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O que sobrou do céu: reflexões sobre a encenação de Apocalipse 1, 11

O que sobrou do céu :


reflexões sobre a encenação de Apocalipse 1, 11

M ário Santana

“O niilista completo é o que compreendeu da no medo do pai, do criador primordial, pro-


que o niilismo é a sua (única) chance. O que fetizou que antes desse dia “d” a casa viria abai-
nos acontece a respeito do niilismo é hoje isto: xo através de uma aterradora e espetacular faxi-
que começamos a ser, a poder ser, niilistas na planetária. O Apocalipse, livro bíblico escrito
completos”. pelo evangelista João, foi aquele onde se susten-
Gianni Vattimo (1987) tou toda essa panacéia escatológica. Na atuali-

R
dade, porém, a escatologia inerente a um
ecomeçaremos após o fim. apocalipse de cunho transcendental só subsiste
Talvez pudesse ser esse o resumo arque- de modo representativo na exploração pitores-
típico do medo primordial: diante do fato ca que a mídia tenta realizar. O que não quer
incompreensível que é o encerramento da dizer que a laicização intensa que experimenta-
existência, o nosso imaginário ancestral mos no último século tenha apagado de todo
(esse mesmo que nos mantém vivos) inventou os medos e as esperanças criadas pelas metáfo-
a possibilidade da continuidade e se alimenta ras exercitadas em dois mil anos de cristandade.
dela. No entanto, a factualidade do encerramen- Mas, o que sobrou do céu, se esse mile-
to da vida é tudo o que sempre nos acompa- narismo já não nos impressiona mais? Que rés-
nhou, por mais que “revelações” e “experiênci- tias daquele universo ainda nos animam e levam
as” místicas as mais diversas tenham untado a o Teatro da Vertigem a realizar um espetáculo
esperançosa solidão humana com a “quase cer- com essa temática que tanto vem impressionan-
teza” de um outro espaço e tempo onde algum do à critica e ao público? A palavra Apocalipse sig-
vestígio da atual consciência de ser medrará. No nifica revelação. Em termos bíblicos, um discur-
nosso caso, ocidentais, antes de mais nada cul- so que através de alegorias, imagens, metáforas,
pados por não sermos merecedores dessa possí- busca impressionar o leitor revelando o fim dos
vel nova chance, partimos para a formulação de tempos, que está próximo. A montagem teatral
receitas que nos redimissem e encaminhassem dirigida por Antônio Araújo não revela, posto
puros para a peneira final. O grande julgamen- que não expõe outra coisa além do que está aí,
to. A medicina espiritual judaico-cristã, funda- do que somos. Mas o faz com tal intensidade

Mário Santana é pesquisador e encenador.

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que o espectador vê desvelada barbárie da reali- Assim, só o que resiste à crítica empreendida
dade e, claro, a sua própria degradação como pela razão pode ser considerado verdadeiro,
ser humano. bom ou belo. Substitui-se, então, o espaço do
A explicitação da descrença que a cultura pensamento religioso, isto é, o espaço deixado
tem no homem é eterna e auto-estimulada pela pela tradição da história providencialista, do di-
própria capacidade crítica inerente à razão que reito divino, por um pensamento eminente-
forjou nossa recente noção de humanidade. Os mente historicista, por uma legitimação da or-
momentos de passagem marcantes (como vira- dem fundada no direito histórico.
das de milênio), ou períodos em que ocorrem Todas as transformações que desencadea-
transformações importantes nas noções de ram o excepcional progresso material não con-
mundo e homem1, são propícios ao flores- seguiram empreender, porém, o sonhado bem
cimento de manifestações de temores apocalíp- estar nem sequer conseguiram esconder a sen-
ticos. Estamos nesse segundo caso, no mínimo sação de vazio existencial, de perda de identida-
desde a crise em que a cultura ocidental se em- de, resultante da ruptura entre o mundo das
brenhou do século XIX para cá. coisas e o mundo dos sentimentos. O mundo
Mas, o que fundamenta essa leitura apo- desencantara-se. O racionalismo e a burocra-
calíptica que o homem moderno tem do mun- tização ao estilo burguês agiam como instru-
do? Pelo menos até o século XVIII, como bem mentos de poder geradores de um insuportável
o mostra Marshall Berman (1986), “as pessoas mal-estar.
estão apenas começando a experimentar a vida A história, notadamente do Iluminismo
moderna; mal fazem idéia do (turbilhão) que as e da Revolução Industrial para cá, trabalhada
atingiu”. Mas o que as atingiu? Até então, o con- pela mentalidade judaico-cristã, apareceu como
trole da verdade não se colocava no domínio do história da salvação. Tornou-se, inicialmente, a
humano. Não havia espaço para a verdade hu- busca de perfeição intramundana e, posterior-
mana dentro de um mundo que era percebido mente, afirmou-se como história do progresso:
fundamentalmente como campo para a ação da mas o ideal do progresso é vazio, o seu valor fi-
verdade divina. Mas novos tempos se levanta- nal é criar condições para que o novo seja possí-
vam, sobre novas verdades. Tempos nos quais a vel, sempre... independente de Deus.
tônica era acreditar no saber, conseguido sob a O que sobrou do céu? Será que efetiva-
mediação do pensamento científico e da razão mente já não cremos em predestinações? Ou per-
“iluminante”. A fé deixa de ser o princípio es- demos tal direito quando adotamos a noção de
sencial, enquanto raciocínio e experiência ten- historicidade evolutiva intramundana e seus
dem a substituir a tradição. Dessacralizado o corolários? Enfim, o que de simbólico ainda nos
mundo, a sociedade se expande materialmente. move na temática do apocalipse? Creio que no
E a modernização social resultante da Era da caso do espetáculo em questão, o apocalipse
Máquina é embalada pela vontade de um futu- resume sua importância maior na noção de
ro promissor para a humanidade. Afinal, o julgamento que lhe é intrínseca. Se tiramos
mundo é o que é definido pelo homem; Deus Deus do centro que dá sentido à existência e,
– o grande engenheiro que estruturou a natu- desde a renascença, vimos nos firmando a partir
reza – é o deus do homem, posto que a religião daquilo que a ciência nos faz compreender ser
só teria validade dentro dos limites da razão. o mundo e o homem, o que estamos fazendo

1 Pensemos na passagem da Idade Média para a Idade Moderna e, mais recentemente, nas manifestações
finisseculares ocorridas entre os séculos XIX e XX.

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constantemente é julgar o homem que somos as regras como um transido auto-imolar-se; ali
através da satisfação que o mundo cotidiano está Babilônia, a grande mãe/prostituta corrom-
propicia à humanidade. Eis o que faz o Teatro pida pela degradação sexual; ali estão os Palha-
da Vertigem. Factualiza esteticamente a sua lei- cinhos que vendem a encomenda do freguês
tura do homem contemporâneo com uma ca- com o pregão superficial das mentalidades crí-
pacidade iconoclasta corrosiva poucas vezes vis- ticas inativas; ali estamos nós.
ta na cena brasileira. Isso sem deixar de pro- João, o apóstolo que recebe a visão do
blematizar o nó que mantém a crise da nossa juízo final e transcreve-o no Apocalipse, é confi-
civilização: agora que estamos sós de Deus e, gurado como um homem pobre perdido em
cada dia mais, da recente visão de um homem e nossa metrópole e à procura de Nova Jerusalém,
de uma sociedade regidos por verdades meta- de uma vida melhor, enfim. O herói que ainda
físicas2, que fazer? Que espécie de Jerusalém crê na boa nova realiza sua jornada de busca do
poderá ser buscada? Buscar o que, se a ação já paraíso dentro de um presídio. E logo de início
não corresponde ao impulso humanista que jus- fica claro que os espectadores seguirão o percur-
tifica o objetivo? Os meios, pressentimos, não so com ele, através das diversas dependências
justificam os fins. daquela (nossa) prisão. À sua chegada, os por-
O aspecto de degradação humana explí- tões se fecham e assistimos com ele uma inocen-
cita no mundo que nos cerca deu margem para te criança, sentada no alto de uma parede/pre-
que a equipe compusesse uma poesia cênica cipício de um dos pavilhões, regar um pequeno
finisecular, praticamente despida de romantis- jarro de flores e em seguida atear-lhe fogo. Isso
mo: o nosso teatro da crueldade possível, arqui- se dá com uma narrativa de caráter mítico de
tetado com marcante ficcionalidade e atuado fundo e é imediatamente seguida por outra vi-
por personagens imbuídas por um esqueleto são iconoclasta: numa torre/caixa-d’água, acima
mítico mas, num excelente exercício de deslo- da cena anterior, surge um negro vestido de
camento na percepção do espectador, desenha- Carteiro (Luis Miranda) e nos lê a paródia de
das na interpretação e na ambientação cênica uma epístola.
com elementos de forte carga alegórica, retira-
“Carteiro: Carta do anjo da igreja em Éfeso!
dos da nossa realidade cotidiana. Ali está a lem-
Os inteligentes serão transformados em bur-
brança do evangelista João (Vanderlei Bernar-
ros. Aos burros se dará o mínimo necessário
dino), um típico herói mítico que realiza a sua
para que possam se portar em fila. Os pretos
viagem em busca da perfeição e torna-se teste-
serão cadastrados como morenos. Os mula-
munha passiva da exposição de nosso mundo
tos serão cadastrados como brancos. Os ve-
deteriorado; ali está a figura arquetípica do Sal-
lhos ganharão cadeiras. Os moços ganharão
vador (Roberto Audio), que já não tem nenhu-
mordedor. As mulheres maduras terão direi-
ma “boa nova” que guie o nosso “herói”, e cuja
to a plástica nos seios ou barriga depois dos
presença, portanto, não evoca mais sentido; ali
65 anos de idade...”3
está, em contrapartida, o arquétipo do mal, a
Besta (atuado pelo mesmo ator do Salvador), Está batizado o olhar de João e, com o dele, o
evoluindo a sua presença como um travesti tí- nosso. Lançando mão de um constante desloca-
pico de boates de sexo explícito; está ali a Noi- mento da leitura estratificada que normalmen-
va, uma condensação do indivíduo que assume te fazemos, o discurso do espetáculo utiliza-se

2 Lembremos de Nietzsche em Genealogia da Moral ou em Assim Falou Zaratustra.


3 Texto do espetáculo. Dramaturgia de Fernando Bonassi.

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da expressividade simbólica, mas traveste-a ale- Tudo o que acontece na Boite Nova Jeru-
goricamente. salém nos faz despencar atônitos em nossa pró-
Assim, o mensageiro celeste anunciador pria realidade e percebermos que a idealização
de verdades metafísicas surge num funcionário de ser realmente está distante do homem que
dos correios que anuncia a pobreza das aspira- factualizamos na história cotidiana. O que so-
ções do homem; o próximo encontro marcante brou do céu? O espetáculo não dá tempo de res-
de João é na cela 1114, com a Noiva. Esta, como posta porque a boate é invadida pelas tropas
se em transe, oferece-se sexualmente para “con- fundamentalistas. É chegada a hora do acerto
fortar os aflitos” 5, mas não tem o que o herói de contas, e o Anjo Poderoso comanda uma sé-
procura; à saída desta, João descobre sob a cama rie de massacres. Desta forma somos levados a
o Senhor Morto, uma figura alegórica que já não ambientes ensurdecedores de tiros, corpos mor-
emite sentido nem respostas para a ansiedade tos jogados e arrastados como sacos por corre-
do homem/João. Impaciente com o silêncio au- dores estreitos, enquanto passamos por João
sente deste que um dia foi o Salvador, João ras- chorando atônito, preso a uma espécie de gaio-
ga páginas da bíblia e enfia-lhe goela abaixo. Seu la de elevador. Como um pássaro, não sabe por-
último encontro nesse local é com o Anjo Pode- que o seu universo limitou-se.
roso (Joelson Medeiros) e sua Guarda de Funda- O que sobrou do céu?
mentalistas (muito semelhantes a um traficante Perceba o movimento que se realiza no es-
e seus bandidos ou a um desses pastores e seus petáculo: as idéias gerais de existência, finitude,
fanáticos seguidores, tão recorrentes nos tem- transcendência, humanidade, etc. traçam um
pos atuais). Depois de torturado e entorpecido itinerário direcionado para a materialidade,
pelo Anjo Poderoso, é convidado a seguir em onde corrosivamente nos encontramos. Esse
frente, para a Boite Nova Jerusalém, com a fun- movimento é constante, vai do metafísico para
ção de ser testemunha de tudo o que a partir a matéria, do espírito para a carne, da idéia
dali verá. Assim, a Terra Santa buscada ansiosa- (como potência) para o acontecimento (potên-
mente apresenta-se, já em outra dependência da cia em ato), e tem sua eficiência na carnalidade
cadeia, como um espaço despido de qualquer grotesca com que as alegorias são corporificadas.
aspecto paradisíaco: um interior de boate de Carnalidade tão próxima à realidade do espec-
baixa categoria onde ocorrem números os mais tador que este, ao defrontar-se com a crueza do
variados que misturam elementos ritualísticos, mundo que a sua hipocrisia finge não perceber
autoflagelação, fanatismo, sexo explícito, dege- e colaborar para que exista, obriga-se a perder a
neração genética, racismo, consumo de drogas, noção idealizada que tem de si mesmo.
etc. A tudo João assiste passivo, sofre e chora A noção de homem que temos e que, jun-
quieto. A tudo assistimos, também passivos, to com a cultura ocidental, está em crise desde
mas não ousamos chorar. Porque, diferentes do o século XIX, começa a ser banida do palco des-
herói que vê o seu paraíso em ruínas, nós sabe- de as experiências cênicas realizadas pelos sim-
mos aquilo tudo que ali ocorre, sabemos os ar- bolistas. M. Maeterlinck, E. Gordon Craig e A.
tífices do desmoronamento do mundo de João. Appia, dentre outros, buscaram que o teatro se
Mundo que em seu projeto inocente de perfei- configurasse como o espaço de eclosão simbóli-
ção, um dia também foi o nosso. ca do metafísico, de tudo o que está oculto em

4 Referência já presente no título e que indicia a chacina de 111 detentos por policiais durante uma
rebelião no Presídio do Carandirú, em São Paulo.
5 Texto do espetáculo.

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nosso ser e que tem pouco ou nada a ver com a lidade intensificando a crueza de sua presença.
realidade externa. Assim, o drama está na situação Tanto no espaço que ambienta o espetáculo quan-
em que o homem/herói se encontra, e não no to na alegorização carnalizada de alguns aspec-
que tal situação desencadeia. Não se fundamen- tos apocalípticos conformadores do nosso fim
tando na ação, a dramaturgia simbolista quer criar de milênio. Um presídio; um inocente, de chi-
no palco uma atmosfera de vibrações internas. nelo de dedo, em busca mítica; um Cristo cuja
Voltando-se para a sensação de existir ex- única razão para estar é a lembrança da referên-
perimentada pelo personagem, e não para a re- cia que foi; um travesti; uma prostituta aidéti-
produção do acontecimento cotidiano, o foco ca; uma adolescente que nasceu vitimado pela
da expressão passa a ser atingir a sensibilidade talidomida (Luciana); um show de boate com
do espectador sem a mediação daquele compor- um casal de sexo explícito profissional; etc. etc.
tamento que os realistas da época começavam a O diretor funda a sua cena operando um
exercitar. O Simbolismo, então, despe a cena da excesso de real. Não na situação propriamente,
figuração do real, para atingir a sensibilidade do que é mais épica que dramática, mas na radi-
espectador. Não esqueçamos que nesse momen- calidade da definição de presença dos atores e
to de crise do homem moderno, como disse personagens. O espectador não recebe sugestões
Marshall Berman, “tudo o que é sólido desman- que fazem a sua imaginação trabalhar, qual o
cha no ar” (Berman, 1986). Logo, a realidade exercício simbolista. Não. Ele está num ambi-
tende a volatilizar-se do palco e, conseqüente- ente carregado de significado cultural, um pre-
mente, com ela, o homem que a configura. sídio. Essa consciência certamente estimula um
Lembremos que o descontrole e a falha, caracte- constante estado de tensão. Impressiona. Atrita
rísticos de nossa humanidade, eram considera- a tranqüilidade de experimentar o fenômeno
dos entraves para a realização da forma artística assumidamente fictício, inerente ao evento tea-
em sua perfeição. Assim, a idéia de superma- tral. Seja devido ao tipo de relação emocional que
rionete, pensada por Craig, é exatamente para o espectador mantenha com o ambiente onde
evitar o acidental inerente ao homem/ator. ocorre a ação cênica, seja devido à maneira
icástica como os elementos com forte carga sim-
“Os traços da existência da sociedade tardo-
bólica ganham presença nesse espaço.
capitalista, da mercantilização totalizada em
“A gente saía para lugares que não eram... fá-
‘simulacrização’ à conseqüente exaustão da
ceis de ir. Delegacia, detenção, boca-do-lixo...
‘crítica da ideologia’, à descoberta lacaniana
os lugares mais underground... cracolândia...
do simbólico – tudo fatos que entram plena-
o importante nessa ‘pesquisa de campo’ é... o
mente no que Heidegger chama Ge-Stell – não
material humano. Quem são essas pessoas que
representam só os momentos apocalípticos de
estão ali? o que é que elas estão buscando? É
uma Menscheitsdämmerung, de uma desuma-
você encontrar o humano, nessas pessoas. Pra
nização, mas são provocações e apelos que
mim, sempre me bate que eu poderia... estar
indicam uma nova experiência humana pos-
ali. Essa coisa ‘à margem’, à margem parece
sível” (Vattimo, 1987).
que não... não passa pela tua vida. Por que
Diferente do juízo finissecular dos simbolistas, buscar ali? O que tem ali? O que tem ali que
que buscando um novo homem negavam a im- eu compartilho. O que tem ali em essência...
perfeição do real, tornando sempre mais etéreo que está em mim que está na sociedade, que
o espaço da cena, Antônio Araújo procura o está nesse mundo hoje? Fim de perspectiva...
tempo todo afirmar a imperfeição de nossa rea- de possibilidade... fim de caminho” 6.

6 Entrevista concedida pelo ator Vanderlei Bernardino.

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As personagens explicitam seus arquéti- de penetrações aos corpos nus arrastados por
pos travestidas alegoricamente em figuras mar- corredores estreitos e escuros, cheios de espec-
ginais da realidade do homem atual. As corres- tadores, todo esse excesso de “uso” expositivo do
pondências parecem e são simples. É na inten- corpo por parte do ator trabalha num registro
sidade da presença da idéia na performance ator de expressiva desumanidade. E esse limiar entre
que tal assunção ganha força. Embora possamos a ficção de um mundo projetado num ambien-
seguir um fluxo de pensamentos com encadea- te real e o nível de entrega física na performan-
mento semelhante para quase todos os perso- ce dos atores inevitavelmente experimentado
nagens, tomemos como exemplo apenas João. pelos espectadores, longe de fazê-lo dispersar,
O apóstolo, aquele que gravita na esfera dos que concentra ainda mais sua atenção nas fortes sen-
possuem a “boa nova”, que tem a visão e nos sações provocadas pela radicalidade na expres-
faz a revelação, no espetáculo, é reduzido a um são das emoções.
pobre, frágil, figura praticamente imperceptível. A propriedade com que os atores apresen-
A precariedade do ser humano é intensi- tam os seus personagens é, com certeza, o ele-
ficada pelo comportamento do personagem, mento mais importante a sustentar a cena cria-
pelas suas roupas rotas, pelas sandálias de dedo, da por Antônio Araújo. Ele certamente sabe e
pelo sofrimento físico que o ator passa em vári- estimulou a característica essencial do processo
as cenas, pelo desmoronamento da ilusão dian- de criação desenvolvido, uma relação pessoal
te da realidade, pela alegorização construída intensa entre o homem/ator e o universo temá-
com elementos de identificação retirados da re- tico proposto para espetacularização. É a partir
alidade cotidiana. E é esse “excesso de presença” de depoimentos cênicos apresentados pelos ato-
que nos interessa. Pois é através dele que o res como respostas aos estímulos dados pelo di-
arquetípico configura-se alegoricamente e po- retor que a dramaturgia cênica se constrói. Se
tencializa o reconhecimento do pathos concer- traduzida em falas que dão vazão às conquistas
nente ao patético contemporâneo. Como já o expressivas do ator ou não, não é tão importan-
fizera Beckett trilhando outro excesso – o do si- te quanto o fato de que a fala que aquela pre-
lêncio pelo verbo. sença selecionada pela equipe tem é de autoria
Na formatação da cena simbolista, o ator dos atores, e a força de seu sentido não depende
despotencializa o corpo, tentando volatilizar a do discurso verbal final definido pelo drama-
sua presença para que a percepção do especta- turgo, mas da consciência da relação pessoal
dor capte apenas a vibração de uma sensação. que cada ator tem com o que o espetáculo diz.
Do ator deseja-se o impossível, a desumanização Essa propriedade na presença é conseguida por
que evoca sem ser. Em Apocalipse 1,11, como a alguém que antes buscou a vibração comum en-
força do arquétipo se dá pela revelação de sua tre a sua humanidade e a daqueles que sub-exis-
presença excessiva no cotidiano, o ator constrói tem no espaço da marginalidade. O ator Van-
a cena em um padrão limite de disponibilidade derlei Bernardino deixa isso claro quando diz
psíquica e exigência física de uso de seu corpo. que essa aproximação mostra os aspectos de de-
Da tortura com afogamento enfiando a cabeça gradação a que chegou o nosso sentido ideali-
no vaso sanitário da cela à asfixia com saco plás- zado de ser humano.
tico ou ao deixar-se urinar por um outro ator; “Essas pessoas, que estão à margem, as ques-
do perigo de expor a integridade física inves- tões delas são as mesmas que temos. O que
tindo contra os veículos e transeuntes nas pro- elas estão querendo é o mesmo que a gente.
ximidades do presídio antes do espetáculo co- Só que... se a gente não tem um mínimo de
meçar ao grotesco das ações dos dependentes possibilidade, elas não têm nenhuma. Então...
que enfiam cocaína no reto; do casal profissio- no nada, no nada, fica uma essência explíci-
nal de sexo explícito que evolui uma seqüência ta. Tem ‘algo’, assim, que você fala; nossa! Tem

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uma... tem uma essência nessa deterioração. vivemos. O sentimento de culpa é característi-
O meu (palavra incompreensível na gravação) co de uma consciência que se crê derrotada por
é dar luz a essa essência7”. não cumprir ou alcançar metas previamente
O que sobrou do céu? estabelecidas como essenciais. Advenham elas
O Apocalipse bíblico é a revelação celeste de Deus ou de uma estrutura lógica fundada na
de como seria o juízo final, e nos alerta para a razão.
mão impiedosa de um Deus/Juiz; Apocalipse E, no epílogo, num último encontro com
1,11 revela o sem sentido do julgamento de um o Senhor Morto, a confirmação da liberdade
homem que já não tem mais instâncias superi- solitária.
ores que guardem verdades eternas. Cortando o “O Senhor, pela primeira vez, ergue um olhar
cordão umbilical com a configuração metafísica vivo e intenso para João.
legada pela cultura judaico-cristã, deixa o ho- Senhor – me deixa... me deixa ir... me deixa
mem só. Desta forma o diretor realiza um mo- ir embora, por favor...
vimento de religare: seu evento estético busca João faz um sinal afirmativo com a cabeça.
proporcionar uma ponte entre a consciência e o O Senhor Morto ergue-se, abre a porta e sai.
real, através da interpretação que o grupo faz do Hesitante, porém feliz e aliviado, João parte
homem nesse ambiente finissecular radicalmen- carregando sua mala vazia”8.
te desumanizado. A palavra radical, desgastada
pelo uso, cabe bem nessa abordagem da essên- Do apóstolo João, a figura mítica, o discípulo
cia que resta e que fica explícita nos indivíduos de Jesus, das belas páginas do Evangelho, sobrou
que povoam o submundo cotidiano. Com essa o homem. Só. Com a mala vazia, com a cabeça
radicalidade, a última grande cena do espetácu- vazia de apelos transcendentes. Absolutamente
lo, O Juízo Final, não deixa pedra sobre pedra. só, sem amparo divino, social, ideológico ou
Todos perecem, inclusive o Juiz (Sérgio Siviero) psicológico, o herói fez o seu rito de passagem
que, depois de a todos condenar, enforca-se. pela nossa realidade, pela nossa Nova Jerusalém.
Assim, João testemunha o último representante E foi esvaziado das ilusões que lhe diziam quem
que resta da (nossa) realidade dar cabo da pró- era e o que esperar. Este vazio lhe deixa tam-
pria vida desculpando-se por tudo o que não bém mais leve. E ele parte. Abrindo em ser. O
deu certo neste projeto de ser e de realidade que que for.

Referências bibliográficas

BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo, Companhia das
Letras, 1986.
VATTIMO, G. O Fim da Modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Lisboa, Editorial
Presença, 1987.

7 Id., ibid.
8 Texto do espetáculo.

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