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Abordar o tema currículo nos dias atuais, necessita de uma ampla visão dos
vários conceitos e perspectivas diferentes que se tem do mesmo, pois são vários os
autores que tentam compreender e cingir o seu significado e papel no âmbito
escolar. Esse processo de compreensão do currículo perpassa pela visão simplista
de meros conteúdos aleatórios e enxerga o mesmo como uma construção cultural
que deve ser sempre analisado como um aspecto que vive em constante
modificações e reconstruções no decorrer no tempo.
A palavra currículo, em seu termo etimológico, vem do latim curriculum, que
resinifica o conjunto de dados e conhecimentos específicos para cada ser humano,
analisando as habilidades, necessidades, interesses e problemas que contribuem
para o desenvolvimento individual e coletivo do mesmo. Atualmente segundo
Soares, 1993, p. 68. O currículo tem sido interpretado como “lista de materiais a
estudar sob orientação do professor, experiências de aprendizagem para
desenvolver habilidades que preparem para a vida; seriação de estudos realizados
na escola” (apud Lima Campos, 2009, p.31). Como afirma o mesmo, além da
importância de desenvolver habilidades para a vida, o mesmo de uma forma ampla
torna o papel de se moldar a organização da sociedade e o contexto histórico que se
está inserido.
Observando a história do currículo é possível perceber que o mesmo surgiu
gradualmente, e foi perpassando por um processo de transformações básicas com o
intuito de manter uma relação direta entre os alunos e a escola, e
consequentemente também com à sociedade. Logo de início, por volta do início do
século XIX a proposta de trabalho e abordagem dos assuntos girava na formalidade
dos conteúdos, estes que eram resultantes da influência da era industrial vivida na
época, então a aritmética, artes plásticas, linguagem, estudos sociais entre outros
conteúdos eram trabalhados com maior enfoque e rigorosidade.
Ao longo do tempo, o currículo passou a ser analisado a partir de duas
partições: as teorias conservadoras tradicionais que se resumiam ao conhecimento
centrado no professor, e o aluno era somente um sujeito passivo que deveria
absorver esse conhecimento, para desenvolver por si só suas características
políticas e sociais, e as concepções críticas onde o aluno passa de ser passivo, que
recebe conteúdos, a ser um ser ativo, que produz e já traz de casa um amplo
repertorio de vida e conhecimento. Foi a partir da década de 30, por influência de
John Dewey1 que se passou a pensar em um currículo que fosse voltado para o
modo de vida e contexto em que se vive o aluno, como também um currículo que
incluísse na sua integra, a transmissão de alguns valores que eram tidos como
necessários para a construção social do mesmo.
Nessa mesma linha de construção, Dewey (1959, p.80) já afirmava que:
1
Professor e filósofo americano, que defendeu a ideia de unir a teoria e a prática no ensino. Foi um
dos fundadores da escola filosófica de Pragmatismo, pioneiro em psicologia funcional, e
representante principal do movimento da educação progressiva.
para que tornasse as pessoas mais eficientes e rápidas em seu trabalho. Por tanto,
a seleção e organização dos conteúdos, levavam em sua integra uma maior
rigorosidade pautadas em teorias cientificas, ora psicologizante 2, ora empresarial.
Segundo segundo Eyng (2015, p. 138) apud (Hennerich 2017 p. 2798).
2
Palavra cujo significado; 1. Que psicologiza 2. Que tem cunho psicológico: Atribuir às frustrações da
sociedade a causa da violência, é uma visão psicologizante.
3
Visão de mundo característica de quem considera o seu grupo étnico, nação ou nacionalidade
socialmente mais importante do que os demais.
4
O termo estrutura social usado por autores como Alexis de Tocqueville e Karl Marx, significa um
sistema de organização da sociedade que decorre da inter-relação e posição (status social) entre
seus membros.
Segundo os autores anteriormente citados, a sociedade capitalista tende a
reproduzir as práticas econômicas, e a escola, sendo um fruto da sociedade também
propaga a estratificação social, visto que os grupos sociais que constroem e
determinam o conhecimento e conteúdo a serem transmitidos no currículo
beneficiam prioritariamente os conceitos e interesses das classes dominantes. Essa
insatisfação com o modelo de escola seletivo e excludente se tornou visível
principalmente pelos novos movimentos sociais, que se incomodavam com o
desprendimento de preocupação da educação acerca do tradicionalismo e marcas
conservadoras na época.
EYNG (2010, p. 36) aponta que:
O currículo aqui citado pelo autor traz dentro de si através de suas matérias
suscetíveis uma ideologia5 que atua de forma discriminatória e desigual, visto que os
diferentes campos de estudos vão ter uma enorme diferenciação entre os níveis de
prestígios e o acesso ao conhecimento, consequentemente oportunidades sociais,
ora que, o mesmo decai sobre as pessoas das classes dominadas como submissão,
perante as classes dominantes, classe essa que ficará encarregada pelo comando e
controle social. Por tanto, os lugares sociais e os cargos ocupacionais de alto poder
aquisitivo pertencerão assim aos membros da elite, que já nasceram dotados de
privilégios políticos, educacionais, financeiros e sociais.
7
Aqui usado para designar o valor sociocultural positivo, atribuído a um determinado grupo em
detrimento de outro.
8
Bourdieu utiliza a palavra agente para superar a noção de sujeito, pois para o mesmo, os agentes
são aqueles que agem e lutam dentro do campo de interesses, superando assim a posição de ser
estático.
da família ou pelas instituições escolares como por exemplo; a educação, as
vestimentas, a língua e os estilos de vida de um determinado grupo social.
Segundo o autor, a família transmite para seus filhos, um certo tipo de capital
cultural e um certo ethos9, essa herança cultural de valores implícitos é o que
determina inicialmente a diferenciação das crianças em suas experiências escolares,
visto que a influência deste capital interfere significativamente no êxito escolar da
criança, onde os pais irão transmitir os níveis culturais, as vantagens e
desvantagens que os próprios vivenciaram. Então, em uma análise profunda sobre
as relações familiares e as estruturas sociais é possível perceber segundo Bourdieu
que os jovens das camadas superiores estarão mais propensos a receber resultados
significativos em seus conhecimentos culturais, do que aqueles que pertencem às
classes baixas.
O nível de capital cultural proposto a uma criança de uma classe social
elevada, vai ser mais enriquecedor no que diz respeito, a educação e as
oportunidades que os pais oferecerão a mesma, seja na língua, no conhecimento e
informações de mundo, na educação ou na visão simplificada e fácil de como
ascender no meio social, enquanto as classes baixas que continuam tendo uma
visão subalternizadas e oprimidas, irão propagar para seus filhos, uma falta de
perspectiva para com o ensino, e o capital cultural que também foram recebidos
pelos seus pais e avós ao longo dos anos.
A classe operaria não enxerga uma possibilidade de ascensão por meio dos
estudos devido a forma com que o ensino superior é passado, geralmente essa
modalidade de ensino tem um alto custo e devem ser financiadas pelos pais, com
isso também vem o reflexo das estatísticas, pois “as chances objetivas de chegar ao
9
Conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (instituições,
afazeres etc.) e da cultura (valores, ideias ou crenças), característicos de uma determinada
coletividade, época ou região.
ensino superior são quarenta vezes mais fortes para um jovem de camada superior
que para um filho de operário” como afirma o autor. Além da baixa estatística que o
aluno da classe operaria tem para concluir o ensino superior, e a falta de
perspectivas em prol do ensino apresentadas pelo pais referente ao modelo
curricular, o aluno ainda irá se deparar com a influencia negativa da visão da
educação sobre sua própria condição, educação esta, que deveria ser igualitária e
universal, porém propaga as desigualdades e favorece a estratificação social.
As crianças dos meios mais favorecidos não se beneficiam somente do capital
econômico dos pais, onde detém e provem de todos as regalias que o dinheiro
podem oferecer, mas também desfrutam dos saberes, gostos refinados para a arte,
estética, para o teatro e outros lugares de espaço ocupados por essas classes com
alto poder aquisitivo. Por outro lado, até a língua utilizada pelas classes baixas serão
um empecilho a sua vida acadêmica, onde a falta de um refinamento das palavras
ou de um vocabulário extenso será visto pela instituição escolar com maus olhos,
pois o sistema educacional é voltado para uma cultura aristocrática 10 que privilegia
as relações econômicas e o alto poder aquisitivo.
Para Bourdieu a educação escolar sendo um patrimônio adquirido pelo capital
cultural, assim como o capital econômico, determina onde os agentes irão
permanecer ou se locomover nas classes sociais, por tanto a distribuição de
conhecimento estratificasse de individuo para individuo de acordo com o patrimônio
dos mesmos. Geralmente o espaço escolar contribui para a reprodução dos capitais
entre gerações e gerações, eliminando e marginalizando os alunos das classes
populares, estes que são forçados a receber uma educação em que a cultura
preponderante é de um nível social muito acima dos deles.
10
Aristocracia significa nobreza. É a classe social superior. O termo aristocracia tem origem no grego
“aristokrateia”, que significa “governo dos melhores”. Aristocracia é uma forma de organização social
e política em que o governo é monopolizado por uma classe privilegiada.
obrigação a ser seguida; pois já que esses indivíduos estão no ensino superior,
segundo a ideologia11 do campo educacional, então são eles que devem se adequar
e agir de acordo com a cultura e estética predominantes, seja na língua, nos bons
modos ou na maneira de portar-se. Contudo, adequar um aluno a um ensino
superior que não remete as suas raízes, reproduzirá as perspectivas fracassais de
um ensino desfalcado e desigual, visto que se a língua for tratada como fundamental
em seu ensino, e em avaliações, um aluno que não se molda nem se adequa a
mesma, pois em suas raízes não teve acesso ao refinamento linguístico, irá tender
ao fracasso em um discurso oral por exemplo
O sistema educacional que impõe exigências segundo o sociólogo, somente
formará, recrutará e atrairá aqueles que são capazes de satisfazer as demandas que
a instituição pede, pois são indivíduos dotados de capital cultural que foram
construídos desde a infância pelos privilégios a eles oferecidos. Enquanto que,
aqueles que não dominam essa herança cultural da classe social dominante irão
estar condenados a uma crise de “queda de nível” 12 e se constituirão acreditando
que o espaço escolar pouco pode fazer por si, e que as condições de
subalternização são inerentes e irreversíveis.
Como ressalta Pierre (1964, p.59), a escola “transforma as desigualdades de
fato em desigualdades de direito, as diferenças econômicas e sociais em “distinção
de qualidade”, e legitima a transmissão de herança cultural” pois reproduz a
ideologia de um sistema social que permite a elite, ser detentora do conhecimento e
dos benefícios e privilégios ao longo da vida, e legitima as desigualdades quando
enclausura as classes sociais desfavorecidas a sua própria condição de
subalternidade, levando-os a acreditar que suas inaptidões são resultado da sua
condição de inferioridade e que este é seu destino de berço.
11
Aqui utilizado como ideia proposta.
12
O sociólogo utiliza essa expressão para descrever o ato de decair socialmente, ou seja, pessoas
economicamente privilegiadas tendem a serem cada vez mais sucedidas, e indivíduos de classes baixas tendem
a cada dia mais descerem ao nível da pobreza.
liberdade, o respeito, a igualdade e a tolerância entre os diversos grupos que
compõem a sociedade, independentemente de cor, etnia, inclinação política ou
credo religioso. A educação também constitui segundo os direitos humanos como
fundamental para concretização dos mesmos, visto que é a partir dela que serão
legitimados o conhecimento e a igualdade entre as diversas culturas.
Para garantir que os direitos previstos no documento fossem reconhecidos e
amplamente difundidos, foi criado no Brasil em 1996 o primeiro programa nacional
de direitos humanos que tinha como intuito, apresentar formulações e soluções para
a efetivação de políticas públicas que viessem a viabilizar a implementação do
mesmo em todas as áreas das políticas públicas, inclusive no campo educacional.
Umas das incumbências a serem cumpridas propostas pelo CNEDH13 foi elaborar
um plano nacional de educação em direitos humanos com monitoramento para que
o mesmo fosse cumprido.
Em 2003 o primeiro modelo de plano elaborado para com a educação em
direitos humanos veio a público realizado pelo comitê em consonância com os
representantes dos estados da confederação, foi revisado e lançado novamente em
2007. Na sua vertente, a proposta seria de ressaltar a importância do mesmo em
todos os modelos de educação, fosse ela formais ou não-formais 14 articulando
“valores, atitudes e práticas sociais que expressam a cultura dos direitos humanos
em todos os espaços da sociedade” (BRASIL, 2009, p. 25), como também a
construção coletiva de práticas sociais em defesa e proteção dos direitos, bem como
o combate as diversas violações nos âmbitos institucionais de educação.
Ficou definido então que a educação voltada para os direitos humanos
poderia ocorrer segundo as diretrizes instituídas pelo conselho nacional de
educação com:
Art. 7º A inserção dos conhecimentos concernentes à Educação em Direitos
Humanos na organização dos currículos da Educação Básica e da
Educação Superior poderá ocorrer das seguintes formas:
I - pela transversalidade, por meio de temas relacionados aos Direitos
Humanos e tratados interdisciplinarmente;
II - como um conteúdo específico de uma das disciplinas já existentes no
currículo escolar;
III - de maneira mista, ou seja, combinando transversalidade e
disciplinaridade.
15
Plano nacional de educação em direitos humanos.
padronização, à produção em série, à uniformidade, a sempre o ‘mesmo’, à
‘mesmice”
Para trabalhar na promoção dessa igualdade para todos, implica antes de
tudo, perceber como está constituído o âmbito organizacional da educação, e
analisar o que o currículo propõe para o enfrentamento das violações, visto que, ele
sendo um conjunto de conteúdos e conhecimentos propostos pela sociedade. Uma
sociedade, que cada dia mais se mostra estratificada e preconceituosa, onde as
classes, as relações de gêneros e raça são ignoradas e subalternizadas. O que
infelizmente acaba reproduzindo as violações de direitos ao invés de combatê-las,
como inicialmente é a proposta dos direitos humanos dentro da educação escolar,