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JUÍZO FINAL

Nojo é um verbo que tirei do meu calendário


assumi o escárnio que os outros descartam em mim e escarro
cada cusparada é fecunda
Sou a palavra aberta, encruzilhada na América
de becos, vielas, ruas asfaltadas e esgotos a céu aberto
tudo queima perto da linha do equador
e minha pele morena reluz melanina de sabor intenso
O olho permanece aberto
habitando cada palavra desse vocabulário
que transgride e assopra e grita
vocabulário mitológico, serpentes, medusas e Harpocrate
Eros me acerta certeiro no clitóris
Eu sou o horror de cada boca salivante que não beijei
anunciada pela trombeta do apocalipse
e a pomba gira e revira meus olhos pra me vestir de vermelho
boca e sexo, a língua afiada
Essa cidade é um deserto de almas vivas e desabitadas
Deus não me pune, mas me deu o inferno
e eu não salvo ninguém
o céu é um condomínio fechado de fichas marcadas
Mas quando a pele arde e me olham torto
entortado mundo dos outros
eu lembro que gemer alto é gostoso
e a benção de todos os santos eu levo no pescoço
Na quaresma tive uma anunciação divina
a natureza dizia 'seja!!! minha filha
como poesia intrauterina e ria e ensine os outros a rir também'
agora estou em paz, com deus e o diabo
pelo meu corpo, pela alma e pelo tempo
até o fim das eras.
ENTRELINHAS E RETICÊNCIAS

Escapo
na aterrissagem do olho sobre a nuca
que se insinua feito palavra lânguida
eu penso, me chupa
me lambe, lambe a lambida minha
encharca comigo
o ouvido
e esses verbos absurdos de prazer
que dançam e dançam
nus sobre a pele aquecida
abre a boca
pra que eu penetre
com poesia fervida
que me escorre pelo pescoço
feito soluço
ritmado - um ah! ah!
sorria agora, mostre os dentes
se abra, me abro
e assista
eles tocam-se
despretensiosamente coléricos
com mil tentáculos
escapo
o olho entorpecido
se fecha, se abre
umedecido
segue o fluxo dos risos
estou fora de mim
e finjo controlar o magma
transbordando
entre as coxas
entrelinhas
entre no meio das coxas
intumescido
pulsando reticências. . .
ABUTRE

Venho perseguindo ratos medíocres


espíritos zombeteiros bêbados
venho caindo na graça dos esgotos a céu aberto
meu coração é uma viela
e faz tempo que o carro do lixo não passa por lá
Estão amontoados todos os corpos que amei
já sem vida
sobrepostos, empilhados um sobre o outro
e as lágrimas que um dia chorei por eles tornaram-se chorume
A escuridão me fascina tanto que não há luz nos caminhos que
persigo
tenho uma fome corrosiva por todas as mentiras
compro mentiras, pago com o corpo por elas
Saio farejando em busca de uma sobrevida
de um moribundo
porque sei que assim não teremos muito tempo juntos
que eu me machucaria com o fim já próximo
Eu vivo com os fins, o começo é só uma lembrança distante
um sonho supérfluo
porque o meu amor é aquele de febres e solidões
não sou melhor que um abutre

CARNÍVORA

Me come sem tirar os ossos, me engole enquanto ainda respiro,


com os dentes cerrados sorri, sem haver mastigado um só pedaço
de minha carne, sem haver gasto um só dente, me deglute pela
saliva, gastando a língua no gosto de nos transformar em um só
corpo, em um só desejo, o de ser também o outro.
antropofagia no amor e outros hábitos alimentares
PRECE PAGÃ

Pagando pelo meu paganismo


há uma filosofia que não atinjo
de um corpo hedonista
vil e viril
eu que tenho um corpo marcado pelos trópicos de câncer e
capricórnio
oro em línguas
e tenho um mapa astral kármico
marcado pelo movimento retrógrado dos quadris
habitam em mim as sete chaves e conchavos
que não abrem nenhuma porta
mas me abrem como uma fenda no espaço
eu sou a benção de um deus feminino
que me presenteia com orações extraordinárias
e proteção intergaláctica
na próxima encarnação não venho como Buda ou Jesus Cristo
venho novamente como mulher
pra semear mais uma gota de sangue sob esta terra fecunda

ANUNCIAÇÃO

Ela anuncia minha chegada, eu, relâmpago de fogo, alumiando o


céu em escuridão, que em mim retém as moléculas salivantes de
chuva, eu anuncio a tempestade e os pesadelos, com assombroso
estrondo luminoso, me perseguem os céus mais pesados, pra eu
poder sair me rasgando, inflamando o extraordinário. Ao meu
lado trovões e furacões se despedindo da melancolia dos dias
todos que se guardam sem atingir ninguém de horror, eu que ando
entre a imensidão e dela tenho medo, tive de aprender a ser luz.
Clarão.
FOGO

Se com escrita de sangue falo e fogo


apazígua no coração uma tempestade de magma espesso e veloz
como toque aveludado numa noite febril de Abril
abriu a vala da consciência e fez um oco pra se arder
o fogo da língua, céu da boca em chamas
a palavra se escorrendo, derretendo sob a pele nua
fogo-fátuo de minhas entranhas

CARNE DE CARNAVAL

Dedos de carnavais
quantos carnavais ela esfregará seu frevo em mim?
Rodopiando, ciganeando seus olhares de flecha
sobre este corpo em estado de choque!
Há algo nela que não me pertence
que não me cabe
que não me deixa entrar
e é justamente o que me fascina, não tê-la nunca
sentir-nos sempre escorregadia, umedecida
sempre pisoteada pelo bombear de sua percussão em meus pelos
que se oriçam e se levantam para vê-la passar
para que ela passeie a mão em mim, indo e vindo
(espero que ela sempre venha)
ai que abestalhamento
doce e incerto
de dar lambidas no pescoço suado e achar gostoso
LAMBIDAS

metalinguagem
a língua da palavra habitada
a língua na língua das primeiras causas
com quantas línguas anunciaste aquele verbo ao pé do ouvido
em quantas línguas a tua saliva encontrou morada
se derramando
garganta adentro

SER TÃO

Quantos sertões eu preciso atravessar pros teus olhos virarem


mar?
Teu calor deixa minha terra fecunda,
tu é igual um cacto,
espinhoso por fora, mas suculento por dentro
tu mata minha sede quando nem comida eu tenho no buxo ainda
Gente que trabalha o dia todo
quando chega a noite e a lua alumia, ainda faz poesia?
Teu coração nunca pus cercado, delimitava apenas com os dedos
e te deixava avoar negro feito urubu
quando tinhas outras fomes
e só o que eu podia te oferecer era terra
Enquanto você ia, eu cuspia no chão, doava toda minha saliva
que era pra deixar tudo florido
e pra que tu voltasse de teus voos noturnos
E a gente se fundia, ardendo em febre, fazia suar o quarto inteiro
ele respingava em nós!
Tu era o sol que me aquecia
e a lua que me fazia uivar feito lobisomem
na tua pele colhi as melhores fruta, me lambuzava
assim como quando a gente encontrava um açude
e a água dava pra beber.
Meu coração é quente feito mil sertões
e tuas raízes profundas.
PLOFT

Acordei com uma secura na boca


um gosto amargo de ausências
uma dor cancerígena atravessava meu estômago
Ah! eu tenho um rombo, sou um buraco, uma vala
um poço sem eira nem beira
no fundo não tem nem água nem ouro, só lama!
Acordei assim meio atravessada, de supetão, já acordei sem ar
chupando pelas venta um ar que doía, o coração cambaleava.
Mas que porra é essa?
Nem eu sabia
Será pavor ao tédio, ansiedade, angústia ou paixão?
Nesse mundo de carroça de aço e barulho de ventilador
eu fico ariada, me confundo toda
as coisas que sinto, às vezes, parece uma só!
Começam todas no estômago!
Mas que fome que eu to!
Mas de comida não é não, provei por A+B
que quatro pão com manteiga pra quem é pequena como eu
bastava quisó, excedia
e a dor que lateja cortante, perfurava e tomava conta de mim!
E agora o que eu faço?
Rezei tudo de reza que conhecia
que na escola a gente era obrigado a saber
pedi com minhas palavras as rezas que não existiam
até me benzi 10 vezes, que 10 é número fechado
e eu não gosto quando termina em número ímpar não que fica
ruim pra dividir e contar direito eu nunca soube
Eu sentia que ia desaparecer sabe
passei a ter medo de acordar
e simplesmente ter desaparecido, assim
ploft!
Porque eu sentia que meu coração ia ficando pequeninim,
deste tamanhinho
e sem o coração eu não existo
podia até não desaparecer, mas ninguém ia me reconhecer,
nem eu, nem minha mãe, meu cachorro, meu piriquito, meu
vizinho...
Sem sentir eu não vivo, deus me livre ser dormente
dizem que tá dando em muita gente por aí né
mas em mim não pega não
aqui o coração lateja e sai matando cachorro à grito!!!
Mas já faz uma semana que acordei assim e não passa
de verdade, sejam sinceros comigo
é possível alguém sumir assim do nada, ploft?

CHUMBO, FLORES E OURO

Um presente de chumbo, dado entre aços invertidos, que


convertem na divergência. Um pedaço de asfalto que escarro pela
boca me atravessava a garganta, abrigo da minha voz fina e
trêmula, por tanto aguentar pedrada, quando insisto em continuar
atravessando. Atravessa em mim o eu profundo, tão inocente
como quando sou apenas um átomo. Sigo, carregando uma pele
em erupção, me revestindo de bolhas de fogo purulentas que
cintilam, me abrigando de flores e falso ouro e amuletos
mitológicos. Me presenteiam com maçãs apodrecidas, jogadas ao
chão enquanto caminho, como uma oferenda ao meu escárnio, eu
sou aquela que come ao lado de eva, o feminino é o pecado
original. Envergo e me aproximo tanto ao chão que penso que
mais um passo e quebraria todos os meus dentes, com essa força
que me exorciza e me mantém imaculada. Serpentes não
atravessam meu ventre, intacto, ele sangra. Como sangro em cada
esquina, pavimentada e rebocada, de azulejos coloridos e com
buracos de balas, atravessando a noite numa corrida assimétrica
entre minhas pernas e meus pensamentos. No meio, o medo, me
fazendo tropeçar. Mais um dia que gasto poesia dentro, silenciosa,
silenciada, se transformando em mim feito corpo apodrecido e
enterrado, mais um dia que vou abrindo à bofetadas um outro
caminho que me caiba. Devolvo esse chumbo que me pesa o
bolso e me estanca, sigo atravessando.
TRANSBORDAR E EXPANDIR

Todo o deslimite
hipertrofia
engasgada com o gozo
na ponta da língua
desenfreado desejo
e na rua o horror
meu corpo é uma bandeira que hasteio
e deixo flamejar
nos bueiros da cidade
cada esquina
em cada prece com os dedos cruzados
e no pico, por cima da cegueira
ele dança, o corpo, é meu
e dança e sua e sua e sua
sou sua
toda lágrima virou suor
quando eu levanto a mão é um ato
uma anunciação
a palavra do absurdo
o absurdo das horas
todas as horas em que disse não
foram contabilizadas, mensuradas
e agora esquecidas
entre as mãos
me escorre a vida
do ventre profundo
que habitas
e tem poros e pelos e saliva, terra fecunda
da vida estéril fiz poesia
delírios, devaneios e desvarios
extraordinários grunhidos e gemidos e sussurros
dos mudos orgasmos
que ritmado agora grito
quebramos a barreira da matéria e do mistério

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