moldaram a história do século XX e também do século XXI: a
Primeira Grande Guerra (1914-1918), a Revolução Russa (1917), a quebra da bolsa de Nova
York (1929); dando início a uma grave crise econômica que afetou o mundo por vários anos e
contribuiu para a ascensão do nazismo (1933).

No campo da ciência, os avanços construíram a base da tecnologia eletrônica dos nossos


tempos: a teoria Quântica, criada por Planck em 1900 e desenvolvida ao longo das primeiras
décadas do século XX por outros cientistas; a teoria da Relatividade (1915) por Einstein e o
Princípio da Indeterminação (1927) por Heisenberg.

Nas artes a criatividade também foi muito grande: Expressionismo, Fauvismo, Cubismo,
Futurismo, Abstracionismo, Dadaísmo e Surrealismo, entre os principais movimentos.
Compositores como Schoenberg e Stravinsky revolucionavam a música, enquanto que
intelectuais como Husserl, Durkheim, Russel, Heidegger, Tönnies, Scheler, Wittgenstein, Weber,
Simmel, Dewey, Pareto, Ortega y Gasset, Whitehead e Sartre, foram alguns dos pensadores que
ditavam novos rumos na filosofia e sociologia.

Um mundo em ebulição. No meio de toda esta agitação cultural e social, ocorria a movimentação
de milhões de pessoas das regiões rurais para as cidades. O velho ditado medieval alemão
"Stadtluft macht frei nach Jahr und Tag" (O ar da cidade torna livre depois de ano e dia)
concretizava-se para aqueles que ainda viviam no campo (as primeiras grandes migrações para
as cidades ocorreram na segunda metade do século XIX) e queriam participar da vida agitada
das cidades. Ao mesmo tempo, grandes contingentes humanos, sem oportunidades nas cidades
afetadas pela crise econômica, emigravam do continente europeu para as Américas,
principalmente os Estados Unidos.

Foi nesse ambiente que nasceu Albert Caraco. Filho de José Caraco e Elisa Schwarz, judeus
sefarditas, Albert veio ao mundo em Istambul, em 8 de julho de 1919. A família Caraco viajou
muito pelo Europa, passando por Viena, Praga e Berlim, para se estabelecer em Paris. Foi lá
que Albert se graduou na École des Hautes Études Commerciales (Escola de Altos Estudos
Comerciais) em 1939. Pressentindo o perigo do nazismo se alastrando na Europa, José Caraco
toma a família e deixa Paris em direção à América do Sul, passando por Honduras, Brasil (Rio
de Janeiro) e Argentina, estabelecendo-se no Uruguai. Lá a família se converte ao catolicismo e
passa a morar em Montevidéu.

A permanência em tantos países durante sua infância e juventude fez com que Albert Caraco
falasse e escrevesse alemão, francês, inglês e espanhol, o que lhe proporcionou acesso a
grande parte da produção cultural desta línguas. Assim, ainda morando em Montevidéu, Albert
Caraco publica peças de teatro e coleções de poemas. Em 1946, terminada a Guerra, a família
volta para Paris, onde Albert Caraco permanecerá até o final da vida.

88
Em Paris Caraco não exercia nenhuma atividade profissional, vivendo dos recursos da família.
Também não se tem notícias de qualquer ligação sentimental que tivesse tido ao longo de sua
vida. Era dedicado aos pais, principalmente a mãe, que chamava de "Señora Madre" em seus
escritos. Levava vida regrada, dedicando seis horas por dia aos seus escritos - sua colossal obra
até hoje não foi editada completamente. Depois de voltar a Paris, Caraco abriu mão do
catolicismo ao qual havia se convertido junto com seus pais e voltou ao judaísmo. Em seus
escritos declara-se ateu, nutrindo, no entanto, uma admiração pelo misticismo, a exemplo de seu
contemporâneo em Paris, o filósofo romeno Emil M. Cioran (1911-1995).

O sofrimento e a morte por câncer de sua mãe, "Señora Madre", o marcou profundamente. Tanto,
que escreveu um livro, Post Mortem, descrevendo o desenvolvimento da doença e o efeito que
o processo causava sobre ele. Mais tarde, no dia 7 de setembro de 1971, alguns dias depois da
morte de seu pai, Caraco aos 52 anos dava cabo de sua própria vida, como já havia comunicado
anteriormente a um editor.

Albert Caraco não foi um filósofo acadêmico, e talvez seja esta a grande característica de seu
pensamento. O conteúdo único de suas obras, suas análises e críticas, caracterizam um
pensamento filosófico peculiar. A maior parte da obra mais conhecida de Caraco foi publicada
após sua morte. Apesar de ter produzido material bastante variado, formado por peças de teatro,
poesias, ensaios filosóficos, meditações sobre arte e sociedade, diários e artigos diversos,
Caraco sempre continuou ignorado pelo grande público. Mesmo na França, país onde lançou
parte de seu trabalho, o autor é pouco conhecido, até mesmo no meio universitário.

Pessimista e acusado de misógino e racista, Caraco reuniu em seus textos todas as contradições
de sua época. Criticava um mundo que caminhava para a superpopulação e a destruição dos
recursos naturais, guiado por governantes cegos e cínicos, que se utilizavam de falsas ideias
para iludir as massas. Com relação a essas, criticava a situação do homem comum, atomizado
e ao mesmo tempo massificado, tornado engrenagem de uma máquina imensa, da qual a
finalidade lhe é desconhecida.

Partindo de pontos comuns às filosofias de Nietzsche (1844-1900), Schopenhauer (1788-1860)


e Mainländer (1841-1876), entre outros, Caraco desenvolveu uma filosofia da indiferença,
partindo dos temas clássicos do niilismo europeu. Um dos aspectos de sua obra é a análise e
crítica de toda a hipótese explicativa das origens do universo; caos, absoluta indiferença, nada.
Caraco analisou as consequências deste "nada" na sociedade, na arte, na política, na condição
humana. Recusava as explicações religiosas - apesar de respeitar a espiritualidade -, qualquer
forma de transcendência, toda forma de ordem. Estava preocupado com as catástrofes, a morte,
a corrupção e a decadência e não tinha nenhum tipo de fé no progresso e na modernidade, ao
contrário. Caraco sempre foi um grande demolidor destes mitos. Devido à estranheza de suas
ideias, somente uma pequena parte das obras do pensador foram traduzidas para outras línguas,
além do francês.

O pessimismo de Caraco fez com que algumas vezes fosse chamado de "Heresias de Cirene
moderno". Heresias, pensador nascido na cidade de Cirene no século III AEC, argumentava que
a felicidade é impossível de alcançar e que o objetivo da vida era evitar dor e tristeza. Para o
filósofo, valores convencionais como riqueza, pobreza, liberdade e escravidão, são todos
indiferentes e não produzem mais prazer do que dor. Heresias, provavelmente influenciado por
missionários budistas que conheceu ao longo de sua vida, provocou vários suicídios por causa
de sua doutrina, tendo sido proibido de ensinar.

Em seus escritos Caraco externou várias vezes a ideia de que nada no mundo merece ser salvo;
nem a arte que degenerou em produto de consumo e embrutecimento das massas; nem a

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religião que além de fazer o mesmo também instrumentaliza as massas; nem a política e a
economia, que levaram milhões de pessoas à morte e à miséria.

As obras mais famosas de Caraco são Bréviaire du chaos (lançado postumamente em 1982) e
Post mortem (lançado em 1968). Pelo que pudemos pesquisar, são estas as únicas obras do
autor traduzidas para outras línguas; a primeira para o espanhol e o turco e a segunda somente
para o espanhol. Outras obras escritas por Caraco e já lançadas, incluem:

1941. Inès de Castro (suivi de) Les martyrs de Cordoue. Rio de Janeiro: Livraria Geral Franco
Brasileira. 173 p. (Deux tragédies classiques. La couverture porte: Editions Bel-Air).

Curiosamente, este livro consta como tendo sido lançado na cidade de Rio de Janeiro. Não
conseguimos encontrar informações sobre qual foi o período de permanência da família Caraco
na cidade.

1942. Le cycle de Jeanne d’Arc (suivi d’un choix de poèmes). Buenos Aires: Argentina Aristides
Quillet. (Plaquette illustrée par l’auteur).

1942. Le mystère d’Eusèbe, illustré par l’auteur. Buenos Aires: Argentina Arístides Quillet. 187 p.

1942/43. Contes. Retour de Xerxès. Buenos Aires: Argentina Aristides Quillet. 303 p. (Colophon
daté 1942. Contes symboliques, fantastiques et philosophiques illustrés par l’auteur).

1949. Le livre des combats de l’âme. Paris: E de Boccard. 235 p. (Recueil de poèmes mystiques.
Prix Edgar Poe, Paris).

1952. L’école des intransigeants: Rébellion pour l’ordre. Paris: Nagel. 289 ou 291 p. (Maximes
morales).

1952/53. Le désirable et le sublime: phénoménologie de l’Apocalypse. Neuchâtel: A la


Baconnière. 395 p. (Somme philosophique. Copyright 1952, imprimé en 1953). Rééd. Lausanne:
L’Age d’Homme, 1978 ou 1979, 395 p.

1957. Foi, valeur et besoin. Paris: E de Boccard. 241 p.

1957. Apologie d’Israël, 1: Plaidoyer pour les indéfendables. Paris: Fischbacher. 202 ou 203 p.
Rééd. Lausanne: L’Age d’Homme, 2004, avec La marche à travers les ruines et Colonne
d’ombre, colonne de lumière, 323 p.

1957. Apologie d’Israël, 2: La marche à travers les ruines. Paris: Fischbacher. 205 ou 211 p.
Rééd. Lausanne: L’Age d’Homme, 2004, avec Plaidoyer pour les indéfendables et Colonne
d’ombre, colonne de lumière, 323 p.

1963. Huit essais sur le mal. Neuchâtel: A la Baconnière. 370 p. Rééd. Lausanne: L’Age
d’Homme, 1976 ou 1978, 370 p.

1965. L’art et les nations: la physique des styles. Neuchâtel : Ed. de la Baconnière. 333 p. Rééd.
Lausanne: L’Age d’Homme, 1979, 333 p.

1966. Le tombeau de l’histoire. Neuchâtel: La Baconnière. 605 p. Rééd. Lausanne: L’Age


d’Homme, 1976, 604 p.

90
1967. Le galant homme: un livre de civilité. Neuchâtel : A la Baconnière. 343 p. Rééd. Lausanne:
L’Age d’Homme, 1979, 341 p.

1967. Les races et les classes. Lausanne: L’Age d’Homme. 413 p.

1968. Post mortem. Lausanne: L’Age d’Homme. 119 p. (La Merveilleuse Collection, 13). Rééd.
sous le titre Madame Mère est morte, (Paris) : Lettres Vives, 1983 ou 1984, xiii-110 p. (Coll. Entre
4 yeux, préface Michel Camus). Repris sous le titre original en fin de volume du Semainier de
l’agonie, 1985.

1968. La luxure et la mort: relations de l’ordre et de la sexualité. Lausanne: L’Age d’Homme. 257
p.

1970. L’ordre et le sexe. Lausanne: L’Age d’Homme. 272 p. (Préfaces en anglais, allemand,
espagnol et français).

1974. Obéissance ou servitude. Lausanne: L’Age d’Homme. 403 p.


1975. Ma confession. Lausanne: L’Age d’Homme. 260 p.

1975. La France baroque. Lausanne: L’Age d’Homme. 245 p.

1975. Simples remarques sur la France. Lausanne: L’Age d’Homme. 168 p.

1976. L’homme de lettres: un art d’écrire. Lausanne: L’Age d’Homme. 293 p.

1982. Bréviaire du chaos. Lausanne: L’Age d’Homme. 126 p. (Collection Le bruit du temps).
Rééd. Lausanne: L’Age d’Homme, 1999, 126 p. (coll. Amers, 1)

1982. Essai sur les limites de l’esprit humain. Lausanne: L’Age d’Homme. 257 p.

1983. Supplément à la « Psychopathia sexualis ». Lausanne: L’Age d’Homme. 174 p. (Collection


Le bruit du temps)

1984. Ecrits sur la religion. Lausanne: L’Age d’Homme. 346 p.

1985. Le semainier de l’agonie: le semainier de 1963, suivi de Post mortem. Lausanne: L’Age
d’Homme. 329 p.

1994. Abécédaire de Martin-Bâton. Lausanne: L’Age d’Homme. 156 p. (Coll. La Fronde).

1994. Semainier de l’incertitude. (Lausanne) : L’Age d’Homme. 202 p.

2001. Semainier de l’an 1969: du 10 mars au 27 juillet. Lausanne: L’Age d’Homme. 157 p.

2004. Apologie d’Israël. Lausanne: L’Age d’Homme. 323 p. (Contient une réédition de Plaidoyer
pour les indéfendables et de La marche à travers les ruines (1957) et la première édition
de Colonne d’ombre, colonne de lumière).

Abaixo, algumas citações do filósofo, extraídas de algumas de suas publicações:

"Quanto mais eu fico velho, tanto mais a Gnosis fala à minha razão. O mundo não é ordenado
por uma Providência, é intrinsecamente mau, profundamente obscuro, e a Criação é o sonho de
um intelecto cego ou o jogo de um Princípio sem moral." (Ma Confession)

91
"...O Nada ou a História; temos que escolher entre duas alternativas, mas a segunda é muito
frequentemente uma agonia perpétua e o Nada parece preferível... A Graça parece estar
excluída, mas apesar da lógica, não é impossível que nos aconteça a Graça cair em uma linha
vertical, abrindo um buraco entre nós e o atemporal, nós que estamos à mercê do rio no qual
flutuamos." (Le Tombeau de l' Histoire)

"As cidades que habitamos são as escolas da morte, porque são desumanas. Cada uma se
converteu em centro de boato e mau cheiro, cada uma convertida em caos de edifícios, onde
nos empilhamos em milhões perdendo nossas razões de viver. Infelizes sem remédio, nos
sentimos, querendo ou não, expostos aos labirintos do absurdo, do qual não sairemos a não ser
mortos, porque nosso destino é sempre o de nos multiplicarmos, com o único objetivo de
parecermos inumeráveis. A cada volta da roda, as cidades que habitamos avançam
imperceptivelmente umas contra as outras, aspirando a confundirem-se. É uma mancha em
direção ao caos absoluto, no ruído e no mau cheiro." (Breviario del caos)

"Quando quiserem saber quais foram nossos verdadeiros deuses, deverão julgar-nos segundo
nossas obras e nunca segundo nossos princípios. Então não nos envergonharemos em
responder e dizer que não nos permitiram dizer e nem sequer pensar: "Adorávamos a loucura e
a morte". Na realidade, já não adoramos outra coisa, no entanto não podemos reconhecê-lo,
porque a loucura e a morte são o fim das religiões reveladas, e estas religiões as contêm em
potência, a começar pela cristã. Colocamos a morte e a loucura sobre os altares..." (Breviario del
caos)

"Nossos intelectuais não sabem mais do que representar e nossos religiosos não sabem mais
do que mentir. Nenhum sonha com repensar o mundo, nenhum nos propõe formas de examinar
as evidências. Todos querem fazer carreira e é admirável a capacidade com a qual se utilizam
uns dos outros, sem jamais ferirem as conveniências." (Breviario del caos)

"A catástrofe é necessária, a catástrofe é desejável, a catástrofe é legítima, a catástrofe é


providencial. O mundo não se renova de outra maneira e se o mundo não se renova, deverá
desaparecer com os homens que o infectam. Os homens se propagaram sobre o universo como
uma lepra e quanto mais se multiplicam, mais o desnaturam. Creem servir aos seus deuses
tornando-se mais inumeráveis. Seus comerciantes e sacerdotes aprovam sua fecundidade; uns
porque os enriquece, os outros porque se lhes acreditam." (Breviario del caos)

"O mundo que habitamos é duro, frio e sombrio, injusto e metódico. Seus governos são imbecis
patéticos ou grandes perversos. Nenhum deles está mais de acordo com esta época, estão
superados. Sejam pequenos ou grandes, sua legitimidade parece inconcebível e o poder não é
mais que um poder protocolar, um mal menor ao qual nos resignamos." (Breviario del caos)

"Pois vamos morrer com nossas obras e por nossas obras." (Breviario del caos)

"Nossos inimigos são aqueles que nos falam de esperança e nos anunciam um futuro de trabalho
e paz, onde nossos problemas se resolverão e nossos desejos se realizarão." (Breviario del caos)

"Quando cada qual tem razão, tudo está perdido, tudo se torna permitido e possível; é a hora
trágica por excelência e esta é a nossa." (Breviario del caos)

"Se os homens não esperassem nada, sua sorte não seria a mesma. Se os homens não
acreditassem em nada, sua condição talvez mudasse. Assim a esperança e a fé só aumentam
seus males, mas fazem felizes os seus amos." (Breviario del caos)

92
"Me contento com o Deus dos filósofos. Eu mesmo sou uma pessoa e não busco nada fora de
mim. Consinto em minha morte eterna e a ideia de salvação me parece um delírio; ser salvo é
uma violação metafísica." (Post mortem)

Referências
http://albert-caraco.blogspot.com.br/p/bibliographie.html
http://illusioncity.net/albert-caraco/
http://p2.storage.canalblog.com/25/21/1366039/111029471.pdf
https://archive.org/details/caracoca
http://albert-caraco.blogspot.com.br/p/bibliographie.html
Caraco, Albert. Post mortem. México, D.F. Editorial Sexto Piso: 2006, 119 p.
Caraco, Albert. Breviario del caos. Madrid. Editorial Sexto Piso: 2004, 128 p.
Bréviaire du chaos (em francês) disponível em:
(https://ia601403.us.archive.org/2/items/caracoca/caracoca.pdf)

93
O muro está lá

O muro cinza, com partes mal-acabadas, coberto somente de massa grossa. Aspecto de
abandono, onde há muito não foi feito renovado mais nada. Uma cor cinza. Talvez me lembre de
muros velhos, de casas velhas que vi na infância. O cimento áspero, lavado pela chuva durante
muitos anos. Na massa grossa desgastada que cobre o muro, há pedaços diminutos de quartzo
e mica refletindo a luz do sol.

Quem terá construído este muro, esta parede? Quem foram eles? Quando? Há dez anos, há 20
anos, talvez? Difícil saber pela aparência do muro. O que pensavam, viviam e falavam, enquanto
era feita a construção?

E agora o muro está lá. Desde que foi erguido permanece firme, em pé, cumprindo a função para
a qual foi destinado. Quantos dias de sol, chuva e frio já teriam passado desde que foi
construído? Acontecimentos, vivências, e o muro há muito esteve lá.

Não tem nenhum significado especial. É uma parede com cerca de quatro metros de altura e uns
vinte de comprimento. Algumas partes não foram bem rebocadas e provavelmente desde que foi
construído não foi reformado. Parece ter sido feito às pressas, sem muito cuidado.

Por que temos que colocar ordem em tudo? Essa obsessão por tentar ordenar teórica e
praticamente todo o universo não seria a nossa perdição? Não é melhor deixar a natureza (nome
que damos às complexas inter-relações que atuam sobre tudo e acabam transformando o ente)
tomar o seu rumo e atuar livremente com suas forças, como acontece neste muro?

Ordenar, organizar, intervir, adaptar; essa ação de antropomorfizar o ente. Uma tentativa de
arrumar um universo, que não tem a ordem que os homens pensam lhe impor, ou que pensam
ter que lhe impor.

Aparentemente caótico, o universo parece não ter uma lógica de funcionamento, mesmo que
imperceptível, que fuja à nossa compreensão.

A teoria da indeterminação e a física quântica especificamente. Não sabemos e não podemos


prever o que acontecerá com as partículas (e o ente).

Nossas construções teóricas, visões de mundo, teorias, doutrinas, ordens sociais, engenhos,
estruturas; tudo simples tentativas (talvez vãs) de procurar entender aquele muro, o universo.

94
O papel do pesquisador teórico na contemporaneidade

O pesquisador teórico desempenha um importante papel na elaboração do conhecimento


especializado. Historicamente, grande parte das teorias nas áreas da sociologia, filosofia,
economia e outras ciências humanas, é produto do trabalho constante de gerações de
pesquisadores teóricos. Basta estudarmos as origens da sociologia, para constatarmos o peso
que o trabalho de pesquisa desempenhou na formação desta ciência. Parcela considerável das
teorias de Durkheim, Weber e Mannheim, por exemplo, foram elaboradas tendo como base
informações disponíveis em registros, livros, estatísticas e relatos. Coletando e interpretando
este material, os três grandes sociólogos desenvolveram novas teorias, que serviram como base
ao desenvolvimento da sociologia e de outras ciências relacionadas.

Outro exemplo de incansável pesquisador é Karl Marx, que formado em filosofia e munido de
imensa cultura geral, iniciou uma longa pesquisa em diversas fontes, desenvolvendo uma análise
crítica da sociedade e do sistema econômico de seu tempo. Este estudo, analisando o início do
desenvolvimento do capitalismo, resultou em uma obra que até hoje ainda tem validade em
diversos aspectos. Marx vai tão longe, que considera a sua própria obra como um trabalho de
pesquisa.

No prefácio à primeira edição de sua obra “O Capital”, o pensador escreve: “O físico observa
processos naturais seja onde eles aparecem mais nitidamente e menos turvados por influências
perturbadoras, seja fazendo, se possível, experimentos sob condições que assegurem o
transcurso puro do processo. O que eu, nesta obra, me proponho a pesquisar é o modo de
produção capitalista e as suas relações correspondentes de produção e circulação.” (Marx,
1983).

A pesquisa não tem só papel importante nas ciências humanas. Mais um exemplo de
pesquisador teórico, especificamente no campo da física, foi Albert Einstein. Este desenvolveu
considerável parte de sua teoria da Relatividade Restrita (1905) e da Relatividade Geral (1916)
a partir de experiências publicadas por outros cientistas e baseado em dados teóricos disponíveis
em vasta literatura especializada. O grande mérito de Einstein foi fazer uma síntese com os
dados disponíveis e a partir deles desenvolver uma nova teoria física, que explicava o
funcionamento de certos aspectos do universo, sobre os quais a ciência da época ainda não
tinha respostas.

A principal habilidade de todo pesquisador teórico – seja em que área da ciência for – é a
capacidade de reunir um grande número de dados e informações, interpretá-los e então
desenvolver uma nova teoria sobre o assunto. Foi isto o que basicamente fizeram todos os
grandes cientistas teóricos e filósofos dos últimos 150 anos. A filosofia, mais especificamente,
foi em toda a sua história uma constante tentativa de reunir informações (teorias das escolas
anteriores) e reinterpretá-los sob novos moldes; sempre um trabalho de pesquisa, análise e
desenvolvimento de novas teorias.

Por essa razão, é de vital importância o trabalho do pesquisador teórico, seja em que área for;
tanto nas ciências exatas quanto nas humanas. A partir desta pesquisa é que se desenvolvem
as novas teorias, as quais apesar de não explicarem definitivamente o fenômeno estudado (o
que seria impossível, dado o constante desenvolvimento do conhecimento e das diversas
maneiras de obtê-lo), ajudam-nos a interpretar nossa vida e nossa sociedade de uma nova
maneira, abrindo novos horizontes ao pensamento. Este processo é enfatizado pelo teórico da
ciência, Thomas S. Kuhn, que escreve: “La transición de un paradigma em crisis a otro nuevo de
que pueda surgir uma nueva tradición de ciencia normal, está lejos de ser un processo de
acumulación o una ampliación del antiguo paradigma. Es más bien uma reconstrucción del
campo, a partir de nuevos fundamentos, reconstrucción que cambia algunas de las

95
generalizaciones teóricas más elementales del campo, así como también muchos de los métodos
y aplicaciones del paradigma.” (Kuhn, 2006).

Referências
KUHN, Thomas S. La estrutura de las revoluciones científicas. Fondo de Cultura Econômica de
Argentina. Buenos Aires, 2006. 319 p.
MARX. Karl. O Capital: Crítica da Economia Política, Vol I, Livro 1º. Abril S.A. Cultural. São Paulo,
1983. 301 p.

96
O pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel

Um dos principais aspectos do pensamento de Kant eram as “categorias”. Estas estruturas


mentais representam a maneira através da qual o pensamento e a consciência funcionam. Estes
esquemas mentais têm caráter a priori, isto é, existem antes e não são resultado da experiência.
Sendo assim, essas estruturas são independentes do que pensamos e de todo desenvolvimento
biológico e cultural pelo qual passamos. Estas estruturas de mentais incluem conceitos como
“substância”, “causa”, “existência”, “realidade”. Assim, segundo Kant, podemos ter experiência
do mundo exterior, mas apenas podemos ter certeza desta existência porque temos a priori a
categoria que nos proporciona uma estrutura para esta experiência. Como consequência, só
podemos ver o mundo de um modo bastante particular, condicionado pela correspondente
categoria, e nunca da maneira como o mundo realmente é, “em si mesmo”. Este mundo “em si
mesmo” é o do noumeno, definitivamente incognoscível para o homem. O mundo que para nós
se revela por meio das categorias é o mundo da experiência cotidiana ou fenomênico.

Hegel começa suas críticas ao pensamento do antecessor atacando a noção do mundo “em si
mesmo”. Para Hegel este conceito era completamente vazio, uma abstração sem qualquer
fundamento. O noumeno não existia para Hegel e o que efetivamente existia vinha manifesto à
consciência através do pensamento e do sentimento. Outro aspecto da crítica é que segundo
Kant as categorias eram distintas e imutáveis, o que significava que a experiência humana era
imutável. Diferentemente Hegel assume que as experiências são mutáveis, assim como a
realidade experimentada o é. Trata-se, pois, de um processo dialético, no qual a interação
mente/realidade é sempre sujeita e causadora de mudanças num processo constantemente em
evolução.

Esta noção da constante mudança Hegel encontra tanto na mente, quanto na realidade histórica.
Tudo está em frequente mutação e cabe à filosofia explicar como e porque ocorre este processo.
Hegel então faz referência ao processo através do qual a consciência evolui, primeiro pela
apreensão do mundo, como “consciência sensível”, aquela que faz com que o sujeito perceba a
si mesmo e seu mundo. Todavia, esta consciência é enganosa, já que considera como
verdadeiro aquilo que percebe. Depois, através da experimentação do mundo e ao reconhecer-
se nesta experimentação, a consciência amplia sua percepção e seu saber, encontrando-se a si
mesma. Através de um processo de substituição de conhecimentos cada vez mais abrangentes
e profundos, a consciência passa, finalmente, a abarcar a totalidade.

A idéia de Hegel, segundo Abrão, é “atingir o absoluto, isto é, a inserção consciente do espírito
na totalidade”. A consciência em uma primeira etapa se afirma distinta do mundo. Após percorrer
um trajeto de contingências históricas diversas, a consciência reencontra-se no mundo, mas
agora de modo consciente, conhecendo a realidade em todos os seus aspectos. Resolve-se
nesta etapa a oposição que existia entre o mundo e a consciência em uma primeira fase; agora
com a afirmação da consciência ante a totalidade. Vemos aqui de forma bastante conceitual o
princípio básico da lógica de Hegel:

“Toda noção ou ‘tese’, contém dentro de si uma contradição, ou ‘antítese’, que só é solucionada
pelo surgimento de uma nova noção, mais nova e mais rica, chamada ‘síntese’, a partir da própria
noção original.” (Buckingham et al p. 183)

Este desenvolvimento da consciência Hegel explicitou em sua primeira obra, a Fenomenologia


do Espírito. Depois de descrever a maneira como uma consciência individual pode operar, Hegel
projeta este mesmo sistema sobre formas coletivas de consciência, mostrando que tais princípios
também ocorrem em períodos históricos e em acontecimentos específicos, como revoluções. O
desenvolvimento social, econômico e político por que passa a humanidade traz, segundo Hegel,
um desenvolvimento cada vez maior da consciência. Este desenvolvimento tem um sentido e

97
uma finalidade particular e Hegel o chama de “Espírito Absoluto” ou “Razão”. Sobre este Espírito
Absoluto escreve Abrão:

O que é então o ser absoluto? Não se trata de algo que o homem concebe, como pensaram as
filosofias ainda prisioneiras da separação entre sujeito e objeto – separação que para Hegel é
apenas provisória. O absoluto é autoconceber-se, e o objeto final da Ciência da Lógica é superar
a separação entre sujeito e objeto, conceito e coisa, para afirmar a identidade do absoluto. Mas
autoconceber-se significa ser sujeito. Para Hegel, no entanto, não se trata mais de um sujeito
que se põe como exterior a seu objeto, e sim de um sujeito que se reencontra pelo lado objetivo,
incorporando o objeto em uma totalidade que ultrapassa a oposição. (Abrão, p. 358).

Não se trata de um indivíduo ou entidade, mas de um estágio de consciência, de evolução, que


não se refere apenas aos indivíduos, mas a toda a realidade. Esta realidade corretamente
compreendida, já é razão, como afirma a famosa frase de Hegel: “O que é racional é real, e o
que é real é racional”.

O processo de realização do “Espírito Absoluto” é um processo dialético, envolvendo o devir


histórico – a história sempre influenciou bastante a filosofia de Hegel. Interessante comparar o
processo de evolução em direção ao Espírito Absoluto formulado por Hegel, com o impulso que
faz com que os seres almejem a perfeição em direção ao Primeiro Motor – e que segundo
Aristóteles nunca alcançará. Hegel, também sempre afirmou a realização do Espírito Absoluto,
apesar de não indicar quando isto aconteceria.

Referências
Abrão, Bernadette Siqueira. História da Filosofia. São Paulo. Editora Nova Cultural: 1999, 480 p.
Buckingham et al. O livro da filosofia. São Paulo. Globo: 2012, 352 p.
Rodriguez, Manuel Cruz et al. História da Filosofia. São Paulo. Editora Moderna: 2008, 317 p.
Os Pensadores. Hegel. São Paulo. Abril Cultural: 1980, 392 p.

98
O ser humano em sua essência

O ser humano sendo criatura viva, sujeita às leis da natureza é, assim como todos os outros
seres vivos, marcado pela provisoriedade. Todos os seus projetos, ideias, realizações e
aspirações são efêmeras, porque nunca definitivas. A percepção de sua transitoriedade, de sua
mortalidade – e de todos os seus projetos – causa ao homem um sentimento de angústia. No
passado, apoiado nas promessas das religiões, o homem transformava este sentimento em
esperançosa expectativa. Hoje, já bastante cético em relação a tal possibilidade, o homem tenta
enganar “a indesejada das gentes”. Escreve o filósofo Max Scheler:

“A morte recalcada, a morte “presente”, mas tornada invisível e que deixou de ser temida ao
ponto de se ter tornado inexistente, é, de agora em diante, poder e brutalidade sem sentido, tal
como aparece ao novo tipo de homem quando se vê confrontado com ela. A morte surge apenas
como uma catástrofe. Não é mais vivida de modo leal e consciente. E já ninguém mais sente e
sabe que tem de morrer a sua própria morte” (Scheler, 1993)

O ser humano não pode ser definido somente através de sua existência passageira. Outras
criaturas, instituições, paisagens e até planetas e galáxias também são transitórios; a diferença
é a escala de tempo. A efemeridade é uma característica de todo o ente; aparentemente nem
mesmo os átomos – dados como eternos pela filosofia grega – são permanentes. Decaem, se
decompondo em outras subpartículas, que por sua vez também desaparecem. No final de um
tempo imenso, assim dizem os cosmólogos, as mínimas partículas de matéria – formadas de
energia concentrada – também se dissolverão e deixarão de existir. Assim como veio do nada,
ao nada retornará o universo – e provavelmente surgirá outro universo, depois de um tempo que
não temos como estimar, já que para isto a física atual não tem qualquer informação.

Dotado de raciocínio e animal social por natureza (todos os nossos antepassados símios eram
sociáveis) o homem é, diferentemente de todo o resto da criação, consciente de sua mortalidade
e da finitude de todo o universo. Porém, o avanço das ciências biológicas está tornando cada
vez mais tênues as diferenças que nos separam dos outros seres vivos. Diferente do que dizia
Descartes, descobrimos que os animais têm sentimentos, além de também fazerem ferramentas
e de possuírem traços de cultura.

O ser humano, no estágio atual do conhecimento, se caracteriza pela sua capacidade única de
formular complicados raciocínios lógicos e de elaborar complexos conceitos de ética. Talvez seja
esta a essência do homem – por enquanto.

Referência
SCHELER, Max. Morte e Sobrevivência – 1ª ed. Lisboa: Edições 70, 1993

99
Origens do pensamento filosófico brasileiro

A origem da filosofia brasileira encontra-se em Portugal, já que até certo período de nossa
história – pelo menos até a vinda da família real ao Brasil em 1808 – não existiam universidades
e outros tipos de fóruns para a discussão filosófica. As únicas exceções eram os cursos nos
seminários de Olinda e Salvador, onde se ensinava filosofia e teologia. Portugal, por outro lado,
era um país de contrastes. Foi uma das primeiras nações europeias a estabelecer um governo
centralizado, sob a batuta de um rei, eliminando o poderio dos nobres – uma típica característica
das nações consideradas modernas nos séculos XV e XVI. Além disso, Portugal tinha
conseguido reunir grande parte do conhecimento disponível à época referente às navegações
ultramarinas; astronomia, geografia, cartografia, engenharia náutica e técnicas de navegação.
Por cerca de um século (1450 -1550) o português foi o povo que mais descobriu e viajou por
todo o mundo (Bartolomeu de Gusmão, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães, eram todos
portugueses). Sintetizando, temos Portugal como país politicamente e tecnologicamente
avançado para a época.

Sob aspecto cultural, desde a Idade Média até o século XVIII houve sempre predomínio da
ideologia da Igreja. Na literatura floresceram as obras de Camões, Sá de Miranda, João de
Barros e Gil Vicente, todos com forte influência renascentista. Alguns autores, todavia, tratavam
os temas religiosos sob a ótica tradicional da Igreja – como mostram os diversos Autos
encenados por Gil Vicente encenados na corte portuguesa. Na filosofia, no entanto, a coisa era
diferente. Fortemente dominada pela Igreja e sua hierarquia, o ensino da filosofia (sempre
associado ao da teologia) era monopólio das ordens religiosas. Os poucos intelectuais
portugueses que se aprofundaram no estudo da filosofia durante este período, acabaram
emigrando principalmente para a França, onde reinava mais liberdade de pensamento.

Desta forma, como não podia deixar de ser, as origens da filosofia brasileira estão fortemente
ligadas ao pensamento das ordens religiosas, que por aqui iniciaram suas atividades
catequéticas (e políticas) logo a partir do Descobrimento. A própria fundação das cidades
brasileiras ainda guardava certas características que remontam ao Renascimento Carolíngio, no
século IX, ou seja, a prática de fundar um povoamento a partir de uma igreja e junto com esta
uma escola, onde eram ensinados os rudimentos da leitura, da escrita e, principalmente, da
religião. Foi o que fizeram Nóbrega, Nunes, Anchieta e outros jesuítas, ao fundarem as primeiras
cidades brasileiras. Os núcleos de povoamento foram evoluindo e crescendo, tornando-se
centros administrativos (Salvador) e comerciais (Paraty, Rio de Janeiro, Iguape), mas a educação
era basicamente ministrada nas escolas religiosas. Aqueles cidadãos mais abastados, que
podiam custear uma educação superior, visitavam a universidade de Coimbra, também sob a
batuta dos jesuítas. Gregório de Matos (1636-1695), por exemplo, o primeiro poeta
caracteristicamente brasileiro, pertencia à elite portuguesa da Bahia e havia feito seus estudos
de Direito em Coimbra.

Não é de estranhar então que pelo menos até a Reforma Pombalina, ocorrida no século XVIII,
quando o Marquês de Pombal reprimiu as ordens religiosas de Portugal e do Brasil, todo o ensino
superior, e com ele o ensino da filosofia, estivesse dominado pela ótica religiosa, com suas
preocupações, questões e temas característicos.

Além disso, é preciso observar que Portugal vivia sob o espectro da Inquisição desde o final do
século XV. O rei havia se aliado à Igreja e apoiava fortemente as ações desta instituição; na
verdade, tinha até interesse nela. Exemplo disso foram as perseguições aos judeus no final do
século XV, quando o Estado português estava sem capital para as aventuras ultramarinas.
Apoiando-se na Igreja, o rei de Portugal iniciou uma grande perseguição aos judeus, muitos deles
comerciantes e banqueiros bem sucedidos. Assim, nada mais providencial do que em nome do
cristianismo católico forçar os judeus à conversão ou expulsá-los, tomando-lhe todos os bens.

100
Em uma ambiente de repressão ideológica e cultural quanto este, era pouco provável, portanto,
que surgissem pensadores como Erasmo de Rotterdam, Montaigne, Hobbes, Francis Bacon ou
Machiavel.

Desta forma o início da filosofia brasileira se caracteriza por uma continuação do pensamento
escolástico praticado nos seminários e universidades católicas, chamado de Ratio Studiorum e
com forte influência do aristotelismo medieval. Foi baseado neste pensamento que se
desenvolveu aos poucos uma filosofia praticada no Brasil, principalmente nos seminários – nos
cursos de teologia e filosofia – que no entanto ainda tinha muitas características tomistas.

O padre Antônio Vieira (1608-1697) não foi exatamente um filósofo. Influenciado pela filosofia
tomístico-inaciana, escreveu e pronunciou centenas de sermões, muitos dos quais ainda hoje
figuram como joias da literatura brasileira e valem a pena ser estudados. Em suas prédicas,
Vieira utiliza-se de uma técnica bastante comum no período barroco, que visava mostrar a
irrelevância ou a falácia de certos valores socialmente aceitos e almejados (a riqueza, o poder,
a vaidade, etc.) – geralmente associados aos sete pecados capitais. Vieira denunciava estes
valores como fonte de dor e insatisfação e procurava induzir sua audiência a uma reavaliação
de seus ideais, tentando conduzir os ouvintes para os valores cristãos.

Digno de nota e estranhamente esquecido da maioria dos manuais é o pensador nascido em


São Paulo Matias Aires (1705 – 1763). Este paulistano estudou em Coimbra, em Paris e
desenvolveu uma filosofia baseada em aforismos, parecida à dos moralistas franceses La
Rochefoucauld, Bossuet e La Bruyère. Alceu Amoroso Lima, escritor, ensaísta e filósofo católico
do século XX, prefaciando a obra Reflexão sobre a vaidade dos homens de Matias Aires,
considera este o primeiro filósofo brasileiro. Pensador mordaz e pessimista, Aires tem aforismos
interessantes como este:

“Porém deste mesmos delírios resulta e depende a sociedade; porque a vaidade de adquirir a
fama infunde aquele valor aos homens, que quase chega a transformá-los em muralhas para a
defesa das cidades, e dos reinos; a vaidade de serem atendidos os reduz à trabalhosa ocupação
de indagarem os segredos da divindade, o giro dos astros, e os mistérios da natureza; a vaidade
de serem leais os faz obedientes; a vaidade de serem amados os faz benignos; e finalmente a
vaidade ou amor da reputação os faz virtuosos. Daqui vem que o homem sem vaidade entra em
desprezo universal de tudo, e começa por si mesmo: olha para a reputação como para uma
fantasia, que se sustenta de um sussurro mudável, e de uma opinião sempre inconstante;
[...]” (Aires, 1993, p.34)

Outros pensadores de destaque foram José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838),


cognominado de “o patriarca da independência” e o padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843). José
Bonifácio foi um dos maiores intelectuais de seu tempo; estudou em Coimbra, viajou pela Europa
e estudou mineralogia em Paris e Freiburg. De volta a Portugal, integrou um grupo de intelectuais
com o objetivo de reformar a política do império português. Tendo-se mudado para o Brasil, ainda
a fim de reestruturar o império português, envolve-se com a independência do Brasil e com a
política do Segundo Império, como tutor de D. Pedro II, sendo posteriormente desterrado. Como
pensador, José Bonifácio deixou vários escritos sobre política brasileira, economia, literatura,
filosofia e religião, de importância secundária.

Padre Feijó além de sacerdote foi político – curiosamente inimigo político de José Bonifácio de
Andrada e Silva. Foi professor de filosofia, tendo sido muito influenciado pelo pensamento de
Kant. Talvez, em função dessa influência, Feijó tenha sido liberal na política, inimigo da
escravidão e favorável à eliminação do celibato sacerdotal.

O pensamento de Gonçalves de Magalhães – talvez o primeiro pensador eminentemente


filosófico do Brasil – ainda revela resquícios da tradição filosófica que sempre ocupou, com raras
exceções, os pensadores luso-brasileiros: a questão da interação (ou oposição) entre o espírito

101
e a matéria. Mas aqui não se trata de um espírito como sinônimo de atividade mental somente.
Trata-se sim, daquele velho termo metafísico, tão caro à filosofia pré-kantiana. Segundo
Gonçalves de Magalhães, “não é com os olhos pregados no mundo exterior, com todos os
sentidos abertos e atentos aos fenômenos sensíveis que há de o espírito humano conhecer a
sua própria natureza, os seus atributos e seu destino; é recolhendo-se ao santuário de sua
consciência, refletindo sobre os seus próprios atos, examinando os fatos atestados por eles, que
poderá penetrar neste mundo espiritual da metafísica, de que ele é um dos habitantes que por
este mundo exterior viaja [...]" (Madeira, 2009). Nossa filosofia continuava muito longe da
realidade concreta do país. Enquanto o Brasil se via as voltas com a escravidão, sendo um
império econômica e tecnicamente pouco desenvolvido, com um sistema educacional quase
inexistente, o filósofo-diplomata-poeta Gonçalves de Magalhães convidava seus
contemporâneos a “penetrar neste mundo espiritual da metafísica”.

Neste aspecto, o pensador Luís Pereira Barreto (1840 – 1923), contemporâneo de Gonçalves
Magalhães e ligado à filosofia positivista, tinha pensamentos muito mais concretos e críticos em
relação à realidade brasileira, à ciência, à metafísica, à política e outros pontos. Suas principais
obras foram As três filosofias, Soluções positivas da política brasileira, Positivismo e teologia e
O século XX sob o ponto de vista brasileiro.

A filosofia de Farias de Brito (1862-1917) tem grande influência da filosofia europeia de sua
época (Bergson, Wundt, entre outros) e ao mesmo tempo parece ser um dos primeiros autores
filosóficos relativamente originais, sendo influenciado pelo ambiente político, econômico e
cultural do Brasil da Primeira República; o mesmo ambiente descrito por Machado de Assis, Lima
Barreto, Oliveira Vianna, Euclides da Cunha, entre outros. Fato interessante é que Farias de Brito
também faz longas referências à psicologia, que havia se tornado popular entre os intelectuais,
por influência da crescente popularização da obra de Sigmund Freud.

O estudo do pensamento filosófico brasileiro é bastante importante para compreender melhor o


desenvolvimento cultural do país. No entanto, deve sempre vir acompanhado do contexto
histórico do período estudado. A filosofia, sempre é bom repeti-lo, é produto da interação de
filósofos com seu ambiente; não é produto de divagações sem qualquer relação com a realidade
concreta.

Referências
AIRES, Mathias. Reflexões sobre a vaidade dos homens. São Paulo. Martins Fontes: 1993, 202
p.
BARRETO, Luís Pereira. Soluções positivas da política brasileira. São Paulo. Editora Escala:
2007, 139 p.
MADEIRA, João Batista. Filosofia no Brasil. Batatais. Ceuclar: 2009, 44 p.
ANDRADA E SILVA, José Bonifácio. Projetos para o Brasil. São Paulo. Publifolha: 2000, 212 p.
BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia brasileira. São Paulo. Cosac Naify:

102
Razão científica e racionalidade

A razão científica, assim como utilizamos a expressão modernamente, não era conhecida na
Antiguidade. Apesar da forte influência que cientistas gregos como Aristarco Estrabão e
Arquimedes exerceram na tradição ocidental, o pensamento grego pouco contribuiu para a
elaboração de hipóteses científicas sobre a natureza. O pensamento científico como o
conhecemos modernamente remonta ao século XVI, com o pensador e cientista inglês Francis
Bacon – apesar de este ter tido precursores ainda na Baixa Idade Média, como o monge-cientista
Roger Bacon no século XIII e o pensador William de Ockham, no século XIV. Em vários dos seus
escritos, Bacon deu grande valor à análise e à investigação científica; “Saber é poder”, é uma de
suas famosas frases.

Foram figuras como Leonardo da Vinci, Bacon, Copérnico, Kepler, Galileu e Newton, que
colocaram os fundamentos da moderna ciência, baseada na investigação e na elaboração de
teorias. Do campo da filosofia, a grande contribuição ao desenvolvimento do pensamento
científico veio de René Descartes, contemporâneo de Galileu e introdutor da geometria analítica
e da álgebra geométrica, conhecimentos que fundamentam a moderna matemática e base dos
sequentes estudos de física. Descartes também foi o iniciador da filosofia racionalista, que junto
com a física newtoniana assentaria as bases do moderno pensamento científico-racionalista.

O pensamento científico – ou razão científica – passou a existir quando a ciência foi capaz de
observar um fenômeno na natureza, elaborar uma hipótese para explicá-lo e depois tentar –
através da indução – provar que esta hipótese se aplicava a outros fenômenos parecidos (o
processo indutivo foi motivo de crítica de vários filósofos, como Hume, no século XVIII e Popper
no século XX). Filosoficamente pode-se dizer que o racionalismo estava descobrindo através de
métodos racionais uma aparente ordem implícita na natureza a qual o homem, utilizando-se de
certas técnicas de raciocínio, poderia desvendar. Grandes pilares deste tipo de pensamento foi
o filósofo holandês Baruch Espinoza (1632-1677) e o alemão Gottfried Leibniz (1646-1716).

A razão tornou-se o principal instrumento de análise do mundo através dos filósofos iluministas.
O iluminismo – ou pelo menos muitas ideias que o influenciaram – teve início com o filósofo
empirista inglês John Locke (1632-1704). Pouco depois, suas ideias foram desenvolvidas por
Jean-Jacques Rousseau, que valorizava a liberdade individual e o estado democrático. Este por
sua vez era contemporâneo de Voltaire, grande crítico da Igreja e de todas as formas de
autoritarismo. Pouco depois Montesquieu (1689-1755), também influenciado pelo liberalismo
inglês, lançou a ideia de um estado governado por três poderes - legislativo, executivo e
judiciário. Também franceses foram Denis Diderot (1713-1784) e Jean Le Rond d´Alembert
(1717-1783), que juntos organizaram a Enciclopédia, reunindo conhecimentos práticos e teóricos
de todas as áreas; desde como fazer trabalho de marcenaria à filosofia de Platão. O objetivo da
Enciclopédia era divulgar conhecimento; acreditavam os iluministas que com o conhecimento o
povo se livraria do obscurantismo da religião e da opressão política. Além desses iluministas
houve outros, que se dedicaram à literatura, filosofia e às ciências, como Condillac, La Mettrie.

A razão científica, proposta pelo iluminismo, influenciou todo o pensamento filosófico, científico
e político do Ocidente, a partir da Revolução Francesa. Mas foi através do pensamento de Hegel
que a razão se transformou em doadora de sentido ao pensamento histórico, tendo moldado
todo pensamento político da segunda metade do século XIX e grande parte do século XX. Foi
ainda no século XIX, que surgiram filosofias como o cientificismo, o marxismo e o pensamento
sociológico, filhos diletos do iluminismo.

Todavia, foi com as duas guerras mundiais, no século XX, que ficou patente até onde poderiam
ir regimes políticos que se consideravam intérpretes exclusivos de uma suposta racionalidade
inerente ao processo histórico. O nazismo, o comunismo e o fascismo são os herdeiros desta

103
visão que provêm de Hegel e cuja inspiração este buscou nos iluministas franceses. A noção da
racionalidade da história ou de teorias que queriam explicar racionalmente o devir histórico, foram
definitivamente enterradas com a Queda do Muro de Berlim.

Da mesma forma, a razão científica ficou desacreditada. A ideia de que o mundo é racional e só
precisa ser interpretado pela atividade científica é mais uma forma de metafísica que já foi em
grande parte abandonada pela ciência moderna. A ciência utiliza-se da razão para desenvolver
seu raciocínio, mas não espera mais descobrir uma racionalidade inerente à natureza, como
ainda acreditavam os filósofos e cientistas dos séculos XVIII, XIX e parte do XX. Podemos dizer
que o uso da razão científica obteve sucesso e desempenhou sua função dentro de um contexto
histórico, durante certo período. Falhou, quando se tentou usá-la para embrulhar toda a realidade
material e toda a história; quando se tentou empregá-la como fim e não como meio.

104
Sartre e a liberdade

O pensamento de Sartre parte da fenomenologia de Husserl. Na fenomenologia Sartre vê a


possibilidade de pensar a consciência e o mundo não como duas entidades isoladas uma da
outra, mas como estrutura básica da intencionalidade, como possibilidade de conservar ao
mesmo tempo a soberania da consciência e o peso realista do mundo. Seguindo a linha de
Husserl, Sartre elimina a dicotomia entre o fora e o dentro, o mundo da intencionalidade, da
psique, e o mundo dos dados positivistas.

Em sua consciência, o homem está direcionado para algo que não é ele próprio, ou seja, em sua
consciência está sempre fora de si; voltado para fora de si mesmo. Disso resulta que na
concepção de Sartre a consciência do homem, o “ser-para-si”, é vazia, baseado no nada (melhor
seria dizer no “vazio”). Com isso, Sartre deduz que o homem não é determinado por uma
essência anterior, algum tipo de “natureza humana”, seja do tipo que for. Ao contrário, como a
consciência do “ser-para-si” é vazia, e direcionada para o mundo, para um “ser que não é o que
ele é”, o homem é determinado por sua existência e só cria uma essência a partir de seus projetos
e de suas ações, de sua relação com o mundo – o “ser-no-mundo”.

É a partir desta estrutura, segundo Sartre, que o homem pode ser efetivamente livre. Para Sartre,
como para outros existencialistas, existir é para o homem fixar alvos, persegui-los, projetar-se a
si próprio em direção ao futuro. É ultrapassando os obstáculos que impedem a consecução
destes objetivos, que o homem é livre. É através do transcender dos obstáculos que o “ser-para-
si”, com base no nada (vazio) de sua existência, é livre a cada momento – já que Sartre nega o
efeito de condicionamentos passados sobre a consciência. Desta forma Sartre afirma que “o
homem é condicionado a ser livre”; por sua própria condição ontológica. Mas a liberdade só se
forma através do confronto, do embate; daquilo que Sartre chama de “situação”, obstáculo. Por
isso o filósofo afirma que “só existe liberdade em situação e só há situação por meio da
liberdade”.

A questão da responsabilidade é tema importante para o existencialismo, principalmente em


Sartre. Para o existencialismo, o homem é mais livre quando se vê obrigado a escolher. A
liberdade, além de ser inerente ao homem é valiosa, porque através dela o homem pode exercer
sua dignidade e triunfar sobre a infelicidade, à qual é condenado pela vida. E a liberdade
escolhida implica assumir responsabilidades, assumir riscos. Em Existencialismo é um
humanismo, Sartre escreve: “O homem não é nada mais do que ele objetiva, ele só existe
enquanto se realiza, ele é por isso, nada mais do que a soma de suas ações, nada mais do que
a sua vida” (Sartre apud Kaufmann, 1989 – tradução nossa). O argumento de Sartre é de que a
completa liberdade de que gozamos – ou melhor, à qual estamos condenados – faz com que
sejamos totalmente responsáveis por tudo aquilo que pensamos e fazemos. Escreve Sartre
em Ser e Nada: “Sou o responsável por tudo, de fato, por minha responsabilidade mesmo, pois
não sou o fundamento de meu ser. Portanto, tudo se passa como se eu estivesse coagido a ser
responsável.” (Sartre, 2007).

Enxergando a questão da liberdade e da responsabilidade sob uma ótica diferente de Sartre,


concluímos que somos limitados por uma série de fatores. Aspectos genéticos, sociais,
psíquicos, fazem com que sejamos seres condicionados em diversos aspectos, portanto
limitados em nossa liberdade. O próprio conceito de liberdade de Sartre tem suas origens em
Kant, “quando este definia a liberdade como o poder de começar por si mesmo uma série de
modificações. Estas palavras – “por si mesmo” – conduzidas à sua verdadeira significação,
querem dizer “sem causa antecedente”, o que é idêntico a “sem necessidade” (Schopenhauer,
s/d, p. 36). Muito semelhante à consciência a partir do “nada” ou “vazio”, de O Ser e o Nada. Este
tipo de “consciência” preconizada por Sartre mais parece uma peça do vasto (e ainda
inesgotável) mostruário da metafísica.

105
Por outro lado, a responsabilidade pertence ao campo da ética, da moral, assim como a justiça
e a tolerância. Desta forma, mesmo não existindo uma liberdade plena – e assim dirão alguns
que não somos responsáveis pelos nossos atos – devemos afirmar a responsabilidade como
valor social e individual, sem o qual o funcionamento das sociedades não seria possível.

Referências
FELISCHER, Margot. Org. Filósofos do século XX. São Leopoldo, Ed. Unisinos: 2000, 334 p.
KAUFMANN, Walter. Existentialism from Dostoievsky to Sartre. New York. Penguim Books:
1989, 384 p.
OLSON, Robert G., Introdução ao existencialismo. São Paulo. Ed. Brasiliense: 1970, 251 p.
SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada. Petrópolis. Editora Vozes: 2007, 773 p.
SCHOPENHAUER. Arthur. O livre arbítrio. Rio de Janeiro. Ediouro: s/d, 123 p.

106
Sartre e o marxismo

“O marxismo [...] permanece, pois, a filosofia de nosso tempo: é insuperável, pois as


circunstâncias que o engendraram não foram ainda superadas”.

Jean-Paul Sartre

Sartre sempre teve uma relação ambígua com o marxismo. Adere ao materialismo histórico,
segundo o qual as relações de produção condicionam o desenvolvimento da cultura e das
instituições. Por outro lado, Sartre nunca chegou a concordar como materialismo dialético, que
julgava ser uma metafísica – como outros pensadores contemporâneos a Sartre, entre os quais
Bertrand Russel e Karl Popper. O problema com o materialismo dialético, segundo Sartre, era
que este era “projeção” sobre a natureza e não poderia ser provado – apesar de que Sartre
admitisse de que eventualmente pudesse existir.

Em sua obra Questão de Método (1957), da qual foi tirada a citação acima, Sartre escreve por
que permanece existencialista, não se tornando marxista:

“O que faz então com que não sejamos muito simplesmente marxistas? É que consideramos as
afirmações de Engels e de Garaudy princípios diretores, indicações de tarefas, problemas e não
verdades concretas; é que elas nos parecem insuficientemente determinadas e, como tais,
suscetíveis de numerosas interpretações: numa palavra, é que elas nos aparecem como ideias
reguladoras.” (Sartre, 1972, p. 34).

Em toda a obra Questão de Método Sartre – apesar de esta obra ser de certo modo um “acerto
de contas” de Sartre com o marxismo – o filósofo francês mantêm uma relação crítica em relação
à filosofia marxiana, escrevendo, por exemplo, que:

“O marxismo estacionou: precisamente porque esta filosofia quer transformar o mundo, porque
visa “o tornar-se-mundo da filosofia”, porque é e quer ser prática, operou-se nela verdadeira cisão
que jogou a teoria de um lado e a práxis do outro.” (Ibidem, p.23)

No entanto, parece que Sartre reconhece a importância da filosofia marxista, ao considerá-la


como a filosofia de seu tempo, resultado de condições econômicas e sociais que ainda não
haviam sido ultrapassadas. O marxismo era uma filosofia crítica à burguesia e a seu sistema
econômico, o capitalismo. E é exatamente por este fato – a não superação das circunstâncias
que o engendraram – que o marxismo permanecia tão forte, na visão de Sartre. Escreve Renato
dos Santos Belo:

“Quando Sartre, em Questões de Método, explicita a posição do existencialismo em relação ao


marxismo é para definir este último como a “filosofia reinante de nossa época”, frente à qual o
existencialismo só poderia figurar como uma ideologia, que vive às margens da “filosofia
insuperável de nosso tempo” e dela é dependente.” (Belo, 2011).

Sartre nunca aderiu explicitamente ao marxismo, apesar de considerá-lo a principal filosofia de


sua época. De nossa parte, cabe analisar se nos dias atuais o marxismo ainda permanece atual,
e em que aspectos.

Como teoria crítica do capitalismo é inegável que as ideias de Marx permanecem atuais. Por
outro lado, é preciso abandonar aquelas ideias que acabaram se tornando ideologia dentro do
marxismo, como o materialismo dialético, transformado em dogma científico na União Soviética
nos tempos stalinistas. Se muitas previsões feitas por Marx e relacionadas com o

107
desenvolvimento da economia não se concretizaram até o momento, pode ser que a médio e
longo prazo algumas venham efetivamente a ocorrer. Talvez, a própria dinamicidade do
capitalismo, com suas idas e voltas, acabe dando razão ao pensador alemão.

Referências
BELO, RENATO DOS SANTOS. Sartre e as marcas de seu tempo: investigação sobre as figuras
da subjetividade e da alienação na relação entre existencialismo e marxismo Disponível em:
<http://www.fflch.usp.br/df/site/posdoc/2011.posdoc_renato_belo.pdf> Acesso em 11/12/2011
REALE, GIOVANI, ANTISERI, DARIO. História da Filosofia Vol. III. São Paulo. Paulus Editora:
1991, 1113 p.
SARTRE, JEAN-PAUL. Questão de método. São Paulo. Difusão Européia do Livro: 1972, 148 p.

108
Senso comum

Senso comum, segundo Aristóteles é a capacidade geral de experimentar o mundo através dos
diversos sentidos. Já para os escritores clássicos e filósofos latinos, esta expressão tem o
significado de costume, gosto, modo comum de viver ou de falar (Abbagnano, 2007). Esta
interpretação do termo "senso comum" é a que ainda utilizamos atualmente e como ocorreu
durante quase toda a filosofia ocidental - pelo menos até o século XVIII, antes de Hume.

O senso comum ou conhecimento vulgar, segundo a tradição filosófica, é a forma como


interpretamos o mundo sem uma análise mais aprofundada; criteriosa. O senso comum se
reflete, segundo esta tradição, na vida do dia a dia, nas opiniões, na maneira como culturas e
povos encaram determinados temas. Sobre isto escreve o filósofo e educador John Dewey:

"Temos de reconhecer que a consciência ordinária do ser humano comum (...) é uma criatura de
desejos e não de estudo intelectual, investigação e especulação. O ser humano vive em um
mundo de sonhos antes que de fatos, e um mundo de sonhos organizado em torno de desejos,
cujos sucesso ou frustração constitui sua própria essência." (Dewey apud Fontana, 2007).

Seguindo esta linha de raciocínio de Dewey é interessante comentar a comparação que se


poderia fazer entre a cultura popular ou folclore e a cultura (dita) clássica. Como exemplo
podemos comparar a cerâmica de Vitalino Pereira dos Santos, "mestre Vitalino" (1909-1963), e
a de Pablo Picasso (1881-1973). A de mestre Vitalino, considerada popular, retrata a vida diária
do sertão do Nordeste e de suas pequenas cidades: o padre no confessionário, os retirantes,
cenas de caça, casamento, músicos, enterros, entre outros temas. A arte de Picasso, mais
intelectualizada e abstrata, mostra figuras estilizadas de animais, rostos, cenas de touradas. A
arte de mestre Vitalino é em grande parte baseada nos costumes, nas opiniões e nos hábitos da
cultura da qual é representante. Picasso desenvolveu estilo próprio, produto de longos estudos
e prática, sem necessariamente se limitar ao universo cultural do qual procede.

A expressão utilizada por Dewey "criatura de desejos e não de estudo intelectual, investigação
e especulação" mostra o quanto o conceito de senso comum e seus sinônimos como
"conhecimento vulgar", "consciência ordinária" e outros, estão eivados de platonismo; de um
pensamento metafísico. A própria tradição filosófica desde os gregos procura colocar o senso
comum como um conhecimento superficial, imperfeito e obtuso sobre o mundo. A mesma
diferenciação que muitos fazem entre a cultura popular e a (assim chamada) alta cultura. A
alegoria do Mito da Caverna, apresentado por Platão n´A República reflete muito bem essa
dissociação. O senso comum é representado pela visão dos homens acorrentados no fundo da
caverna, vendo sombras projetadas; a visão real pertence aqueles que conseguem sair da prisão
e enxergar a luz do sol e assim contemplar o mundo com mais clareza.

Esta visão real do mundo, obtida à luz do sol - ou seja, à luz do conhecimento - foi sempre uma
característica do discurso filosófico. Desde a Antiguidade até o período moderno, quase todos
os filósofos e sua filosofias declaravam que o verdadeiro conhecimento, além do senso comum,
só seria possível através da análise do mundo pelas lentes da filosofia. Esta tendência foi ainda
foi mais acentuada, a partir do século III e IV, quando a doutrina cristã passou a ser incorporada
ao neoplatonismo para formar a metafísica cristã.

A filosofia moderna, a partir de Descartes (1596-1650) e de suas elaborações intelectuais n´O


Discurso sobre o método solidifica ainda mais o antagonismo entre o conhecimento comum, o
senso comum e o conhecimento filosófico e científico. O filósofo inglês Francis Bacon (1561-
1626), um dos precursores do método científico e da epistemologia, tem como objetivo tornar o
pensamento mais claro e sistemático, eliminando ideias preconcebidas que classificou em
"ídolos"; ídolo da tribo, ídolo da caverna, ídolo do mercado, ídolo do teatro. O filósofo e fundador

109
dos modernos estudos de história, Giambattista Vico (1668-1744) escreve sobre o senso comum
que:

“O senso comum é o juízo sem reflexão, comumente sentido por toda uma ordem, todo um povo,
toda uma nação, ou por todo o gênero humano”. (Vico apud Cizotti, 2013).

Esta divisão entre o senso comum e o assim chamado verdadeiro conhecimento estende-se por
toda a filosofia ocidental até praticamente os tempos atuais. Martin Heidegger (1889-1976) se
refere à situação de inautenticidade do ser humano, quando este apoia suas opiniões e ideias
naquilo que a massa anônima fala e pensa - Heidegger utiliza o termo homem, (Mann), com o
artigo neutro das para realçar a falta de um sujeito definido. A opinião do das Man é o senso
comum; que não chega às raízes do pensamento e da verdadeira situação do homem, segundo
o pensador alemão.

Na história da filosofia eram exceções as escolas filosóficas que valorizavam o senso comum.
Entre estas correntes de pensamento estavam os: a) pensadores da linha empirista inglesa, já
que o empirismo enfatiza o papel da experiência sensorial na formação de ideias; e b) os
pensadores materialistas, que se antepunham a toda a visão idealista (metafísica). Dentre estes
podemos destacar Karl Marx, que em sua em sua obra Teses sobre Feuerbach escreve em sua
Segunda Tese:

” A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão
da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade,
isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade
ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão
puramente escolástica." (Marx, 1982)

A filosofia sempre defendeu a dicotomia entre o senso comum e o verdadeiro pensamento (que
para seus cultores era evidentemente a filosofia), porque se considerou a detentora da verdade,
das opiniões e visões corretas sobre a realidade, sobre o mundo. No entanto, a partir da crise da
metafísica iniciada por Hume e Kant, aprofundada por Nietzsche e definitivamente estabelecida
pela filosofia pós-moderna, fica cada vez mais difícil falar de um "discurso verdadeiro" sobre a
realidade, em contraposição a outros discursos "sem reflexão" como havia escrito Vico. O próprio
discurso filosófico, segundo o pensador americano Richard Rorty (1931-2007), é um entre vários
outros discursos e não tem a vantagem ou exclusividade da verdade - coisa que segundo Rorty
não existe. A filosofia seria assim apenas um discurso que se utiliza de ferramentas específicas,
não necessárias no dia a dia do senso comum, e tratando de temas específicos à sua área - sem
que isto signifique que seja mais verdadeiro que outros.

A ciência do passado também dispunha de um discurso que estabelecia uma nítida divisão entre
o senso comum do cidadão e os métodos de pesquisa cientista. O que, no entanto, efetivamente
acontecia - segundo algumas interpretações - é que o homem da rua não persegue um objetivo
específico em seu contato com o mundo, quando emite suas opiniões e vive seus costumes. Por
outro lado, o pesquisador faz sua abordagem com métodos e objetivos predefinidos e coletando
fatos vai fortalecendo sua hipótese científica, até que possa fundamentar sua teoria.

A questão entre o senso comum e o conhecimento filosófico ou científico pode ser considerada
um falso dilema. Em última instância a origem do pensamento elaborado - seja a filosofia ou a
ciência - está no próprio senso comum, criador dos costumes e das opiniões, mas também dos
mitos, das religiões, da tecnologia e da moral. É a partir do contato com o mundo; da prática do
dia a dia na caça, na coleta, na agricultura ou no pastoreio - como avaliam os empiristas e
materialistas - que os humanos começaram a desenvolver sua cultura.

Então, através da interação entre ideias existentes e a realidade concreta desenvolveu-se cada
vez mais o pensamento abstrato. Tudo, no entanto pela interação entre os organismos e o meio
ambiente - como já vem acontecendo há 3,8 bilhões de anos.

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Referências
Abbagnano, Nicola. Dicionário de filosofia - verbete senso comum. São Paulo. Editora Martins
Fontes: 2007, 1210 p.
A filosofia do senso comum. Disponível em <http://revistavilanova.com/a-filosofia-do-senso-
comum/>. Acesso em 10/11/2013.
A filosofia da ciência de Rubem Alves. Disponível em:
<http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-
content/uploads/2009/05/01afilosofiadacienciaderubemalves.pdf> Acesso em 8/11/2013.
Arte popular no Brasil: Mestre Vitalino. Disponível em:
<http://artepopularbrasil.blogspot.com.br/2010/11/este-blog-sera-inaugurado-com-uma.html>.
Acesso em 11/11/2013
Cerâmica de Pablo Picasso. Disponível em:
<http://www.masterworksfineart.com/inventory/picasso/ceramics?kmas=1&kmca=picasso+cera
mics&kmag=picasso+ceramic&kmkw=picasso%20ceramics&kmmt=b&gclid=CNu9pYOR3boCF
Sdp7AodrwUAHg>. Acesso em 11/11/2013.
Empirismo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Empirismo>. Acesso em 11/11/2013

111
Vida eterna, prazer eterno

O que será este impulso, a vontade inconsciente que todo ser vivo tem de sobreviver? E no ser
humano, uma vontade de sobreviver eternamente?

No caso de nós, humanos, pressupõem-se que esta sobrevivência seja de modo positivo, ou
seja, que traga ao indivíduo uma situação prazerosa por longo tempo - o máximo possível.

Mas, e quando não é assim? Não há casos em que indivíduos, dotados de todas as suas
faculdades, não têm mais vontade de viver, por causa de profundo desconforto provocado, por
exemplo, por uma doença? Há casos como esses relatados na literatura, em filmes, e muitos
conhecemos situações como esta na vida real.

Assim, há situações nas quais nem todos os humanos têm vontade de viver ou sobreviver - pelo
menos em condições ditas terrenas - eternamente. Quando chega a dor provocada pela doença
de qualquer tipo, a vontade de viver se reduz.

Poderia se admitir que a maior parte das pessoas gostaria de viver muito, eternamente, se as
condições prazerosos de que gozam no momento fossem mantidas. Isto quer dizer que a maior
parte das pessoas não quer simplesmente existir eternamente; quer, em outras palavras,
eternizar sua situação de prazer.

Mesmo se no momento não vivem em circunstâncias boas, agradáveis, prazerosas, esperam


que no além (no Paraíso, Plano Astral, ou outra denominação qualquer) possam "viver olhando
a face de Deus" (alguém sabe exatamente o que isso significa?), "encontrar os entes queridos"
(esquecem das brigas, dos ressentimentos).

O anseio, a sede pela vida eterna é principalmente a vontade de eternizar a fruição dos prazeres
da vida terrena, sejam quais forem (intelectuais, sensoriais, emocionais, etc.).

Não se pensa, por exemplo, como esta situação aparentemente prazerosa - pelo menos sob a
perspectiva daqui do "mundo terreno" - será por toda a eternidade.

Não é por outra razão que existem relatos, histórias e anedotas de quanto seria tedioso o
Paraíso. Por isso, muitas religiões, como o hinduísmo e o budismo (principalmente em suas
versões populares) e correntes de pensamento religioso, como os espíritas kardecistas, fazem
da vida além-túmulo uma atividade agitada e variada, com toda sorte de peripécias. Encarnações
diversas (passagens por muitas vidas), inclusive no reino animal e no reino das divindades (no
caso das religiões orientais), encontro com seres de outros planetas, etc.

Enquanto isso, as religiões monoteístas (qual seria a relação entre um forte monoteísmo e a falta
da metempsicose?) não têm muitas imagens e ideias sobre o além. Os relatos sobre o
mundo post mortem são raros e as poucas histórias existentes são baseadas em alegorias e
lendas tecidas sobre a vida de santos e pessoas admiradas como extraordinárias

Concluindo, temos que a "vontade de viver eternamente", dada por muitos como fundamento de
que tal vida eterna deve existir, não é nada mais que uma vontade de fruir prazer por um longo
tempo - já que não sabemos o que é eternidade.

Aqui ainda não levantamos a questão de como seria a nossa personalidade nesse mundo por
vir. Se já aqui, no curto espaço de tempo da vida humana, notamos alterações em nossas
personalidades - algumas para melhor e outras para pior -, o que dizer das mudanças que podem
ocorrer durante uma "eternidade"? Isso sem mencionar - ou perguntar - o que realmente somos;
o consciente, o inconsciente ou os impulsos?

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Somos o resultado desta constante interação entre nossa constituição genética, nossa herança
cultural e nossa capacidade (inata, mas nem sempre consciente) de fazer interagir estas
heranças.

Então, admitindo de que existe qualquer tipo de sobrevivência depois da morte, o que de nós vai
para o "além"?

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