Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Marcos Rohling
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense
Introdução
É um aspecto curioso que a educação tenha sido marginalizada nas
abordagens dos teóricos políticos. E, como expressa Honneth, na visão de
importantes pensadores, como Rousseau e Kant, o bom cidadão constitui um elo
de ligação entre a teoria política e a teoria da educação, pois a necessidade em
torno de uma educação democrática pressupõe que se discutam questões a
respeito dos métodos escolares e do currículo. Assim é porque qualquer noção
de uma democracia vital precisa gerar, inicialmente, através de processos de
1Pode-se dizer, com toda justiça, que as mudanças de Political Liberalism, são uma resposta às críticas
que a justiça como equidade de Rawls recebeu do comunitarismo. Nesse sentido, parece claro que
Rawls levou em consideração as ponderações por parte de pensadores dessa seara, especialmente
aquelas de Sandel. Sobre isso, WERLE, 2012.
178
Dissertatio [50] 177-2012019
2 Doravante, usar-se-ão os termos SJ para Spheres of Justice: An Defense of Pluralism and Equality
[Trad. Bras. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2003] e PP para Politics and Passion [Trad.
Bras. Patrícia de Freitas Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2008], quanto aos livros de Walzer, e TJ
para A Theory of Justice (Revised Edition), Cambridge: Harvard University Press, 2000 [trad. Bras:
Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2009], para a obra de Rawls.
3 Para Salvatore, parece correto sustentar que o comunitarismo é expressão prevalecente da concepção
do mundo de tipo organicístico, que marcou, quase que incontrastavelmente, a reflexão filosófica no
mundo antigo e medieval. Com efeito, o comunitarismo contemporâneo (ou o neocomunitarismo), como
explica Salvatore (2010, p. 11) nasce e se desenvolve nos Estados Unidos, entre 1975 e 1985, em
resposta a duas exigências principais, mas muito diversas: (i) de um lado, trata-se de formular um
paradigma político adequado à crise do sistema soviético à consequente multiplicação da identidade
cultural e dos vários nacionalismos éticos, próprios das sociedades pós-coloniais, em vista dos quais o
liberalismo não oferece uma resposta adequada; e (ii) de outro, em sua versão mais propriamente
normativa, no plano filosófico-político, o comunitarismo constitui-se numa resposta à virada
179
Marcos Rohling
180
Dissertatio [50] 177-2012019
181
Marcos Rohling
182
Dissertatio [50] 177-2012019
183
Marcos Rohling
184
Dissertatio [50] 177-2012019
Nessa senda, Corcuff pondera que a crítica social pensada por Walzer
tem duas dimensões notáveis, a saber, em primeiro lugar, a crítica do monopólio,
isto é, a situação na qual um grupo de pessoas açambarca um tipo de bem e,
em segundo lugar, a crítica da dominação, ou seja, aquela em que há
predominância de um tipo de bem sobre outros bens ou de uma esfera sobre
as outras esferas (CORCUFF, 2000, p. 103).6 É dessa forma que a igualdade
simples é rejeitada: pode ser entendida na direção de que é impossível para
todos possuírem a mesma quantidade destes bens – haja vista dela se seguir as
desigualdades. Para que isso não acontecesse, Walzer acredita que a igualdade
simples exigiria “intervenção contínua do Estado para eliminar ou restringir monopólios
6 Como bem observa Rosas, o monopólio, que consiste na posse de determinado bem ou conjunto de
bens, acumulando-o face a possíveis rivais, é moralmente aceitável. O mesmo não acontece com o
predomínio porque consiste em ultrapassar as fronteiras entre as esferas da justiça estabelecidas pelos
próprios entendimentos partilhados numa determinada sociedade. E o problema reside no fato de que o
extremo predomínio exercido por alguma esfera sobre a outra acaba por levar à tirania (ROSAS, 2011,
p. 92-5).
185
Marcos Rohling
186
Dissertatio [50] 177-2012019
187
Marcos Rohling
7Sobre esse ponto, a análise baseia-se em BOURDIEU & PASSERON (1982; 2014), ROHLING &
VALLE (2016) e VALLE (2006).
188
Dissertatio [50] 177-2012019
judaico sobre Hillel, Walzer defende que as escolas devem ser disponíveis às
necessidades educacionais e de ensino dos alunos; se não é dessa maneira, isto
é, se as escolas são exclusivas, então, “[...] isso acontece por que foram capturas por
uma elite social, e não porque são escolas” (WALZER, 2003, p. 276).
Como se observa em As Esferas da Justiça, externando a tese do autor de
que a justiça exige critérios diferentes, a educação, respeitando esse
pressuposto, é dividida em dois momentos distintos, a saber: (i) uma educação
fundamental a qual possibilite a todas as crianças dominar o mesmo conjunto
de conhecimentos, e (ii) uma educação especializada que deve respeitar as
capacidades de cada aluno. No que tange à primeira forma de educação, a
educação fundamental, pode-se dizer é aquela que tem em conta a formação
do cidadão. Em vista disso, não se aceita que existam critérios que excluam
crianças desse processo: o ensino das crianças é fundamental para a cidadania
– um processo de aprendizado no qual todas devem estar inseridas
aprendendo as mesmas coisas –, sem que as condições socioeconômicas dos
pais constituam fatores de diferenciação e exclusão. Ainda que a igual
educação fundamental para todos constitua uma forma de igualdade simples,
como Walzer admoesta, esta simplicidade logo desaparece quando se prisma
os diferentes graus de interesse e as distintas capacidades de compreensão que
estão em jogo no processo educativo (WALZER, 2003, p. 277). Esses
aspectos, assim, devem realçar a importância da educação fundamental, vale
dizer, a de que os fatores sociais, por si sós, critérios distintos da educação,
incidam sobre a distribuição da igual educação para todos. A própria noção de
uma cidadania igualitária implica numa concepção de educação fundamental
comum. Nesse sentido,
A igualdade simples dos alunos é relativa à igualdade simples dos cidadãos: uma
pessoa/um voto, uma criança/uma vaga no sistema educacional. Podemos
imaginar a igualdade educacional como uma forma de provisão de bem-estar
social, na qual todas as crianças, consideradas futuras cidadãs, têm a mesma
necessidade de conhecimentos, e na qual se realiza melhor o ideal de afiliação
quando aprendem as mesmas coisas. Não se pode permitir que sua educação
dependa da posição social ou da capacidade econômica dos pais (WALZER,
2003, p. 276-7).
189
Marcos Rohling
8 É curioso observar, o que está de acordo com a tese de Walzer, qual seja, a de cada esfera social
distribui seus bens conforme critérios próprios, que a escola fundamental, em determinado período,
deixará de ser garante da igualdade: “[...] todo avanço da idade de sair da escola tem sido uma vitória
para a igualdade. Em determinado ponto, porém, isso deve deixar de ser verdadeiro, pois não pode ser
que um só rumo na vida seja igualmente apropriado para todas as crianças.” Walzer critica, na verdade,
algo como uma ‘ditadura da escolarização’, nos termos de que “jamais haverá uma comunidade política
de cidadãos iguais se a escola for o único caminho para a responsabilização adulta”, pois, para algumas
crianças, além de certa idade, a escola torna-se uma espécie de prisão (WALZER, 2003, p. 283).
190
Dissertatio [50] 177-2012019
9No que tange a essa temática, Walzer argumenta que “A formação especializada é, obrigatoriamente,
um monopólio dos mais talentosos ou, pelo menos, dos alunos mais capazes, em determinado
momento, de pôr em prática esses talentos. Mas é um monopólio legítimo. As escolas não conseguem
evitar a diferenciação entre os alunos, promovendo alguns e recusando outros; mas as diferenças que
descobrem e impõem dever ser intrínsecas ao trabalho, e não ao status do trabalho” (WALZER, 2003, p.
288).
191
Marcos Rohling
critérios distributivos de uma esfera sobre outra – de modo que seja respeitado
o valor de sua função como escola formadora, e não como acumuladora de
capital simbólico, nos termos de Bourdieu. Assim, devem ter relação com
empreendimentos e não com as recompensas econômicas e políticas dos
empreendimentos (WALZER, 2003, p. 288).
3.2 A crítica à influência política e econômica na educação
O que está implícito na perspectiva de Walzer não é especificamente
um modelo de educação liberal concreto, mas aquela forma de ver o processo
educativo como correspondendo a um ideal abstrato e universal independente
das aspirações radicadas na comunidade. Nesse sentido, o que aqui se chamará
de educação liberal é uma forma de ver a educação como correspondendo aos
processos mediante os quais a prática educativa corresponde a um ideal
abstrato e universal desvinculado dos diferentes grupos sociais protegidos por
um Estado na condição da afirmação de direitos e garantias. 10 Contudo, a
tradição da educação liberal a define como uma educação que cultiva ou molda
a pessoa conforme a imagem de um ideal (moral, intelectual e estético) do que
deve ser a pessoa humana.
Keeney discute essa visão da educação liberal como uma concepção
de educação em contraste com a perspectiva comunitarista. Segundo esse
autor, enquanto o conceito de educação liberal oferece um ideal rico e
expressivo de desenvolvimento, de forma a tornar a vida significativa, ele
pressupõe
[...] Um relato muito mais completo da comunidade e o papel central que o
mundo social tem de desempenhar na formação do indivíduo do que é dado em
um liberalismo baseado em direitos. O liberalismo, ao focalizar o indivíduo e o
privado em detrimento do comunitário e do público, ignora (se não rejeita
abertamente) a natureza necessariamente social do engajamento educacional e
inevitavelmente corrói aqueles entendimentos compartilhados e virtudes e
excelências publicamente articuladas sobre as quais, ou assim vou manter, uma
educação liberal se alicerça. Mantém-se que os ideais de uma educação liberal
são inteligíveis apenas à luz de tais pontos comuns e que, sem uma visão
unificadora do bem para guiá-la, a escolarização no estado liberal degenera em
pouco mais do que um programa de preparação vocacional ou engrandecimento
pessoal. Meu objetivo é mostrar como o comunitarismo oferece uma alternativa
a esse impasse liberal (KEENEY, 2007, p. 04-05, tradução minha).
10Sobre isso, Walzer argumenta que ainda que a educação dê apoio a determinado tipo de vida adulta e
o apelo da escola à sociedade seja sempre legítimo, considerando o entendimento de justiça
educacional e justiça social, deve-se fazer isso tendo presente o caráter especial da escola. Ou seja, a
educação até pode ter relação com estes valores, mas não pode ser determinada por ela (WALZER,
2003, p. 271).
192
Dissertatio [50] 177-2012019
11 A título de complemento, afirma-se que a visão do Cardeal Newman, sucintamente vista, entende que
a educação liberal é o cultivo do intelecto, e seu objeto é nada mais ou menos que a excelência do
intelectual (NEWMAN, 1947, p. 107). Sobre isso, Mulcahy explica que a ideia fundamental para essa
concepção é a teoria da natureza e da estrutura do conhecimento e a capacidade da mente para o
conhecimento intelectual (MULCAHY, 2012, p. 04). Sobre Leo Strauss, o qual discute o tema num
discurso que deu por ocasião da Décima Cerimônia Anual de Graduação do Programa Básico de
Educação Liberal para Adultos, a educação liberal é aquela educação em cultura ou para a cultura, da
qual o resultado é um ser humano de cultura: “[...] A educação liberal então consiste em estudar com o
devido cuidado as grandes obras deixadas pelas maiores mentes – um estudo no qual os alunos mais
experientes ajudam os menos experientes, incluindo os iniciantes (STRAUSS, 2011, p. 73, tradução
minha). Por fim, em Social Justice in the Liberal State, Ackerman afirma que a educação liberal age de
modo a oferecer uma visão ampla da vida, em termos de multiplicidade de conhecimento e visão de
mundo. Assim, em sua opinião, a visão liberal da educação deve permitir aos estudantes o contato com
tantas ideias quanto for possível, de forma a assegurar uma multiplicidade de concepções em vista da
maximização da liberdade escolha das crianças. Daí a importância da neutralidade, entendida como
ausência total de valores substantivos no processo educativo: ela permite o exercício da liberdade de
escolha do aluno (ACKERMAN, 1980, p. 139-40).
193
Marcos Rohling
Recomenda-se, para uma visão crítica do trabalho de Cummings, a resenha elaborada por Merry I.
12
194
Dissertatio [50] 177-2012019
195
Marcos Rohling
13No artigo Moral Education, Democratic Citizenship, and Religious Authority, Walzer afirma outras
coisas sobre a educação. Segundo o autor, os estudantes deveriam estudar filosofia moral e política,
mais especifica e concretamente, deveriam ter sua atenção direcionada aos problemas da escolha moral
no cotidiano da vida e, mais particularmente, na vida de cidadãos (WALZER, 2012, p. 09).
196
Dissertatio [50] 177-2012019
nos quais a democracia tem sido exposta, defendida e criticada devem ser
estudados democraticamente, de modo livre e não dogmático, não redutível a
um catecismo, como matéria a ser exigida num exame final, mas como capaz
de conduzir ao pensamento com o espírito da cidadania democrática
(WALZER, 2012, p. 12).
A educação para a cidadania democrática é, assim, um tipo de formação
não neutra que deve ser acompanhada de um ensino sobre alguma coisa a
respeito das diferentes culturas e religiões que coexistem num país, com fortes
traços multiculturalistas, voltada especificamente aos valores políticos, e que
devem ser aplicados indistintamente às escolas seculares e religiosas do país.14
Esse programa educacional será tanto mais efetivo quanto for capaz de levar
todos os que estudam a falarem sobre essas questões, como por exemplo,
sobre moral e política, com mais conhecimentos e de forma mais crítica do que
se não os estudassem. Assim compreendida, a educação democrática será de tal
modo importante que não fará das crianças agentes políticos estritos, mas
serão mais inteligentes quanto às questões relacionadas a ela (WALZER, 2012,
p. 10).
Na perspectiva walzeriana, a educação democrática é crucial para a
experiência democrática que, em si mesma, é uma política de tensão: a
aprendizagem escolar, assim como a experiência prática, é destinada à
produção e à receptividades, sem as quais a tensão não será aceita ou
entendida. A preparação para a cidadania exige que se trabalhe
democraticamente na escola. Isso porque seu propósito é dar às crianças uma
chance de sucesso (WALZER, 1995, p. 188). Dessa forma, discutindo textos
de relevo no qual a democracia se constituiu, bem como através do exercício
argumentativo consistente das diferentes posições, as crianças são preparadas
para lidarem, desde a escola, com as diferenças e com a discussão das posições
diversas que cada qual, em função do pluralismo, representam. A educação,
assim, na perspectiva de Walzer, comprometida com o respeito às
particularidades de cada qual das crianças, é também, empenhada no
envolvimento dessas mesmas crianças nos valores próprios da vida
democrática, pois, para Walzer, o predomínio da cidadania não é tirânico, mas
o próprio fim, extinção, da tirania (WALZER, 2003, p. 427). A visão
comunitarista da educação, que vê a educação como bem social que distribui
14Como Walzer deixa evidente, em seu entendimento, a cidadania é um elemento próprio da política
democrática; nunca é uma coisa simples, pois ensinar às próximas gerações o que a atual pensa sobre
as responsabilidades que elas devem ter não é fácil. Mas se deve oferecer às crianças uma formação
que, de fato, realmente acredita nos valores que fazem a democracia possível e insistir em seu estudo.
A cidadania, neste sentido, não requer uma licença, mas é um curso ao qual todos deveriam se
submeter (WALZER, 2012, p. 14).
197
Marcos Rohling
198
Dissertatio [50] 177-2012019
199
Marcos Rohling
200
Dissertatio [50] 177-2012019
E-mail: marcos_roh@yahoo.com.br
Recebido: Fevereiro/2019
Aprovado: Outubro/2019
201