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Antes de ver o que é proposto na primeira parte da Segunda Semana, convém ter
presente a relação desta etapa do livro dos “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio
com as etapas anteriores. É o que veremos a seguir, partindo do que foi muito
importante para ele.
No seu livro dos “Exercícios Espirituais” também podemos perceber esta pergunta
fundamental, marcando uma busca incansável. Esta busca supões vários passos,
mas todos eles levam sempre em conta três elementos que nunca podem ser
descuidados.
A partir disto podemos entender melhor o itinerário espiritual proposto por Santo
Inácio no livro dos “Exercícios Espirituais”.
Com o “Princípio e Fundamento” (EE 23), supõe-se que já surja uma primeira e
firme resolução: tirar de si tudo o que for impedimento para abraçar a vontade de
Deus na própria vida. Este é o segundo passo dos Exercícios e significa adesão à
vocação geral, isto é, ao Projeto de História do Pai, comum a todos os seres
humanos. Supõe uma visão global da fé cristã e percepção do que isto implica no
modo de viver de acordo com o que é criado. Por isso no início dos exercícios
seguintes, o “Princípio e Fundamento” é sempre retomado pela “Oração
Preparatória” (cf. EE 46).
O quarto passo dos Exercícios. portanto, é uma entrega à ação da graça, isto é, à
influência do Espírito, que atua através das moções espirituais e das experiências
de consolação espiritual. Por meio disto o Espírito vai “respondendo” ao exercitante
o que quer dele em particular, para que reine em nosso mundo a vida que o Pai
quer. Podemos dizer que se trata de ir das moções à missão!
2 - COM JESUS
Algumas pessoas identificam o “estar com Jesus” sobretudo como uma experiência
típica da “Terceira” e “Quarta Semana”. Mas no itinerário proposto por Santo Inácio,
isto deve ser experimentado desde o início, de modos diferentes e em intensidade
cada vez maior.
Diante do mar imenso do amor de Deus expresso por Jesus crucificado não basta
ter em si rios de gratidão. É preciso algo mais. É preciso perguntar àquele que fez
tudo por mim o que ele quer de mim. (cf. EE 53). Sem este clima interior, o
exercitante não poderá entrar na “Segunda Semana”. A “Segunda Semana”
depende desta experiência intensa de gratidão e disponibilidade. Já não se trata de
ter presente apenas o que Deus quer para todos (fidelidade à vocação geral), mas
de saber o que Deus quer em particular “de mim”. A “Segunda Semana” não
introduz o exercitante na vida cristã, mas recolhe o seu desejo de algo mais e
propõe esta vida cristã para ser abraçada em profundidade maior, com atenção
especial ao que de específico é apresentado por Deus. Está ligada ao “magis”
inaciano.
Este modo de estar com Jesus supõe contemplação e discernimento. Mas não
qualquer tipo de contemplação, como poderia ser uma mera visualização da vida de
Jesus, uma espécie de passeio há 2000 anos atrás, imaginando o que Jesus viveu
ou teria vivido na Palestina. Não se trata de uma peregrinação à Terra Santa, mas
de mergulhar no mistério de Jesus e de um encontro pessoal com ele. Também não
se trata de fantasias piedosas sobre como seria a vida de Jesus hoje ou de estar
com ele “pensando” nas Marias, Josés e Herodes de hoje. Tudo isto pode ter seu
lugar na “Segunda Semana”, mas ela não pode ser reduzida a uma peregrinação ao
passado ou ao presente de Jesus. A experiência de Inácio-peregrino que o livro dos
Exercícios propõe é a do peregrino de Deus! Por isso é importante ver o que nos
propõe para tal no “Exercício do Reino”.
Vamos dar uma atenção especial ao “Exercício do Reino”. Isto, porém, não significa
que o “estar com Jesus” seja menos importante depois, na contemplação de sua
vida. Ao contrário: o “Exercício do Reino” prepara o exercitante para que isto
aconteça de um modo melhor.
E como Jesus ilumina nossas mentes? Dando a conhecer o que quer de nós. Faz
ressoar no profundo do nosso ser a sua voz, portadora de suas propostas, não
através de sons que podemos perceber fisicamente, mas por meio da ação de seu
Espírito, que podemos captar pelo discernimento espiritual. Por isso o pedido do
“Exercício do Reino”: Pedir a Nosso Senhor a graça de não ser surdo a seu
chamado, mas pronto e diligente para cumprir a sua santíssima vontade” (EE 91).
Conforme Bastos Noreña1, toda a vida de Jesus é um chamado para segui-lo, para
identificar nossas vidas com seu modo de proceder, com sua missão. É fazer dia a
dia a vontade do Pai, ou, de acordo com Santo Inácio, trabalhar com Jesus. Daí o
oferecimento que o exercitante faz no final do “Exercício do Reino” e sua ligação
com a “Primeira Semana”, que conclui com a pergunta : “O que devo fazer por
Cristo?” (EE 53). O pedido do “Exercício do Reino” (EE 91) expressa muito bem
todos esses aspectos.
O “Exercício do Reino” supões duas coisas: o agora (estar com Cristo e colaborar
com ele em seu trabalho) e o depois (segui-lo na sua glória). Por isso o exercitante é
convidado a oferecer-se inteiramente ao trabalho (cf. EE 96) e a fazer “oferendas de
maior valor e importância” (EE 97), para manifestar maior afeição e distinguir-se (isto
é, pronto a suportar o que for mais difícil). O melhor é poder abraçar a condição de
Jesus pobre e humilde, que não veio em busca de tesouros para si ou para
manifestar grandeza exterior. Veio para que tenhamos vida e vida em abundância
(cf. Jo 10,10).
Este empenho, porém, não deve levar ao descuido de uma vida de intimidade com
Deus e do amor pessoa a Jesus Cristo, como tão bem podemos ver através do
testemunho do apóstolo Paulo e da Igreja primitiva, realidade que constitui um dos
elementos essenciais da verdadeira vida cristã.
O Reino sem Jesus: reducionismo que leva a um ativismo ideológico e a uma forma
de pelagianismo. O seguimento de Jesus passa a ser um segmento parcial, voltado
para a transformação da sociedade, mas reduzindo esta transformação a um
alcance apenas intra-histórico. Jesus passa a ser fonte de inspiração para a luta por
um mundo justo, mas deixa de ser visto como o Senhor da história. Em primeiro
lugar e acima de tudo são colocadas metas a serem conseguidas e não a pessoa de
Jesus.
A vontade de Cristo é que reine a vida de filhos/as de Deus, alcançada para nós por
ele, a qual é, em relação aos outros, vida fraterna, baseada no amor e na justiça.
O que Pai quer é o Reino de fraternidade, amor, justiça e paz já inaugurado por
Jesus e que será consumado no final da história. Jesus já derrotou a morte e o
pecado, mas há ainda muito ser conquistado. Por isso o apelo de Cristo: “Minha
vontade é conquistar o mundo inteiro, vencendo todos os meus inimigos, e assim
ganhar a glória do meu Pai. Portanto, quem quiser vir comigo ha de lutar comigo,
para que seguindo na luta, também me siga na glória” (EE 95 1º ponto)
Assim, levar adiante o Reino é trabalhar com Cristo para que todos sejam conforme
o “sonho” do Pai, a nível de ser e agir, como indivíduos e comunidades, na
organização das estruturas sociais, políticas e econômicas ou no modo de tratar o
mundo. Isto supõe esforço, como o empenho pela promoção da justiça social e da
verdadeira paz para todo ser humano, a fim de que aconteça o que Paulo VI
apontou como a Civilização do Amor.
Só há Reino de Deus quando Deus é colocado no centro como Pai e Pai que quer
vida verdadeira para todos seus filhos/as.
Sem Deus, sem o Pai, tudo cai em ideologia de igualdade, de justiça, etc. Igualdade
de direitos, mas impossibilidade de amor. Temos, então, “eus” equiparados. Tudo
passa a ser questão de justiça: a justiça no centro, não o amor. E não pode haver
fraternidade verdadeira sem um Pai.
Portanto, o que deve mover as pessoas a nível mais profundo não é a justiça, mas o
amor. Ficando só na justiça, temos a porta aberta para novas lutas e
desentendimentos sem fim. A “suma justiça” é cada um ter o que é seu. Mas a vida
plena anunciada pelo Evangelho não é questão de ter, mas de ser filho/a e irmão/ã.
Conforme os bispos latino-americanos reunidos em Puebla, é a participação da vida
divina: realidade de participação e comunhão.
A glória do Pai é o pano de fundo. Participar dela, da vida divina trinitária, é a grande
meta (conforme o ensino de Puebla) e não a “construção” de um reino de iguais. Por
isso se diz Reino de Deus e não reino da justiça, do amor ou da fraternidade, mas
de justiça, amor e fraternidade.
O que escolher em primeiro lugar? Não se trata de escolher “Ou Deus ou os outros”
nem “Deus e os outros”, mas Deus com o que ele quer: o seu Reino, o Reino de
Deus, o Reino do Amor do Pai. O resto decorre daí.
Os Dez Mandamentos nos lembram esta opção decisiva. São dez escolhas para
que haja vida verdadeira para todos e em todos os sentidos. Dez que podem ser
duas: em primeiro lugar amor a Deus e em segundo, amor ao próximo. Primeiro o
Criador, depois as criaturas.
Mas o exercício não tem em vista somente o oferecimento final (EE 98). É também
um meio para que o exercitante possa verificar o seu estado de oferecimento e
disponibilidade com todos os seus dinamismos humanos. É para ajudá-lo a ver com
que generosidade se encontra para assumir uma missão específica: é alguém capaz
de empolgar-se por uma proposta humana? até que ponto? Além disso pretende
ajudar o exercitante a captar a radicalidade do seguimento de Jesus e a globalidade
da missão.
É interessante notar que o oferecimento final não desemboca no que fazer por
Cristo, mas no desejo e no querer ser semelhante a Cristo. E este desejo e querer
estão ligados a uma determinação deliberada, a qual não exclui injúrias,
humilhações e pobreza.. Isto prepara o exercitante para o momento seguinte, que é
o de perceber melhor Jesus através da vida que abraçou, para afeiçoar-se mais a
ele e ao que abraçou, para assim poder segui-lo mais de perto.
3 - COMO JESUS
Não se trata de compor uma biografia de Jesus ou simplesmente ver seu passado,
mas de perceber melhor quem é Jesus, para mais aperfeiçoar-se a ele e mais segui-
lo (cf. EE 104 - pedido da contemplação da Encarnação, o mesmo para as outras
contemplações da “Segunda Semana”). O que se quer é um “conhecimento interno”
do Senhor (cf. EE 104). Podemos conseguir algo semelhante em relação ao Pai a
partir da a parábola do filho pródigo. Esta narração nos diz como é o Pai, apesar de
não relatar logo o que tenha se passado historicamente com Deus Pai. A parábola
vai ao ser do Pai. De modo semelhante os textos sobre Jesus. Assim, é importante
ter presente que o sentido dos acontecimentos narrados pelos evangelhos não é o
de reconstruir a história de Jesus, mas de refazer a nossa. Estes relatos
transcendem a história de Jesus: são história de Jesus e interpretação de sua
história, para que possamos descobrir melhor o ser de Jesus e os apelos que traz
para nós em nossa realidade.
É preciso ir descobrindo o que Jesus quer passar de um modo especial de sua vida
para a nossa. Há detalhes simples e modestos, mas de sabedoria inesgotável.
Importante é não ficar na superfície dos dados evangélicos, mas descer às
profundezas dos gestos, atitudes, preferências e opções que aí aparecem.
Através dos mistérios da infância de Jesus, podemos ver o que foi escolha e
preferência para o Verbo eterno ao tornar-se um de nós, assumindo a condição
humana. Contemplamos a “eleição” divina (o que decidiram as três pessoas divinas
“para salvar o gênero humano”). É o grande horizonte para que possamos discernir
o que devemos assumir hoje, fiéis no seu seguimento. Na infância de Jesus não
aparecem palavras de Jesus: aparece o seu ser, através do que ele assumiu. A
única exceção é a resposta de Jesus aos 12 anos de idade à aflição de Maria e
José: “Porque me procuráveis? Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu
Pai?” (Lc. 2,49).
O método proposto por Santo Inácio para assimilação pessoal do mistério de Cristo
(conhecer-amar) e para a configuração com ele (seguir) não é o da meditação, que
vai logo para a reflexão, a partir do que produz mais ressonância interior. Santo
Inácio propõe uma atenção contemplativa a partir do que é apresentado pelas
narrações evangélicas, seguindo com o olhar da imaginação as pessoas de cada
cena, ouvindo o que dizem e vendo o que fazem, participando ativamente de cada
cena como alguém que toma parte em acontecimentos do presente. Só depois deste
abandono à influência da cena do evangelho há lugar para a reflexão, para tirar
proveito da mesma (cf. EE 106-108).
O exercitante terá que ver daquilo que o Pai escolheu para o seu Filho o que o
mesmo Pai quer agora para este outro filho/a, que é ele/a.
Contemplando a vida de Jesus, contempla a eleição do Pai para Jesus. Depois terá
que vir a resposta para a pergunta: “E o que o Pai quer que eu abrace da vida de
Jesus?” É a Eleição do Pai “para mim”, configurando-me com seu filho até através
de algo bem concreto a ser assumido.
Jesus veio para que todos tenham vida e vida em todos os sentidos (cf. Jo 10,10).
Não veio em busca de coisas para si, prestígio social ou comodidades.
Contemplando os “mistérios” da infância de Jesus, através das cenas propostas
pelos evangelhos, deve tornar-se claro o sentido de sua presença na história
humana e o caminho abraçado por ele para a “redenção do gênero humano”. Santo
Inácio dá muita atenção a este caminho de pobreza e humildade. O modelo
cristológico que aparece aí não é o de expiação, mas de compromisso, que é o
modelo focalizado pelos autores latino-americanos, como Jon Sobrino e Leornardo
Boff. A carta de São Paulo aos Filipenses também expressa muito bem a cristologia
que tem um lugar especial nos Exercícios.
NOTAS:
1
E. Bastos Noreña, El Evangelio del trabajo. Segunda Semana de los Ejercicios de
San Ignacio, em: Cuadernos de Espiritualidad, 31-32 (Peru, 1984) 29-30.
2
Cf. Albert Nolan, Jesus antes do Cristianismo, Ed. Paulinas, São Paulo, 1988.
3
Cf. Ricardo Antoncich Meditación de la Vida de Jesucristo como horizonte de la
libertad humana, em Cuadernos de Espiritualidad, 37 (Peru, 1987) 11-32