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ARTIGO

Pe Cláudio é vice-diretor do CEI-ITAICI

A PRIMEIRA PARTE DA SEGUNDA SEMANA DOS


EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
Claudio Werner Pires, SJ

Antes de ver o que é proposto na primeira parte da Segunda Semana, convém ter
presente a relação desta etapa do livro dos “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio
com as etapas anteriores. É o que veremos a seguir, partindo do que foi muito
importante para ele.

1 - A PROPOSTA INACIANA: UM ITINERÁRIO ESPIRITUAL

Falando de sua vida, Santo Inácio apresenta-se em sua autobiografia como “o


peregrino”. Aparece primeiro como o peregrino que desejava ir para a Terra Santa.
Depois como o “peregrino da vontade de Deus”. Em seu coração ressoava a
pergunta: “O que Deus quer de mim?”.

No seu livro dos “Exercícios Espirituais” também podemos perceber esta pergunta
fundamental, marcando uma busca incansável. Esta busca supões vários passos,
mas todos eles levam sempre em conta três elementos que nunca podem ser
descuidados.

O primeiro é a história, são os acontecimentos, o que viver.

O segundo é a presença viva e atuante de Deus na história. Na experiência


inaciana, Deus não é um ser distante, desligado do que acontece Também não é
alguém que tem contatos isolados com as pessoas, mas sem situá-las em algo de
conjunto. Para Santo Inácio, Deus é o Criador e Senhor. Alguém que é fonte de vida
e que atua para que se dê vida em nosso mundo. Vida para todos e em todos os
sentidos.

Por isso o terceiro elemento: a presença de Jesus na história. Esta presença de


Jesus, além de ser a expressão visível e maior da presença atuante de Deus na
história, é a presença de quem convoca a todos para unir-se a ele em busca do que
o Pai quer. E é também o grande horizonte para todas as opções humanas.

A partir disto podemos entender melhor o itinerário espiritual proposto por Santo
Inácio no livro dos “Exercícios Espirituais”.

1.1 - O primeiro passo

O primeiro passo é entrar na experiência dos Exercícios com um grande desejo de


aproveitar em tudo o que for possível, tomando como ponto de partida um
oferecimento a Deus de todo o seu querer e liberdade. É o que Santo Inácio indica
em uma das vinte “Anotações” do início de seu livro (EE 5 - 5ª anotação).

Neste oferecimento não há ainda nenhuma concretização especifica, mas apenas


uma atitude básica: “Que Deus disponha de mim conforme a sua vontade”. É a
atitude de Maria no mistério da Anunciação: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em
mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).

1.2 - O segundo passo

Com o “Princípio e Fundamento” (EE 23), supõe-se que já surja uma primeira e
firme resolução: tirar de si tudo o que for impedimento para abraçar a vontade de
Deus na própria vida. Este é o segundo passo dos Exercícios e significa adesão à
vocação geral, isto é, ao Projeto de História do Pai, comum a todos os seres
humanos. Supõe uma visão global da fé cristã e percepção do que isto implica no
modo de viver de acordo com o que é criado. Por isso no início dos exercícios
seguintes, o “Princípio e Fundamento” é sempre retomado pela “Oração
Preparatória” (cf. EE 46).

1.3 - O terceiro passo

É necessário, conseqüentemente, tomar consciência de toda desordem existente e


de suas trágicas conseqüências, para que o abandono à misericórdia e à graça de
Deus torne possível uma vida nova, de acordo com a vontade de Deus. É o que se
busca com a “Primeira Semana”, a qual termina com uma oração de agradecimento
e uma pergunta: “O que devo fazer por Cristo?” (cf. EE 53).

1.4 - O quarto passo

Depois, na “Segunda Semana”, o exercitante é convidado a contemplar a vida de


Cristo, a fim de que, conhecendo-o mais em profundidade, possa mais amá-lo e
segui-lo. É uma etapa de confronto da própria vida com a vida de Cristo, iniciada
pelo exercício costumeiramente chamado de “Exercício do Reino”. Este tempo de
contemplação e discernimento culmina com o processo de “Eleição”, através do qual
o exercitante pode passar do oferecimento inicial genérico para compromissos
específicos.

O quarto passo dos Exercícios. portanto, é uma entrega à ação da graça, isto é, à
influência do Espírito, que atua através das moções espirituais e das experiências
de consolação espiritual. Por meio disto o Espírito vai “respondendo” ao exercitante
o que quer dele em particular, para que reine em nosso mundo a vida que o Pai
quer. Podemos dizer que se trata de ir das moções à missão!

1.5 - Como dar o quarto passo

O que se pretende com a “Segunda Semana” é preparado pelos três momentos


distintos desta etapa.

O primeiro compreende o “Exercício do Reino” e as contemplações da vida de Jesus


desde o mistério da Encarnação até o final da Vida Oculta. No segundo temos três
tipos de exercícios para que se possa verificar como está o processo de seguimento
de Jesus e para preparar melhor o momento seguinte:

a) a meditação das “Duas Bandeiras” (EE 136-148)


b) a meditação de “Três Tipos de Pessoas” (EE 149-156)
c) a consideração dos “Três Modos de Humildade” (EE 164-168)

O terceiro momento é o da contemplação de Jesus na vida pública, juntamente com


a “matéria das eleições” (cf. EE 163), culminando com o que o livro dos Exercícios
chama de “entrar nas eleições” (cf. EE 164). É a etapa de contemplação e
discernimento na qual se busca luz para perceber o que Deus propõe de específico.
Trata-se de ver a vocação específica ou de algo específico na vida cristã, conforme
o que o próprio Deus mostra (seja com grande clareza, seja através de moções ou
por meio de sua ajuda à luz do entendimento).

Estes três momentos, tomando-os em relação ao que é mais próprio da busca de


cada um, podem ser vistos do seguinte modo: com Jesus e como Jesus, do melhor
modo possível a serviço do reino de Deus.

Veremos, então, a seguir, o que se deseja com a primeira parte da “Segunda


Semana”: com Jesus e como Jesus.

2 - COM JESUS

Algumas pessoas identificam o “estar com Jesus” sobretudo como uma experiência
típica da “Terceira” e “Quarta Semana”. Mas no itinerário proposto por Santo Inácio,
isto deve ser experimentado desde o início, de modos diferentes e em intensidade
cada vez maior.

Na “Primeira Semana” é preciso que o exercitante experimente em profundidade a


presença de Jesus como salvador, aquele que veio restabelecer comunhão. O
pecado estabelece ruptura com Deus e produz toda a sorte de desgraças, como as
injustiças e sofrimentos que oprimem tragicamente milhões de homens e mulheres,
crianças e idosos latino-americanos. Como sair desta dinâmica que leva a tantos
males? Sozinho é impossível. Não fomos, porém, abandonados pelo Pai e isto
aparece em toda a sua grandeza com a morte de Jesus na cruz. Como reagir diante
de tanto amor?

Diante do mar imenso do amor de Deus expresso por Jesus crucificado não basta
ter em si rios de gratidão. É preciso algo mais. É preciso perguntar àquele que fez
tudo por mim o que ele quer de mim. (cf. EE 53). Sem este clima interior, o
exercitante não poderá entrar na “Segunda Semana”. A “Segunda Semana”
depende desta experiência intensa de gratidão e disponibilidade. Já não se trata de
ter presente apenas o que Deus quer para todos (fidelidade à vocação geral), mas
de saber o que Deus quer em particular “de mim”. A “Segunda Semana” não
introduz o exercitante na vida cristã, mas recolhe o seu desejo de algo mais e
propõe esta vida cristã para ser abraçada em profundidade maior, com atenção
especial ao que de específico é apresentado por Deus. Está ligada ao “magis”
inaciano.

O “estar com Jesus” na “Segunda Semana”, portanto, é fortemente marcado pelo ir


das moções à missão. O Pai nos enviou seu Filho. Não apenas para estar conosco,
mas para implantar o seu Reino. Reino que não é em, primeiro lugar uma questão
de ter ou não ter algo, mas de ser filho/a e irmão/a. Por isso a pergunta: “Que filho/a
e irmão/ã o Pai quer que eu seja?”. É com Jesus que o exercitante vai descobrindo
isto em relação a si também quanto ao seu lugar particular na luta pelo Reino.

Este modo de estar com Jesus supõe contemplação e discernimento. Mas não
qualquer tipo de contemplação, como poderia ser uma mera visualização da vida de
Jesus, uma espécie de passeio há 2000 anos atrás, imaginando o que Jesus viveu
ou teria vivido na Palestina. Não se trata de uma peregrinação à Terra Santa, mas
de mergulhar no mistério de Jesus e de um encontro pessoal com ele. Também não
se trata de fantasias piedosas sobre como seria a vida de Jesus hoje ou de estar
com ele “pensando” nas Marias, Josés e Herodes de hoje. Tudo isto pode ter seu
lugar na “Segunda Semana”, mas ela não pode ser reduzida a uma peregrinação ao
passado ou ao presente de Jesus. A experiência de Inácio-peregrino que o livro dos
Exercícios propõe é a do peregrino de Deus! Por isso é importante ver o que nos
propõe para tal no “Exercício do Reino”.

Vamos dar uma atenção especial ao “Exercício do Reino”. Isto, porém, não significa
que o “estar com Jesus” seja menos importante depois, na contemplação de sua
vida. Ao contrário: o “Exercício do Reino” prepara o exercitante para que isto
aconteça de um modo melhor.

2.1 - O “Exercício do Reino”

É um exercício que procura uma transição da experiência de amor salvador, que


perdoa, para uma experiência do Salvador, que continua atuando na história.

O exercício coloca diante de quem o faz a História da Salvação em suas grandes


perspectivas divinas e cósmicas. Abarca o mundo inteiro e a humanidade toda. Tudo
deve ser sujeito ao senhorio de Cristo, que não veio para dominar, mas para libertar
a todos do domínio das forças do mal.

O “Exercício do Reino”, portanto, é a retomada concreta do “Princípio e


Fundamento” à luz de Cristo. É o “Princípio e Fundamento” das semanas seguintes:
ordenar a própria vida a serviço do Reino com a luz irradiada pela presença daquele
que é a verdadeira Luz (cf. Jo 1,9).

E como Jesus ilumina nossas mentes? Dando a conhecer o que quer de nós. Faz
ressoar no profundo do nosso ser a sua voz, portadora de suas propostas, não
através de sons que podemos perceber fisicamente, mas por meio da ação de seu
Espírito, que podemos captar pelo discernimento espiritual. Por isso o pedido do
“Exercício do Reino”: Pedir a Nosso Senhor a graça de não ser surdo a seu
chamado, mas pronto e diligente para cumprir a sua santíssima vontade” (EE 91).

Seremos verdadeiramente seguidores de Jesus se não formos surdos à sua voz. É


preciso entrar numa experiência de escuta e compromisso, isto é, de segui-lo como
ele quer.
Esta experiência de escuta e compromisso, na América Latina não pode deixar de
levar em conta, de um modo muito especial, o clamor de tantos povos e grupos
oprimidos e excluídos, bem como escritos sobre esta situação, particularmente os
documentos do episcopado latino-americano reunido em Medellín, Puebla e Santo
Domingo.

2.2 - O Título do “Exercício no Reino”

Ao propor o seguimento de Jesus, Santo Inácio não apresenta em primeiro lugar o


Reino, mas o mesmo Jesus convocando colaboradores para a tarefa do Reino. É
preferível, assim, denominar e chamado “Exercício do Reino” de “Exercício do Rei”
ou “Exercício do chamado para o Reino”, lembrando a frase evangélica “Vem e
segue-me!” (cf. Mt 9,9). Para Santo Inácio, o título do Exercício é: “O chamado do rei
temporal ajuda a completar a vida do Rei Eterno” (EE 91), título que melhor condiz
com o conceito bíblico de Reino de Deus.

Conforme Bastos Noreña1, toda a vida de Jesus é um chamado para segui-lo, para
identificar nossas vidas com seu modo de proceder, com sua missão. É fazer dia a
dia a vontade do Pai, ou, de acordo com Santo Inácio, trabalhar com Jesus. Daí o
oferecimento que o exercitante faz no final do “Exercício do Reino” e sua ligação
com a “Primeira Semana”, que conclui com a pergunta : “O que devo fazer por
Cristo?” (EE 53). O pedido do “Exercício do Reino” (EE 91) expressa muito bem
todos esses aspectos.

2.3 - Elementos do “Exercício do Reino”

O “Exercício do Reino” supões duas coisas: o agora (estar com Cristo e colaborar
com ele em seu trabalho) e o depois (segui-lo na sua glória). Por isso o exercitante é
convidado a oferecer-se inteiramente ao trabalho (cf. EE 96) e a fazer “oferendas de
maior valor e importância” (EE 97), para manifestar maior afeição e distinguir-se (isto
é, pronto a suportar o que for mais difícil). O melhor é poder abraçar a condição de
Jesus pobre e humilde, que não veio em busca de tesouros para si ou para
manifestar grandeza exterior. Veio para que tenhamos vida e vida em abundância
(cf. Jo 10,10).

Quanto ao “agora”, há duas propostas a serem apresentadas ao exercitante: estar


com Cristo (proposta da pessoa de Jesus) e colaborar com ele em seu trabalho
(proposta da causa de Jesus). Em outras palavra: Cristo e o Reino, formando o
binômio inseparável Jesus-Reino. Rompido este binômio, temos atrofias e
hipertrofias desastrosas para o autêntico serviço a Deus. Assim temos dois
extremos a serem evitados: Jesus sem o Reino e o Reino sem Jesus.

Jesus sem o Reino: reducionismo que leva a uma espiritualidade intimista,


meramente devocional ou desencarnada. Ignora a pessoa de Jesus como é
revelada pelos Evangelhos: alguém profundamente identificado com a causa do
Reino. A vontade divina em relação à história humana supõe empenho pelo
estabelecimento de uma nova ordem social, baseada na justiça e no amor.
Podemos lembrar aqui o conflito entre “valores” da sociedade do tempo de Jesus e a
“novidade” de sua proposta, apresentando a seus discípulos/as a hierarquia de
valores querida pelo Pai2.

Este empenho, porém, não deve levar ao descuido de uma vida de intimidade com
Deus e do amor pessoa a Jesus Cristo, como tão bem podemos ver através do
testemunho do apóstolo Paulo e da Igreja primitiva, realidade que constitui um dos
elementos essenciais da verdadeira vida cristã.

O Reino sem Jesus: reducionismo que leva a um ativismo ideológico e a uma forma
de pelagianismo. O seguimento de Jesus passa a ser um segmento parcial, voltado
para a transformação da sociedade, mas reduzindo esta transformação a um
alcance apenas intra-histórico. Jesus passa a ser fonte de inspiração para a luta por
um mundo justo, mas deixa de ser visto como o Senhor da história. Em primeiro
lugar e acima de tudo são colocadas metas a serem conseguidas e não a pessoa de
Jesus.

A vontade de Cristo é que reine a vida de filhos/as de Deus, alcançada para nós por
ele, a qual é, em relação aos outros, vida fraterna, baseada no amor e na justiça.

O que Pai quer é o Reino de fraternidade, amor, justiça e paz já inaugurado por
Jesus e que será consumado no final da história. Jesus já derrotou a morte e o
pecado, mas há ainda muito ser conquistado. Por isso o apelo de Cristo: “Minha
vontade é conquistar o mundo inteiro, vencendo todos os meus inimigos, e assim
ganhar a glória do meu Pai. Portanto, quem quiser vir comigo ha de lutar comigo,
para que seguindo na luta, também me siga na glória” (EE 95 1º ponto)

Assim, levar adiante o Reino é trabalhar com Cristo para que todos sejam conforme
o “sonho” do Pai, a nível de ser e agir, como indivíduos e comunidades, na
organização das estruturas sociais, políticas e econômicas ou no modo de tratar o
mundo. Isto supõe esforço, como o empenho pela promoção da justiça social e da
verdadeira paz para todo ser humano, a fim de que aconteça o que Paulo VI
apontou como a Civilização do Amor.

2.4 - Reino de Deus e Reino de Satanás

Só há Reino de Deus quando Deus é colocado no centro como Pai e Pai que quer
vida verdadeira para todos seus filhos/as.

Há Reino de Satanás quando o próprio “eu” é colocado no centro (no lugar de


Deus) e acima dos outros (não dando lugar à fraternidade, mas à opressão ou
dominação).

Sem Deus, sem o Pai, tudo cai em ideologia de igualdade, de justiça, etc. Igualdade
de direitos, mas impossibilidade de amor. Temos, então, “eus” equiparados. Tudo
passa a ser questão de justiça: a justiça no centro, não o amor. E não pode haver
fraternidade verdadeira sem um Pai.

Portanto, o que deve mover as pessoas a nível mais profundo não é a justiça, mas o
amor. Ficando só na justiça, temos a porta aberta para novas lutas e
desentendimentos sem fim. A “suma justiça” é cada um ter o que é seu. Mas a vida
plena anunciada pelo Evangelho não é questão de ter, mas de ser filho/a e irmão/ã.
Conforme os bispos latino-americanos reunidos em Puebla, é a participação da vida
divina: realidade de participação e comunhão.

O Reino em suas dimensões amplas, por conseguinte, não é formar uma


humanidade justa de iguais, mas a participação da comunhão das Três Pessoas
Divinas, como filhos/as do único Pai e irmãos/ãs de Jesus Cristo, movidos pelo
Espírito de Amor. Santo Inácio coloca o horizonte maior do Reino no Pai: “Minha
vontade é conquistar o mundo todo e todos os inimigos, e assim entrar na glória de
meu Pai” (EE95). Este entrar mostra um horizonte escatológico, pois a conquista do
mundo e derrota de todos os inimigos só se dará plenamente no fim da história.

A glória do Pai é o pano de fundo. Participar dela, da vida divina trinitária, é a grande
meta (conforme o ensino de Puebla) e não a “construção” de um reino de iguais. Por
isso se diz Reino de Deus e não reino da justiça, do amor ou da fraternidade, mas
de justiça, amor e fraternidade.

O que escolher em primeiro lugar? Não se trata de escolher “Ou Deus ou os outros”
nem “Deus e os outros”, mas Deus com o que ele quer: o seu Reino, o Reino de
Deus, o Reino do Amor do Pai. O resto decorre daí.

Os Dez Mandamentos nos lembram esta opção decisiva. São dez escolhas para
que haja vida verdadeira para todos e em todos os sentidos. Dez que podem ser
duas: em primeiro lugar amor a Deus e em segundo, amor ao próximo. Primeiro o
Criador, depois as criaturas.

2.5 - O Processo do ”Exercício do Reino”

Através da apresentação da a parábola, a pessoa se situa diante de Jesus:


encontra-se com Jesus que chama. E este é um chamado que:

a) realiza-se tendo presente a situação concreta da pessoa;


b) chega através dos diversos sinais dos tempos;
c) manifesta a vontade de Deus.

Através da parábola, se declara:

a) uma apresentação do próprio Jesus;


b) uma manifestação de sua vontade (construir o Reino);
c) um convite para o seguimento;
d) uma promessa de presença permanente.

Diante deste encontro, a resposta deve ser o oferecimento total do exercitante a


Jesus Salvador. Se é vergonhoso não dar um “sim” ao que propõe um rei temporal,
muito mais é ser surdo em relação ao que propõe o “Rei Eterno”, Jesus Cristo.

Mas o exercício não tem em vista somente o oferecimento final (EE 98). É também
um meio para que o exercitante possa verificar o seu estado de oferecimento e
disponibilidade com todos os seus dinamismos humanos. É para ajudá-lo a ver com
que generosidade se encontra para assumir uma missão específica: é alguém capaz
de empolgar-se por uma proposta humana? até que ponto? Além disso pretende
ajudar o exercitante a captar a radicalidade do seguimento de Jesus e a globalidade
da missão.

É interessante notar que o oferecimento final não desemboca no que fazer por
Cristo, mas no desejo e no querer ser semelhante a Cristo. E este desejo e querer
estão ligados a uma determinação deliberada, a qual não exclui injúrias,
humilhações e pobreza.. Isto prepara o exercitante para o momento seguinte, que é
o de perceber melhor Jesus através da vida que abraçou, para afeiçoar-se mais a
ele e ao que abraçou, para assim poder segui-lo mais de perto.

3 - COMO JESUS

Depois da consideração do chamado de Jesus e de sua proposta global (mediante o


“Exercício do Reino”), realiza-se um processo de aproximação da pessoa de Jesus,
através da contemplação de “mistérios” de sua vida. Contempla-se então a proposta
do “Exercício do Reino” na própria vida de Jesus, no que ele abraçou e viveu.

Não se trata de compor uma biografia de Jesus ou simplesmente ver seu passado,
mas de perceber melhor quem é Jesus, para mais aperfeiçoar-se a ele e mais segui-
lo (cf. EE 104 - pedido da contemplação da Encarnação, o mesmo para as outras
contemplações da “Segunda Semana”). O que se quer é um “conhecimento interno”
do Senhor (cf. EE 104). Podemos conseguir algo semelhante em relação ao Pai a
partir da a parábola do filho pródigo. Esta narração nos diz como é o Pai, apesar de
não relatar logo o que tenha se passado historicamente com Deus Pai. A parábola
vai ao ser do Pai. De modo semelhante os textos sobre Jesus. Assim, é importante
ter presente que o sentido dos acontecimentos narrados pelos evangelhos não é o
de reconstruir a história de Jesus, mas de refazer a nossa. Estes relatos
transcendem a história de Jesus: são história de Jesus e interpretação de sua
história, para que possamos descobrir melhor o ser de Jesus e os apelos que traz
para nós em nossa realidade.

É preciso ir descobrindo o que Jesus quer passar de um modo especial de sua vida
para a nossa. Há detalhes simples e modestos, mas de sabedoria inesgotável.
Importante é não ficar na superfície dos dados evangélicos, mas descer às
profundezas dos gestos, atitudes, preferências e opções que aí aparecem.
Através dos mistérios da infância de Jesus, podemos ver o que foi escolha e
preferência para o Verbo eterno ao tornar-se um de nós, assumindo a condição
humana. Contemplamos a “eleição” divina (o que decidiram as três pessoas divinas
“para salvar o gênero humano”). É o grande horizonte para que possamos discernir
o que devemos assumir hoje, fiéis no seu seguimento. Na infância de Jesus não
aparecem palavras de Jesus: aparece o seu ser, através do que ele assumiu. A
única exceção é a resposta de Jesus aos 12 anos de idade à aflição de Maria e
José: “Porque me procuráveis? Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu
Pai?” (Lc. 2,49).

3.1 - Contemplação e não meditação

O método proposto por Santo Inácio para assimilação pessoal do mistério de Cristo
(conhecer-amar) e para a configuração com ele (seguir) não é o da meditação, que
vai logo para a reflexão, a partir do que produz mais ressonância interior. Santo
Inácio propõe uma atenção contemplativa a partir do que é apresentado pelas
narrações evangélicas, seguindo com o olhar da imaginação as pessoas de cada
cena, ouvindo o que dizem e vendo o que fazem, participando ativamente de cada
cena como alguém que toma parte em acontecimentos do presente. Só depois deste
abandono à influência da cena do evangelho há lugar para a reflexão, para tirar
proveito da mesma (cf. EE 106-108).

Trata-se de uma atitude de fidelidade ao real, capaz de “afetar” a vontade, pelo


aparecimento de sentimentos. Importante não é a quantidade de dados, mas acolher
com suavidade os “mistérios”, sem pressa e sem querer passar muita coisa.
Importante é saborear, deixando-se impregnar pela riqueza de cada um dos
“mistérios”, detendo-se onde encontrar gosto e proveito pessoal, estando atento aos
apelos, desejos e resistências que possam surgir. É um exercício de “acatamento”, o
qual abre espaço para a “agitação dos espíritos” (consolação e desolação) e,
conseqüentemente, para o discernimento a ser feito depois.

Esta contemplação, portanto, não é algo alienante, mas comprometedora. Faz


“experimentar na pele” o compromisso de Jesus em favor da verdadeira vida e traz à
luz os seus apelos para uma participação concreta neste compromisso. Não é algo
que conduz a um intimismo estéril, mas um meio muito eficaz para buscar e
encontrar o que Deus quer e como ele quer!

Quanto ao conhecimento que se quer de Jesus (“conhecimento interno”),podemos


dizer que é um conhecimento que transcende o mero conhecimento racional e não
de destina à busca de erudição. Está ligado ao “sentir e saborear as coisas
interiormente” (cf. EE 2).É um conhecimento experiencial, horizonte de referência
para a nossa liberdade de opção3.

É interessante notar o que Santo Inácio propõe para um dia de contemplações da


primeira parte da “Segunda Semana”: são dois “mistérios” apenas. A terceira
contemplação será repetição do primeiro e do segundo exercício, “insistindo sempre
nas passagens principais, em cuja meditação o exercitante encontrou luz,
consolação ou desolação” (EE 118). E a quarta contemplação será uma segunda
repetição dos dois primeiros exercícios (cf. EE 120). Não se trata de ver algo novo,
mas de voltar ao que foi mais marcante. O importante é aprofundar, perceber
melhor, mergulhar mais no mistério de Cristo e deixar-se “embeber” pelo mesmo.
Depois, na quinta contemplação (a última do dia), propõe a aplicação dos sentidos
sobre a primeira e a segunda contemplação do dia (cf. EE 121), cujo conteúdo já foi
retomado por duas vezes (nas repetições) . A pessoa precisa ficar “afetada” em
profundidade e para isto ajudam os sentidos internos.
Os “mistérios” propostos para o primeiro dia da contemplação são o da Encarnação
e o do Nascimento. Para o segundo dia: “A apresentação no Templo” e “A fuga para
o desterro do Egito”. Para o terceiro dia: “Como o menino Jesus era obediente a
seus pais em Nazaré” e “Como depois o acharam no Templo”. Podem ser tomados
ainda outros “mistérios” e no final do livro dos Exercícios (EE 262-312) há outros
relatos indicados. Apontando o sentido destas contemplações no “Preâmbulo para a
considerar os estados de vida” (EE 135), Santo Inácio fala em primeiro lugar do
exemplo de Cristo e, em relação à Vida Pública, diz que “ao mesmo tempo que
contemplamos a sua vida... procurar e... perguntar-lhe em que estado ou gênero de
vida quer sua divina Majestade servir-se de nós”. Portanto, para ser como Jesus,
antes de mais nada é preciso perceber melhor quem é ele através da vida que
abraçou, para afeiçoar-se mais a ele e ao que abraçou. E trata-se sobretudo da
configuração com Jesus pobre e humilde, que nasceu em estrema pobreza, e
depois de tantos trabalhos, depois de ter padecido fome, sede, calor, frio, injúrias e
afrontas, veio finalmente a morrer na cruz (cf. EE 116 - 3º ponto da contemplação do
“mistério” do Nascimento).

O exercitante terá que ver daquilo que o Pai escolheu para o seu Filho o que o
mesmo Pai quer agora para este outro filho/a, que é ele/a.

Contemplando a vida de Jesus, contempla a eleição do Pai para Jesus. Depois terá
que vir a resposta para a pergunta: “E o que o Pai quer que eu abrace da vida de
Jesus?” É a Eleição do Pai “para mim”, configurando-me com seu filho até através
de algo bem concreto a ser assumido.

3.2 - Jesus na História Humana

Para a contemplação dos “mistérios” da infância de Jesus, o exercitante não é


convidado a um exercício de contemplação platônica ou de devaneios e fantasias
encantadoras, mas sem ligação com a história da humanidade. É convidado a
contemplar Jesus na história humana, enviado pelo Pai para refazer esta história.
Não a partir da ostentação de poder ou através de meios extraordinários, mas como
alguém pobre e humilde, que não veio para ser servido: veio para dar sua vida,
consumando a sua entrega na cruz.

Santo Inácio ao propor os “mistérios” da Encarnação e do Nascimento, parte do


olhar trinitário sobre o mundo (EE 102) e vai até a morte de Jesus na Cruz (EE
116).A presença da criança que nasceu em Belém é, para ele, motivo de encontro
com a Trindade e a Cruz. Santo Inácio tem presente toda a vida de Jesus como uma
entrega contínua, que mostrou-se sem reservas na cruz. Assim, “dar a própria vida”,
sem reservas, é para ele o grande apelo irradiado por Jesus, o que introduz na
história um dinamismo novo, o do amor. Dinamismo contrário ao que foi
estabelecido pelo pecado e suas conseqüências, marcado pela absolutização do ter,
do poder e do prazer. O primeiro dinamismo, o da “verdadeira vida” (cf. EE 139),
estabelece o Reino de Deus, enquanto que o segundo, o da “tentação” (cf. EE 172),
é causa de todos os males.

Jesus veio para que todos tenham vida e vida em todos os sentidos (cf. Jo 10,10).
Não veio em busca de coisas para si, prestígio social ou comodidades.
Contemplando os “mistérios” da infância de Jesus, através das cenas propostas
pelos evangelhos, deve tornar-se claro o sentido de sua presença na história
humana e o caminho abraçado por ele para a “redenção do gênero humano”. Santo
Inácio dá muita atenção a este caminho de pobreza e humildade. O modelo
cristológico que aparece aí não é o de expiação, mas de compromisso, que é o
modelo focalizado pelos autores latino-americanos, como Jon Sobrino e Leornardo
Boff. A carta de São Paulo aos Filipenses também expressa muito bem a cristologia
que tem um lugar especial nos Exercícios.

Levando em conta esta perspectiva, podemos dizer que os Exercícios são um


instrumento muito adequado para a Nova Evangelização que se deseja na América
Latina, pois acentuam os aspectos de missão e compromisso da espiritualidade
cristã. Ser como Jesus, hoje, é para os homens e mulheres da América Latina,
conforme os Exercícios, uma questão de entrar na história e culturas deste sub-
continente, comprometendo-se com os esforços para que passe de condições de
menos vida para mais vida ou de egoísmo para solidariedade. O desafio da luta pelo
Reino e a Encarnação de Jesus apontam para isto.

4 - DO MELHOR MODO POSSÍVEL, A SERVIÇO DO REINO DE DEUS

Concluindo, podemos dizer que o processo de configuração com Jesus não é


introduzido pela primeira parte da “Segunda Semana”, mas aí recebe uma atenção
toda especial através da experiência mais intensa de contato prolongado com Jesus.

Com os exercícios seguintes, anteriores à contemplação da Vida Pública de Jesus


(“Duas Bandeiras”, “Três Tipos de Pessoas” e “Três Modos de Humildade”), o
exercitante, podendo verificar o seu processo e preparando o passo seguinte,
ocupa-se com a qualidade de seu seguimento, desejando tudo do melhor modo
possível e buscando isto.

Finalmente, na última parte da “Segunda Semana”, o chamado para estar a serviço


do Reino de Deus (com Cristo e como Cristo) recebe a sua expressão concreta: o
exercitante fica sabendo o que Deus quer dele em particular.

Como limitamos estas páginas ao que propõe a primeira parte da “Segunda


Semana”, apenas acenamos ao que é proposto para depois, para que não se perca
de vista o caráter do livro dos Exercícios como itinerário espiritual. Também para
chamar a atenção para o fato de que em cada parte dos Exercícios, de algum modo
estão as outras: seja pela retomada das anteriores, seja pela presença “em germe”
das seguintes.

NOTAS:
1
E. Bastos Noreña, El Evangelio del trabajo. Segunda Semana de los Ejercicios de
San Ignacio, em: Cuadernos de Espiritualidad, 31-32 (Peru, 1984) 29-30.
2
Cf. Albert Nolan, Jesus antes do Cristianismo, Ed. Paulinas, São Paulo, 1988.
3
Cf. Ricardo Antoncich Meditación de la Vida de Jesucristo como horizonte de la
libertad humana, em Cuadernos de Espiritualidad, 37 (Peru, 1987) 11-32

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