É interessante a fortuna do conceito de "ideologia". Há décadas, a tradição marxista,
ao qual ele esteve em geral ligado, usa-o com extremo cuidado, ciente de sua polissemia e também dos pressupostos ocultos que muitas vezes carrega. Em uma dimensão fraca, mas frequente na linguagem comum, ideologia é simplesmente a adesão a um conjunto definido de princípios políticos; "ideológico" é como se fosse o oposto de oportunista. Mas ideologia também se refere à base material das representações do mundo, isto é, que estas representações nascem de nossa vivência no mundo. E ao fato de que as ideias dominantes numa determinada sociedade são as ideias de sua classe dominante, como escreveram Marx e Engels. Por fim, no seu sentido mais forte, a ideologia é a "falsa consciência", o véu que nos impede de ver a realidade. O uso do conceito neste sentido, que aponta para os padrões de manipulação presentes no mundo social, pode resvalar para formas de autoritarismo, quando um agente externo se julga portador da "verdadeira consciência" e, portanto, autorizado a ignorar a expressão das preferências e das vontades pelas pessoas. Pois é esse sentido forte que tem sido mobilizado pela direita brasileira em sua campanha para restaurar uma hegemonia intelectual conservadora inconteste - que eles chamam de "desideologizar" o mundo. No entanto, poucas coisas são mais ideológicas do que o programa desta direita, como se revela, por exemplo, na ação do presidente eleito e seu séquito. Um exemplo é a política externa. As críticas ao viés ideológico da política externa brasileira sob os governos petistas eram frequentes e partiam do pressuposto de que a "neutralidade" é a aceitação acrítica da ordem mundial e de nosso papel subalterno nela. Mas é Bolsonaro que acena com uma ideologização completa e completamente irresponsável da política externa. No Oriente Médio, a anunciada transferência da embaixada em Israel para Jerusalém pode ser criticada por inúmeros motivos. O mais importante deles é o abandono do compromisso com a obtenção de uma paz justa na região, que depende do reconhecimento dos direitos do povo palestino. Mas o impacto na balança comercial brasileira também se afigura desastroso. Nada disso foi levado em conta no precipitado anúncio da transferência. O importante era demonstrar a lealdade canina aos Estados Unidos e o alinhamento com a postura anti-Palestina da extrema-direita mundial. Com a China, declarações similares de hostilidade, desprezando a importância que ela tem para a economia brasileira. Com a América Latina, pior ainda. O desprezo ao Mercosul conduziu a gestos de deselegância contra a Argentina (terceiro maior destino das exportações brasileiras e responsável, sozinha, por mais de 10% do superávit da balança comercial no ano passado). A equipe de Bolsonaro fala em romper relações diplomáticas com Cuba e parece simpatizar com a ideia de uma guerra na Venezuela. Que tipo de raciocínio estratégico sonharia com uma guerra nas nossas fronteiras? É o domínio cego da ideologia. O outro exemplo, claro, é a educação. Os fundamentalistas cristãos inventaram a tal da "ideologia de gênero", que é um exemplo particularmente forte da novilíngua orwelliana, e ela se tornou o maior estandarte da nossa extrema-direita. O que eles chamam de "ideologia" é exatamente a reflexão crítica sobre os papéis estereotipados de gênero, apresentados como "naturais" por aquilo que é uma verdadeira ideologia de gênero: o discurso que diz que menina tem que brincar de boneca e gostar de cor-de-rosa, que menino tem que ser violento, que família de verdade é aquela marcada pelo domínio patriarcal. A pretexto de combater a "ideologia de gênero" e também a pretensa presença da "ideologia marxista" nas escolas, o que eles querem é que elas reproduzam, sem qualquer olhar crítico, os discursos ideológicos dominantes na sociedade. E, como se não bastassem, planejam reintroduzir, nessa escola pretensamente desideologizada, a Educação Moral e Cívica e o culto aos símbolos pátrios - algo que é ideologia em estado puro... Tudo isso é feito sem disfarce, em parte porque a bisonhice mental da nossa direita é assombrosa. A maior parte deles repete as fórmulas, mas não sabe direito o que é "ideologia" - nem o que é "gênero". Enquanto relatos dão conta de que, em Câmaras de Vereadores do interior do país, projetos sobre merenda escolar foram mutilados porque falavam em "gêneros alimentícios", o deputado Izalci Lucas - tenebroso inimigo da escola pública, agora eleito senador pelo DF - apresentava projeto proibindo em todo o país disciplinas que contivessem a "aplicação da ideologia de gênero" (?) ou incluíssem os termos "gênero" ou "orientação sexual". E Marcos Feliciano, que dispensa apresentações, discursava contra os professores que ficam "doutrinando dentro da área ideológica", outra expressão que revela sua absoluta incapacidade de entender do que está falando.