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Taxa de juros zero: impactos e limites

Preprint · July 2020


DOI: 10.13140/RG.2.2.25216.66567

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Carlos pinkusfeld monteiro Bastos Norberto Montani Martins


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NOTA DE POLÍTICA
ECONÔMICA

GESP
Grupo de Economia
do Setor Público
Instituto de Economia
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Carlos Pinkusfeld Bastos


Norberto Montani Martins
Esther Dweck

JULHO 2020

TAXA DE JUROS ZERO:


IMPACTOS E LIMITES

GESP IE/UFRJ
GESP IE/UFRJ Grupo de Economia do Setor Público

Taxa de juros zero


Impactos e limites*

Carlos Pinkusfeld Bastos1


Norberto Montani Martins2
Esther Dweck3

Estamos hoje diante de enormes desafios sanitários, econômicos, sociais e


ambientais. A pandemia da COVID-19 expôs a fragilidade do contrato social e do padrão
de desenvolvimento vigentes e questionou dogmas há muito tempo defendidos por
economistas. Em sua fase mais aguda, houve um raro consenso entre economistas
sobre a necessidade de uma atuação maior do Estado.

A resposta à pandemia exigiu uma ampliação dos gastos públicos em um


momento de queda da arrecadação, levando à forte elevação do déficit público. O
inevitável aumento do endividamento (PIMENTEL; SERRANO, 2020; PIMENTEL;
MARTINS, 2020) retomou divergências antigas dos economistas quanto aos riscos
referentes ao tamanho e à trajetória da dívida pública e suas consequências
distributivas (BASTOS; AIDAR, 2020).

A atual crise serviu para aumentar a aceitação de hipóteses defendidas pela


chamada Teoria Monetária Moderna (MMT, na sigla em inglês), ainda que não de forma
homogênea. Podemos destacar dois elementos centrais: primeiro, que o governo não
tem limitação de financiamento em sua própria moeda; segundo, e associado ao
primeiro, o fato de que o governo não pode quebrar, se tornar insolvente, na moeda

*
Os autores agradecem ao apoio de Daniel Drach na compilação dos dados diários da [B]³ e aos membros do
Grupo de Economia do Setor Público Gesp-IE/UFRJ pelas discussões sobre o tema.
1
Professor do Instituto de Economia da UFRJ.
2
Professor do Instituto de Economia da UFRJ.
3
Professora do Instituto de Economia da UFRJ.
1
GESP IE/UFRJ Grupo de Economia do Setor Público

que emite. De acordo com essa visão, o default da dívida pública interna soberana só
pode ocorrer no caso de uma decisão equivocada de política econômica4.

Expressões como “o dinheiro acabou” ou “o país quebrou”, muito utilizadas pelo


atual governo e reverberadas pela mídia, a ponto de se tornarem quase “consensos” na
opinião pública, caíram em desuso ou revelaram seu caráter fantasioso, de mero
instrumento político/ideológico. Mesmo os que continuam a defender a importância
das normas fiscais vigentes (e.g. FRAGA, 2020), em nenhum momento afirmam que o
governo não pode atuar de forma mais incisiva no combate à pandemia.

Uma vez assumida e aceita, não apenas a possibilidade, mas a necessidade de um


maior ativismo fiscal, é inevitável que se discuta a outra variável que impacta
diretamente a dinâmica dos gastos e da dívida pública: a taxa de juros. Há aí duas
preocupações principais. A primeira relativa à trajetória da dívida ou a sua
“sustentabilidade”. A segunda vinculada ao impacto distributivo do pagamento de juros
da dívida pública, uma vez que os detentores5 desses títulos públicos são parte, em sua
grande maioria, do estrato de mais alta renda do país.

Nesta nota, discutiremos essas e outras questões associadas à taxa de juros e


seus efeitos fiscais. Em primeiro lugar, buscamos reforçar os argumentos de que o
“financiamento monetário” dos gastos públicos não é uma alternativa à elevação da
dívida enquanto a taxa básica de juros estiver em terreno positivo. Em segundo lugar,
discutimos o tema do custo do financiamento por dívida, questionando a ideia de que a
recente ampliação do diferencial de juros entre as taxas curtas e longas decorre de uma
percepção de que o endividamento público ingressou em uma trajetória insustentável.
Em terceiro lugar, avaliamos os riscos de uma taxa de juros zero do ponto de vista do
impacto cambial, repasse inflacionário e seus efeitos sobre a distribuição de renda e a
vulnerabilidade externa. Por fim, as considerações finais amarram os principais pontos
defendidos no trabalho e sugerem uma agenda de política econômica a ser seguida.

Taxa de juros e os limites da política monetária


As discussões sobre a determinação e os efeitos das taxas de juros perpassam
linhas distintas da teoria econômica e se distinguem não apenas entre as abordagens

4
Como atesta o caso do Plano Real, onde não houve um confisco total, mas ocorreu um congelamento de
ativos como parte de um fracassado plano de estabilização. Ver Bastos e Ferraz (2020).
5
No sentido de beneficiários finais, uma vez que os detentores em si podem ser fundos de investimento, fundos
de previdência, carteiras administradas etc.
2
GESP IE/UFRJ Grupo de Economia do Setor Público

convencional e heterodoxa, mas também entre as diferentes escolas desta última


corrente.

No Brasil, a taxa de juros básica é determinada pelo Comitê de Política Monetária


(Copom) do Banco Central do Brasil (BCB). O Copom fixa uma meta para a taxa e a mesa
de operações do BCB realiza as operações necessárias no mercado de títulos públicos
federais para assegurar a convergência entre a taxa efetiva e a meta. Para tal, a
autoridade monetária utiliza operações compromissadas e definitivas com esses títulos,
cursadas no Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), o ambiente de
negociação desses ativos.

Essa taxa de juros – a taxa Selic – é determinada dentro do escopo da política


monetária oficial desde 1999, quando foi adotado o sistema de metas de inflação. De
uma forma muito resumida, quando a inflação excede a meta, o BCB deveria subir os
juros, desaquecendo a economia e desestimulando a subida dos preços; já quando a
inflação ficasse aquém da meta, a autoridade monetária faria o inverso, reduzindo juros
e estimulando a economia.

Existe uma importante divergência teórica/empírica a respeito de como opera a


política monetária. Uma leitura convencional defende que a taxa de juros, ao controlar
a demanda agregada, seria capaz de evitar que esta seja excessiva, seja no mercado de
bens ou trabalho, o que controlaria a causa da inflação. A redução da demanda também
seria capaz de se contrapor a choques exógenos de preços, evitando sua propagação.
Para esses mesmos autores, de forma simétrica, uma redução da taxa de juros poderia
estimular a demanda agregada e controlar a flutuação econômica. Sendo assim, a
principal política econômica seria a determinação da taxa de juros, com o poder de
estabilizar tanto preços quanto a produção.

Já para outros autores, o canal de operação seria o câmbio: uma elevação dos
juros, ao atrair capitais, valorizaria o câmbio, afetando todos os preços determinados
em dólares, bens importados e commodities, que são consumidos diretamente ou são
insumos para produção doméstica, além de ter um efeito sobre os preços de todos os
produtos que concorrem com as importações.

Entretanto, há um outro efeito mais “ambíguo” na dinâmica da taxa de juros,


ligado ao seu efeito distributivo. Por um lado, quando ela sobe, sinaliza um custo mais
alto do capital e uma elevação do piso de lucratividade das empresas. Por outro lado,
aumenta os recursos recebidos pelos detentores de dívida pública, gerando uma
mudança na distribuição de renda em favor dos mais abastados. Buscaremos refletir se,

3
GESP IE/UFRJ Grupo de Economia do Setor Público

no contexto atual, em que a pandemia da Covid-19 causou imensa turbulência nos


mercados financeiros, tais relações permanecem pertinentes.

Na atual conjuntura, de uma economia estagnada antes mesmo da pandemia e,


agora, com risco de deflação e em direção à uma contração inédita do PIB, o Copom
tem realizado sucessivas reduções na meta para taxa básica de juros, fixada desde a
última reunião, de 17 de junho, em 2,25%. A queda na taxa básica tem sido uma aposta
do governo como medida de estímulo à economia; entretanto, a capacidade de a
política monetária convencional entregar de fato o que promete é limitada. A ideia de
que uma taxa de juros baixa poderia levar à expansão do crédito ao setor privado com
algum efeito positivo sobre a economia é altamente improvável. Isto porque: a) a
demanda por expansão de crédito de alguns agentes, em especial, das famílias, é baixa;
b) os spreads no Brasil são elevados, logo, uma queda de 3 p.p. nos juros possivelmente
não terá um impacto tão intenso sobre o custo final dos tomadores; c) a rolagem de
dívidas está mais limitada pelo aumento do risco das empresas do que propriamente
pela taxa de juros; e d) a estabilidade dos preços dos ativos pode ser alcançada com
mais eficiência por medidas de política monetária não convencionais, como a compra
de títulos de mais longa duração.

Há ainda alguns economistas que defendem que a taxa Selic seja reduzida a zero
de modo a gerar três consequências básicas: reduzir o custo do financiamento público,
reduzir o impacto concentrador de renda de um maior endividamento e permitir o
financiamento monetário dos gastos públicos. Exploraremos essas questões ao longo
das próximas seções, buscando ressaltar alguns dos limites dessa proposta, caso levada
adiante.

Possibilidade de “Financiamento Monetário” da Expansão do gasto


A possibilidade de “financiamento monetário” dos gastos públicos foi citada
diversas vezes por economistas brasileiros como uma via de saída para os desafios
colocados pela crise associada ao Coronavírus. Ela figura na concepção de alguns
analistas como uma saída alternativa à elevação da dívida pública, supostamente
evitando a consequente pressão por adoção de medidas de austeridade. O ponto,
contudo, é que essa possibilidade esbarra na institucionalidade da política fiscal no
Brasil e na forma como os fatores fiscais e monetários interagem na prática6.

6
A seção sintetiza os principais argumentos expostos em Pimentel e Martins (2020).
4
GESP IE/UFRJ Grupo de Economia do Setor Público

Do ponto de vista institucional, a Constituição veda a emissão de moeda pelo


Tesouro Nacional e proíbe o BCB de realizar empréstimos diretamente ao Tesouro7. Há
algumas exceções a esta regra, associadas a eventuais necessidades de títulos públicos
federais para a implementação da política monetária pelo BCB, mas elas não devem ser
tratadas como subterfúgio (TESOURO NACIONAL, 2019, p. 6).

No Brasil, as transações realizadas pelo Tesouro ficam registradas em uma conta


no BCB, a chamada Conta Única do Tesouro (CUT)8. Por ali passam os recursos
financeiros que o Tesouro acumulou no passado com a venda de títulos públicos, o
recolhimento de impostos, a distribuição de lucros de empresas estatais etc. Se o
governo brasileiro decide gastar, observando as exigências da legislação e das regras
fiscais estabelecidas, o que ocorre é uma subtração do saldo da CUT e a correspondente
adição em favor do beneficiário daquela despesa, que irá sensibilizar o saldo da conta
corrente mantida em alguma instituição financeira.

Tecnicamente, quando o governo federal realiza um gasto, ocorre uma


realocação de recursos no balanço do BCB: debita-se a CUT e credita-se a conta
Reservas Bancárias da instituição financeira que está recebendo o pagamento do
governo. Como o conceito de base monetária engloba o papel moeda emitido e as
reservas bancárias9, todo gasto implica um aumento dessa rubrica.

Do ponto de vista da dívida do setor público consolidado, a mudança no passivo


do BCB acaba por resultar em um aumento do endividamento público. No balanço do
Tesouro, o saldo da CUT (ativo) se reduz; no balanço do BCB, o saldo da CUT (passivo)
também se reduz e a conta Reservas Bancárias (passivo) aumenta em igual proporção;
no balanço do setor privado, por fim, há um aumento do ativo. Como o setor público
consolidado inclui tanto Tesouro como BCB, a soma líquida da variação de ativos e
passivos resulta em um aumento do passivo do setor público, ou seja, uma elevação da
dívida pública10.

O processo descrito é somente o primeiro efeito contábil do gasto. Após a


despesa ir parar nas mãos do setor privado, outros processos se desenrolam. O setor

7
Artigo 164 da Constituição Federal de 1988: “Art. 164. A competência da União para emitir moeda será
exercida exclusivamente pelo Banco Central. § 1º É vedado ao Banco Central conceder, direta ou indiretamente,
empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer órgão ou entidade que não seja instituição financeira”.
8
Destaca-se que essa institucionalidade é diferente em outras jurisdições. Ver, por exemplo, Lavoie (2013).
9
Formada pelos recursos referentes aos recolhimentos compulsórios sobre depósitos à vista (principal) e as
reservas livres (residual).
10
Isso não ocorre, contudo, se o critério levado em consideração é a dívida bruta do governo geral, que não
consolida o BCB na conta.
5
GESP IE/UFRJ Grupo de Economia do Setor Público

privado vai precisar decidir o que fazer com o aumento da moeda em suas mãos. Ele irá
decidir se gasta esse dinheiro ou não; ainda, caso não gaste, precisa decidir sob que
forma irá manter esses recursos. Por mais que possa haver algum vazamento devido ao
peso do setor informal na economia brasileira, grande parte desse dinheiro irá retornar
ao sistema bancário e à conta Reservas Bancárias. Parte dele tomará a forma de
recolhimentos compulsórios e parte ficará como reservas livres nas instituições
financeiras.

É nesse ponto que a ligação entre as políticas fiscal e monetária vem à tona. No
Brasil, a institucionalidade da política monetária é tal que os bancos não recebem
nenhuma remuneração pelas reservas livres que mantém no BCB. Logo, não é de
interesse dessas instituições que esses recursos não originem nenhum retorno e,
normalmente, utilizam os mesmos para comprar ativos que ofereçam algum
rendimento.

As decisões de alocação efetivas dependerão da estratégia de cada banco, mas


um dos ativos mais seguros disponíveis são as chamadas operações compromissadas,
pactuadas com outras instituições financeiras11. Essas operações consistem em
empréstimos de curtíssimo prazo colateralizados por títulos públicos federais, onde as
contrapartes trocam títulos por moeda com o compromisso de desfazerem a operação
no futuro – boa parte delas no período de um dia (overnight). O tomador de recursos
paga uma pequena taxa de juros pela operação, provendo um rendimento ao doador
de recursos. No Brasil, essas transações são realizadas majoritariamente no Selic12,
onde o BCB atua para formar a taxa básica de juros.

Além disso, o Tesouro, por meio de leilões primários, realiza também a venda de
títulos públicos aos agentes privados, sejam instituições financeiras ou não. Apesar de
não se caracterizarem como uma operação de política monetária stricto senso, os seus
efeitos são similares aos das operações realizadas pelo BCB13. A compra de títulos em
leilões primários pelos agentes privados é uma forma de alocação do estoque de sua
riqueza monetária e os recursos assim originados resultam, juntamente com a
arrecadação de impostos, na “reposição” do saldo da CUT. Ademais, os títulos públicos

11
No Brasil, os fundos de investimento de renda fixa também carregam um saldo relevante dessas operações,
mas, embora beneficiários finais, são obrigados a operar por meio de uma contraparte financeira.
12
Existe um sistema de liquidação de títulos públicos federais privado mantido pela [B]³ e também um mercado
de compromissadas lastreadas em valores mobiliários privados, mas a profundidade do Selic é
substancialmente maior.
13
A venda de títulos equivale à atuação do BCB na ponta tomadora de recursos (“enxugamento de liquidez”) via
operações compromissadas.
6
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carregados nas carteiras das instituições financeiras são fundamentais para a própria
operação do mercado financeiro, nas suas operações diárias de “compra e venda de
dinheiro”. Feita essa observação sobre o mercado de títulos primário, podemos voltar a
explorar as operações que ocorrem no mercado secundário, ou as operações de política
monetária, stricto sensu.

Retomando então o argumento anterior, quando há um aumento da base


monetária, com tudo mais constante, os bancos passam a ter mais recursos disponíveis
para ofertar a seus pares. A maior disponibilidade de liquidez faz com que a
recompensa exigida por abrir mão desses recursos seja menor, afinal é melhor ganhar
alguma coisa do que não ganhar nada mantendo esse dinheiro como reserva no BCB. A
taxa de juros pactuada nas operações compromissadas é então pressionada para baixo.
Isso poderia não vir a ser um problema, mas, como vimos, no Brasil é justamente essa
taxa de juros, a taxa Selic, que é fixada como meta de política monetária pelo BCB14.
Para uma dada taxa Selic positiva, se houver uma pressão baixista, a autoridade
monetária tem que agir, de modo que a taxa convirja para a meta.

Como se dá a atuação do BCB? No nosso exemplo, para que a taxa de juros não
se desvie da meta, a autoridade monetária atua “enxugando” os novos recursos,
vendendo títulos públicos com o compromisso de recomprá-los no futuro e atuando na
ponta doadora de recursos15. Ao realizar essas operações, o BCB gera uma mudança no
seu passivo: debita-se a conta Reservas Bancárias das instituições financeiras e credita-
se uma nova obrigação, aumentando o saldo de operações compromissadas
(compromisso de recompra).

Vimos que a dívida do setor público consolidado é sensível a mudanças no


passivo do BCB. No desdobramento analisado nas linhas anteriores, o resultado final em
termos de dívida pública não muda em relação à situação anterior; parte do passivo,
porém, estará alocada em operações compromissadas e não mais integralmente na
base monetária. Contudo, como esse saldo de operações compromissadas integra, por
questões metodológicas, a dívida bruta do governo geral, há aqui um aumento da
dívida por esse critério.

14
A taxa Selic é a taxa média ajustada das operações compromissadas com títulos públicos federais no Selic.
Entram no cálculo as operações compromissadas correntes de um dia pactuadas com taxas pré-fixadas. As
contrapartes dessas operações devem envolver: (i) dois participantes distintos do Selic; ou (ii) um participante e
um cliente de participante, desde que os contratantes tenham liquidantes distintos no sistema. Ver Circular nº
3.671, do BCB, de 18 de outubro de 2013.
15
O BCB pode também lançar mão de operações de venda definitiva de títulos públicos, mas elas são menos
recorrentes.
7
GESP IE/UFRJ Grupo de Economia do Setor Público

Essa explicação sobre o circuito monetário gerado a partir do gasto do Governo


esclarece porque o aumento dos déficits públicos acaba sempre afetando em alguma
medida a dívida pública, ainda que historicamente sempre ocorra, também, alguma
expansão da base monetária, gasto esse que deriva da utilização do saldo da CUT16.

Por fim, cabe mencionar que o mecanismo destrinchado nos parágrafos acima
ganharia um contorno específico caso a taxa Selic fosse zero. Neste caso, como seria
indiferente para as instituições financeiras manterem seus recursos na conta Reservas
Bancárias ou no mercado interbancário, o BCB não seria obrigado a realizar operações
compromissadas na ponta doadora, como descrito antes. Nesse caso, o resultado em
termos de endividamento iria depender do critério utilizado, mas o possível efeito
contábil do aumento da dívida bruta do governo geral tenderia a ser irrelevante17.

Comportamento da estrutura a termo das taxas de juros


Antes de se discutir a situação presente, é preciso lembrar que a taxa de juros
paga sobre a dívida pública não é exatamente a taxa Selic e sim uma média ponderada
das diferentes taxas dos títulos públicos vendidos em leilão pelo Tesouro Nacional. Em
termos de tendência, porém, há uma conexão entre as taxas de juros pagas por títulos
de curto prazo e as taxas de longo prazo observadas em tais leilões.

As taxas de juros de longo prazo tendem a acompanhar os movimentos da taxa


de curto prazo com alguma defasagem e, dependendo do período de referência, a
apresentar um spread sobre a mesma18. O conjunto de taxas de juros, para os
diferentes vencimentos de um conjunto de ativos, forma a chamada curva de

16
Um caso interessante para ilustrar essa situação pode ser dado pelo Canadá. De acordo com Lavoie (2013, p.
16), o Canadá tem peculiaridades na relação institucional entre Tesouro e Banco Central porque: “is unique
among the sovereigns investigated in that the Central Bank can participate at auction without restriction and
not as an add-on.” Ademais, os dealers primários são forçados a adquirir o total dos leilões da dívida a um valor
levemente inferior ao do mercado secundário. Ou seja, o Canadá é um exemplo de país mais próximo possível
de ter uma forma de financiamento direto ao tesouro. Ainda assim, se tirarmos uma média de 2009 a 2017,
observa-se a seguinte combinação: um déficit público médio relativamente reduzido para um país desenvolvido
logo após a crise de 2008, de cerca de 1,8% do PIB; uma taxa de juros básica muito baixa algo em torno de
1,01% na média mensal do período; e uma dívida pública média de 86,2% do PIB, que cresceu cerca de 10 p.p.
entre 2009 e 2017.
17
Para além da questão contábil, a fixação da taxa Selic em zero poderia desencadear outros processos no
mercado de títulos públicos, como, por exemplo, a rejeição de ativos indexados à taxa Selic, o que criaria uma
pressão para a emissão de títulos pré-fixados e reposicionamento dos indexadores. Num segundo momento,
isso poderia impactar o custo da dívida.
18
Para um estudo empírico sobre a relação de taxas de curto e longo prazo no Brasil, ver Akran e Uddin (2020).
8
GESP IE/UFRJ Grupo de Economia do Setor Público

rendimentos (yield curve). No Brasil, a relação entre a taxa Selic e a taxa média de juros
que expressa o custo da dívida pública é ainda mais direta graças à existência de títulos
públicos pós-fixados que tem a própria taxa Selic como indexador, as chamadas Letras
Financeiras do Tesouro (LFTs).

Uma vez estabelecidos esses parâmetros básicos sobre o debate da relação juros
de curto e seus impactos distributivos, podemos fazer algumas considerações sobre
propostas atuais de “taxa zero” que seria hipoteticamente uma forma de reduzir o
custo fiscal da dívida. Qual seria o impacto desse efeito de curto prazo?

Inicialmente, levaria a zero a taxa de juros das operações compromissadas e da


parcela da dívida referente às LFTs, uma vez que, em ambos os casos, a remuneração é
indexada à taxa Selic. No entanto, esse impacto “automático” ocorre apenas enquanto
a taxa básica de juros se mantiver nesse nível, o que, como veremos mais adiante, não
deverá ocorrer já no próximo ano.

Entretanto, a parte da dívida pré-fixada não sofreria grande impacto imediato e


aqui é importante voltar a examinar a conexão entre a taxa de longo e a de curto. Como
dito anteriormente, a taxa de longo segue a de curto, sendo esta última um sinalizador
para a primeira. Tal “sinalização” é incorporada nas expectativas dos agentes sobre os
juros futuros. Caso a queda (ou elevação) seja entendida como uma mudança
permanente, a “nova” tendência das taxas de juros de curto acabam sendo
incorporadas nas taxas de longo. Entretanto, caso uma redução das taxas de curto seja
considerada como algo apenas provisório, ou circunstancial, está não será incorporada
integralmente nas taxas futuras e abre-se uma cunha entre a taxa de curto e de longo.

A experiência histórica confirma ambas as afirmações: no longo prazo, os juros da


dívida acompanharam a queda dos juros básicos e, recentemente, os juros de longo
prazo19 abriram um diferencial frente a forte queda dos de curto (Gráfico 1).

Aqui cabe destacar que, apesar de observarmos um maior diferencial de juros,


isso decorre da queda da taxa básica, e não de um aumento significativo da taxa longa.
Como pode ser visto no Gráfico 2, apesar de um forte aumento no início da pandemia,
as taxas de juros de títulos de diferentes maturidades apresentaram queda no
acumulado do ano, acompanhando a tendência da taxa básica. Apenas os títulos de 10

19
Toma-se como referência a curva de rendimentos expressa pelos diferentes vértices das taxas de juros
pactuadas nos contratos de swap entre taxas DI e pré-fixada, negociados na [B]³. Essa curva não equivale
integralmente à estrutura a termo da taxa de juros da dívida pública, mas a espelha com alguma precisão. Além
disso, essa curva é construída a partir de negócios efetivamente realizados e não sobre preços indicativos.
9
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anos apresentam alguma elevação, mas muito fruto do choque inicial. Portanto, esse
aumento do diferencial de juros não pode ser interpretado como uma pressão dos
credores decorrente de uma suposta percepção de maior risco de default, dado o
aumento do endividamento público.

Gráfico 1: Taxas de juros Swap DI x Pré-fixado, spread entre as taxas de


diferentes vencimentos e a taxa de 1 dia (p.p.)
6,00

5,00

4,00

3,00

2,00

1,00

0,00

07/mai
14/mai
21/mai
28/mai
16/mar
02/mar
09/mar

23/mar
30/mar
02/jan
09/jan
16/jan
23/jan
30/jan
06/fev
13/fev
20/fev

19/jun
06/abr
14/abr
22/abr
29/abr

04/jun
12/jun
Spread 3 anos Spread 5 anos

Fonte: Elaboração própria com base nos dados da [B]³.

Gráfico 2: Taxas de juros Swap DI x Pré-fixado, variação acumulada em


2020 (p.p.)
4,00

3,00

2,00

1,00

0,00

-1,00

-2,00

-3,00
21/mai
07/mai
14/mai

28/mai
09/mar
02/mar

16/mar
23/mar
30/mar
02/jan
09/jan
16/jan
23/jan
30/jan
06/fev
13/fev
20/fev

06/abr
14/abr
22/abr
29/abr

04/jun
12/jun
19/jun

1 dia 1 ano 3 anos 5 anos 10 anos

Fonte: [B]³.

Mesmo que o Copom defina a taxa Selic como uma taxa real negativa, ou mesmo,
uma taxa nominal zero, é praticamente impossível que as taxas longas alcancem esses
10
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valores. A curva de rendimentos tende a abrir, refletindo certa histerese das


expectativas em relação às taxas mais longas – vide, por exemplo, o movimento da taxa
de juros para o vértice de 5 anos no Gráfico 2.

Outro fenômeno também esperado é que o custo médio da dívida não


acompanhe totalmente o movimento da taxa Selic, pois, em momentos em que há uma
queda considerada “excessiva” desta taxa, há um aumento da participação de títulos
longos – como ocorreu, por exemplo, no final de 2012. Ainda assim, a taxa de juros
longa atual é bastante reduzida quando comparada historicamente, mais uma evidência
de que a percepção de aumento de risco por parte dos detentores da dívida não é um
fator majoritário (Gráfico 3). Além disso, quanto maior for a participação de títulos
longos na composição da dívida, maior será a previsibilidade quanto ao custo médio da
dívida por um prazo mais longo.

Gráfico 3: Custo médio mensal da DPMFi

Fonte: STN Relatório Mensal da Dívida (abr/2020)

Além da discussão sobre o impacto na curva rendimento (yield curve) e no custo


médio da dívida pública, há um outro ponto importante da discussão sobre a proposta
de taxa zero: o impacto sobre a taxa de câmbio e seus impactos inflacionários e sobre a
vulnerabilidade externa.

Impacto Cambial, inflação e vulnerabilidade externa


Num país com conta financeira aberta, ou seja, no qual os agentes econômicos
domésticos e internacionais podem alocar seu portfólio em ativos denominados em

11
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diferentes moedas e emitidos por diferentes países, há uma conexão direta entre a taxa
de juros doméstica e as taxas de juros internacionais. Essa mobilidade de entrada e
saída de capitais a um custo muito baixo contrasta, por exemplo, com a situação vivida
pelo Brasil em boa parte do Século XX até o início dos anos 1990. Nesse período, a taxa
de juros básica doméstica, ou ao menos seu piso, poderia ser determinada,
basicamente, de acordo com os objetivos de política econômica estritamente
doméstica.

A abertura da conta financeira, em grande medida, retirou um grau de liberdade


do formulador de política econômica, uma vez que o piso para a taxa de juros
doméstica passou a ser determinado pela taxa de juros básica internacional, somado ao
risco país e à expectativa de desvalorização cambial. Caso a taxa de juros corrente fique
abaixo desse valor há uma tendência a fuga de capital e, aqui é importante frisar, como
observam Braga e Serrano (2020), essa fuga pode se dar tanto pela saída de
investidores internacionais como por uma mudança na alocação da riqueza dos
detentores de riqueza doméstica, que não têm “incentivo” para investir em um ativo
doméstico cuja remuneração é inferior à obtida fora do país.

Essa fuga de capitais pressionaria a taxa de câmbio e a desvalorização inicial


poderia eventualmente gerar uma expectativa de desvalorização futura que abriria um
diferencial ainda maior entre os juros domésticos e externos20. Como esclarecem Braga
e Serrano (2020), a hipótese tradicional de paridade descoberta da taxa de juros não se
sustenta no caso brasileiro. Portanto, a hipótese de que a desvalorização cambial
decorrente de uma taxa interna inferior à taxa externa (ajustada a risco) fosse
acompanhada por expectativas de valorizações subsequentes, no mesmo montante do
diferencial de juros, não se sustenta. Essa hipótese também foi rejeitada em trabalho
recente de Rossi, Araújo e Barbosa (2020)21.

Certamente, o país acumulou um volume considerável de reservas e, mesmo no


curto prazo, pode realizar operações de defesa do câmbio através de swaps cambiais.
Entretanto, a existência dessa pressão estrutural via fuga de capitais pode levar a uma

20
Vale lembrar que estamos tomando uma condição de estabilidade em outros fluxos de capitais de caráter
mais autônomo, como uma eventual elevação do superávit em transações correntes ou do investimento direto,
seja ele greenfield, em novos projetos produtivos, ou mesmo na compra de ativos domésticos já existentes,
como foi, por exemplo, o caso da privatização das teles no segundo semestre dos anos 1990.
21
“A investigação econométrica mostra que o ajustamento da paridade coberta no Brasil ocorre com o
movimento das taxas de câmbio à vista e futura na mesma direção - de apreciação cambial diante do aumento
do diferencial de juros e de depreciação cambial no caso do aumento do risco país -, mas com uma volatilidade
maior da taxa de câmbio à vista” (ROSSI; ARAÚJO; BARBOSA, 2020, p. 95)
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solução duplamente ruim: a perda de reservas, aumentando a nossa vulnerabilidade


externa, combinada à desvalorização cambial, duas consequências negativas no curto
prazo que eventualmente podem se estender por um período mais longo.

Há uma conexão direta entre a desvalorização cambial e distribuição de renda


por meio da elevação dos preços de produtos importados, finais e insumos, e bens
precificados em dólar como as commodities agrícolas e industriais. O efeito dessa
elevação de custos na inflação doméstica, inicialmente, vai depender da capacidade das
empresas repassarem esses custos para os preços finais22 e, posteriormente, da
formação da chamada espiral câmbio, preços e salários. Uma vez que os salários reajam
à elevação dos preços pela desvalorização cambial, há uma elevação generalizada do
impacto cambial sobre o conjunto da economia, pois o custo salarial é o mais relevante
e impacta os setores comercializáveis e os não comercializáveis internacionalmente.

O argumento dos que defendem a redução de juros abaixo do limite dado pela
taxa de juros internacional é de que a desvalorização cambial decorrente teria um
impacto inflacionário limitado, dado estado de quase depressão econômica e elevado
desemprego. Essa análise é apenas parcialmente correta. Sem dúvida, o desemprego e
desalento em taxas praticamente inusitadas limita a capacidade de reação dos salários
nominais, aludida acima. Por um lado, é possível que um impacto inicial de custos não
se propague para o conjunto da economia, mas, por outro, os salários reais, em grande
medida, absorverão o efeito inicial do choque cambial. Em um período em que os
elementos de demanda já estão todos deprimidos, o impacto negativo sobre o
consumo certamente é um fator que contribui para redução do PIB. Além disso, essa
redução de salário real, combinada ao elevado desemprego de trabalhadores informais
e formais, certamente contribuirá para a piora de desigualdade da distribuição
funcional e provavelmente pessoal da renda.

Entretanto, ainda que o indicador agregado de inflação não reflita o impacto da


desvalorização sobre os preços, uma análise desagregada demonstra que há
importantes diferenças setoriais. A excepcionalidade da situação corrente faz como que
alguns setores, como o de serviços pessoais, efetivamente tenham dificuldades de
repassar elevação de custos aos preços. No entanto, para outros produtos de

22
Pela chamada lei do preço único um bem que seja produzido domesticamente é potencialmente importado
poderá incorporar, ou repassar ao preço final, integralmente tal aumento devido a elevação do preço na
moeda local do bem concorrente importado. A questão do repasse, então, se concentraria mais no setor de não
comercializáveis. Entretanto, como o aumento atinge a todos os produtores a elevação do custo de um
produtor individual não implica em perda potencial de mercado.

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necessidade básica, como os alimentos em supermercados e produtos de higiene


pessoal, já apresentam elevação dos preços muito maior que da inflação média. É difícil
fazer a previsão de estrutura e tamanho desse setor enquanto não se tornar mais claro
o horizonte dos desdobramentos da Pandemia da Covid-19. Além dos produtos de
necessidade básica, outros produtos que são diretamente impactados pela
desvalorização cambial são aqueles necessários ao combate à pandemia que já tiveram
seu preço majorado em dólar frente à demanda mundial, tais como os reagentes
químicos para os testes, equipamentos de proteção individual, equipamentos médico-
hospitalares para expansão de leitos etc.

Quanto à inflação corrente, alguns desses fatos discutidos acima podem ser
observados claramente. O índice acumulado negativo até maio, ou deflação, no ano de
0,16% esconde diferenças brutais de preços, refletindo exatamente as diferentes
estruturas de preços, mas claramente compreensíveis à luz dos argumentos anteriores.
Inicialmente, para uma deflação de 0,16% os preços dos alimentos subiram 3,7%, sendo
que a alimentação no domicílio subiu 4,28% e a fora do domicílio 2,36%, ou seja,
aparentemente o setor de serviços absorveu parte da elevação de custos com
alimentos23. O efeito de custo foi muito forte para explicar a redução de combustíveis e
energia. Combustíveis tiveram uma queda de 14,89% o que por sua vez impacta
diretamente transportes que caíram cerca de 5,28%24.

Em termos gerais, quando se examinam os componentes da inflação se observa


claramente que os elementos de custo, especificamente câmbio e petróleo, tem um
impacto sobre preços mas mediados por condições específicas de alguns setores mais
atingidos pela depressão econômica e/ou suspensão de certas atividades que
caracterizam a vida social pré-pandemia.

A economista Júlia Braga (Professora Associada da UFF) propôs um exercício com


uma cesta de bens mais adequada ao padrão de consumo durante o isolamento social,
que foi relativamente mais rigoroso entre meados de março, abril e maio. Nessa cesta,
o índice de inflação do período para os itens relevantes no dia a dia de boa parte da
população (como alimentação em casa, higiene pessoal e produtos de limpeza) cresceu
em abril, ao invés de diminuir, com uma diferença de cerca de 0,5%.Em todo caso, para

23
Um detalhe curioso e que pode estar relacionado com o próprio processo de distanciamento social e receio
da população em frequentar lugares fechados. Enquanto os lanches aumentaram de 6,38% as refeições
aumentaram só 0,82%.
24
Um exemplo interessante nesse item diz respeito às passagens aéreas que tiveram uma deflação de mais de
30%. Certamente aí se combinam uma redução de custos com promoções para atrair consumidores em um
setor praticamente devastado pela pandemia..
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além desses efeitos é de se esperar que, uma vez reestabelecida alguma “normalidade”
de funcionamento da vida econômica, as estruturas setoriais se reestabeleçam e haverá
algum repasse de elevação de custos.

No curto prazo, seria uma hipótese razoável supor que o efeito de choque de
custo pudesse ser absorvido pela queda da margem do setor não comercializáveis, mas
sua validade será melhor avaliada posteriormente, inclusive, quando as pesquisas do
IBGE puderem retratar setores de serviços operando com algum grau de
“normalidade”.

Em resumo, manter a taxa zero ou abaixo da taxa básica internacional por algum
tempo pode ter um efeito distributivo via inflação maior que o favorável via redução
dos pagamentos de juros e pode aumentar a nossa vulnerabilidade externa.

Considerações finais
Uma política de taxa de juros zero, ou abaixo do que seria o piso para economia
brasileira, teria um possível impacto inflacionário o qual não estaria refletido de forma
sistemática nas cestas de consumo das populações com algum grau de isolamento
social. Como argumentamos, é pouco provável que este evento, inteiramente
passageiro, seja incorporado nas taxas mais longas de juros. Entretanto, o aumento da
venda de títulos pré-fixados a taxas relativamente baixas, em uma comparação
histórica, sinaliza que os agentes privados entendem como uma nova realidade as
baixas taxas de juros fixadas pelo BCB, mas certamente não no nível atual, muito menos
a uma taxa zero. Esse movimento é reforçado pelo anúncio do Fed, no dia 10 de junho,
de manter os juros no país no patamar entre 0% e 0,25% ao ano, e indicou que essas
taxas devem seguir inalteradas até 2022.

Portanto, é importante pensar na determinação da taxa de juros levando em


conta todos seus efeitos distributivos e não apenas alguns aspectos passageiros ou
mesmo noções equivocadas sobre o financiamento público e operações de Quantative
Easing25.

Para além do período agudo da pandemia, será necessário recuperar a atividade


econômica. A ideia de que uma taxa de juros baixa poderia levar à expansão econômica
por meio do crédito ao setor privado com algum efeito positivo sobre a economia é
altamente improvável conforme discutimos no início desse artigo. Inclusive, a crença na

25
Para um análise recente do tema, ver Serrano (2020).
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política monetária como mecanismo estabilizador e para reverter crises já tem sido
abandonada em diversos países do mundo (HARDING; GREELEY; ARNOLD, 2020).

É cada vez mais claro que será necessária a forte ampliação da atuação direta do
Estado no pós-pandemia, tanto para garantir renda para população quanto para
estimular diretamente a economia por meio de investimentos públicos e da expansão
de serviços públicos. Nesse sentido, serão necessárias a revisão das regras fiscais26 e a
ampliação do endividamento público. Portanto, quando a economia estiver trilhando
alguma trajetória de recuperação, graças ao gasto público, possivelmente, como
argumentamos anteriormente, não haverá a possibilidade de manter a taxa de juros em
zero por um longo período de tempo. Cabe perguntar, então, se os economistas que
defendem uma ampliação dos gastos associada à taxa de juros zero ou muito baixas,
irão defender um ajuste fiscal quando não for possível sustentar essa taxa.

Do ponto de vista das Finanças Funcionais, a existência de regras voltadas


exclusivamente a obtenção de determinados indicadores fiscais arbitrários e não
resultados de emprego e crescimento são equivocadas. A grande preocupação que se
deve ter com o aumento do endividamento é o seu efeito concentrador de renda.

No entanto, a melhor forma de lidar com essa questão não passa por manter de
forma permanente a taxa de juros abaixo daquela permitida para um país periférico
com a conta de capital aberta. O que já era imprescindível no Brasil, anteriormente à
pandemia, mas que se tornou inadiável, é uma reforma tributária progressiva como
proposto no documento da Reforma Tributária Solidária (ANFIP, 2018), onerando
diretamente a renda de patrimônio e capital e revertendo parcialmente o efeito
distributivo concentrador do aumento do endividamento. Para aqueles que se
preocupam também com o nível da dívida, a reforma tributária poderia cumprir o papel
adicional de permitir que a expansão dos gastos tenha seu impacto sobre a dívida
pública minorado.

A única decisão de política econômica que deve ser evitada, sob o risco de
permanecermos com uma economia deprimida e estagnada e com desigualdade
crescente, é a retomada da austeridade no período pós-pandemia. A história recente da
economia brasileira e mundial deve servir de lição, tanto em relação à recuperação
muito lenta pós crise de 2008, nos países desenvolvidos, quanto à crise no Brasil de
2015 e 2016 e o quadro de quase estagnação da renda per capita que se seguiu. As
medidas de precoce de consolidação fiscal nos países desenvolvidos e continuados

26
Para um análise recente do tema, ver Dweck (2020).
16
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processos de ajuste fiscal, com corte de gastos, e imposição de regras fiscais


draconianas, estão no centro da explicação de tais trajetórias27. Já há um número muito
grande de estudos demonstrando tal correlação e que ao final, além dos impactos
sobre produto e deterioração da distribuição, no caso brasileiro não foram nem capazes
de melhorar os próprios indicadores fiscais, o declarado objetivo de tais políticas28.

A lição histórica não pode ser desperdiçada, mesmo porque o país passa por uma
situação extremamente crítica: um retrocesso econômico sem precedentes. Em 2019,
nossa renda per capita tinha regredido quase uma década, para o valor observado em
2010. Se esse ano for confirmado um cenário intermediário de queda do produto de
6%, teremos regredido 15 anos. Assim, caso não queiram criar no Brasil um fenômeno
de forte regressão econômica e social, os gestores de política econômica devem utilizar
de forma não ideológica os instrumentos que tem à sua disposição para estimular a
retomada do crescimento.

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Discussão IE/UFRJ, nº 15, 2019.

27
Lawrence Summers tem sido um dos economistas que mais tem explorado a hipótese de estagnação secular,
as limitações da política monetária e necessidade de maior ativismo fiscal. Ver Summers (2013), (2014) e
Summers e Stansbury (2019). Para uma avaliação crítica das hipóteses mainstream/novo keynesianas por trás
dos argumentos de Summers e outros autores o leitor pode consultar o site do Institute for New Economic
Thinking. Para uma revisão teórica, ver: Serrano, Summa e Moreira (2020)
28
Para uma revisão do período pós 2015/2016 na economia brasileira, ver Bastos e Aidar (2017; 2019). Para um
revisão de políticas recentes de ajuste fiscal “auto destrutíveis”, ver Dweck e Teixeira (2018) e Dweck e Rossi
(2018).
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