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olavodecarvalho.org/um-inimigo-do-povo
Olavo de Carvalho
Quase meio século antes da tomada do Palácio de Inverno, um século antes da difusão
mundial das obras de Antônio Gramsci, o romancista já havia captado a estratégia
macabra da “revolução cultural”, à qual o fundador do Partido Comunista Italiano deu
apenas um embelezamento teórico mas que, em essência, já estava em ação desde o
século XVIII, nos salões onde aristocratas se deliciavam com as idéias de Diderot e
Rousseau sem perceber que o único propósito delas era legitimar sua decapitação.
Basta a constatação desse fato, aliás, para dar por terra com a teoria gramsciana do
“intelectual orgânico”, segundo a qual as classes criam seus intelectuais sob medida para
a defesa de seus interesses: com regularidade sinistra, de Voltaire a Antonio Negri, é
sempre o inimigo da classe dominante que é cortejado por ela, enquanto o intelectual
que desejaria preservar o sistema, por descrer da bondade e utilidade das revoluções, é
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estigmatizado, no mínimo, como excêntrico e marginal.
Mesmo quando não resulta diretamente numa tomada do poder político, a revolução
cultural deixa marcas profundas e indeléveis no corpo da sociedade. Dois estudos
recentes de Roger Kimball, editor de “New Criterion” — “Tenured Radicals: How Politics
Has Corrupted Our Higher Education” e “The Long March: How The Cultural Revolution
of the 1960’s Changed America” — mostram como a incansável guerra psicológica
movida pelos intelectuais ativistas contra a religião, a moral, a lógica e o bom-senso
produziram, na vida americana, resultados catastróficos praticamente irreversíveis: a
perda coletiva dos padrões mais elementares de julgamento, a prematura decrepitude
intelectual dos estudantes, a disseminação endêmica das drogas, a criminalidade
desenfreada. Não por coincidência, os mesmos intelectuais que conscientemente se
esforçaram para criar esse estado de coisas (muitos deles a serviço da KGB ou da
espionagem chinesa, como hoje se sabe graças à abertura dos Arquivos de Moscou) são
os primeiros a tirar redobrado proveito político de seus próprios atos, imputando os
resultados deles ao “sistema”, à “corrupção intrínseca do capitalismo” etc. etc.
É preciso ser muito cego para não perceber que coisa idêntica se passa no Brasil, com o
agravante — verdadeiramente desesperador — de que estudos como os de Kimball (e
centenas de outros similares) nem são traduzidos nem há equivalentes produzidos pela
intelectualidade local, dividida entre a maioria de ativistas enfurecidos e a minoria de
observadores acovardados, mudos, ou então acomodatícios e cúmplices. Em resultado,
a simples tentativa de diagnosticar o estado de coisas é rejeitada — mesmo por parte do
“establishment” — como ousadia impolida e abuso intolerável, quando não como
conspiração de extrema direita.
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A revolução cultural, aqui, já alcançou seu máximo triunfo, que é o de tornar proibitiva a
sua própria discussão. Pouparei aos leitores o relato dos constrangimentos, ameaças e
boicotes que tenho sofrido em resposta à minha simples iniciativa de analisar e mostrar
à plena luz do dia a marcha de uma revolução que desejaria poder continuar florescendo
à sombra protetora do implícito, do nebuloso e do não declarado. Mas, quando um
escritor independente, isolado, sem conexões políticas ou protetores de espécie alguma,
é combatido não por meio de argumentos e sim de manobras de bastidores e
mobilizações coletivas de ódio, como se fosse um governante ou um poderoso líder de
massas, então é que a atividade intelectual já se encontra inteiramente submetida aos
cânones da “revolução cultural”, e quem quer que ouse contrariá-los, mesmo em pura
teoria, mesmo a título pessoal e sem qualquer pretensão de reagir politicamente ao
curso dos acontecimentos, já é considerado um elemento perigoso e um inimigo do
povo.
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