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por Luís Lima

26.03.18
MICHEL TEMER UM VAZIO HENRIQUE
O APARELHO O PRIMEIRO DIA MEIRELLES
AUDITIVO DO GABINETE SEM 18 PERGUNTAS PARA EPOCA.GLOBO.COM
Nº1 030
DO PRESIDENTE MARIELLE O MINISTRO DA FAZENDA CARGA TRIBUTARIAFEDERAL
APROXIMADA4,65%
por Plínio Fraga por Leonardo Lichote por Daniela Pinheiro EXEMPLAR DO ASSINANTE
VENDA PROIBIDA
8

dos editores

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INA EITAVEL
RIME
A definição de crime político justificou
muitas ações contrárias a regimes totali-
tários. Por muito tempo, tornou-se bandeira
É preciso deixar claro, no entanto, que a
morte de Marielle Franco não foi um crime
político, uma forma suave e desvirtuada de
de movimentos democráticos que reagiram desqualificá-la. Foi um crime comum, e isso
com força a opressões brutais. A filósofa o faz mais grave, não menos. Foi comum por-
Hannah Arendt analisou com rigor motiva- que é usual numa sociedade que se acostumou
ções que podem legitimar atos fora da lei. A à violência. Foi comum porque repete a bar-
definição de crime de origem política, entre- bárie invisível tornada costumeira na perife-
tanto, é controversa e inconclusiva. ria. Foi comum porque os suspeitos são os de
No Brasil pós-redemocratização, muitos dos sempre em muitos dos assassinatos ocorridos
valores e slogans empunhados por atores polí- nos anos recentes. Foi comum por trazer em
ticos tornaram-se anacrônicos. Foram abando- si a certeza da impunidade que seus perpetra-
nados porque tinham o passado impregnado dores acumularam ao longo do tempo.
em si. A justificativa de crime político para o O assassinato urdiu-se nas entranhas
que se chamava de "expropriações" e "justiça- do desgoverno em que se atolou o estado do
mentos", por exemplo, perdeu-se no tempo. A Rio de Janeiro. Foi planejado e executado
definição moderna de crime político está asso- por aqueles que se acham inatingíveis pelas
ciada mundialmente à questão do combate ao leis - não por estarem acima dela, mas, sim,
terrorismo e à proteção dos direitos humanos. por viverem em seus subterrâneos. Dar ares
Tal apanhado jurídico se faz necessário em de crime político a ação que apenas reflete a
razão do brutal assassinato da vereadora ca- barbárie e o desregramento do sistema poli-
rioca Marielle Franco (PSOL). Mt1itas foram as cial repressivo brasileiro seria elevá-la a uma
vozes que se levantaram para apontá-lo como discussão jurídica improcedente.
"crime político", numa acepção nova. Seria po- Espera-se agora a pronta resposta does-
lítico porque vitimizou uma parlamentar com tado a um crime nascido da inapetência de
uma agenda de defesa de minorias e excluídos. seus principais gestores. A polícia do Rio
Seria político porque se suspeita que agentes antecipa à imprensa cada passo da investi-
públicos, em especial policiais militares de- gação. Pretende assim combater as críticas
nunciados por ela, possam estar entre os exe- de inação. No entanto, movimentações rui-
cutores e mandantes do crime. dosas são contraproducentes para investi-
Marielle Franco era uma liderança polí- gações técnicas e eficientes. A solução do as-
tica emergente e talentosa. Vida exemplar ao sassinato de Marielle Franco - com a prisão
ancorar na formação escolar e política seu e condenação dos culpados - dimensiona-
crescimento pessoal e público. Defensora de rá a capacidade do estado em proteger seus
bandeiras comportamentais progressistas , líderes e a própria democracia. O fracasso
alinhada aos segmentos mais sacrificados indicará instituições débeis , à beira do co-
pela desigualdade e pela violência. Era um lapso, alvo fácil de um batalhão de assassi-
quadro cuja vida longa enobreceria o sistema nos que perpetrarão impunes novos crimes.
político brasileiro. Crimes cada vez mais comuns. ____ _
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PERSONAGEM DA SEMANA 17

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A cadela labrador do cantor


inglês George Michael
continua arrasada pela perda
do dono, morto em 2016

U ma fêmea de labrador de 12 anos ganhou o coração


dos britânicos , que acompanham com aflição seu
sofrimento. Abby exibe cada vez mais um olhar distante
e melancólico nos passeios diários que faz ao memorial
construído no norte de Londres, em frente à casa de seu
antigo dono, George Michael, morto em dezembro de
2016. Conduzida por um passeador profissional, a cachor-
ra costuma se deitar em meio às flores, fotos e aos carta-
zes colocados pelos fãs do cantor.
George Michael levou as irmãs recém-nascidas Abby e
Meg para casa em 2006. Por muitos anos, Abby viveu feliz
ao lado dele, de seu então companheiro Kenny Goss e de sua
irmã. Era uma família normal, que fazia caminhadas anima-
das pela cidade, rotina interrompida apenas durante as turnês.
Mas tudo começou a mudar em 2009, quando, pouco
a pouco, a cadela foi perdendo sua rede de afeto. Primei-
ro foi Kenny, que se separou de Michael naquele ano. Sua
irmã Meg morreu em 2015. Até que, no ano seguinte, em
25 de dezembro, o cantor deixou o mundo aos 53 anos, por
problemas no coração e no fígado.
O ex-integrante do Wham!, duo que o lançou ao es-
trelato, era apaixonado pelas cachorras e as chamava de
«minhas garotas" e "minhas melhores amigas". Ele chegou
a dizer que não queria ser sepultado sozinho. "Quero mi-
nhas cachorras perto de mim na morte, assim como quan-
do estavam em vida." As cinzas de Meg estão no mesmo
espaço onde foram colocadas as de Michael.
18 PERSONAGEM DA SEMANA

Abby vive aos cuidados de familiares de sombra. Se essa sensação de perda se repete,
Michael, mas parece incapaz de superar a o desespero de mais uma vez tentar encontrar
morte de seu melhor amigo, com quem viveu aquela pessoa e não conseguir pode fazer com
por cerca de dez anos, e de sua irmã. Simone que o cachorro fique traumatizado."
Bergamini, presidente da Associação Brasilei- Além disso, o luto pode levar a doenças
ra de Medicina Veterinária Comportamental, físicas. Após ficar um tempo sem comer, por
explica que, assim como humanos, cães po- exemplo, o cão corre o risco de desenvolver
dem ter depressão, principalmente em casos gastrite. "Em casos como esses, uma forma
pós-traumáticos. "Se st1as referências de famí- de tratamento - além da necessidade de um
lia acabam repentinamente, isso pode ser um novo vínculo - é aumentar os exercícios e
trauma, principalmente após uma certa idade." trocar sua ração, com alimentos bem palatá-
Os sintomas são os mesmos que se ma- veis. Um cachorro com essa doença também George Michael
nifestam em uma pessoa deprimida: falta de não deve dormir no quintal, mas ter um rela- (abaixo) chamava Abby,
ânimo e apetite, isolamento, apatia ou perda cionamento bem próximo, de preferência no que vive hoje aos
,, cuidados da família
generalizada do interesse pela vida. Amigos mesmo quarto. ___________ _ do cantor, de
do cantor que convivem com a labrador afir- COM GABRIELADE OLIVEIRAVARELLA "minha garota"
mam que o apetite de Abby nunca voltou ao
normal. Outros dizem que ela parece "sem
alma" desde a morte de Michael. Os especia-
listas, no entanto, alertam sobre a necessidade
de fazer um exame físico minucioso antes de
dar um veredicto final de doença psicológica.
"É preciso confirmar se os sintomas apa-
receram imediatamente após a morte, ain-
da mais no caso de Abby, uma cadela idosa.
Antes de falar em depressão, é preciso checar
uma série de outros problemas físicos, como
artrose, problemas nos rins ou ainda hormo-
nais", afirmou Bergamini. "Uma vez confir-
mada a depressão, antidepressivos, em casos
mais graves, ou terapias cognitivas podem
ajudar o animal a criar novas referências de
afeto", disse a especialista.
A história de Abby lembra o célebre caso
do cão akita Hachiko, que sempre esperava
seu dono, o professor Hidesaburo Ueno, na
estação de trem de Shibuya, bairro de Tóquio,
quando este voltava ao final do dia da Univer-
sidade de Tóquio, onde dava aulas. Quando o
professor sofreu um AVC e morreu, Hachiko
continuou a esperá-lo. Por quase dez anos foi
alimentado por pessoas nas proximidades. A
história, ocorrida em meados de 1930, ganhou
relatos em livros, estátua em homenagem ao
cachorro e longas- metragens, o mais famoso
deles de 2009, com Richard Gere.
Os cães possuem um medo instintivo de
ficar sozinhos, afirmou Alexandre Rossi, zoo-
tecnista e especialista em comportamento ani-
mal. "Depois de uma grande perda, quando
seu porto seguro morre, (o cachorro)provavel-
mente vai precisar de alguém para substituir
esse afeto, desenvolvendo um vínculo ainda
maior com outra pessoa e virando até sua
O dono da Riachuelo,
Flávio Rocha, posa
no Aeroporto de Natal,
no Rio Grande do Norte,
onde fica a sede do Grupo
Guararapes. Foi no
interior do estado que ele
implementou o programa
Pró-Sertão, inspiração
para o Brasil 200
VOTE EM MIM 21

O publicitário justificou o materialismo por


alinhar-se com a teoria científica mais aceita
para a origem do Universo. O bigue-bangue
atesta que uma grande explosão deu origem
aos planetas, estrelas e galáxias e forjou as con-
dições para a existência de vida na Terra. Ro-
A bordo de seu jatinho, o empresário cha, que é evangélico, sustenta que o poder de
Flávio Rocha, pré-candidato Deus se manifestou na criação a partir do nada.
A conversa seguiu sobre como as civilizações
conservador ao Palácio do Planalto, egípcia, judaica e africana se relacionavam com
prega a moralização dos costumes, a metafísica. Surgiu a questão de como a África
a existência de Deus, a liberação das pode ser um continente tão pobre e desassis-
tido, se Deus é bom, todo-poderoso e miseri-
armas e a livre-iniciativa do mercado cordioso. "Eles rezam para os deuses errados",
por Luís Lima opinou Rocha. A turbulência cessou.
Não faz muito tempo, Flávio Rocha co-
meçou a viajar pelo país numa caravana im-
provisada. A pequenas multidões de norte a
sul do país, ele discursa ao microfone, tira
fotos e prega a valorização da família, dos
jato executivo Legacy 650 seguia em ve- bons costumes, o combate ao politicamente

º locidade de cruzeiro na rota entre Rio


de Janeiro e São Paulo. Era um dia ensolara-
correto (que ele entende como o patrulha-
mento da esquerda em temas como machis-
do do começo de março, com céu de nuvens mo, por exemplo), o liberalismo, o empreen-
esparsas, quando o avião entrou em zona dedorismo, a livre-iniciativa, a desregulação
de turbulência. Em meio à instabilidade, o e o Estado menos intrusivo. O combo ficou
empresário pernambucano Flávio Gurgel conhecido como neoliberalismo regressivo,
Rocha - dono das lojas Riachuelo, ex-depu- quando se é superliberal na economia, mas
tado federal, ex-candidato à Presidência em ultraconservador nos costumes. Temas que
1994 e o nome favorito do Movimento Brasil amealham adeptos da nova direita, como os
Livre para ocupar o Planalto - consultou as jovens do Movimento Brasil Livre.
horas em seu Patek Philippe Nautilus. Eram "Tenho orgulho de afirmar: Flávio Rocha,
14h30, a turbulência durava segundos, mas único presidenciável que conjuga o combate
parecia perdurar pela eternidade. ao politicamente correto com responsabili-
A seu lado, o apresentador e publicitá- dade fiscal e propostas sérias para a segu-
rio Roberto Justus tentava se concentrar no rança p(1blica, é o candidato do Movimen-
jornal, como se ignorasse a ansiedade do to Brasil Livre à Presidência da República",
companheiro de viagem. Em outra poltrona, escreveu Kim Kataguiri, um dos líderes do
Edgard Corona, dono da rede de academias MBL, em artigo no jornal Folha de S.Paulo
Bio Ritmo, comentava a respeito dos possí- nesta semana. "Para se tornar viável, ele pre-
veis efeitos para o Brasil da elevação da taxa cisa aparecer nas pesquisas. Começando a
de importação sobre aço e alumínio pelo go- aparecer, os partidos começam a se interes-
verno dos Estados Unidos. A continuidade sar. E aí ele entra no debate presidenciável
da trepidação obrigou os três a conjecturar, mesmo", disse Kataguiri a ÉPOCA.
em tom descontraído, quais seriam as man-

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chetes do dia seguinte caso o avião caísse.
Depois, com os corpos ainda sacolejando,
passaram a falar de Deus.
O MBL é um grupo que, entre outras ban-
deiras, diz que o imposto é um roubo,
que os cidadãos têm direito a andar arma-
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Justus declarou-se ateu. Flávio Rocha ajei- dos, que o nu na arte é imoral e que apoiou a
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tou os óculos Porsche, tirou os olhos de seu mentira de que a vereadora Marielle Franco
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iPhone e repreendeu o amigo: "Não diga isso (PSOL-RJ), assassinada há mais de uma sema-
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~ enquanto voamos. Deixe para depois que o na, era ligada ao tráfico de drogas .
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avião pousar". O outro se desculpou: "Estou "São os valores morais que despertam pai-
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z<( brincando. O avião está mexendo muito". xões. Ninguém fica se matando para discutir
22 VOTE EM MIM

a taxa de juros. A população em si não tem


discussões apaixonadas sobre isso. Agora,
sobre aborto, feminismo e cotas, as pessoas
têm uma opinião. É algo que mobiliza bas-
tante e faz com que a divergência política
aflore", afirmou Kataguiri a ÉPOCA.
Órfão de liderança desde o rompimento
com o prefeito de São Paulo, o tucano João Do-
ria, o MBL quer ver o dono das Lojas Riachuelo
no Palácio do Planalto. "A manifestação públi-
ca do MBL, sem sombra de dúvida, me coloca
próximo de assumir uma candidatura", disse-
me Rocha no mesmo dia. "Seria um egoísmo
muito grande não levar isso em consideração."
No universo da direita em ascensão, Flá-
vio Rocha está para o deputado Jair Bolso-
naro (PSC-RJ) - que lidera as pesquisas de
intenção de voto para a Presidência em ce-
nários sem Lula como candidato - assim
como a camiseta polo da Riachuelo está para
a camiseta polo da Renner. Há uma diferen-
ça aqui (grau de liberalismo) , outra ali (fervor sidência da República pelo Partido Liberal Evento de lançam ento
religioso) , outra acolá: Rocha não defende quatro anos depois. Depois de virem a públi- do plano de segurança
do Brasil 200 no Teatro
torturadores nem ofende mulheres. Mas am- co irregularidades no recebimento de "bônus Riachue lo, no centro do
bos querem leis mais duras contra o crime, eleitorais", uma forma heterodoxa de doações Rio. Entre os convidados
combatem a esquerda e temem que o mundo vigente na ocasião, renunciou à candidatura. estavam os especia listas
na área, Roberto Motta
se torne um antro de pouca-vergonha. Apoiou então a campanha vitoriosa de Fer- (ex-Partido Novo) e
nando Henrique Cardoso a presidente. Ma rcelo Rocha Mo nteiro,
procurador de Justiça do

A os 60 anos, Flávio Rocha parece mais jo-


vem. É baixo, troncudo, tem o forte sota-
que do natalense (ele se estabeleceu em Natal
A família morou nos Estados Unidos ,
onde ele fez duas pós-graduações em Har-
vard - uma em gestão e outra em estratégia
Rio, e o apresentador de
TV Robe rto Justus

ainda na juventude), conversa mirando o in- de negócios para o varejo. De volta ao Bra-
terlocutor na linha do nariz. Tem o cabelo gri- sil, estabeleceu-se em São Paulo, no mesmo
salho, que mantém mais escuro com a técnica prédio onde morava o pai, Nevaldo Rocha,
do ''reflexo invertido", quando se pintam de fundador do Grupo Guararapes - que in-
negro apenas alguns fios, dando-lhes uma apa- clui, além da Riachuelo, a financeira Midway,
rência natural. Tem mania de tocar o próprio o Midway Shopping Center e a Transporta-
corpo várias vezes como se procurasse algo em dora Casa Verde. A fortuna da família foi es-
bolsos invisíveis e é fã de camisas apertadas. timada em US$ 1,3 bilhão em 2017, a 39A no
É casado com a gaúcha Anna Cláudia Klein ranking nacional da revista Forbes.
Rocha, de 47 anos, com quem tem três filhos: Há quase duas décadas, Rocha mora na
Flávio, de 26 anos, Fernando, de 25, e Fabrício, mesma casa no bairro do Jardim América,
de 22. O mais velho, Felipe, que tem 31, é fru- em São Paulo. Em geral, acorda às 6h30 e lê
to de um relacionamento anterior com Alda um trecho bíblico em companhia da mulher.
Ramalho Pereira, filha do ex-gover11ador do Foi por meio dela que ele, nascido em família
Rio Grande do Norte Radir Pereira. católica, mergulhou na religião. Desde 2003,
Ele e Anna Cláudia se conheceram em o casal frequenta a igreja neopentecostal
1989, em Brasília, num desfile da grife Zoomp. Sara Nossa Terra - que tem entre os fiéis a
Casaram-se um ano e meio depois. Ela era cantora Baby do Brasil, a ex-modelo Moni-
modelo e amiga de uma ex-namorada dele, que Evans e o ex-deputado Eduardo Cunha.
então um deputado federal neófito. Rocha en- Depois do café da manhã (que inclui um
trou para a política em 1986, quando foi eleito copo de whey protein), ele malha por cerca
deputado federal pelo Rio Grande do Norte. de uma hora na academia de casa com uma
Reeleito em 1990, ensaiou candidatura à Pre- personal trainer, apelidada de Carol Pump.
RA TODOS
NDEPeNOÊI\CIA PA

BRASIL ~ 200 VOTE EM MIM 23

é conservadora e que quer que seus valores


. - • sejam defendidos." É nessa frente que Rocha
milita. Levanta bandeiras tradicionalmente
simpáticas à direita, como a defesa da famí-
lia, a redução da maioridade penal, o comba-
te à chamada ideologia de gênero e ao aborto.
Há 25 anos, ele defende a adoção do impos-
to único, ideia que aglutinou 20 mil apoiado-
res e financiadores ao longo do tempo, calcula.
É um dos principais porta-vozes do setor vare-
jista brasileiro, dono do maior conglomerado
de moda do Brasil e um dos 15 maiores em-
pregadores do país, com 40 mil funcionários
diretos, sendo 25 mil só na Riachuelo. Foi ele
quem implantou na empresa o conceito de fast
fashion. É o lançamento constante e rápido
de novos modelos de roupas populares a par-
tir de parcerias com estilistas e grifes, como
Versace, Karl Lagerfeld e Osklen.
ÉPOCA acompanhou Rocha por cinco es-
tados, durante três semanas, e entrevistou
Gosta de vinho, mas não bebe durante a Qua- 30 personagens envolvidos na tentativa de
resma. Não fuma e costuma seguir a dieta do construção de alternativa de direita para a
ponto z, baseada no consumo de proteínas. eleição presidencial de 2018.
Frequenta cinco vezes por semana o escritó-
rio da Riachuelo. O último livro que leu foi O
velho e o menino, do educador Roberto Tran-
jan. Uma de suas principais características é
A jornada começou em Belo Horizonte,
no começo de março, sem a pontualida-
de que os empresários costumam exigir. O
ficar grudado no celular trocando mensagens encontro na sede da Federação das Indús-
no WhatsApp. Ele monitora tudo o que é pos- trias, marcado para as 17h30, começou com
tado a seu respeito nas redes sociais. "Apesar uma hora e 20 minutos de atraso e mais da
da crença, o Flávio tem uma cabeça muito metade do auditório vazio. A caravana di-
aberta, não é um fundamentalista", disse o reitista foi recebida por apenas 50 pessoas,
deputado Fábio Faria (PSD-RN), seu amigo. sendo que duas delas dormiam nas poltro-
"Além de ser um gentleman." nas quando Flávio Rocha começou a falar.
Pediu desc11lpas pelo atraso em terra em que
em o nome incluído em pesq11isas eleito- a pontualidade é virtude. Não empolgou em
S rais e ainda sem filiação partidária, Flá-
vio Rocha viaja o país para divulgar o Brasil
sua explanação e encerrou sua fala após res-
ponder a poucas perguntas da plateia - uma
200, movimento que congrega empresários delas durou quase cinco minutos.
e profissionais liberais na defesa de menos De volta ao jatinho, ele se valeu dos 50 mi-
Estado e menos regulamentação, sem dis- nutos do voo entre Belo Horizonte e Rio de
farçar o tom de candidato. Entre eles, Ro- Janeiro para se recuperar. Tinha novo com-
berto Justus e Edgard Corona, que o acom- promisso na churrascaria Fogo de Chão, à
panhavam na viagem de avião. beira da Baía de Guanabara, em Botafogo.
Rocha recusa o rótulo de ''movimento de Chegou às 22H30, uma hora e meia atrasado,
empresários" - prefere chamá-lo de ''uma para jantar com 25 integrantes da Entrepre-
articulação de quem resolveu tomar lado no neur's Organization (Eo). Os empresários já
Brasil". Acredita que o que decidirá as elei- estavam no cafezinho.
ções presidenciais de outubro serão os temas Ali, os empresários ouviram Rocha com
ligados aos costumes, e não o "economês". "O a atenção dispersa. Alguns monitoravam as
discurso econômico não encanta os corações fotos do Instagram no celular enquanto ou-
dos brasileiros", falou. ''Existe uma angústia viam. O ponto alto da noite foi a fala do coor-
de uma grande parcela da população, que denador do MBL, Renan Santos, de 34 anos,
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que integra a caravana. Ele é também cura- como o setor empresarial, o agronegócio e gru- Flávio Rocha começou
dor de conteúdo e media training do empre- pos religiosos. "Os evangélicos são 30% da po- a viajar pelo país numa
caravana improvisada.
sário. «Brigo com ele para que se torne candi- pulação e devem ser os bastiões dos valores da A pequenas multidões no
dato", disse. A relação dos dois é tão próxima sociedade. Com todos unidos, a esquerda não Nordeste, ele discursa,
que Santos dá palpite até nas mensagens do vai ter espaço no Brasil. Voltaremos a ser um tira fotos e prega a
valorização da família
Twitter que Rocha escreve. Naquele dia, ele país sério", disse Renan Santos na apresentação
pediu que o aliado aprovasse sua postagem de Rocha aos empresários presentes na Fogo No Rio (abaixo}, ele
antes de lançá-la à rede: "Quem mata no Bra- de Chão. A citação aos evangélicos estava di- anunciou a distribuição
de 500 mil adesivos com
sil sabe que em mais de 90% das vezes nem recionada ao prefeito do Rio, Marcelo Crivella, a mensagem "Eu apoio
sequer será descoberto. No resto do mundo, liderança religiosa reconhecida. Marcelo Cri- as nossas tropas",
além de 500 mil
o crime perfeito é impossível. No Brasil, ele vella Filho representava o pai no encontro. "O
cartilhas que orientam
virou rotina". Santos aconselhou: ''Você tem número de evangélicos no país pode, sim, fazer a população fluminense
de tuitar mais, mais e mais. O Trump se uma cadeira de presidente", endossou. Crivel- sobre como apoiar
construiu no Twitter". a intervenção militar
la Filho se definiu como apoiador de Flávio
na segurança do estado
Rocha, mas diz que os líderes evangélicos pre-

A s sugestões de conteúdo e o poder do


MBL nas redes sociais são essenciais, na
visão de Rocha, para que amplie suas chan-
cisam conhecer melhor o empresário. "Ainda
não deu tempo. É muito recente."

ces na corrida presidencial. Ele chegou ao


movimento por meio de seu articulador po-
lítico, o sobrinho Gabriel Rocha. Filiado ao
Partido Novo, Gabriel, de 27 anos, abando-
nou o emprego como gerente de Produtos
da Riachuelo para se dedicar exclusivamente
ao Brasil 200. Ele se aproximou do MBL por
meio de canal mantido por um de seus inte-
grantes no YouTube. Trocaram mensagens e
se afinaram. Gabriel então se tornou a ponte
entre o MBL e o tio.
Na tentativa de eleger forte bancada no Le-
gislativo, o MBL quer usar Flávio Rocha para
reaglutinar as forças conservadoras que impul-
sionaram o impeachment de Dilma Rousseff,
VOTE EM MIM 25

Ao final do evento, parte dos empresários do Rio, o plano de Rocha para a segurança
cariocas elogiou as convicções do parceiro, tem como eixo o endurecimento de penas
alinhadas às suas, mas alguns reclamaram para todos os crimes. A tese central é que as
da ausência de "pu nch " no discurso. Que- causas do crime não são a pobreza ou a desi-
riam que fosse mais incisivo na defesa de gualdade, mas "as escolhas dos indivíduos".
seus pontos de vista. "Ficou um pouco abstra- Entre outras bandeiras de Rocha estão a re-
to e amplo", disse o presidente da EO no Rio, dução da maioridade penal, a flexibilização
Roberto Kaplan. "Quem brilhou foi o meni- da legislação para a compra de armas e o fim
no do MBL", res11miu outro participante. de indultos e de a11xílio-reclusão.
O lançamento festivo foi ao som da músi-

Justus e Rocha fazem


um intervalo em uma
D ias depois, Flávio Rocha amanheceu no

gurança que defende. A cerimônia foi reali-


ca "Tropa de elite", da banda Tihuana, e contou
Rio para o lançamento do plano de se- com o anúncio da distribuição de 500 mil ade-
sivos com a mensagem "Eu apoio as nossas tro-
lanchonete do Bob's,
zada no Teatro Riachuelo, um espaço amplo pas", além de 500 mil cartilhas que orientam a
no Aeroporto Santos
Dumont, no Rio, antes e tradicional que seu grupo comprou e refor- população fluminense sobre como apoiar a in-
de embarcar de volta mou 110centro da cidade. terve11çãomilitar na segurança do estado. Gru-
para São Paulo. A conta, Sistematizado por especialistas de direita po anti-intervencionista por convicção, contra-
de pouco mais de R$ 200,
foi paga pelo dono da como o engenheiro Roberto Motta e Mar- ditoriamente o Brasil 200 é a favor do uso das
Riachuelo celo Rocha Monteiro, procurador de Justiça Forças Armadas para conter a violência.
Em entrevista à rádio CBN, instado a co-
mentar a intervenção federal, Rocha asso-
ciou a "deg radação da segurança pública" a
uma consequência de anos de "governos de
esquerda" que, em sua visão, estabeleceram
uma "parceria entre Esta do e crime orga-
nizado" para amordaçar a polícia e armar
os bandidos no Rio de Janeiro. Dias depois,
ao comentar a morte da vereadora do PSOL
Marielle Franco, Rocha atribuiu a tragédia à
decisão individual de um monstro de puxar
o gatilho, e não "ao machismo ou ao racismo".
"A crença de que bandido é vítima da socieda-
de nos levou a essa barbárie. Se a culpa é de
todos, não é de ninguém", disse.
Rocha faz uma interpretação muito pró-
pria da obra do filósofo italiano Antonio
Gramsci (1891-1937) para praguejar contra
o esquerdismo. "A velha luta de classes está
obsoleta. Hoje se acredita que é preciso ba-
gunçar para governar", disse, repetindo um
de seus mantras em segurança pública. Ci-
tou como exemplo de incenti vo à criminali-
dade a edição do "Estatuto da Criança e do
Adolescente, na era do PT" e o Estatuto do
Desarmamento. O Estatuto da Criança e do
Adolescente foi editado em 1990, no governo
José Sarney, 13 anos antes do primeiro gover-
no Lula , iniciado em 2003.
Rocha associou a '' degradação da segurança
pública'' no Rio a urna consequência
de anos de ''governos de esquerda'' que, N um domingo recente , por volta das 11
da manhã, Rocha chegou à sede da Sara
Nossa Terra, na Rua Augusta, em São Paulo.
em sua visão, estabeleceram urna ''parceria O local estava lotado de mulheres bem ves -
entre Estado e crime organizado'' tidas e homens bem penteados. Ele usava
26 VOTE EM MIM

camiseta polo preta, da Riachuelo, e um jeans comum a fé, "o alimento do espírito", em suas
também escuro. Nos pés, tênis multicoloridos palavras. Ao final da cerimônia, ela se disse (e
da grife italiana Dolce&Gabbana. Anna Cláu- parecia) de fato "revigorada".
dia já estava lá. Sentou-se em um dos bancos
no meio do salão. Dali em diante, oraram
de olhos fechados, cantaram hinos evangé-
licos, tiraram fotos, deram-se as mãos, ajoe-
Q uestionado sobre como se deu sua con-
versão, Rocha afirmou ter sido um pro-
cesso gradual, em que não houve epifania ou
lharam-se e agradeceram ao Senhor. Em um um momento mágico. Tendo a religião como
momento, o bispo Cristiano perguntou, com norte, Rocha se prepara para enfrentar temas
entusiasmo: "Quem tem sonhos? Quem fez polêmicos na campanha eleitoral. Q11ando
planos para 2018?". Anna Cláudia levantou questionado sobre homofobia, por exemplo,
a mão, adornada no pulso por uma corrente ele se va le de um dado: a Riachuelo empre-
dourada em que se lia "Deus". ga 500 transexuais, "a maior empregadora do
Mais introspectivo que a mulher , Rocha só Brasil", e permite o uso do nome social em
se juntava ao coro de "aleluia" ou "amém" em todos os formulários e credenciais. Não ex-
voz alta quando todos os fiéis o faziam. Em um plica, no entanto, por que transexuais ainda
momento, ela me segurou pela mão e me levou não foram representadas em campanhas pu-
para o palco para ser abençoado, já que era mi- blicitárias da empresa. ''Não descartamos no
nha primeira vez no culto. Havia várias faixas futuro", disse. Recentemente, ele foi atacado
onde se lia "Jesus te ama" e "Bem-vindo à fa- por integrantes da comunidade LGBT (Lés-
mília de Deus". Todos aplaudiam. Na hora do bicas, Gays , Bissexuais e Travestis e Transe-
dízimo, ele incumbiu Anna Cláudia de passar xuais) depois que começou a enfatizar publi-
o cartão de crédito - a maquininha foi coloca- camente suas posições conservadoras, o que
da a sua frente. Ela digitou o valor de R$ 1 mil e motivou uma leva de funcionários da própria
a senha da conta. Com uma fortuna pessoal Riachuelo a defender o patrão. "Estou longe
calculada em vários milhões de reais, Rocha ex- de ser um moralista, um careta", descreveu-
plicou o valor pago à igreja: "Não é algo cal- se. "Amaria um filho gay da mesma forma
Em cli ma de pré-campanha,
culado. Costumo dar quantias maiores quando que meus filhos héteros." Flávio Rocha é fotografado
recebo os dividendos da empresa", disse. Rocha disse ter amigos gays, como Guilher- com trabalhadores de
Segundo Anna Cláudia, que também usa- me Siqueira e seu companheiro, Domenico confecção do programa
Pró -Sertão, em um distrito
va uma camiseta da grife italiana , além do Dolce , um dos estilistas da Dolce&Gabbana. próximo a Parelhas,
apreço por moda, o casal também tem em Sobre o casamento homoafetivo, ele afirmou no Rio Grande do Norte

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Flávio Rocha que defende a lei como está em vigor. "Hoje, acompanhado pelo deputado Rogério Mari-
assume publicamente o Estado legitima, o que está corretíssimo, o nho (PSDB-RN), Rocha pousou perto de uma
pela primeira vez
sua disposição contrato entre duas pessoas do mesmo sexo confecção. Ali, cumprimentou trabalhadores,
em se candidatar ou não. Pessoas que resolvem fazer um con- atendeu a pedidos de selfies e parou para dis-
à Presidência. trato para coabitar, regular uma relação. Isso cursar. Disse que criou o movimento Brasil
"Sou soldado, vou
lutar", disse aí está de bom tamanho. Sou defensor da fa- 200 após frustração com a burocracia nacional.
mília em todas as suas configurações." Afirmou que, em 2009, em uma viagem à Ga-
Dentro do que chama ideologia de gêne- lícia, na Espanha, teve a inspiração de criar o
ro, critica a "erotização precoce de crianças" Pró-Sertão , projeto que previa a inauguração
sobretudo em escolas e centros culturais, de 300 fábricas para desenvolver a economia
como, segundo ele, a promovida pela expo- nordestina. "Vi ali o motivo para Deus ter me
sição QueerMuseu, no Santander Cultural, colocado nesta passagem terrena."
em Porto Alegre, no ano passado. Também Em seguida, o empresário se dirigiu ao
é contrário ao aborto, pois crê que "só Deus evento principal do dia, na Associação de
pode matar". "Vida é vida. Não há diferença Caminhoneiros de Parelhas. Lá, foi recebi-
entre matar um bebê de 1 mês e matar um do aos gritos de "Brasil pra frente, Flávio
feto de 9 meses", disse. Rocha presidente" e "Ou vai ou Rocha". De
Seria flexível, me contou, caso tivesse uma fundo, a dupla sertaneja Mateus e Cristiano
filha violentada e que houvesse engravidado. interpretava ao vivo o jingle que produziu
Afirmou que, nesse caso, respeitaria a escolha para o movimento, chamado "Que seja feita
dela. Também é a favor da criminalização das a vontade do po vo".
drogas e contrário às cotas raciais, as quais Para cerca de 4 mil pessoas, Rocha contou
define como racistas por si próprias. que enxergava na Galícia afinidades socioeco-
nômicas com o Nordeste brasileiro, pois é mais

U ma semana depois de a caravana ter ido


ao Rio, Flávio Rocha voava para Não-
Me-Toque, cidade do norte gaí1cho. Con-
pobre que o restante do país e tem vocação
têxtil. O dono da Riachuelo disse que foram
abertas dezenas de fábricas. "Depois da inau-
duzido pelo deputado ruralista Jerônimo guração da 60ª fábrica, no entanto, veio um
Goergen (PP-RS), ele participou de uma fei- comboio de 20 viaturas com sirenes ligadas,
ra agroindustrial e concedeu entrevistas a guardas de metralhadora, fiscais do Ministério
emissoras de rádio e TV regionais. Seu com- Público do Trabalho fazendo uma operação
promisso mais importante foi almoçar com pirotécnica, interrompendo as ruas , com cos-
a senadora Ana Amélia Lemos (PP-RS). Ela tureiras chorando. Parecia que estavam pren-
era cortejada pelo MBL para ser vice de Flávio dendo o Pablo Escobar", recordou-se Rocha.
Rocha , por ser "mulher, gaúcha e de direita". O Ministério Público do Trabalho reali-
Ana Amélia recusou-se a sequer comentar o zou inspeções em mais de 50 fábricas , em 12
tema: ''Sei onde piso", resumiu. municípios. Concluiu, no segundo semestre
De lá, o grupo seguiu para Natal, no Rio do ano passado, que os "empregados recebem
Grande do Norte. A agenda do dia seguinte menor remuneração e têm menos direitos
era no sertão nordestino. trabalhistas do que os empregados contrata-
O primeiro compromisso da manhã foi dos diretamente pelo grupo Guararapes", da
em um distrito próximo a Parelhas , a 250 qui- família Rocha. Os procuradores entraram
lômetros da capital potiguar. De helicóptero, com ação trabalhista cobrando R$ 37 milhões
28 VOTE EM MIM

das empresas. Rocha reagiu com carta dirigi-


da à procuradora Ileana Neiva, chamando-a
de "louca", "perseguidora" e "exterminadora
de empregos". Responde a processo agora sob
acusação de calúnia e injúria.
Ele disse não se arrepender. Chamou o Esta-
do de "máquina de não fazer" e qualificou a bu-
rocracia estatal como "tóxica". Repete, com fre-
quência, a palavra "carruagem" para se referir à
máquina pública, pesada e disfuncional na rela-
ção com o empreendedor. Em sua alegoria, a car-
ruagem é puxada por 98% da população, os que
"suam a camisa" para sustentar os privilégios dos Roberto Campos, morto em 2001, e Marcos Midiático, mais do que
outros 2% - políticos, funcionários públicos e Cintra, defensor do imposto único. Acom- nunca Flávio Rocha se
coloca à disposição
outros sanguessugas - que estão sentados na panha a produção do filósofo Olavo de Car- para dar entrevistas. Na
cabine. Rocha compara as leis do mercado às leis valho, define o jornalista Rodrigo Cons- foto, fala para a equipe
divinas - estão acima de todas as leis. tantino como "genial" e se preocupa com a da Federação das
Indústrias do Estado de
impressão que o jornalista Reinaldo Azeve- Minas Gerais (Fiemg)

R ocha já tem um discurso contra seus po-


tenciais adversários na sucessão. O tucano
Geraldo Alckmin é apontado como um "con-
do tem dele. Outro aliado é Alexandre Bor-
ges, colunista do jornal paranaense Gazeta
do Povo, revisor dos artigos que o empresá-
servador por natureza", mas sem coragem de se rio publica na imprensa.
assumir como tal. "Ele também não consegue
tomar as posições que o povo está demandan-
do", disse, abusando do jargão econômico. Re- Em um começo de tarde de março, Rocha
almoçava risoto de camarão em sua casa
conhece a veia liberal de João Do ria, mas disse decorada com peças de artistas plásticos
que o tucano pisou em todas as cascas de bana- como Ai Weiwei, Adriana Varejão e Julio Le
na do politicamente correto. Elogia Jair Bolso- Pare. Sem largar o celular, ele puxou o assunto
naro na defesa dos bons costumes, mas condena à mesa. "Você viu o vídeo da deputada do PT
a postura estatizante na economia. "Não se faz fazendo palestras para professores, dizendo
um liberal do dia para a noite." Kataguiri, do que o road map para chegar ao objetivo final
MBL, reforça o que diferencia Rocha do parla- da sociedade é o incesto?", perguntou-me. Re-
mentar do PSC: "O Bolsonaro defende mais sen- feria-se a uma palestra dada por Erika Kokay
so comum do que valores conservadores. Ele (PT-DF), em maio de 2016, no Sindicato dos
não conhece, não fundamenta o que defende". Trabalhadores em Educação Pública do Para-
Uma opção com um perfil semelhante ná. "O incesto é o último tabu. Ela mostra que
ao seu próprio seria João Amoêdo, do Par- a forma mais eficiente para destruir a proprie-
tido Novo, um empresário alinhado com os dade é destruir a família. Conta, passo a passo,
preceitos do livre mercado. Mas, para Rocha, como chegar à sociedade do incesto, a quebra
Amoêdo não tem disposição para "sujar o sa- do último tabu. Aí, sim, terão sido banidos to-
patinho no terreno pantanoso dos costumes". dos os valores judaico-cristãos", alarmou-se.
A crítica se repete ao falar sobre o atual mi- O vídeo, que viralizou em grupos conser-
nistro da Fazenda, Henrique Meirelles. Das vadores de WhatsApp, é exemplo clássico de
candidaturas à esquerda de Lula (PT) ou Ciro notícia falsa. Não trata de uma defesa do in-
Gomes (PDT), Rocha acredita que eles sim- cesto ou do fim da família patriarcal. Edita-
plesmente defendem as ideias erradas. da, a peça induz ao erro ao suprimir o trecho
Flávio Rocha banca por si os recursos ne- inicial da fala, em que a parlamentar intro-
cessários à caravana direitista abrigada no duz uma reflexão sobre como, em sua ava-
movimento Brasil 200. Já foi procurado por liação, a extrema-direita enxerga a estratégia
empresários interessados em fazer doações, da esquerda na discussão sobre ideologia de
estimulando o projeto de uma bancada forte gênero. Alertado sobre a edição do material,
em defesa da livre-iniciativa. Rocha disse que reveria o conteúdo, mas
Ideologicamente, ele diz se inspirar nas continuou repetindo a invencionice, como se
ideias do diplomata, economista e político nada lhe tivesse sido dito. ______ _
30 OUVIDOS MOUCOS
OUVIDOS MOUCOS 31

DEPOIS DE ADERIRAO USO DE


APARELHOAUDITIVO,TEMERARREGALA
OS OLHOS PARAA REELEIÇÃO
por Plínio Fraga

O toque discreto na campainha do con-


sultório nos Jardins, em São Paulo,
mostrava que o paciente não queria fazer
Os aparelhos modernos contra a surdez
são quase imperceptíveis, porque alojados
dentro do canal auditivo. No caso de Temer,
alarde. Um dos três médicos que ali aten- descartou-se a opção do implante coclear, dis-
dem foi desavisado em direção à porta e positivo médico que reproduz o sentido da
surpreendeu-se com quem chegava. Inter- audição. Ele é indicado apenas para pacientes
rogava-o com os olhos, enquanto pensava com surdez severa bilateral. Temer tem perda
que ele era mais baixo pessoalmente do auditiva mediana, para a qual o aparelho
que parecia na televisão. Depois de alguns reduz o déficit sonoro de modo mais prático.
poucos segundos de silêncio constrangedor, Os rumores sobre a saúde de Temer têm
o paciente quebrou o gelo, mencionando o crescido desde o fim do ano passado. O pre-
nome da especialista que o aguardava. sidente já foi submetido a uma angioplastia
Passou apressado por quatro pessoas que e a duas cirurgias na próstata , além de ter
estavam na antessala. Previamente avisada, sido socorrido às pressas em razão de uma
a médica aguardava o paciente discreto de infecção urinária. De todos esses problemas,
portas abertas, mas não tivera tempo sufi- a surdez moderada é o menos preocupante.
ciente para ir recebê-lo à saída do elevador. Exceto se, por algum efeito colateral inexpli-
Um senhor de ascendência italiana, com ca- cado, a surdez tornar-se também política.
belos brancos reluzentes dos oitent'anos, foi
o primeiro a reconhecê-lo. ''Che cazzo sta emer, o presidente mais impopular da
facendo quest'uomo qui?", perguntou, mais
irritado do que surpreso.
T história, afirmou nesta semana não ser
improvável que dispute a reeleição. O mar-
O presidente Michel Temer não ouviu o queteiro - cujo nome cai como uma luva
resmungo em italiano, pontuado de xinga- nesta reportagem - Elsinho Mouco já havia
mentos nada discretos. Não ouvir bem era lançado o balão de ensaio do Temer candi-
o que fazia Temer estar ali. Aos 77 anos, o dato em fevereiro. O presidente acalenta o
presidente cedeu aos argumentos médicos de sonho da reeleição desde a "jogada de mes-
que deveria usar um "aparelho de amplifica- tre", como classificou a intervenção federal
ção sonora individual". Reservou o começo na segurança pública do estado do Rio de Ja-
da manhã da quarta-feira 14 para testar e neiro. No entanto, continua sendo mal ava-
ajustar a peça nova. A agenda preside11cial liado por sete em cada dez brasileiros.
previa dois compromissos em São Paulo - a No Carnaval, blocos pelo país afora gri-
abertura de fórum econômico e uma entre- taram "Fora, Temer". Desde o assassinato da
vista à emissora de televisão estatal alemã. vereadora Marielle Franco, manifestações
Por isso, Temer estava apressado. por diversas capitais pedem justiça e mais
Não era a primeira vez que frequentava "Fora, Temer". Na segunda-feira passada, dia
o consultório nos Jardins. Em geral, no en- 19, ao receber o príncipe herdeiro do Japão
(J)
o::
w
1-
tanto, marcava suas consultas para o fim da na rampa do Palácio do Planalto, o presiden-
::,
w
o:: semana, assegurando discrição e privacidade, te - com o novo aparelho contra a surdez -
õ
z
...J
w
Temer tem perda exigindo o prédio vazio para si. Aproveitou- certamente ouviu os gritos de sempre com os
ü
o::
auditiva mediana. se da agenda em São Paulo para resolver o quais foi novamente recebido. A candidatura
~ O aparelho
w
...J discreto vai resolver problema que lhe causava aflição e descon- à reeleição só pode ser opção se o presidente
(J)
w
::, o problema forto havia algum tempo. der ouvidos a Mouco. _______ _
OUVIDOS MOUCOS 31

DEPOIS DE ADERIRAO USO DE


APARELHOAUDITIVO,TEMERARREGALA
OS OLHOS PARAA REELEIÇÃO
por Plínio Fraga

O toque discreto na campainha do con-


sultório nos Jardins, em São Paulo,
mostrava que o paciente não queria fazer
Os aparelhos modernos contra a surdez
são quase imperceptíveis, porque alojados
dentro do canal auditivo. No caso de Temer,
alarde. Um dos três médicos que ali aten- descartou-se a opção do implante coclear, dis-
dem foi desavisado em direção à porta e positivo médico que reproduz o sentido da
surpreendeu-se com quem chegava. Inter- audição. Ele é indicado apenas para pacientes
rogava-o com os olhos, enquanto pensava com surdez severa bilateral. Temer tem perda
que ele era mais baixo pessoalmente do auditiva mediana, para a qual o aparelho
que parecia na televisão. Depois de alguns reduz o déficit sonoro de modo mais prático.
poucos segundos de silêncio constrangedor, Os rumores sobre a saúde de Temer têm
o paciente quebrou o gelo, mencionando o crescido desde o fim do ano passado. O pre-
nome da especialista que o aguardava. sidente já foi submetido a uma angioplastia
Passou apressado por quatro pessoas que e a duas cirurgias na próstata , além de ter
estavam na antessala. Previamente avisada, sido socorrido às pressas em razão de uma
a médica aguardava o paciente discreto de infecção urinária. De todos esses problemas,
portas abertas, mas não tivera tempo sufi- a surdez moderada é o menos preocupante.
ciente para ir recebê-lo à saída do elevador. Exceto se, por algum efeito colateral inexpli-
Um senhor de ascendência italiana, com ca- cado, a surdez tornar-se também política.
belos brancos reluzentes dos oitent'anos, foi
o primeiro a reconhecê-lo. ''Che cazzo sta emer, o presidente mais impopular da
facendo quest'uomo qui?", perguntou, mais
irritado do que surpreso.
T história, afirmou nesta semana não ser
improvável que dispute a reeleição. O mar-
O presidente Michel Temer não ouviu o queteiro - cujo nome cai como uma luva
resmungo em italiano, pontuado de xinga- nesta reportagem - Elsinho Mouco já havia
mentos nada discretos. Não ouvir bem era lançado o balão de ensaio do Temer candi-
o que fazia Temer estar ali. Aos 77 anos, o dato em fevereiro. O presidente acalenta o
presidente cedeu aos argumentos médicos de sonho da reeleição desde a "jogada de mes-
que deveria usar um "aparelho de amplifica- tre", como classificou a intervenção federal
ção sonora individual". Reservou o começo na segurança pública do estado do Rio de Ja-
da manhã da quarta-feira 14 para testar e neiro. No entanto, continua sendo mal ava-
ajustar a peça nova. A agenda preside11cial liado por sete em cada dez brasileiros.
previa dois compromissos em São Paulo - a No Carnaval, blocos pelo país afora gri-
abertura de fórum econômico e uma entre- taram "Fora, Temer". Desde o assassinato da
vista à emissora de televisão estatal alemã. vereadora Marielle Franco, manifestações
Por isso, Temer estava apressado. por diversas capitais pedem justiça e mais
Não era a primeira vez que frequentava "Fora, Temer". Na segunda-feira passada, dia
o consultório nos Jardins. Em geral, no en- 19, ao receber o príncipe herdeiro do Japão
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1-
tanto, marcava suas consultas para o fim da na rampa do Palácio do Planalto, o presiden-
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Temer tem perda exigindo o prédio vazio para si. Aproveitou- certamente ouviu os gritos de sempre com os
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32 18 PERGUNTASPARA

O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles,


de 72 anos, opina sobre as diferenças
entre trabalhar para os governos Lula
e Temer e tergiversa sobre seu futuro eleitoral
por Daniela Pinheiro

18 PERGUNTASPARA

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18 PERGUNTASPARA 33

1. Qual foi a maior besteira que o senhor já ouviu sobre a economia brasileira?
A besteira de que não existem problemas fiscais, que existe um gran-
de superávit da Previdência Socia l e que, em resumo, sobram recur-
sos e o governo pode gastar à vontade.
2• É difícil defender um governo que tem 6% de aprovação?
Não, eu acho que o importante é a realidade, e a realidade é que as
reformas estão sendo feitas, o país está sendo modernizado e, prin-
cipa lm ente, está saindo da maior recessão da história e crescendo.
Portanto, é muito fácil quando os fatos são favoráveis. E se basear
em fatos concretos e números positivos, minha experiência diz que
sempre é mais fácil e viável.
3 • Onde o senhor quer ver o presidente Michel Temer no dia 1º de janeiro de 2019?
Existem duas hipóteses. Caso eu decida ser candidato, na minha posse.
Caso eu decida não ser candidato e ele decida ser candidato, na posse dele.
4 • Onde o senhor gostaria de ver o ex-presidente Lula no dia 1º de janeiro de 2019?
(Silêncio) Quero vê-lo confraternizando com os amigos, porque nesse
caso seria de minha preferência o dia em que nós estaremos toman-
do posse e ele estaria celebrando com os amigos pelo fato de o país
continuar na democracia. E, apesar da derrota do PT, ter tido um
desempenho bom.
5 • O senhor se googla? Pesquisa o próprio nome na internet para ver o que estão
falando de sua pessoa?
Não.
6 • Qual é a maior debilidade da elite brasileira?
Eu acho que poderia haver maior engajamento nos assuntos que mais
interessam o país , mesmo que tragam prejuízos de curto prazo a
setores específicos.
7. Por exemplo?
Determinados s11bsídios que são prejudiciais e criam tetos fiscais que
prejudicam a economia e prejudicam a todos. Evidentemente, eu acho
que esses setores poderiam, por exemplo, em um cenário ideal, enten-
der que existe um grande benefício para o país e para eles próprios
caso a economia cresça. Para isso, é necessário controlar o déficit, o
que significa que não é possível dar tanto subsídio.
8 • Por que não se devem taxar grandes fortunas?
Nós estamos propondo a taxação dos fundos de investimento, que
é exatamente onde as grandes fortunas são aplicadas. Nós estamos
fazendo a taxação diretamente na aplicação dos recursos, que é a ma-
neira mais eficaz de efetuar essa tributação, segundo toda a experiên-
eia que já avaliei no mundo inteiro.
9 • O que falta ao povo brasileiro?
Eu acho que o povo brasileiro é um povo sábio, é um povo lutador.
Seria muita pretensão de qualquer um definir o que está faltando ao
povo. Evidentemente, do ponto de vista das escolh as ou da posição de
cada um. Agora , é claro que precisamos, sim, criar empregos e elimi-
Meirelles vê vantagens
e desvantagens em ser nar o desemprego. Isso, sim, falta à população: mais emprego, mais
um candidato rico renda e mais garantia de crescimento do padrão de vida de cada um.
34 18 PERGUNTASPARA

1O• Se o senhor for candidato e lhe negarem a Presidência da República, continua


na vida política fazendo o quê?
Não tenho essa ava li ação no momento, porque, caso decida ser
candidato, minha expectativa seria, evidentemente, ganhar a elei-
ção. Não estou tratando agora de outra alternati va a não ser a alter-
nativa de não sair candidato.
11 • Um candidato rico tem mais chance que um candidato pobre?
Eu não acredito que isso faça grande diferença, não. Existem vanta-
gens e desvantagens. O importante é a mensagem ao eleitor, a prefe-
rência e estar sinton izado com o que o país quer naquele momento.
12 • Qual é a vantagem e qual a desvantagem de ser um candidato rico?
Olha, como eu disse, não há grande diferença, porque o candidato
que não tenha recursos próprios pode perfeitamente arrecadar, e até
ter mais recursos disponíveis para a campanha. Então , o que eu que-
ro dizer é o seguinte: não há diferença substancial do ponto de vista
eleitora l, em minha opinião.
13 • O que o senhor responde quando falam que virou evangélico apenas para
entrar na política?
Em primeiro lu gar, é uma informação equivocada, porque eu não
virei evangélico. Eu conc luí , e muitos evangé licos também, que nós
temos valores similares de ética, de traba lho duro, de compromis-
so com a honestidade e com a integridade. Portanto, baseado nesses
valores comuns, eu tenho me identificado e trabalhado com os evan-
gélicos. Portanto, é equivocada a informação de que me converti a
alguma coisa. Esses valores eu sempre tive em minha vida toda.
14 • Qual será seu problema na campanha?
Em primeiro lugar, eu não decidi ainda que vou entrar na campa -
nha. A segunda questão vai ser articular m11ito bem exatamente
qual é a mensagem q11emelhor expressa exatamente tudo aquilo que
eu penso.
15 • Se o senhor for candidato, quem vai ficar em seu lugar?
Não tive ainda essa conversa definitiva. Não sei, portanto, qual se-
ria a escolha do presidente.
16 • Qual é a grande diferença entre ter trabalhado para um governo petista e,
agora, para o governo atual?
São trabalhos muito diferentes. Eu, como presidente do Banco Cen-
tra l, tinha um acordo de completa independência com o então presi-
dente Lula. Agora, como ministro da Fazenda, sou parte do governo
do presidente Temer. São trabalhos muito diferentes e, portanto, não
são comparações diretas, na medida que um era o trabalho no Ban-
co Central, essencialmente técnico. Agora, é um traba lho que tem
ajuste fiscal, reformas discutidas com o Congresso. São trabalhos de
características muito diferentes.
17 • Qual foi a pessoa mais chata que o senhor conheceu recentemente?
Aí já tem uma competição dura. (Risos)
18 • O senhor será candidato?
Tomarei essa decisão até o dia 7 de abri l.__________ _
36

ARTIGO

LUCAS M. NOVAES É DOUTOR EM CIÊNCIA


DECEPÇÃO À VISTA POLÍTICA PELA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA
E PESQUISADOR DO INSTITUTE FOR
por Lucas M. Novaes ADVANCED STUDY EM TOULOUSE, FRANÇA

epois de meia década politicamente traumática, é para ter acesso terão de liberar uma emenda para o polí-
D inegável que existe uma demanda por um Congresso
mais representativo. Infelizmente, não há nenhuma indi-
tico local ou um contrato público, uma contribuição de
campanha, um envelope de dinheiro. Recursos do .finan-
cação de que os aspirantes ao Parlamento mudaram suas ciamento público partidário também servem, obrigado.
táticas eleitorais nem o modo como se relacionam com Dessa maneira, um deputado monta sua base de apoio
eleitores. Haverá novos nomes, novos partidos, mas a po- como montamos um jogo de Lego, só que, em vez de pe-
lítica muito provavelmente continuará a mesma. ças, coleciona cabos eleitorais de luxo. Quanto mais recur-
Não temos o bom modelo de política, aquele em que sos ele tiver, mais aliados locais terá e maior será o "parti-
escolhemos representantes com propostas mais próximas do" que poderá montar. Se perder recursos, seu "partido"
do que queremos e, caso não cumpram com o prometido, poderá ser desmontado, pois antigos cabos eleitorais mi-
deixamos de votar neles. O que vemos parece ser o con- grariam para um concorrente mais abastado.
trário, com políticos defendendo seus pares suspeitos de Usando esse modelo e olhando do ponto de vista de
corrupção sem se preocupar se isso desagradaria ao eleitor. partidos em vez de deputados individuais, podemos ter
Entretanto, essa camaradagem faz sentido no plano elei- uma ideia de como serão as votações para deputado neste
toral, já que ela facilita a liberação de emendas, vagas em ano. Para isso devemos voltar dois anos, para as eleições
estatais e em ministérios e outros recursos. Por meio disso, municipais de 2016, e contar quantos candidatos a prefeito
o candidato a deputado consegue o que é mais importante os partidos lançaram - como medida do tamanho da cai-
na arena eleitoral: o apoio de políticos locais. xa de Lego de cada um-, já que, mesmo perdendo, esses
políticos locais mantêm certa influência. O MDB certamen-
Aquele vereador que você conhece te é o partido que teve mais recursos nas mãos para con-
ou o prefeito de seu município, tratar apoio e lançou cerca de 2.170 candidatos a prefeito.
são eles que fazem o verão Esse número de cabos eleitorais deve permitir a captura de
vários assentos. O PSDB não fica muito atrás: 1.600.
dos deputados. Por meio da relação Ao que tudo indica o PT sangrará bastante. O par-
que têm com eleitores, cultivada tido lançou ao redor de 930 candidatos, pouco mais da
com urna vaga na creche, um metade de candidaturas petistas em 2012, e sofreu mui-
to com trocas. Colocado forçadamente na oposição, não
emprego na prefeitura ou outros tinha muito como manter seus antigos aliados locais,
pequenos favores, políticos que agora trabalharão para a concorrência. Dito isso, o
locais criam urna rede de eleitores PT é o único partido com organização sólida de ativistas
e tem a seu favor a impopularidade de Temer, que pode
própria e cativa. se traduzir em maior apoio a siglas de esquerda. Por úl-
O político local cultiva esse bloco de eleitores não só para timo, como a atual bancada no Congresso garantiu uma
ajudá-lo a ganhar as eleições municipais, mas também bolada ao partido, petistas podem começar a arregi-
para "alugá-lo" para quem precisar de votos. Candidatos mentar no vos apoiadores. Resta saber se esses fatores
ao Legislativo têm grande interesse nesses votos, só que vão acolchoar o tombo. ____________ _
38 IN FERNO PETISTA

EM CASO DE PRISÃODE LULA, O PT,


NA MAIOR CRISEDE SUA HISTÓRIA,
CORREO RISCO DE FICAR NAS MÃOS
VOLUNTARIOSAS- E INEXPERIENTES-
DE GLEISIHOFFMANN
por Sérgio Roxo, de Salvador
INFERNO PETISTA 39

N uma sexta-feira do final de fevereiro , diri- instituto, um sobrado do bairro do Ipiranga,


gentes petistas estavam reunidos no aca- na Zona Sul de São Paulo. O movimento no
nhado prédio onde funciona a sede do partido, local, porém, traz hoje um certo ar de melan-
no centro de São Paulo, para discutir estraté- colia porque nem de longe lembra o entra e sai
gias eleitorais, quando a conversa rumou para de empresários e políticos dos tempos áureos,
recriminações às movimentações políticas de logo após Lula deixar a Presidência com 80%
Fernando Haddad. Na véspera, a presidente de popularidade. Com fartos aportes de em-
do PT, a senadora Gleisi Hoffmann, do Paraná, preiteiras, dinheiro não era problema, o que
principal porta-voz do discurso de que "não há permitiu a Lula montar uma diretoria remu-
plano B para Lula", telefonara para o ex-prefei- nerada com salários acima dos R$ 15 mil com
to de São Paulo e cobrara satisfação por causa dois de seus ex-ministros (Luiz Dulci e Paulo
de um jantar que ele tivera com Ciro Gomes, o Vannuchi) e uma de suas principais assessoras
pré-candidato do PDT à Presidência. Em meio na Presidência, Clara Ant. Com as torneiras
aos ataques a Haddad, Lula tomou a palavra: de doações fechadas por causa da Lava Jato, o
"Tem de co11versar mesmo , com todo mundo, grupo teve de ser dispensado no ano passado.
até com o MDB". As cerca de dez pessoas pre- Restou apenas o presidente Paulo Okamotto.
sentes à reunião ficaram em silêncio, numa de- Sem recursos, o instituto lançou uma vaqui-
monstração de que haviam entendido o recado. nha virtual para pedir contribuições. "O Lula
A bronca em Hoffmann e nos dirigentes parece sozinho. Tem pouca gente para discu-
do partido mostra como o ex-presidente dita tir política com ele", disse um colaborador. Os
os rumos do PT. Serve também para ilustrar a interlocutores mais frequentes são Haddad e
preocupação de alguns setores com o futuro Dulci, que visitam a casa do Ipiranga quase
do partido diante da perspectiva de seu líder diariamente. Como bom general, Lula tenta
máximo sair de cena por causa de uma prisão. não demonstrar preocupação com a prisão
Desde que Hoffmann assumiu o comando do para não abater a tropa, mas é nítido aos que o
P'r em junho, a "luladependência" aumentou. visitam o "abalo" com a perspectiva da cadeia.
A senadora e o "chefe" se falam várias vezes
por dia por telefone. Pelo menos uma vez por
semana ela vai a São Paulo para despachar
com ele. De acordo com uma pessoa próxima
S e confirmada a prisão, além de sofrer com
a privação de liberdade, o ex-presidente
terá de ver o PT andar com as próprias per-
a Lula, o PT é hoje uma divisão de exército for- nas. A ala paulista da burocracia partidária,
mada por soldados e apenas um general. Fal- que comanda a legenda desde os anos 1990,
tam os coronéis para auxiliar nas tomadas de é a mais apreensiva com o período em que
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decisões. Esse papel, no passado, era ocupado Hoffmann ficará órfã na direção do partido.
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por figuras como José Dirceu, Antonio Palocci, "O momento mais difícil para a Gleisi vai co-
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Luiz Gushiken e Marco Aurélio Garcia - os meçar agora. Ela vai ter de costurar alianças,
o:i: dois primeiros foram tragados por escândalos muitas vezes intervir em diretórios estaduais
()

~ de corrupção e os dois últimos morreram. Os para retirar uma candidatura pensando no


coronéis ousavam discordar das ordens do ge- projeto nacional. A grande questão é se terá
neral, o que não acontece hoje. habilidade para fazer isso", questionou um di-
rigente. Para esse grupo, o jeito "intempestivo"

A definição de diretrizes sobre os rumos do


PT consome boa parte do dia a dia de Lula,
uma ocupação que ajuda a aliviar a angústia
de Hoffmann traz o risco de crise permanente
no momento mais crítico da história do PT.
O retrospecto dos nove meses de Hoffmann
à espera da prisão. Segundo um amigo, duas no comando do partido fundamenta o temor
coisas assustam o ex-presidente: a solidão e a dos dirigentes petistas. A senadora acumu-
falta de ter o que fazer. Mesmo para assistir a lou crises desde o início de sua presidência.
um jogo de futebol, ele gosta de ter alguém por Em julho , provocou desconforto inclusive
perto. Certa vez, Lula perguntou a um cacique em Lula ao declarar apoio e solidariedade
Em conversas com do partido como ele conseguia ficar duas ou ao presidente da Venezuela, Nicolás Maduro,
petistas graduados, a três horas lendo um livro sem a companhia de em meio à controversa convocação de uma
frase do ex-ministro alguém. Desde que a mulher, Marisa Letícia, Assembleia Constituinte no país vizinho que
Nelson Jobim "Gl eisi é
fraquinha"quase sempre
morreu, no ano passado, Lula costuma esti- aprofunda o caráter autoritário do regime
vem à tona car até as 21 horas o expediente na sede de seu chavista. Em janeiro, oito dias antes de o
40 INFERNO PETISTA

Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) debandada de deputados, que poderia sepultar
julgar o caso do tríplex do Guarujá, afirmou a legenda, era real. Para tentar unir o partido,
que, antes de Lula ser preso, "vai ter de pren- o próprio Lula cogitou assumir a presidência.
der muita gente, mais do que isso, vai ter de Apesar de gostar de dizer que está com "ener-
matar gente". A declaração foi classificada gia de 30 e tesão de 20", Lula se deu conta, po-
como "infeliz" por Paulo Okamotto. O de- rém, de que dirigir o PT, disputar a Presidên-
putado federal Carlos Zarattini, de São Paulo, cia da República e responder a uma série de
disse que Hoffmann sofreu de "ansiedade ci- processos judiciais seria uma tarefa impossível
bernética" na tentativa de se mostrar proativa. para um homem com mais de 70 anos.
Diante da repercussão negativa, a senadora Com o ex-presidente fora do páreo, o ex-mi-
tentou justificar a frase com a alegação de que nistro da Saúde Alexandre Padilha e o ex-depu-
se valera de uma "força de expressão". tado Márcio Macêdo, de Sergipe, apresentaram-
No dia do julgamento de Lula pelo TRF4, se como candidatos da corrente majoritária.
minutos depois de os desembargadores con- Lula sabia que nenhum dos dois teria uma tarefa
firmarem a condenação do ex-presidente, ela fácil dia11tedo senador Lindbergh Farias, do Rio
subiu num carro de som em Porto Alegre e de Janeiro, que, com o apoio das correntes de
conclamou os militantes a "radicalizar". Esse esquerda, começou a angariar votos para a pre-
tipo de declaração, por um lado, serve para sidência. Foi nesse momento que Lula tirou da
incendiar os simpatizantes petistas, mas por cartola o nome de Hoffmann. A aposta era que
outro aumenta a antipatia ao partido na par- Lindbergh abandonaria a candidatura para não
cela da população que se mantém distante da entrar em confronto com a colega, com quem
polarização política. É como se a senadora ele cultivara uma forte amizade no Senado. A
pregasse apenas para os já convertidos ao lu- escolha de Hoffmann teria também o aspec-
lismo numa eleição presidencial que caminha to simbólico de pôr uma mulher no comando
para uma disputa em dois turnos. do partido depois do impeachment de Dilma
Há 15 dias, no último dos episódios verbor- Rousseff. Hoffmann inicialmente resistiu. Não
rágicos, Hoffmann repreendeu publicamente queria se distanciar dos filhos adolescentes, que
o governador da Bahia, Rui Costa, por ele ter vivem em Brasília. Mas, como os soldados não
sugerido que o apoio a um candidato de outro podem dizer não ao general, acabou cedendo.
partido pode ser um caminho a ser trilhado Mesmo assim, Lindbergh continuou na disputa,
pelo PT caso Lula seja impedido de concorrer mas cobria a paranaense de elogios. Os militan-
na eleição deste ano. Horas depois da repri- tes entenderam o recado e elegeram a senadora
menda, Hoffmann acompanhou Lula em um para presidir o partido por dois anos.
jantar no Palácio de Ondina, a residência ofi- Para auxiliá-la, foram escalados dois dos
cial do governador que ela atacara. O constran- mais próximos aliados de Lula, que estiveram
gimento dominou o início do encontro e só foi ao lado do ex-presidente nos oito anos no Pla-
amenizado, ao final do jantar, com o impulso nalto e podem ser considerados os últimos co-
de taças de vinho. No dia seguinte, sem o efeito ronéis petistas por aquela analogia entre o par-
do vinho, os dois mostraram distanciamento tido e uma divisão militar. O ex-ministro Dulci
ao subir ao palco de um evento do Fórum So- assumiu uma vice-presidência e o ex-chefe de
cial Mundial, realizado em um estádio de fu- gabinete de Lula Gilberto Carvalho cumpre a
tebol de Salvador. Em seu discurso, Hoffmann mesma função na direção do PT.
não mencionou o governador. Costa saudou
Lula, a pré-candidata do PcdoB à Presidência,
Manuela d'Ávila, mas ignorou Hoffmann. H offma1111,ao assumir, foi logo avisando
que, com ela, não haveria revisão dos
erros do passado. ''Não somos organização

A senadora do Paraná foi parar no comando


do PT meio por acaso. Não ambicionava
o cargo nem tinha experiência anterior na di-
religiosa, não fazemos profissão de culpa,
tampouco nos açoitamos. Não vamos ficar
enumerando os erros que achamos para que a
reção nacional. No começo de 2017, o partido burguesia e a direita explorem nossa imagem",
estava no fundo do poço. A derrota na eleição discursou, dando o tom de sua gestão. Hof-
municipal de 2016 tinha sido fragorosa, com fmann tem hoje mais respaldo entre os que
perda de 60% das prefeituras em relação à votaram em Lindbergh do que dentro do gru-
disputa anterior. O risco de um racha com a po que a apoiou na eleição interna. "A Gleisi
42 INFERNO PETISTA

no PT é uma grata surpresa. Melhorou muito


em comparação com o tempo da Casa Civil",
afirmou o deputado e ex-presidente da Câma- o
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ra Marco Maia, do Rio de Grande do Sul, que (!)


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apoiou Lindbergh. No período em que coman- ü
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dou a Casa Civil no primeiro governo Dilma, (!)
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Hoffmann, a presidente e a então ministra das ~


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Relações Institucionais, !deli Salvatti, formavam u.
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um trio que provocava arrepio em parlamenta- z
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res, pois estavam sempre com as portas de seus ~

gabinetes fechadas e negavam todos os pleitos. Petistas e antipetistas durante manifestação


Para se legitimar no comando do PT,
Hoffmann assumiu também uma defesa ca- milhão ao então diretor da Petrobras Paulo
nina de Lula. Muitas vezes coloca em práti- Roberto Costa para a campanha da mulher ao
ca essa estratégia de forma atabalhoada. Foi Senado naquele ano. A ação deve ser julgada
assim quando levou para o partido o slogan pelo Supremo Tribunal Federal em abril. Por
"eleição sem Lula é fraude". A palavra de ordem causa dessa acusação, Hoffmann dará um pas-
pode levar a legenda a um beco sem saída se o so atrás neste ano. Depois de oito anos como
ex-presidente for preso. Se o partido optar por senadora, decidiu concorrer à Câmara dos De-
um outro candidato, o famoso plano B, estaria putados, um caminho mais fácil para conquis-
referendando uma fraude. O único caminho tar um mandato e manter o foro privilegiado.
coerente seria o boicote às eleições, opção vista Em quatro eleições desde 2006 (duas para o
por muitos como suicida e rejeitada inclusive Senado, uma para a prefeitura de Curitiba e
por Lula. Depois que a crítica do ex-presidente uma para o governo do Paraná), Hoffmann
à palavra de ordem se tornou pública, o par- venceu apenas a de 2010.
tido passou a tentar apagá-la, mas os simpati-
zantes e movimentos sociais continuam pro-
pagando a mensagem.
Outro ato de voluntarismo pró-Lula teve me-
e om o cuidado de não fustigar publicamen-
te uma companheira, os dirigentes petis-
tas já decidiram que não será Hoffmann quem
nos efeitos políticos, mas gerou constrangimen- comandará a reação do partido em caso de pri-
to no mundo virtual. Em janeiro, Hoffmann são de Lula. Todos estão de sobreaviso para um
publicou no Twitter que o ex-presidente ha- chamado de emergência, via WhatsApp, a ser
via sido homenageado pela torcida do Bayern acionado tão logo saia um mandado de prisão
de Munique no Campeonato Alemão com contra o petista. Nesse caso, a ordem é ir até
uma faixa em que estaria escrito "Forza Lula". Lula para que, no ato de sua prisão, ele esteja
"Show de torcida!! Um apaixonado por futebol acompanhado pelo maior número possível de
como @LulapeloBrasil merece mesmo o cari- aliados. "A Gleisi é uma mulher aguerrida e
nho e a homenagem de torcedores no mundo combativa. Mas a reação e o comando da es-
todo. Recebi esta imagem, que mostra uma fai- tratégia do partido se o Lula for preso não de-
xa 'Forza Lula' na torcida do Bayern de Muni- verão ficar restritos à direção nacional", disse
que, ontem, na partida contra o Bayer Leverku- um interlocutor de Lula. A direção nacional
sen, pela Liga Alemã", escreveu Hoffmann. O continuará com a tarefa de divulgar manifes-
problema é que a imagem compartilhada pela tos, notas e vídeos. Mas a linha de frente do
senadora trazia na verdade a mensagem "Forza contra-ataque à prisão deverá ser assumida
Luca", numa referência a um torcedor italiano principalmente por expoentes das bancadas do
ferido no ano passado. A letra e estava enco- PT no Congresso, como os senadores Humber-
berta. A postagem foi posteriormente apagada. to Costa e Jorge Viana e os deputados Carlos
Voluntarismo e palavras de ordem não Zarattini e Paulo Teixeira. Os governadores
bastam na defesa de Lula no momento. A con- petistas também terão um papel importante,
juntura também exige trânsito no Judiciário especialmente no N ardeste, na disseminação
e Hoffmann enfrenta os próprios problemas do discurso petista de que a prisão seria injusta.
na Justiça. De acordo com a Procuradoria- O objetivo é manter vivo o nome de Lula como
Geral da República, o marido de Gleisi, o ex- candidato à Presidência. _______ _
ministro Paulo Bernardo, pediu em 2010 R$ 1 COM CATARINA ALENCASTRO
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No gabinete de Marielle Franco,


flores murchas, telefone
que não toca e um melancólico
cheiro de incenso no ar
por Leonardo Lichote
CRÔNICA DA DESPEDIDA

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46 CRÔNICA DA DESPEDIDA

II oi, meninos." A vereadora Marielle Franco


passava pelo portão do anexo da Câmara
Municipal do Rio de Janeiro e cumprimentava
os seguranças. "Sempre sorrindo, mesmo quan-
do estava séria", descreveu um deles. Em segui-
da, pegava o elevador até o 9° andar e chegava à
sala 903, seu gabinete. Encontrava-o repleto de
gente. Na maioria das vezes, mulheres - fun-
cionárias, voluntárias e pessoas que estavam ali
para ser atendidas, com pedidos de ajuda.
No ambiente, que já não era silencioso,
Marielle afirmava sua presença de mulher
grande, muito além de seu 1,80 metro. Falava
alto. Saudava com alegria a presença de comi-
da - e sempre, mesmo que tivesse acabado de
almoçar num rodízio, aceitava um pedaço a
mais, uma mordida. Sua presença se espalhava
na sala pelo cheiro do incenso de pau-santo, que
nunca deixava de acender. O barulho, a comida, as
mulheres, o cheiro. Reproduzia-se ali a casa de mu-
lher negra, de favela,sua origem. "Sabe casa de mãe
no domingo?",sintetizou uma integrante da equipe.
Por cinco dias, o gabinete ficou vazio, tran-
cado. Na última terça-feira, apenas o cheiro da çaneta remarca o que Marielle já havia afirmado
fumaça de pau-santo - aceso por uma colega com sua vitória na eleição (como quinta verea-
de gabinete de Marielle que entrava ali pela dora mais votada de uma Casa essencialmente
primeira vez depois do assassinato da vereado- masculina): "Lugar de mulher é onde ela quiser".
ra - remetia à vida que aquele espaço experi-
,
mentava ate uma semana antes.
A porta da sala está como Marielle a dei-
xou. Em volta da placa com seu nome, adesivos
A mesa de Marielle, em frente a sua cadeira
vazia, expõe o cruzamento entre as esferas
privadas e públicas de sua vida - um cruzamen-
cobrem quase todo o espaço livre - eventos, to que marcava sua atuação política. Lembran-
atos e causas: "Candelária nunca mais"; "Basta! ças de aniversários de crianças da família divi-
Contra a cultura do estupro"; "Direito à favela"; dem espaço com o livro A DefensoriaPúblicae
"Nossas vidas importam"; "Escola sem racismo, a atuaçãona defesada mulher e uma boneca da
machismo e LGBTfobia";"Neste Carnaval, meu Mônica, personagem de Mauricio de Souza -
enredo é liberdade"; "Nenhum beijo a menos". em referência à arquiteta Monica Tereza Benício,
Abrindo-se a porta, uma sala em L. Na pri- sua companheira por 12 anos. A estante ao lado
meira parte, as baias planejadas para que todos reflete as crenças da vereadora. Há representa-
pudessem se ver e conversar enquanto traba- ções de São Jorge e Nossa Senhora Aparecida ao
lhavam. A ideia de Marielle era que o ambien- lado de bonecas negras abayomi, feitas de pano.
te reproduzisse fisicamente o ideal de uma fala Quando estava no gabinete, ela se dividia
desierarquizada, plural. "Somos assim, somos entre o espaço reservado a ela e a parte comu-
mulheres, só sabemos fazer as coisas em roda, nitária da sala. Todo o ambiente carrega o calor
em ciranda", explicou uma das funcionárias do da ocupação intensa até dias antes (''Marielle era
gabinete. A formação da própria equipe unia um sol", descreveu uma funcionária. A janela
segmentos diversos da esquerda: gente do mo- com vista para o Theatro Municipal, as fotos na Ma rielle Franco
vimento negro, militantes LGBT,representantes cortiça, os objetos pessoais, os Post-its com lem- (acima), assassinada
da favela, feministas. bretes nos computadores, os documentos, um aos 38 anos, tinha
uma risada alta e
Na segunda parte da sala, a mesa grande que estandarte de um bloco de Carnaval encostado compartilhava a
se dividia entre espaço de reunião e de celebração num canto (que ninguém sabe muito bem como liderança com a equipe;
dos aniversários ou simplesmente do comparti- foi parar ali) seguem como estavam. Há pistas em seu gabinete,
acumulava adesivos
lhamento da comida. Ao fundo, uma saleta com da ausência, porém. Girassóis e rosas murcham das causas que
a mesa da vereadora. A placa pendurada na ma- num vaso. Telefones não tocam. abraçou (à dir.)
CRÔNICA DA DESPEDIDA 47

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(!)
Enquanto Marielle ocupou o gabinete, o te- sem papéis espalhados. Ao ouvir recentemente
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lefone tocava com frequência - inclusive seu o argumento de que era difícil manter tudo em
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número pessoal, que ela costumava dar a quem ordem num ambiente compartilhado por tanta
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chegasse pedindo ajuda, desde o tempo em que gente, Marielle sugeriu aos funcionários que eles
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atuava na Comissão de Direitos Humanos da tivessem pastas individuais para guardar seus
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<( Assembleia Legislativa do Rio. Procuravam o documentos e material de trabalho. Não teve
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gabinete com solicitações como o auxílio para tempo de implantar a ideia.
redigir um currículo. Ou até com desespera- A movimentação de Marielle no gabinete
dos pedidos de socorro, nos casos de mulheres não era discreta. Distribuía galhos de arruda
sofrendo violência doméstica ou tendo de lidar à equipe quando sentia que precisava barrar
com traumas graves ("Meu filho foi assassina- energias negativas. Tinha o costume de dar
do, estou enlouquecendo"; "Minha amiga foi tapas amistosos - o que não significava que
vítima de estupro e quer se suicidar"). Não era fossem fracos, pelo contrário. Reclamava da
raro aparecer alguém simplesmente com fome. bagunça em voz alta, da mesma forma como,
Nessas ocasiões, antes de qualquer conversa, sem esbarrar no autoritarismo, cobrava desem-
abria-se a geladeira, preparava-se um prato. penho. Podia ouvir em resposta, como piada,
Ao lado da geladeira, hoje, ainda se lê o aviso: ''olha a relação opressor-oprimido". Ria.
"Amoras e amores: atenção aos restos de comi- No gabinete, a intimidade de Marielle com
da". Ela não tolerava a desorganização. Cobrava sua equipe se revelava também de forma menos
que a equipe mantivesse o gabinete arrumado, espalhafatosa. Como no ato de chamar uma in-
tegrante da equipe à sala para conversar. A pauta,
revelou-se depois , não tinha nada a ver com tra-
o
balho. Ela queria apenas saber por que a funcio-
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(!)
nária estava triste e, mais do que isso, o que po-
o deria fazer na prática para ajudá-la. Era o tipo de
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liderança que assumia as responsabilidades sim-
~ bólicas e práticas do cargo, mas que também não
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tinha pudores em dividi-las. "Não sei o que fazer
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w com esse problema, me ajudem. Este mandato é
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o nosso", dizia. E, depois de cada pronunciamento
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na tribuna, sempre perguntava à equipe como
havia sido sua fala, em que poderia melhorar.

Q uando a sala 903 for reaberta em definiti-


vo, pouco restará de Marielle ali. Ela será
ocupada por seu suplente, João Batista Olivei-

• ra de Araújo, conhecido como Babá, também


do PSOL, que deverá assumir o cargo nas pró-
6 ximas semanas. Os depoimentos da equipe,
agora desfeita, sugerem que em algum lugar o
espírito daquele gabinete vai sobreviver:
"Quando soube da morte, pedi que ela
descansasse. Mas como uma mulher daquela
pode descansar?"
"Quando acabou o evento na Casa das Pre-
tas (na noite em que Mariellefoi assassinada),
ela me deu um tapão no braço e me disse, rin-
do: 'Não é porque você fez um evento bonito
desses q11evocê vai achar que não precisa mais
tra b alh ar, ne'?'"
..
"A gente precisa seguir, ela ia pirar se a gen-
te ficasse parado."
Na sala desocupada, o cheiro forte do
pau-santo resiste. __________ _


VIVI PARA CONTAR 49

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PRIMÁRIAAGREDIDA
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POR GUARDASAPÓS
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Ml\NIFESTAÇÃONA
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CAMARA MUNICIPAL
DE SÃO PAULO
por Luciana Xavier
em depoimento a Luiza Souto

rabalho com educação infantil há mos uma criança com limitações , a gente
14 dos meus 41 anos. Um dos nos- não consegue dar um bom atendimento. Já
sos desafios é enfrentar a falta de traba lh ei em escola onde o aluno não tinha
recursos , o sucateamento da edu- cadeira de rodas. Levávamos então no colo.
cação e a grande quantidade de A gente se vira nos 30, dá aquele jeitinho bra-
alunos dentro das salas. Às vezes, sileiro. Costumo dizer que a gente, em pri-
o professor tem de lidar com 45 estudantes meiro lugar, é médico, psicólogo, assistente
num mesmo espaço. Por isso , sempre partici- social. Se der um tempinho, a gente dá aula.
pei de manifestações e greves. Essa proposta da Previdência começou
Muitas de nossas reivindicações não são com o ex-prefeito Fernando Haddad, do PT
salariais, mas por condições de trabalho, in- (a versão inicial da reforma previdenciária em
fraestrutura , todo o aparato. Trabalho numa São Paulo, o projeto de Lei 621/2016, foi apre-
creche em São Mig11el Paulista, na Zona sentada por Haddad). Fizemos greve de 45
Leste de São Paulo. Neste ano, estou com 20 dias e acampamos em frente à prefeitura. Sur-
crianças de 2 anos n11ma sala. É muito por- tiu efeito. Desta vez, decidimos fazer greve a
que crianças nessa idade têm uma dependên- partir do dia 8 de março e programamos ma-
cia maior. Também nos manifestamos para nifestação na Câmara Municipal na quarta-
não perder direitos, como no caso dessa re- feira dia 14. Algumas pessoas acamparam no
forma da Pre vidência Social em São Paulo (o local. Levei minha barraca e cheguei às 10h30.
atual prefeito, o tucano João Daria, defende Para os professores acampados, reservaram
projeto de lei que prevê a elevação da contri- 20 senhas de entrada na Câmara. Eu peguei a
buição previdenciária dos servidorespúblicos de número 19. Mas havia outras categorias -
municipais de 11% para 14 % do salário a fim e às 11 horas já havia uma fila gigantesca.
de cobrir o déficitprevidenciário, que pode che- A Guarda Civil Metropolitana (GCM) es-
gar a R$ 8,4 bilhõesem 2020). É muito número. tava organizando a fila quando uma confu-
Somos números para todas as instituições. O são deflagrou. Fecharam o portão e mesmo
que vale é o financeiro. Mas , se não cuidar da quem tinha a senha não entrou. Começaram,
base, toda a estrutura fica comprometida. então, a forçar a entrada. E não tinha mais
Luciana Xavie r A creche de São Miguel Paulista fica num como negociar. Era sua vida que estava em
disse acreditar prédio antigo, que tem mais de 25 anos, e jogo. Jávínhamos de nove dias de greve. Es-
não ter sido atingida
sem que rer. "El es nunca passou por uma reforma. Não temos távamos cansados. Ninguém faz greve por-
. . ,,
miraram em mim rampa de acesso, por exemp lo . Se recebe- que quer e acha bonito. Greve não é bacana
50 VIVI PARA CONTAR

da. Podiam ter falado que eu estava exaltada, Na foto ao lado, Luciana
Xavier no momento em
agressiva. Estava exaltada mesmo. Era minha
que entrava na Câmara
vida em jogo. Que me empurrassem , então. Munic ipal de São Paulo
Eles poderiam ter me tirado dali pelo braço. ao lado de out ros
Agora, bater no rosto de uma pessoa? Não es- ma nifestantes para
protesta r contra
tava armada, nem com pedra. Como vou ofe- a reforma p revidenciá ria
recer risco a alguém? Eu tenho 1,60 metro. O proposta por Daria.
agente tinha, no mínimo, 1,80 metro. Abaixo , com o rosto
ensa nguentado,
Quando viram minha agressão, com mi- depois de se r at ingida
nha imagem no telão, a violência deflagrou po r um cassetete
de vez. Gritavam: "Tem uma professora en-
sanguentada". Perdeu-se o controle. Não sen-
ti dor na hora. Meu ouvido zumbiu. Só falei:
"Arrombaram meu rosto". Eu tinha certeza ,
para ninguém. Você fica sem trabalhar, os pela quantidade de sangue. Foi um choque
alunos sem atendimento. O professor fica para mim. Vinha de 45 dias de greve do go-
com seu lado psicológico destruído. verno anterior e não tinha passado por isso.
Os ânimos foram se acalmando, e decidi- Não estou defendendo o governo anterior.
ram então abrir para 150 pessoas entrarem. O Ele foi horroroso com a gente, mas nunca vi
combinado era transmitir, por telão, para os tamanha truculência.
demais. Como eu estava na linha de frente, gri- Jamais poderia imaginar que seria agredi-
tava: ''Tenho senha!". O guarda municipal dava da. Estava dentro de um espaço público. Eles
risada: ''O problema é seu. Vocês são culpados estavam ali para proteger o patrimônio. E o
disso tudo. Senha, agora, não vale, professora". ser humano, não?
Fomos entrando de um em um, depois de re- Meu.nariz foi fraturado, mas é melhor des-
vistados. O Choque da GCM estava lá nos re- cartar uma cirurgia porque ela seria muito
cebendo. Fiquei dentro da Câmara menos de invasiva. Tive uma boa recuperação. A narina
meia hora. Quando o relator (vereador Caio direita está mais entupida, ainda tenho dificul- o
Miranda, do PSB) começou a ler o PL, gritamos dade para respirar, mas o médico disse que vai ""
o
_,
(!)

palavras de ordem: «Retira o PL, é nossa vida passar. Posso ter de 5% a 10 % de comprometi- o
<(
(.)
que está em jogo!". Tinha um cordão da GCM mento respiratório nessa narina, mas o médi- z
.,,
(!)

onde o relator estava. Quando observaram que co achou que não compensa a agressividade de :'!:
<(
z
estávamos muito próximos ao relator, o Cho- uma cirurgia. Ele disse que sou dura na queda. w
cr:
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que da GCM entrou por trás, já com o cassetete O secretário municipal de Educação (Ale- l-
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levantado, mas não havia confusão generaliza- xandre Schneider)ligou para meu celular para ô
(.)
cr:
da. Como professor vai brigar com professor? saber se podia me ver e pediu desculpas. Disse: ~
::;
As outras categorias estavam todas de braços "Me desculpa, agradeço sua preocupação em o
(f}

dados. A gente tentava acalmar uns aos outros. me ver, mas não tenho condições psicológicas o
_J
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de estar perto de alguém que seja do governo".


esceram o cassetete - e foi direto em
D mim. Acredito que não fui atingida sem
querer. Miraram em meu rosto. Quando você
Ele é da Educação. Acredito que ainda tenha
algum sentimento pela gente. O ser humano
ainda tem cura. Talvez o Doria, não.
bate no rosto de uma pessoa, mira para acer- Ainda não fui ao Instituto Médico Legal
tar. Do contrário, bate no braço, na perna. Não (IML) fazer corpo de delito. Mas tenho 30
posso afirmar quem foi que desferiu o golpe , dias para isso, além de boletim médico. Mi-
mas vi um rosto branco, de óculos e pele rosa- nha ficha ainda não caiu. Pessoas perguntam
VIVI PARA CONTAR 51

sobre minha indignação. Eu respondo que paralelos. Sempre dei aula para a educação
estou focada na recuperação. Não consigo infantil. Tenho formação para o ensino mé-
ainda fazer um diagnóstico de tudo isso, até dio e para direção , mas meu foco é no infantil
porque estou evitando pensar sobre. Sou porque é lá que os hormônios estão em ebuli-
uma professora com saúde mental ainda es- ção, a criança tem um repertório aberto, não
truturada. Daqui para a frente, não sei como está engessada pelo sistema. Não tem esse ne-
vai ficar. As pessoas têm formas diferentes de gócio de que criança é tábula rasa. Elas nas-
lidar com problemas. Agradeço o apoio de cem meio prontas, predispostas a aprender.
muitos amigos e da família. Entro na sala de aula com a mesma paixão
As pessoas costumam dizer que ser pro- de sempre. Meus pequeninos precisam disso.
fessor ou médico é uma missão. Sou traba- Se eu não estiver bem psicologicamente, eles
lhadora como qualquer outro e quero receber não estarão. Tenho de oferecer o melhor. A
por isso. Prestei concurso com 220 mil pes- criança já chega com uma estrutura social
soas e consegui uma vaga. Quero ser recom- arrebentada. Se eu for embrutecer, esse ser
pensada. Meu salário-base está entre R $ 3,5 humano também irá. Aí estará tudo perdido.
mil e R$ 4 mil. Trabalho 30 horas por semana. Ser professor acabou se tornando uma
O professor estuda a vida inteira, está cui- profissão compensatória. Os alunos estão
dando e educando pessoas de zero a 17 anos. indo para a escola não para receber forma-
Qual o problema em ganharmos bem? ção, mas com carência social e afetiva. A so-
Sou de família humilde. Meus pais são nor- ciedade está desestruturada e desemboca na
destinos, da Paraíba e de Pernambuco , mas escola. O que a criança não tem dentro de
nasci em São Paulo, na Vila Mariana (Zona casa, eu preciso compensar e, se der tempo,
Sul). Minha história é como a de muitas famí- ser professora.
lias nordestinas que vieram para São Paulo em
busca de oportunidade. Meu pai nos susten-
tava com trabalho de pedreiro e pintor. Ele só
estudou até a 4A série. Minha mãe nem fez o
A inda vale ser professora. Queria muito
que os jovens não desistissem. Só que
educar custa caro. Quem tem educação pú-
primário. Era do lar. Então eu só tinha condi- blica de qualidade vai reivindicar seus direi-
ções de estudar em escola pública. Eles tenta- tos. Educação incomoda. Acredito que a de-
vam fazer de tudo para oferecer cursos parale- manda da repressão é de acordo com a força
los, como de inglês, e manter o material intacto. do movimento. Se recebi essa cassetada é
Meu pai encapava todos os cadernos e livros. porque o movimento está forte e os profes-
Em 1996 , eu me formei no magistério. Te- sores estão incomodando. Não vamos recuar.
nho uma graduação, além de outros cursos Doria mandou bater no nariz errado. ----

OUTRO LADO:
A Secretaria de Segurança Pública
disse que a interv enção da Polícia M ilitar,
do lado de fora da Câmara Municipal,
foi necessária devido ao tumulto.
A assessoria de imprensa da presidência
da Câmara Mun icipa l de São Paulo
disse que a confusão começou
após os manifestantes avançarem
contra os vereadores e jogarem garrafas
d'água contra os parlamentares, com
o objetivo de "imp ed ir à força a leitura
do relatório sobre o PL 621 ". De acordo
com a Câmara Municipal, o inqué rit o
policial vai apurar o ocorrido e os
danos causados pelos manifestantes
ao patrimônio público. O prefeito João
Doria lamentou o incide nte e criticou
a violência dos do is lados. Afirmou que
a Guarda Civil Met ropolitana instaurou
inquérito para apurar os fatos.
52

• • mbolle@edglobo.com.br

MONICA DE BOLLE É DOUTORA NEUROLIBERALISMO


EM ECONOMIA E PROFESSORA DA JOHNS
HOPKINS UNIVERSITY, EM WASHINGTON E NEURODESENVOLVIMENTISMO

e ada país tem as contradições políticas que merece,


mas todos têm ao menos algumas contradições. Há
dez anos, o cientista cognitivo e linguista George Lakoff
em novembro do ano passado. Os mais extremados de-
fensores dessa direita "nascida de novo" são capazes de
proferir absurdos como "bandido bom é bandido morto"
publicou A mente política, obra que apura as incoerên- e outras vituperações contra os direitos humanos.
cias do posicionamento político a partir do entendimen- Mas, se um lado é humanista na área social e o outro
to de como funciona a mente humana , repleta de vieses contrário a certas liberdades individuais que transgridam
inconscientes. O livro é interessante sobretudo por estar sua percepção de "moral e bons costumes", as visões de
repleto de vieses inconscientes do próprio autor. Con- ambos sobre a política econômica são incompatíveis com
tudo, expõe tese bastante intrigante: como a maioria de o que defendem. O partido da vereadora cruelmente assas-
nossos pensamentos são inconscientes e automáticos, sinada se diz anticapitalista, antiliberal, contra reformas
reflexo de comportamentos enraizados e reações emo- urgentes como a da Previdência. O capitalismo tem lá seus
cionais subjacentes, são esses pensamentos que formam problemas, mas não parece que qualquer outro regime te-
nosso posicionamento político, não o raciocínio cons- nha conseguido superá-lo até hoje. A necessidade da refor-
ciente. Por isso é a política tantas vezes quase uma pro- ma da Previdência é incontestável, ainda que a de Temer,
fissão de fé - nossa postura está estruturada sobre ba- com sua desidratação e preservação de privilégios, longe
ses demasiado inflexíveis para que sejam alteradas pelo estivesse de qualquer coisa razoável. Economias de mer-
exercício da razão pura. cado bem geridas e reguladas já se mostraram capazes de
Há tempos venho pensando sobre o que nos torna tão redistribuir renda e de sustentar redes de proteção social
polarizados. O tema ficou para mim mais intrigante e de- compatíveis com as ideias defendidas pela esquerda. Ao
primente , em igual medida, após a morte brutal da verea- mesmo tempo, o liberalismo circunscrito à economia e im-
dora carioca e de seu motorista. Fui buscar algumas de pedido nas escolhas individuais é a negação de si próprio.
suas falas e posições, fui aprender um pouco mais sobre a
política Marielle Franco. Em entrevista relativamente re- Tais contradições da esquerda
cente, falava ela sobre sua relação com a única outra verea- e da direita brasileira, hoje, do
dora negra da Câmara do Rio de Janeiro, Tânia Bastos, do progressismo social com retrocesso
PRB. Sobre a pauta da violência contra a mulher, dizia Ma-
rielle que ela e a companheira do Legislativo conseguiam econômico e de razoáveis visões
dialogar. Contudo, em relação ao aborto, à homossexua- sobre a economia com o que
lidade , à legalização do casamento entre pessoas do mes- há de mais reacionário no campo
mo sexo não havia a menor possibilidade de convergência,
apesar das identidades semelhantes das duas mulheres. social, são o retrato do Brasil.
Arrematou Marielle: "É muito mais difícil ser uma mulher São, também, a radiografia dos vieses inconscientes que
do campo progressista com pautas que são tão duras". determinam o debate político no país, dos pensamentos
O sentimento de alienação é visto, também, na nova subjacentes movidos por emoções e convicções que não
direita que despontou no Brasil após os protestos de 2013. respondem ao raciocínio lógico.
Esses grupos acreditam que a esquerda tem o monopólio Há muito espaço para que entre o neuroliberalismo
da arte, da educação, da cultura, da política - sentem-se e o neurodesenvolvimentismo surjam propostas que
sub-representados em todas essas áreas. Contudo, alguns unam o que há de melhor nos dois lados: progressismo
de seus integrantes acham correto que pessoas que não na área social com prudência e racionalidade na condu-
concordem com sua visão de mundo sejam impedidas ção da política econômica. Espantoso é que não exista
de participar de eventos públicos - caso da escritora e uma pessoa sequer para ocupar o vácuo repleto de órfãos
filósofa Judith Butler no episódio do Sesc de São Paulo da política brasileira. _____________ _
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O diretor editorial da revista


El Estornudo,Abraham Jiménez
Enoa, explica por que a imp nensa
inqepen~ente na ilha é forte·
por (uçâ:s~oretzsohn ••
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os 29 anos, Abraham Jiménez Enoa é diretor editorial da revista digital


A E/ Estornudo ( O Espirro) e um dos expoentes do jornalismo independente
de Cuba . O veículo recebeu o Prêmio Gabriel García Márquez de Jornalismo
em 2017, na categoria texto, pela reportagem "História de um pária" - sobre
a travesti Farah, "o f ilho não desejado da Revolução" . No f inal de fevereiro,
foi alvo de um bloqueio de acesso a seu site, implementado pelo governo .
A publicação adota um tom crítico sobre a situação social na ilha, e, apesar
da censura recente, o jornalista vê um futuro promissor para a imprensa al-
ternativa em Cuba.
CUBA ÜBERALLES 55

Como se faz jornalismo em Cuba? Quem quiser fazer um jornalismo sé-


rio e de qualidade poderá fazê-lo realmente em Cuba. Nesta semana, cumpr i-
remos n a El Estornudo dois ano s on- lin e de maneira independente. Isso não
signifi ca que esse tempo ten ha sido fácil, nem que basta só empe nh o. Signifi ca
que é possível, está ao alca n ce de todos. Sempre ha verá pressões, travas por
parte do governo, pois o aparato midiático em Cuba está desenhado e pensado
para imp ed ir que a realid ade aflore n a impr ensa e para que o que impere seja
a visão tend en ciosa e manipulada do Estado. Mas, em Cuba, ninguém te dará
um ti ro na cabeça por fazer jornalismo n em te perseguirá para deixar essa
vida. Ca da jornalista decide se quer se soma r ao cir co da impr ensa oficial ou
aos novos ares da impr ensa ind epe nd ente.

Como E/ Estornudo faz oposição ao governo? Nestes dois anos deixa-


mos claro que no ssa única intenção é realizar um bom exercíc io da profissão.
Não temos pretensões de derrubar o gover no nem de ena ltecê- lo. Nós simpl es-
mente fazemos um jornalismo sem preconceitos de qualquer tipo de militân-
cia política. Quando há que cr iticar, cr itica-se. Quando há que lou var, lou va-se.
A realidade é uma, e o jornalismo também é um. E é preciso vê-los assim. A
impr en sa independente em Cuba é hoje um reflexo do que estão padecendo os
cubanos: uma imp aciên cia atroz por desp ir a realidade.

Como os cubanos burlam as dificuldades de acesso à internet? O pró-


prio cot idi ano dos cubanos forneceu meios para evad ir marcos legais. A estre ite-
za econôm ica, a fome, a desconexão tec noló gica etc. fizeram com que os h abitan-
tes da ilh a criassem um un iverso paralelo onde conv ivem felizmente com tudo
que é negado pelo governo. Ali, nesses esconder ijos, os cuba nos podem comprar
até 10 quilos de carne bovina ilegal ou acessar sites bloqueados na internet, por
meio de proxies. Os telh ados das cid ades estão ch eios de conexões ilegais de sa-
télite in sta ladas a partir do exter ior, e isso provoca um fluxo de in form ação não
oficial que o governo não pode cont rolar.

Ainda há espaço para o controle estatal dos meios de comunicação?


Os m eios ind epende ntes em Cuba lega lm ente n ão podem exist ir . Segundo as
leis cuba n as, o sistema de impr en sa tem de estar subord inado e coor denado
obrigatoriamente pelo gove rno . Então os meios de impr en sa que não faça m
parte desse aparato oficial , de alg 11m modo, estão violando as leis . Mas em
Cuba as leis não se cu mpr em, e, por isso, os m eio s independentes ex iste m .
Portanto, se você in comoda co m se11trabalho ou toca em temas sensíve is, po-
dem aplicar a lei ou simpl esme nte deixar cair sobre você o peso in exoráve l da
cen su ra. Diria que cada vez m ais os meios ind epe nd entes são con sumidos em
o
,<(
Cuba, pela visão que t r aze m do país. Mas todos os veícu lo s ind epe nd entes
i_,
::,
são di gita is. Com o acesso limi tado à inter net que ainda h á no país, os meios
>
o estatais cont inuam sendo os mais consu mido s.

Ainda há assuntos proibidos em Cuba? Não acred ito. Nós em El


Estornudo temos sido bem severos com políticos e situações pontuais que
ocorrem na ilh a. Falamos de Fidel Castro, seu irm ão Raúl, barbaridades
governamentais. Acontece que, no fina l, o governo te m o poder e a capac i-
dade arb itrár ia de censu r ar, e isso de certo modo imp ede que os conteúdos
cheguem a seu fim. Mas, no final, os cuba no s sempre acabam burlando a
Jiménez Enoa diz cen sura. Vejo mui tos mais veícu lo s cir cu lando no futuro, te n ta ndo mos-
que sua revista eletrônica trar todas essas Cubas que ex istem. O que ve mo s hoje era imp ensável há
tem sido severa com
políticos e autoridades cin co anos. Acredito que isso n ão tem recuo, e cada vez m a is a impr en sa
do país ind ependente abrirá espaço. __________________ _
56 FANTASMAS HISPÂNICOS

Na América Latina, a história de


assassinatos políticos é longa e sangrenta
por Ariel Palacios

"Eles estão nos matando. Não ao silêncio", protestaram poucos manifestantes na Cidade do México, no ano passado, em reação a morte de jornalista

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FANTASMAS HISPÂNICOS 57

N o dia 1 º de julho, os mexicanos irão às urnas para esco-


lher um novo presidente da República, 128 senadores e
500 deputados, além de prefeitos e governadores. Desde o
disse. Uma semana depois, Colosio foi assassinado a tiros
I
em um com1c10.

Diversas teorias circularam sobre o assassinato de Co-


início da campanha eleitoral em setembro passado, foram losio. Uma delas dizia que Salinas de Gortari ordenara sua
assassinadas 63 pessoas, entre candidatos a prefeitos e ve- execução porque o candidato "había salido del huacal" ("saí-
readores, além de assessores desses. ''A média é de um assas- do da caixa de verduras", expressão para dizer que alguém
sinato de candidato a cada quatro ou cinco dias. É um grau virara a mesa). Nos anos seguintes, 15 pessoas vinculadas
de violência inaceitável em um processo eleitoral", disse, ao caso Colosio foram mortas. Seu assassinato foi um dos
alarmado, o secretário-geral da Organização dos Estados fatores que levaram ao fim da hegemonia do PRI no país. No
Americanos (OEA), Luis Almagro. A violência política é ano 2000, o partido perdeu a Presidência para a oposição
um clássico do México. Seu primeiro imperador, Agustín 1, pela primeira vez. O caso Colosio continua a render desdo-
foi fuzilado sem julgamento quando voltou do exílio em bramentos 24 anos depois. Em 17 de março, a Procuradoria-
1824. Segundo a Associação Nacional de Prefeitos, mais Geral da República desmentiu que a Interpol teria provas de
de 100 prefeitos foram assassinados desde 2006. Em 2014, que Salinas de Gortari ordenara o assassinato.
em Guerrero, na Região Sudoeste do país, 43 estudantes de No Paraguai, em 1999, o vice-presidente Luis María Ar-
uma escola com tradição de esquerda sofreram uma em- gana foi executado a bordo de sua caminhonete. Seus aliados
boscada, foram executados e seus corpos nunca chegaram a sustentaram que o corpo de Argafia havia ficado "com mais
ser encontrados. No ano passado, 12 jornalistas mexicanos furos do que um queijo gruyere". Mas a autópsia só registrou
foram assassinados e, desde o ano 2000, acumulam-se 100 duas balas no corpo. O motorista sobreviveu sem levar um
assassinatos de jornalistas devido a seus trabalhos (em ape- tiro sequer. A seu lado, o guarda-costas morrera empapado
nas três casos os responsáveis foram condenados). em sangue. Na ocasião, o advogado de Argafia afirmou que
Os assassinatos ocorreram em contextos de lutas parti- os assassinos eram jagunços brasileiros enviados pelo presi-
dárias de poder e disputas entre narcotraficantes e grupos dente Raúl Cubas Grau e pelo general Lino Oviedo. Uma das
paramilitares. O mesmo cenário se repete em vários países teses sobre o crime, ainda sem solução, aponta Oviedo como
da América Latina. Na Colômbia, onde os eleitores foram o mandante do crime, já que Argafia ameaçava levá-lo à pri-
às urnas em 11 de março para escolher um novo parlamen- são. O assassinato de Argafía provocou a renúncia de Cubas
to e votarão, em 27 de maio, no primeiro turno da eleição Grau e a fuga de Oviedo do país. Outra tese para o assassi-
presidencial , 31 políticos foram assassinados até a primeira nato é que Argafia teria sido morto por pessoas do próprio
semana de março , segundo a Missão de Observação Eleito- partido interessadas em prejudicar Oviedo.
ral. Além disso, ocorreram 11 atentados (sem mortes). Em
2017, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Direitos Humanos, ocorreram 441 ataques a políticos e
líderes sociais colombianos, que resultaram em 121 mortes.
N a Argentina, a política foi abalada no dia 18 de janeiro
de 2015 pela morte - em estranhas circunstâncias -
do promotor federal Alberto Nisman. O corpo de Nisman
Durante meio século, a guerrilha das Pare foi protago- foi encontrado com um tiro na cabeça em seu apartamento.
nista da violência política na Colômbia. Em 2017, o grupo Ele se preparava para denunciar a então presidente Cristina
se desmobilizou depois da assinatura de um acordo de paz Kirchner de acobertar, em troca de suculentos acordos co-
com o governo de Juan Manuel Santos. Vários ex-integran- merciais, a participação de altas autoridades do Irã no aten-
tes das Pare, que pretendiam entrar na política depois que tado contra o prédio da Associação Mutual Israelita Argenti-
a guerrilha virou partido, tornaram-se alvo de violência e na (AMIA), em Buenos Aires, que causou 85 mortes em 1994.
foram assassinados. Segundo relatório da ONU, "aparente- Várias evidências apontam para negligências no caso. Os
mente as vítimas foram assassinadas por apoiar políticas de- guarda-costas de Nisman só entraram em seu apartamento,
rivadas do Acordo de Paz, bem como por respaldar a subs- apesar de o procurador não responder ao telefone, após 12
tituição de cultivas ilícitos (coca)".A ONU diz que grupos horas de espera. Os policiais limparam com papel higiênico
paramilitares estão por trás da maioria desses assassinatos. o sangue que cobria a arma. O corpo foi movido da posição
(/)
w A América Latina tem também uma longa história de original. Nas primeiras horas depois de o acharem, mais de
~
:::; casos de assassinatos de lideranças políticas que nunca 60 pessoas passaram pela cena do crime, sem usar calçados
>-
1-
t:; foram resolvidos. É o caso da morte do candidato presi- especiais, e pisotearam as poças de sangue. Enquanto os po-
Q
1-
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w
dencial mexicano Donaldo Colosio em 1994, em meio a liciais bebiam chimarrão na cozinha, alguém no apartamen-
1-
z
o uma grande crise econômica no país. Seu partido , o PRI, to mexeu no computador de Nisman e apagou informações.
()
z havia definido que Colosio seria o candidato à sucessão O governo Kirchner tentou argumentar que se tratava de
~
_,
do presidente Carlos Salinas de Gortari - com quem ele um suicídio. No final do ano passado, quase três anos após a
~> tinha profundas divergências. Em 16 de março, Colosio morte de Nisman, o juiz federal Julián Ercolini a enquadrou
cr
o
t
,N
fez um discurso exigindo mudanças na política neolibe- como um assassinato. Ainda não se sabe, porém, quem foi o
w
:i: ral do presidente. "O povo tem fome e sede de justiça", autor do crime nem o mandante. _________ _
58

• • • prpires@edglobo.com.br

PAULO ROBERTOPIRESÉ JORNALISTA TORQUATO


E PROFESSORDE COMUNICAÇÃO DA UFRJ
UMA VEZ MÁIS

esde 1972, quando aos 28 anos firmou o inapelável Buscava a margem da margem, testando sempre os
D "Pra mim chega" no bilhete de despedida, Torquato
Neto ronda a cultura brasileira da mesma forma errática
limites da dissidência. Quando, por exemplo, se debatia
o Cinema Novo quase como um consenso, ele apontava
com que viveu. De lá para cá, já foi tratado como mal- para o udigrúdi e, mais além ainda, exaltava o super-8,
dito, mártir , gênio. Ficou esquecido, virou moda. Suas formato em que forjou sua imagem mais marcante - não
músicas foram regravadas, ele ganhou parcerias pós- a de crítico eventual (de paixão godardiana) ou de dire-
tumas. Foi, enfim, vítima de reiteradas "redescobertas", tor frustrado, mas encarnando, como ator improvisado, o
como se a "tropical melancolia" que nomeou e encarnou protagonista de Nosferatu no Brasil, de Ivan Cardoso.
não estivesse sempre lá, face sombria e indissociável da As sequências de Torquato-Nosferatu percorrem todo o
estridência tropicalista. Quando se comemoram os 50 filme como uma assombração. Não são poucas as suges-
anos de Tropicália, disco que é resumo e pedra funda- tões, nos depoimentos, de que ali, na figura sinistra emula-
mental do movimento, Torquato volta uma vez mais, da de um filme B, ele projetava os demônios que levariam
agora como tema de Torquato Neto - Todas as horas do a seu suicídio. E, a sua revelia, claro, a uma ostensiva mi-
fim, documentário que mergulha sem hesitação em seu tificação. Tese de certa forma encampada pelos diretores
complexo universo estético sem precisar perder tempo ao desentranhar o título do documentário de um verso de
justificando sua óbvia e decisiva importância. "Cogito", talvez seu poema mais conhecido: eu sou como eu
O filme de Eduardo Ades e Marcus Fernando não é sou/vidente/e vivo tranquilamente/todas as horas dofim.
para principiantes. Abre mão do didatismo, que facilitaria Discordo, no entanto, da interpretação, muito di-
a introdução de seu personagem a novas gerações, mas não fundida, de que em retrospecto a vida - e sobretudo a
da cronologia, fundamental para entendê-lo. A inquieta- obra - de um artista suicida seja uma coleção de sinais
ção que levou o adolescente de Teresina para Salvador, de do fim voluntário.
lá para o Rio de Janeiro e do Rio para o mundo deixa como
rastros tudo o que foi criado nesse trânsito permanente: Pelo menos no caso de Torquato,
letras lapidares como a de "Pra dizer adeus", poemas expe- a autodestruição parecia
rimentais, diários angustiados, cartas amorosas, a colabo-
ração com Hélio Oiticica, temporadas em sanatórios. ser resultado dos impasses
Em off, amigos notórios e anônimos ajudam a contar dessa obsessão pelo movimento,
essa história, pontuada por textos do próprio Torquato pelos rompimentos.
lidos pelo ator Jesuíta Barbosa. Na tela, imagens de época,
imagens que reverberam em sua obra e muitas outras, iné- Isolado dos tropicalistas, autoexilado 11aEuropa ou inter-
ditas ou raras, do poeta. Ouve-se ai11da uma entrevista, nado por vontade própria, ele jamais separou a vocação de
só descoberta em 2014, que é o único registro sonoro que arquiteto, comum a todo criador, do impulso demolidor, vi-
se tem dele. E, é claro, trechos de discretas obras-primas vendo no arco tensionado por essas duas forças poderosas.
como "Geleia geral", "Nenhuma dor" , e "Marginália 11". A mão delicada que escreveu ser mãe/é desdobrarfibra
Essa imersão segue um caminho apontado pelo pró- por fibra/os coraçõesdos filhos é a mesma que, parodian-
prio personagem: "Estar bem vivo no meio das coisas é do Carlos Drummond de Andrade, traçou aquele que
passar e, de preferência, continuar passando". Foi assim, é ainda hoje seu retrato mais bem-acabado, o do poe-
abrindo caminhos, em constante movimento, que ele ta visitado por um anjo muito louco, torto que anuncia
experimentou as diversas formas de expressão artística, seu destino: eis que esse anjo me disse/apertando minha
os vários parceiros (Gil, o mais constante, Caetano, Edu mão/com um sorriso entre dentes/vai bicho desafinar/o
Lobo), as cidades, os estados de consciência. coro dos contentes ______________ _
60 ALÔ, ALÔ, MARC IANO

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por Renato G ran d e lle

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QUEM E O FISICO BRASILEIRO


QUE PARTICIPADAS PESQUISAS
NA NASA PARAA COLONIZAÇAO
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DO PLANETAVERMELHO

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ALÔ, ALÔ, MARCIANO 61

físico Ivair Gontijo tira de dentro da mochila uma camisa polo preta,

º cuidadosamente dobrada, com um grande sí.mbolo colo-rido do Mars


2020, o programa da Nasa responsável pelas próximas missões para Marte.
Três frases escritas em torno da ilustração resumem qual será seu trabalho na
próxima década: buscar sinais de vida passada, coletar amostras de rochas e
preparar caminho para os humanos.
Mineiro de 57 anos, Gontijo destaca-se na agência espacial americana
por seu trabalho no Planeta Vermelho. Foi o líder da equipe que constrt1iu
o mecanismo principal do radar usado na descid .a do Curiosity, o robô que
circula pela superfície marciana em busca de sinais que apontem se o plane-
ta abrigou vida em algum momento.
Desde sua chegada a Marte, em agosto de 2012, o Curiosity enco11trou
rochas que indicam a pr~sença de todos os ingredientes necessários para a
formação da vida - carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo e
enxofre. Oficialmente, a missão do robô já foi encerrada, mas esse laborató -
rio ambulante de 900 quilos continua a rodar em uma cratera que, dezenas
de milhões de anos atrás, foi um lago com água potável, abastecido por
chuvas. Também há registro de neve na região. Esses fenômenos naturais
aumentam a possibilidade de ter existido vida no planeta.

Com 900 quilos,


o Curiosity descobriu
elementos que ihdicam
a possibilidade de ter
existido vida em Marte

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62 ALÔ, ALÔ, MARCIANO

O s cientistas não sabem, porém, se houve


tempo de isso acontecer antes de o pla-
neta se tornar árido, frio e morto, o que ocor-
pessoas", explicou. ''São culturas diferentes.
Trabalho agora com grupos da Espanha, da
França e do México. Represento a todos quan-
reu dezenas de milhões de anos atrás. En- do converso sobre os projetos para o próximo
quanto buscam essa resposta, já enfrentam o veículo espacial. E não tenho autoridade sobre
próximo desafio: descobrir se o planeta tem eles. Minha função é arrebanhar gatos. E gato
condições de receber uma colônia humana. não quer formar rebanho."
A pergunta que Gontijo mais ouve é como Gontijo trocou a fazenda pelo curso de físi-
foi parar na agência espacial americana. Por ca na Universidade Federal de Minas Gerais, em
causa disso, escreveu o livro, recém-lançado, Belo Horizonte, local também de seu mestrado.
A caminho de Marte - A incríveljornada de O doutorado foi na Escócia, antes de rumar
um cientista brasileiroaté a Nasa (Ed. Sextan- para a Califórnia, onde projetou lentes para
te). Até chegar à Universidade da Califórnia cirurgias de catarata. Finalmente, em 2006,
em Los Angeles, há dez anos, o físico minei- conseguiu emprego como prestador de serviço
ro circulou por boa parte do interior de seu da Nasa. "Fui contratado para trabalhar com
estado e acumulou experiências profissionais lasers, a minha especialidade, área em que fiz
muito distintas de seu currículo mais recente. meu doutorado. Mas depois de uma sema11a
Entre os nove filhos de Sebastião Gontijo me deram a função extra de liderar o grupo
e Silvia Maria de Jesus, Ivair Gontijo é o do que iria construir os transmissores e receptores
meio. Nasceu em Moema, a 170 quilômetros do radar que controla o pouso do Curiosity."
de Belo Horizonte. Seu único contato com A partir de então, Gontijo ficaria respon-
a cidade natal, onde ainda vive uma irmã, é sável pelo equipamento criado para medir a
por meio de espiadas ocasionais no Google distância entre o veículo e o solo marciano,
Earth. Quando tinha apenas 5 anos perdeu além da velocidade de descida. Essas infor-
o pai, vítima de um derrame. A mãe vendeu - eram essenc1a1s para o pouso suave
maçoes
então todos os animais, alugou a fazenda da das rodas do Curiosity. Se o cálculo desse erra-
família e mudou-se com os filhos para a casa do, o veículo de US$ 2,5 bilhões iria se espati-
que tinham em Moema. Três anos mais tar- far em solo marciano.
de, Gontijo foi chamado por um irmão para
visitar o vizinho. A casa estava abarrotada de
gente. Viam Neil Armstrong pisar na Lua. Era
a primeira vez que Gontijo assistia à televisão.
F oram necessários cinco anos , até 2011, para
que o Curiosity estivesse completo e co-
meçasse sua viagem para Marte. É o primei-
Naquela época, ele conciliava os estudos ro - e, até agora, o único - veículo espacial
com trabalhos no fim de semana e nas férias. trabalhando no planeta. Tem braços mecâni-
Foi engraxate por dois anos, até conseguir cos com broca, câmera, uma pá para coletas
uma oportunidade melhor: encher saquinhos de amostras e um instrumento para medidas
de plástico com sementes de café, acompa- com raios X. "Já mostramos tudo o que nos
nhadas por uma mistura de terra, esterco de pediram. Agora é bônus", comemorou.
vaca e adubo. Ainda menor de idade, foi ser- Apesar da pilha de dúvidas, Gontijo está
vente de pedreiro e funcionário de uma fábri- convicto de que, com a tecnologia que será
ca de camas. Aos 19 anos, tornou-se gerente desenvol v ida nos próximos anos, Marte será
de uma fazenda de 7.000 hectares - o equi- a melhor opção para nossa "segunda morada".
valente a 7 mil campos de futebol - no norte "Ou ele ou as luas de Saturno - Enceladus e
do estado, um local sem energia elétrica a 100 Titã - ou uma das luas de Júpiter - Europa.
quilômetros da cidade mais próxima, Pirapo- Mas elas representam um desafio maior por
ra. Todas as manhãs conversava com os donos estarem mais distantes e serem completamen-
da propriedade, mas, na prática, era ele quem te geladas. Em Europa existe radiação demais ,
comandava os 250 funcionários - experiên- com a capacidade de destruir até equipamen-
cia que diz lhe ser útil até hoje. tos eletrônicos. Nosso corpo não sobreviveria
"O que liga todos esses trabalhos ao meu mais do que alguns minutos", afirmou.
atual é como lidar com gente. Na Nasa, estou Vênus, nosso outro vizinho, também está
sempre à frente de situações complexas e pre- fora de cogitação. Sua atmosfera é composta
ciso tomar decisões difíceis em pouco tempo, quase só de gás carbônico e tem uma pressão
mas a função mais complicada é lidar com as cerca de 100 vezes maior do que a registrada
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lvair Gontijo liderou o


grupo que construiu
os transmissores e
ao nível do mar na Terra. Isso cria um efeito
estufa tão intenso que a temperatura na su-
perfície é de cerca de 467 graus célsius, o sufi-
A iniciativa privada resAolv:u também
concorrer com as agencias governa-
mentais. O maior interessado é o fundador
receptores do radar
que controlou o ciente para derreter chumbo. da SpaceX, Elon Musk. O bilionário do Vale
pouso da engenhoca Um dos responsáveis pela construção do Silício quer fazer pelo menos dois voos
dos novos veículos espaciais que chegarão a não tripulados até 2022 e uma missão com
,
Marte, Gontijo calcula que o Planeta Verme- astronautas ate 2024.
lho poderá receber seus primeiros visitantes Em debate no início do mês na conferên-
humanos nas próximas décadas. As colônias cia South by Southwest, realizada em Austin,
permanentes seriam possíveis, do ponto de Texas, o dono da SpaceX afirmou que a co-
vista técnico, algum tempo depois: "Se va- lonização de Marte se torna ainda mais im-
mos mesmo colonizar Marte tão rápido as- portante em razão da possibilidade de uma
sim, isso depende de muitos outros fatores guerra nuclear. Em sua visão, se acontecer
não científicos e tecnológicos". um conflito mundial, é preciso "garantir que
existam sementes da civilização humana em
algum outro lugar, para trazê-las de volta"
U m deles é a corrida espacial. Outros paí-
ses já manifestaram se11desejo de enviar
missões a Marte. A China, por exemplo, quer
quando for possível.
Os desafios de Musk são muitos. Seu
enviar um veículo semelhante ao Curiosity plano de criar uma cidade em Marte depen-
em 2020. Para isso, está construindo 11ma de, por exemplo, da escolha de explorado-
base de treinamento no Deserto de Gobi, res que tenham uma resistência maior à ra-
uma região desolada a cerca de 3.000 metros dioatividade do que aquela que os humanos
acima do nível do mar, onde a erosão pro- normalmente apresentam. Isso porque não
vocada pelo vento a deixou com feições que estarão protegidos pelo campo magnético
lembram a superfície do Planeta Vermelho. da Terra, que funciona como um escudo
Além dos pesquisadores, os turistas também protetor contra a radiação do Sol. Cientis-
terão a oportunidade de explorar o local. A tas já estudam a possibilidade de que, no
ideia é deixar que andem por lá com imita- futuro próximo , a edição genética contri-
ções de trajes de astronautas e que passem bua para esse avanço.
um tempo em pequenas cabines, simulando A maioria dos engenheiros e cientistas -
uma jornada marciana. A União Europeia e Gontijo, entre eles - avalia que Musk não
a Rússia prometem lançar um veículo para conseguirá cumprir os prazos ambiciosos de
Marte também em 2020. Uma das maiores seus projetos. O certo é que, diante do fas-
inovações de seu programa, o ExoMars, teria cínio provocado pelo Planeta Vermelho e da
a capacidade de perfurar o solo do planeta a possibilidade de orçamentos generosos, Marte
até 2 metros de profundidade. nunca esteve tão próximo da Terra ____ _
por Rafael Ciscati
BISCOITO RECHEADO 65

A QUIXOTESCALUTACONTRA ALIMENTOS
PROCESSADOSRENDEUAO PESQUISADOR
BRASILEIROCARLOS MONTEIRO O RESPEITO
DOS COLEGASCIENTISTASE O ÓDIO
DOS GIGANTESDO SETORALIMENTÍCIO

hotel Sheraton, em Buenos Aires, ocupa nal. Monteiro mostrou, ao estudar os hábitos

º um espigão de vidro na Calle San Martín,


com vista para o Rio da Prata, em uma região
alimentares no Brasil e em países desenvolvi-
dos, que a incidência de obesidade aumentava
nobre da cidade argentina. Conta com os lu- conforme o consumo desses alimentos crescia.
xos típicos de um hotel cinco estrelas, cujas Era uma relação que a intuição dos nutricionis-
diárias chegam com facilidade a R$ 900 - spa, tas havia anos apo11tava- e que ele conseguira
piscina, salas de reunião cobertas com painéis provar com rigor científico.
de mogno. Em outubro passado, o professor Além dos ultraprocessados, Monteiro divi-
Carlos Monteiro, da Universidade de São Pau- diu os alimentos em outros três grupos, de acor-
lo (usP), assistia a uma palestra numa das salas do com a extensão dos processos industriais a
do centro de convenções do hotel quando re- que eram submetidos: in natura, minimamente
cebeu uma mensagem alarmada: "Corre para processados e processados. A essa classificação
cá. Você está sendo atacado". Franziu o cenho alimentar chamou Nova. Um nome simples
instintivamente, sem entender bem. e sonoro que, vindo do latim, minimizava as
Monteiro chegara à capital argentina dias chances de causar estranhamento a não lusófo-
antes, para participar do Congresso Interna- nos. O recado da Nova é claro: para se manter
cional de Nutrição. Realizado anualmente, saudável, elimine os ultraprocessados da dieta.
sempre numa cidade diferente do mundo, o A Nova ganhou relevância global, influenciou
evento reúne alguns dos principais pesquisa- políticas públicas no Brasil e virou referência
dores do campo. Monteiro tinha uma apresen- para os documentos sobre nutrição da Organi-
tação marcada para dali a alguns dias. Alto e zação Pan-Americana de Saúde (Opas).
esguio, com cabelos grisalhos que ainda co- Mas, no final de 2017, rendia dissabores a
meçam a escassear - apesar de seus 69 anos Monteiro. Seu celular voltou a vibrar. Quem
-, Monteiro é considerado por seus pares uma escrevia era Paula Johns, da Aliança de Con-
das principais autoridades do mundo em epi- trole do Tabagismo (ACT),que assistia a outra
demiologia nutricional, ramo da ciência que apresentação do congresso, poucas salas dis-
estuda a relação entre alimentação e saúde. tante dali. Dessa vez, ela mandava uma foto:
Em 2010, Monteiro e o grupo de pesquisa- "Usar a classificação Nova para criar políticas
dores que lidera na USP, o Núcleo de Pesquisas públicas é irresponsabilidade", dizia um dos
Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), slides da palestra. "Diga a eles que é desonesto
criaram o conceito de alimento "ultraprocessa- criticar um trabalho sem deixar que o defen-
(/)
w do", que designa toda aquela comida pronta, fa- dam", escreveu Monteiro à amiga. Guardou o
~
2 bricada com aditivos industriais e que em pou- celular no bolso e deixou o assunto de lado.
>-
E
(!)
co ou nada se assemelha a verduras, frutas ou

O
ô carnes. "Não são alimentos de verdade", disse s amigos usam mais de um adjetivo para
o
o
~ Monteiro. "São artigos feitos a partir de alguns descrever Carlos Monteiro. Há quem o
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z
~
componentes dos alimentos. Coisas de que seu chame de apaixonado (pelo trabalho que faz).
w
Q corpo não precisa." Fazem parte desse grupo Quem o diga rigoroso. No trato pessoal, cha-
§u. salgadinhos empacotados, hambúrgueres con- mam-no atencioso. Ninguém diz que se irrita
w
"'
cr, gelados, macarrão instantâneo, refrigerantes e facilmente. Mas a crítica daquele slide na Ar-
o
(/)

2
w biscoitos recheados, entre outros. Comida sa- gentina é algo que , meses passados, ainda lhe
(!)
~ borosa, de paladar viciante por ser saturada de agita os modos. "Na verdade, a gente já espe-
z
o
2 sal, gordura e açúcar - uma trapaça nutricio- rava algo do gênero", disse Monteiro com um
66

. . . ,
meio sorriso, enquanto rememorava o episo-
dio numa quinta-feira recente, véspera de Car-
naval. Eram 9 horas da manhã e o professor
era a única pessoa no Departamento de Nutri-
ção - um conjunto de salas num dos cantos
da Faculdade de Saúde Pública da usP.
A frase contra a Nova era conhecida de
Monteiro. Aparecera pela primeira vez num
texto da American Journalof Clinica[Nutrition
(AJCN),revista científica de renome, em agosto.
Em oito páginas, desancava o trabalho dos bra-
sileiros para concluir que não havia evidência
de relação entre o consumo de ultraprocessa-
dos e obesidade. "Mas era um texto estranho",
disse Monteiro. Havia erros de bibliografia
- os dados citados não correspondiam às re-
ferências apresentadas. O conceito de ultra-
processado estava errado. "Não sei como um
texto com aquela qualidade passou pelo crivo O pesquisador
dos revisores" , afirmou Monteiro. Havia ainda evolução curiosa: a cada edição, as famílias Carlos Monteiro
.
cnou uma nova
um detalhe: o autor principal, Mike Gibney, brasileiras compravam menos açúcar refina- classificação de
era professor da Universidade de Dublin e con- do , menos óleo e menos sal, itens que os nutri- comidas, em que
sultor da Nestlé - a maior produtora de ultra- cionistas recomendam consumir com parci- aponta os
ultra processados
processados do mundo. O conflito de interesses mônia, por causa da relação com a obesidade .
como os piores
era relatado ao final do texto, como de praxe. Os e doenças crônicas, como hipertensão. Mes- alimentos da dieta
outros dois autores não informavam sua ocu- mo assim, na composição nutricional daquilo cotidiana

pação, mas colegas de Monteiro descobriram que ia para a mesa, aumentava a quantidade
que um trabalhara para a Nestlé menos de cinco de sal, de açúcar e de gorduras. O fenômeno
anos antes e o outro prestara consultoria a uma era mais notável nas casas de famílias mais
empresa de relações públicas que assessora o abastadas - onde o arroz com feijão cedia lu-
McDonald's. Monteiro e seus colegas, ao que gar, paulatinamente, a refeições e sobremesas
tudo indicava, haviam irritado gente grande. prontas para consumo. "O Carlos teve a ideia
de a gente passar a dar atenção à frequência

H á mais de 40 anos, Monteiro tenta entender


o que o brasileiro come, como come, como
adquire o que come e quais as consequências
de consumo desses novos artigos e à maneira
como eles eram produzidos", disse Rafael Mo-
reira Claro, professor da Universidade Federal
dessa dieta. Até fins dos anos 1980, esse inte- de Minas Gerais (uFMG)e, na época, aluno de
resse significava estudar o alimento que faltava. doutorado de Monteiro.
''O Brasil tinha um problema grave de desnu- A desconfiança tinha um moti vo: esses
trição infantil no Nordeste", disse. Aos pou- novos alimentos são mais densos em calorias,
cos, voltou os olhos para o fenômeno oposto contêm mais sal e mais açúcar. A forma como
e começou a estudar o alimento que sobrava, são consumidos também é diferente - uma
aquele que fazia crescer os índices de obesida- refeição tradicioi1al é feita à mesa, obedecen- ffl
de. Em 1975, 3% dos homens brasileiros eram do a certos rituais. Os alimentos prontos, in- ~
obesos; em 2014, 17%. A mudança de foco foi dustrializados, podem ser consumidos a qual- ~
t-
w
involuntária - aconteceu enquanto ele obser- quer hora ou lugar e em grandes quantidades. ~
"'
ü
vava os resultados da Pesquisa de Orçamentos Por fim, havia uma questão química: ao mu- g
~
Familiares (POF), realizada pelo IBGE. O tra- z
dar a forma como os elementos dos alimentos I
t-
w
balho do Nupens consistiu em pegar os da- são organizados, mudam também seus efeitos o
g
dos de alimentos comprados pela população e, no corpo humano. "Nas células de um toma- o
u.
w
com ajuda de uma tabela elaborada pela Opas, te, há dois componentes importantes: fibras e "'
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(/)

transformá-los em nutrientes para avaliar a flavonoides. Os flavonoides são agentes anti- ::;
w
(!)

composição do prato nacional. cancerígenos, mas só são absorvidos pelo cor- ~


z
o::;
Desde os anos 1990, a POF mostrava uma po quando consumidos associados às fibras",
BISCOITO RECHEADO

disse Monteiro. "Alguns processos industriais no mesmo período. Havia mais: entre os 20%
quebram essa conexão e, portanto, eliminam dos brasileiros que mais consumiam ultrapro-
esses benefícios." Come-se o tomate, mas não cessados, 20% das calorias vinham do açúcar.
se obtêm seus benefícios para a saúde. Já entre aqueles 20% que menos consumiam
Isso não significa que todo processamento alimentos desse tipo, o açúcar era responsável
de alimentos seja nocivo. Pelo contrário. "O por somente 10% das calorias diárias. "A meta-
processamento dos alimentos foi benéfico pela de", disse Monteiro, satisfeito com a constata-
maior parte da história", afirmou Monteiro. ''É ção. Ele mostrou que a sociedade brasileira mu-
graças a essas tecnologias que temos leite pas- dara a forma de produzir e consumir comida
o
a,
teurizado ou carnes preservadas em sal para - e essa nova dieta era pior que as anteriores.
o
...J
(!) durar mais." A maioria dos artigos que come- "Foi uma daquelas intuições de gênio que o Car-
o
..:
ü
mos passou por algum processo industrial - e los costuma ter", disse Moreira Claro, da UFMG .
zw
(!) não há problema nisso. Essas práticas só se tor-
!:!:
nam deletérias quando a reengenharia do ali-
A influência da Nova cresceu rápido. Ain-
(J)

~
z
~ mento passa a ser tamanha a ponto de o produ- da em 2010, um artigo de Monteiro
z
o
(J) to final não guardar qualquer semelhança com chamando a atenção para o papel do pro-
...J
ow
o original e conter uma série de aditivos indus- cessamento de alimentos na saúde foi rece-
triais sem valor nutricional - que aumentam a bido por acadêmicos americanos como "de
durabilidade, melhoram a aparência ou o gosto extrema importância". As relações encon-
e estimulam a pessoa a comer mais. É isso que tradas pelos brasileiros na dieta nacional
Monteiro chama de "ultraprocessamento". aos poucos mostraram-se verdadeiras tam-
Monteiro suspeitava que eram esses ultra- bém nas dietas de outros países. Pesquisa-
processados os responsáveis pelo aumento no dores do mundo todo passaram a estudar
consumo de açúcar, sal e gorduras que a POF o impacto dos ultraprocessados na saúde.
indicava. As pesquisas que seu grupo faria a Segundo o indexador PubMed, um serviço
seguir comprovariam o palpite. Convertidos os do governo americano que reúne pesquisas
dados, descobriu-se que, em 1996, 44% das ca- sobre saúde em todo o mundo, mais de 100
lorias consumidas pelos brasileiros, em média, trabalhos já fizeram menção à Nova.
vinham de alimentos in natura. Em 2009, esse Há quem se oponha às ideias de Monteiro
percentual caíra para 39%. O vácuo foi preen- com sensatez. As principais críticas partem de
chido pelos alimentos ultraprocessados - cuja engenheiros de alimentos - para os quais a
participação na dieta subiu . de 18,7% para 30% ideia de processar comida está ligada a aumentar

NEM TODO ALIMENTO


PROCESSADOFAZ MAL
À SAÚDE.APENAS
AQUELESQUE FORAM •
TÃO ALTERADOSQUE
NEM SE PARECEMCOM ,
OS ORIGINAIS E CONTÊM
MUITOS ADITIVOS
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sua longevidade e qualidade. "Não nego que ro. Até ali, Monteiro e seus colegas ignoravam
há muito sal e açúcar em alguns desses ali- as críticas disparatadas e respondiam às sérias
mentos. Mas é um problema cultural", disse em artigos científicos - e as respostas eram
Marcelo Cristianini, professor da Universida- publicadas nas mesmas revistas, como manda
de de Campinas. "A indústria não altera essas o padrão da área. Mas, no caso de Gibney, a
concentrações porque o paladar do consumi- revista se recusou a publicar a réplica dos bra-
dor exige essa quantidade de açúcar ou de sal. sileiros. Monteiro e seus colegas publicaram
É importante reeducar a população - e não uma resposta em outra revista. A essa altura, o
demonizar o alimento." professor tinha por certo que os financiadores
E há as críticas vindas da indústria , que se de Gibney tinham interferido no teor do texto.
tornaram especialmente ferrenhas durante o Em nota enviada a ÉPOCA, a N estlé dis-
processo de elaboração do Guia alimentarpara se que "não foi envolvida, em nenhum mo-
a população brasileira,em 2014. O documen- mento, no planejamento, projeto ou execu-
to, coordenado pelo Ministério da Saúde e fei- ção deste estudo e não financiou atividades
to sob orientação de Monteiro, traz sugestões que leva ram à conclusão deste trabalho".
de alimentos. "Foi um processo de discussão Gibney nega interferência. ''Nenhuma em-
extremamente intenso", disse Arthur Chioro, presa com bom senso interferiria no traba-
então ministro da Saúde. Na ocasião, a Asso- lho de um cientista de projeção global. A re-
ciação Brasileira das Indústrias de Alimentos putação dessa empresa seria afetada", disse
(Abia) pediu diversas audiências com o minis- a ÉPOCA. Gibney afirma que seus problemas
tro. "A classificação não se sustenta do ponto com Monteiro são acadêmicos: "A Nova
de vista da ciência e da tecnologia de alimen- contraria as metodologias que usamos para (f)
w
~
tos", disse a Abia por meio de nota enviada a orientar a população. Consensos são bem- ::;
>-
ÉPOCA. "É inadequado utilizar a classificação vindos no Vaticano ou no Kremlin. Mas é a ~
w
(!)

Nova para estabelecer uma relação direta entre discordância que oxigena a ciência." â
o
o
o consumo de alimentos processados e a inci- ~
dência de obesidade e doenças crônicas." ""

N o começo dos anos 1950 , a comunidade z


i3
w
Monteiro considera embates como esse cor- médica americana estava incomodada o
g
riqueiros, mas a crítica publicada no artigo de com o rápido aumento nas taxas de doenças o
u.
w
Mike Gibney, e que voltara a aparecer no con- cardiovasculares. Suspeitava-se que o alto "'
e<>
o
(f)

gresso na Argentina, tinha teor diferente. "Pri- consumo de açúcar pela população era, ao ::;
w
(!)

meiro porque foi a primeira publicada em uma menos em parte , responsá vel pelo fenôme- ~
z
o::;
revista de primeiro escalão", disse Moreira Cla- no. A associação parecia coisa certa até três
BISCOITO RECHEADO 69

professores da Universidade Harvard pu- casos. "Quando criou o termo 'ultraproces-


blicarem um artigo na revista New England sado', Monteiro encontrou uma forma muito
Journal of Medicine (NEJM) que redimiu a mais eficiente de mostrar o que havia de
substância doce. De acordo com o trabalho, errado no consumo de junkfood" , disse Nes-
havia relação entre doenças cardíacas e die- tle. "O trabalho dele incomoda porque é rigo-
ta, mas o melhor que se poderia fazer para roso e difícil de desacreditar."
proteger o coração era reduzir o consumo
de colesterol e gorduras saturadas. ara alguém no meio de uma briga, Mon-
O trabalho feito pelos pesquisadores de
Harvard fez a gordura ocupar o lugar de
P teiro é um homem sereno. Diz que não
leva essas preocupações para casa - reserva
vilã solitária por décadas. Hoje, sabe-se que as noites para cozinhar o jantar com a mu-
o açúcar desempenha papel importante nas lher ou para comer fora com amigos. Gosta
doenças cardiovasculares. Em 2016, pesqui- de ir à feira, comprar verduras, tarefa que
sadores da Universidade da Califórnia em alterna com a esposa. Monteiro não come
San Francisco tiveram acesso a documentos carne vermelha - a não ser carne de porco
antigos que revelaram que os pesquisadores bem temperada-, mas se orgulha dos chur-
de Harvard receberam na ocasião us$ 49 rascos de peixe que prepara. Detesta refri-
mil cada um de uma fundação de empresas gerante (um ultraprocessado) desde criança
produtoras de açúcar. - garante que por questão de paladar, e não
O episódio ilustra uma das páginas da- por ideologia. O gosto gera cizânia em casa.
quilo que a professora Marion Nestle, da Seu neto mais novo, Felipe, de 13 anos , adora
Universidade de Nova York, chama de "o li- a bebida: "Mas acho que ele bebe mais para
vro de regras da grande indústria de alimen- me irritar", disse Monteiro, rindo. O mais
tos". Em 2002, Nestle (o nome é quase igual, velho, Rafael, segue o gosto do avô. Monteiro
falta apenas o acento, mas a pesquisadora só sente falta, mesmo , do hambúrguer que
não tem qualquer parentesco com a empresa comia nos tempos da Faculdade de Medicina,
suíça) publicou o livro Food politics - How na Avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo.
the food industry influences nutrition and Só recentemente Monteiro passou a aten-
health (ou Política da comida - Como a in- tar para a relação da comida com memória e
dústria de alimentos influencia a nutrição e cultura. A preocupação surgiu enquanto ela-
a saúde), que explora as táticas usadas pelas borava o Guia nutricional e se aprofundou
empresas para conquistar os consumidores, conforme trabalhava com a chef de cozinha
influenciar o trabalho de agências regulado- e apresentadora Rita Lobo, dona da produ-
ras e cientistas e, eventualmente, destruir a tora Panelinha. "O trabalho do Carlos mos-
reputação de pesquisadores. "Essa é sempre trou, com rigor científico, que as pessoas pre-
a primeira tática empregada: a indústria lan- cisam voltar a cozinhar", disse Lobo. Desde
ça dúvidas sobre as pesquisas que a contra- 2015, a Panelinha mantém 11maparceria com
riam e busca desacreditar os críticos", disse o Nupens, que resultou em um livro e duas
Nestle a ÉPOCA. "As empresas de tabaco fize- séries de vídeos para o YouTube: uma sobre
ram o mesmo por décadas." comida cotidiana, outra sobre introdução
Por vezes, as empresas encomendam a alimentar de bebês. Monteiro, tão acostu-
pesquisadores estudos de seu interesse e in- mado a se pronunciar por artigos científicos,
terferem de modo a resultarem em co11clusões foi parar diante das câmeras, algo que ele faz
favoráveis a seus interesses. "Muitas vezes, o com desconforto. "Mas eu faço com prazer.
pesquisador que recebe dinheiro da indús- Porque é importante" , disse.
tria se autocensura inconscientemente", disse Dias depois de ser criticado no congresso
Nestle. Temendo perder patrocínio, produz argentino, Monteiro apresentou os resultados
resultados que agradam a quem paga a con- de suas pesquisas. "A organização nos colocou
ta. O resultado é que a maioria dos trabalhos numa sala pequena, devem ter achado que pou-
sobre nutrição financiados por empresas de cos se interessariam" , disse. As fotos do evento
alimentos tem conclusões convenientes a elas. mostram uma sala apinhada, com pessoas se
Nestle examinou 168 pesquisas financiadas acotovelando do lado de fora, buscando um can-
dessa forma - e os resultados foram positi- tinho na porta com vista para o lado de dentro.
vos para a empresa financiadora em 90% dos "Acho que subestimaram a gente." _____ _
70

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Mulher desconhecida em pose: • - ,


o sexo nos anos 1920 era em preto e branco,.mas também quenté
S'IL TE PLAIT 71

De um baú em Paris, diplomata diz


ter tirado as cartas eróticas que
formam A paixão de Mademoiselle S.,
uma espécie de 50 tons de cinza
feito na década de 1920
por Ruan de Sousa Gabriel

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72 S'IL TE PLATT

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IAJ... o.lei ~ ~-~
U m diplomata em férias descobre um pu-
nhado de cartas eróticas escondidas no
M o.A,d.lJI.
fundo de um baú, no porão de uma casa em
Paris. Escritas por uma mulher, descrevem
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as estripulias sadomasoquistas de um casal


de amantes - uma moça de boa família e
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um rapaz mais jovem e casado - nos anos


1920. O diplomata carrega consigo a corres-
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pondência indecente para sua nova missão,
num diminuto país, onde quase nada acon-
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tece e, entediado, dedica-se a ler e organizar
a papelada indecorosa. Parece o enredo de
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I ~ . •• . . , ...~
aML4
um ardente romance erótico, com descri-
ções vívidas, descobertas sexuais tardias e
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*~ ~---...e tuJU ~ . , . .
flashbacks. O diplomata francês Jean-Yves
Berthault jura que tudo isso aconteceu de
verdade em 2013. Berthault é o organizador
de A paixão de Mademoiselle S. (Companhia
das Letras, 208 páginas, R$ 49,90), que acaba t •
de chegar às livrarias brasileiras com tradu-
ção de Rosa Freire d'Aguiar.
A paixão de Mademoiselle S. é uma coletâ-
nea de cartas escr itas entre 1928 e 1930 por Si-
mone a seu amante Ch arles. A correspondên-
cia alterna comentários sobre os encontros
dos dois com confissões de desejos e fantasias
e sugestões de novas e mais ousadas brin- bom para o livro , porque era um traba lho di- Trechos das cartas
cadeiras sexuais. Com riqueza de detalhes, plomático muito chato (risos)",disse. "Eu rece- originais (acima, à
esq.) e Berthault, o
Berthault contou a ÉPOCA como descobriu as bia convites, mas preferia ficar em casa com as organizador do livro (à
cartas de sen hori ta S. "Minha amiga sabia que cartas a ir a recepções chatas." Berthault bus- dir.). Seu agente afirma
eu tinha tempo livre e abusou de mim: ela dis- cou pistas para reconstituir a crono logia do que uma perícia garante
que as cartas eróticas
se que precisava de ajuda para limp ar o porão, amor de Simone e Charles. Eram centenas de são autênticas
que tinha medo de entrar lá sozinha", contou cartas e pouquíssimas estavam datadas: al-
Berthault, que aceitou o abuso na esperança gumas eram de 1928; outras, de 1929 ou 1930.
de encontrar alguma antiguidade valiosa em Selecionou 61 delas para o livro.
meio à poeira. "À esquerda, havia alguns baús
cobertos por pilhas de livros. Um desses baús
estava cheio de potes de geleia vazios e jornais
velhos; no fundo, havia uma bolsa de couro
N as primeiras cartas, Simone é uma mu-
lher que aceita se submeter aos caprichos
sadomasoquistas de um homem misterioso -
muito bonita e, dentro dela, pacotes de cartas sim, a mesma história de Anastasia Steele da
escritas com a mesma caligrafia." trilogia pornô 50 tons de cinza. "Você me fará
Autorizado pela amiga, Berthault levou as sofrer crue lm ente, meu corpo que te pertence
cartas para casa. Disse ter ficado embasbaca- se torcerá sob os golpes, você me ouvirá pedir
do com a prosa ali contida, uma combinação misericórdia", escreve Simone. Referências a
de descrições cruas e brutais do sexo com o palmadas e a um chicote aparecem aqui e ali:
vocabu lário elegante de uma moça de privile- "Gozei com todas as minhas forças sob seus
giada formação cultural. "Fiquei maravilhado tapas, suas brutalidades". Em geral, as cartas
ao ler como, há quase 100 anos, uma mulher seguem uma estrutura: Simone começa de-
teve a coragem de viver uma história de amor clarando seu amor por Charles ("meu amor
tão moderna - porque o que ela narra é mui- quer ido ", "meu pequeno deus"), recorda as
to moderno" , disse. Algumas semanas depois, delícias que conheceram juntos e lamenta que
Berthault foi enviado a uma nova missão di- se vejam tão pouco. Depois , o vocabu lário se
plomática em Brunei, uma minúscula monar- torna mais vu lgar e a prosa mais descritiva:
quia islâmica no Sudeste Asiático. "Brunei foi ela imagina encontros futuros e faz promessas
S'IL TE PLAIT 73

o
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(!)
Simone aceita se submeter de jovem mulher" de Charles, a quem começa
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> aos caprichos sadomasoquistas a chamar de "Lotte", apelido de "Charlotte", o
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ô feminino de Charles - e também o nome da
_,
~
de Charles. Depois, no entanto, namoradinha de Werther, o sofrido jovem do
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>
o
,-,:
assume o papel masculino Romantismo alemão. Apesar da inversão dos
i_, e passa a tratá-lo como uma sexos, é Charles-Lotte quem parece continuar
:::,
no controle da aventura.
>
o amante jovem e passiva
A paixão de Mademoiselle S. foi publicado
na França em 2015 pela prestigiosa edi-
sobre seu próprio desempenho. As cartas cos- tora Gallimard. Além de selecionar as cartas,
tumam terminar com uma nota melancólica: Berthault optou por manter em sigilo a verda-
Simone teme não conseguir mais satisfazer as deira identidade da senhorita S. Escolheu cha-
perversões de Charles, que ele se canse dela e a má-la de Simone porque esse era um nome
abandone. "Querido amado, você me ama ta11- popular nos anos 1920. "Ainda que ela tenha
to quanto eu, apesar dos dias que passam? Seu morrido há muito tempo, claramente não es-
desejo de meu corpo continua tão ardente? Ah, creveu essas cartas com o intuito de publicá-
tenho tanto medo de te perder que gostaria de las", disse Berthault, cuja avó também se cha-
ser o próprio vício para te ligar a mim defini- mava Simone. ''Os editores também gostaram,
tivamente", escreve Simone. "É claro que ela o porque sabiam que o livro seria um sucesso
amava muito mais do que ele a amava", disse em vários países e 'Simone' é um nome que
Berthault. "Ela sempre inventava alguma coisa funciona em várias línguas." Berthault disse
para deixá-lo interessado, pois pensava que ele que descobriu o verdadeiro nome de Charles,
a deixaria. Isso me comoveu muito, essa capa- mas afirma não saber mais nada dele.
cidade dela de despertar o interesse dele." Em várias ocasiões, Berthault se viu pres-
À medida que o tempo passa e a aventura sionado a responder sobre quanto controle
de Simone e Charles se torna mais intensa, os exerceu sobre a relação de Simone e Charles.
papéis vão se confundindo. Ela não é mais a Nas várias entrevistas que concedeu para di-
mulher submissa, sempre pronta a suportar as vulgar o livro, a história das cartas eróticas
perversões de seu amante adorado. Assume as escondidas numa bolsa de couro em um baú
rédeas da relação e passa a interpretar o papel num porão foi intensamente questionada. O
dominador antes reservado a Charles. Simone agente de Berthault afirmou que "as cartas
recorre a uma imagem bíblica para ilustrar a foram autenticadas pelos mais respeitados pe-
mudança ocorrida na relação deles: "Seu ví- ritos da França". "Eu não teria tanta imagina-
cio não é meu vício? Sua paixão não se tornou ção para escrever essas cartas", disse Berthault,
minha paixão? Você me criou a sua imagem que afirmou nunca ter se interessado por lite-
e te arrastei comigo para as carícias sádicas ratura erótica. "Não tenho sequer os livros de
e voluptuosas que meu espírito inventou para Anai:s Nin (escritoraeróticafrancesa do século
te manter". No relato do Gênesis, Deus cria xx)." Nem mesmo a proximidade quase inde-
o homem a sua imagem e semelhança; em A cente com as cartas de Simone despertou seus
paixão de Mademoiselle S., Charles, o "peque- sentidos para o erotismo literário. ''As cartas
no deus", faz de Simone seu duplo. me interessaram mais como documento histó-
Si1none assume o papel masculino - des- rico. Eu sei que as cartas têm qualidade literá-
creve a si mesma como um homem e fala de ria, mas não me transformaram 11umviciado
seu desejo no masculino. Passa a tratar Char- em literatura erótica (risos)", disse. Como é
les como uma amante jovem e passiva. "Veja, comum entre diplomatas, Berthault afirmou
querido, como nossos desejos se confundem. se interessar mais pelos clássicos da literatu-
Você sonhava com um macho vigoroso vio- ra, pela Antiguidade greco-romana e pela his-
lando sua carne. Eu sonhava com uma amante tória das religiões do Oriente Médio. Ele está
carinhosa e lasciva. Nosso amor insensato rea- escrevendo um livro sobre o grupo terrorista
lizou esse milagre. Sucessivamente , sob a in- islâmico Taleban, inspirado em sua experiên-
fluência de nossas paixões, trocaremos de sexo cia como embaixador francês em Cabul, capi-
e teremos assim um duplo prazer, um duplo tal do Afeganistão, entre 1998 e 2001. "É desse
gozo", escreveu Simone. Ela diz amar a "carne tipo de coisa que eu entendo~'-------
74

hgurovitz@edglobo.com. br

• • @gurovitz

HELIO GUROVITZ ÉJORNALISTA


E BLOGUEIRODO PORTALG1
COMO ,ENTENDER
O FASCINIO COM O CHAVISMO?

A hiperinflação chegou a 2.616% na Venezuela em 2017.


Desde 2012, a economia encolheu 35%. Mais de
82% dos venezuelanos vivem hoje abaixo da linha da po-
O excelente trabalho de reportagem documental de
Coutinho padece de duas deficiências. A primeira é de or-
dem técnica. Ele faz parte de uma geração de repórteres
breza - e três quartos da população emagreceram nos úl- criada em redações onde a preocupação com a qualidade
timos anos quase 9 quilos por não ter o que comer. A des- do texto passou a ser secundária. Não se pode querer que
nutrição atinge 68% das crianças. Hospitais estão à míngua. economistas, estatísticos ou médicos sejam estilistas do
Na falta de remédio, a doença grassa - de diabetes a hiper- idioma. De um jornalista, contudo, o mínimo a exigir se-
tensão, de malária a aids. Crianças deixaram de ir à escola ria uma revisão cuidadosa, para eliminar jargões - como
por causa da fome. A violência supera a registrada em qual- "planta" (no sentido de fábrica ou usina) -, anglicismos
quer outro país da região. Perseguição política, censura à - como "suporte" (no sentido de apoio) e "massivo" (no
imprensa, aparelhamento do Judiciário, fraudes eleitorais, sentido de maciço) - e pala vras inadequadas - como
corrupção, tortura, prisões arbitrárias, esfacelamento ins- ('escaramuça" (no sentido de arapuca ou cilada) e ''aleija-
titucional - a Venezuela é um caso de manual de auto- da de privilégios" (no sentido, supõe-se, de alijada). Nada
destruição. Como o outrora mais próspero e democrático disso, é claro, prejudica a fluidez da narrativa, a não ser
país da América Latina chegou a tal descalabro? Decifrar o para os ouvidos mais sensíveis.
quebra-cabeça chavista é a proposta do jornalista Leonar- A segunda deficiência foge ao escopo de um livro que
do Coutinho no recém-lançado Hugo Chávez:o espectro. se apresenta como reportagem. Trata-se, contudo, do
Como repórter da revista Veja, Coutinho acompanhou maior enigma trazido pelo bolivarianismo.
diversos episódios que definiram o bolivarianismo nas
duas últimas décadas. Divide seu relato em sete capítulos, Por que, com toda a tragédia,
que pintam um quadro documentado, fidedigno e assus- tanta gente ainda se encanta com
tador da tragédia resultante do "socialismo do século xx1". Chávez e Maduro? O que leva
Para quem acompanhou as histórias isoladamente, o
conjunto assombra. Hugo Chávez s11rge como uma espé- setores expressivos da esquerda
cie de ser diabólico, cujas marcas hediondas se espalham brasileira a defender a
pelo continente e vã o além dele. Suas pegadas estão na tra- ditadura venezuelana?
moia nuclear que uniu o Irã de Ahmadinejad à Argenti-
na do casal Kirchner, no acobertamento de terroristas do Que fascínio macabro toma conta da mente de tanta gen-
Hezbollah e no assassinato do procurador Alberto Nisman. te que, de outro modo, aparenta ser tão inteligente? Como
Estão na adoção, sob o incentivo de Fidel Castro, do nar- relevam a tirania, a associação com o terrorismo e o narco-
cotráfico como política de Estado para financiar o terror tráfico, a fome, a miséria , a violência e a destruição da Ve-
islâmico e para suprir os cartéis mexicanos que inundam nezuela? Coutinho apenas dá uma pista da resposta logo no
os Estados Unidos de drogas. No apoio a movimentos cuja início do livro , quando narra um episódio que demonstra
violência se espalhou da Bolívia à Espanha, contando entre o desprezo de Chávez pela própria mãe. "O ressentimento
suas vítimas até o antigo dono da companhia aérea do de- é o que define o comportamento de Chávez e o que explica
sastre da Chapecoense. No uso da estatal de petróleo para também parte de seus atos", escreve. O diagnóstico, certeiro,
extrair os recursos da corrupção e das regalias desfrutadas talvez sirva também para definir seus acólitos. Tema para
por próceres do governo chavista. No obscurantismo que, um próximo livro, menos investigativo e mais analítico. _
ao rejeitar a realidade científica, levou Chávez a ignorar
HUGO CHÁVEZ: O ESPECTRO
o próprio câncer - e seu sucessor, Nicolás Maduro, a crer Leonardo Coutinho, Ed. Vestígio
ouvir o morto no canto de um passarinho. 2018 1 240 páginas I R$ 45
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HORA DO CHÁ 77

Cartas e bilhetes de grandes escritores


brasileiros revelam manobras de
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bastidor nas eleições da Academia
i_, Brasileira de Letras
5
o por Marcelo Bortoloti

A primeira vez em que Monteiro Lobato tentou uma vaga na Aca-


demia Brasileira de Letras foi 1922. Já era um escritor consagrado,
principalmente por causa de Urupês, sua obra-prima lançada quatro
anos antes, e comandava uma das principais editoras do país. Con-
fiante em que o renome literário seria suficiente para conduzi-lo a seu
objetivo, recusou-se a «implorar votos" para a candidatura, conforme
contou em carta enviada ao escritor e amigo Godofredo Rangel. Dei-
xou assim de cumprir um ritual obrigatório nas eleições da Academia
e obteve apenas quatro votos. O eleito foi o jurista e senador Eduardo
Ramos, autor de dois mofinos volumes de crônica e alguns poemas de
gosto duvidoso publicados em jornais. Um acadêmico de São Paulo
resumiu as resistências ao escritor: "Se Lobato me pedisse o voto, claro
que eu o daria; mas, não pedindo, prefiro votar num pedaço de pau".
Em 1926, Lobato faria uma nova investida. Dessa vez, ele teve o
cuidado de enviar cartas a cada um dos acadêmicos. Em uma delas,
dirigida a Filinto de Almeida e preservada pelo acadêmico Antônio
Carlos Secchin, o escritor se mostra quase servil: "Tomo a liberdade
de vir solicitar de Vossa Excelência o honrosíssimo apoio de um voto
que será um voto ao trabalho. Servo humílimo. Monteiro Lobato". A
delicadeza epistolar não evitou um no vo fracasso. O problema des-
sa vez foi deixar de fazer visitas aos acadêmicos, outra exigência das
campanhas da instituição. Lobato obteve apenas nove votos, perden-
Monteiro Lobato se do para o desembargador Adelmar Tavares, autor de versos insossos
recusou a pedir votos
. . que chegavam a "atacar o fígado" de quem os lia , conforme anotou o
em sua pnme1ra
campanha à Academia, escritor Fernando Jorge. "Monteiro Lobato se candidatou sem o me-
mas na segunda tentativa
-
nao econom .izou na
nor interesse. Isso pesa muito em uma eleição", sentenciou o acadê-
bajulação. Em bilhete ao mico e jurista Alberto Venancio Filho, ouvido por ÉPOCA.
inexpressivo poeta As campanhas fracassadas do maior nome da literatura infanto-
Filinto de Almeida, juvenil brasileira atestam que a qualidade literária nem sempre é um
se autointitulou
"servo humílimo" fator decisivo na escolha dos ocupantes das 40 cadeiras da Academia.
As articulações de bastidores, as promessas de campanha e as
relações de amizade prevalecem em muitas eleições.
78 HORA DO CHÁ

o
o

N as últimas semanas, ÉPOCA analisou cartas e bilhetes enviados


pelos candidatos aos integ rantes da Academia, os chamados "do-
cumentos de campanha", guardados em arquivos de acadêmicos já
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(J)
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ü
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"'~
falecidos. São testemunhos do beija-mão a que grandes escritores se ~::,
submeteram por ocasião de sua candidatura. É o caso de Manuel Ban- ~
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deira, eleito com ampla maioria na primeira votação, mas que para Si
isso teve de se curvar a poetas reconhecidamente medíocres, como i_,
::,
Filinto de Almeida. Em 1940, Bandeira tratava o obscuro Filinto como >
o
"poeta tão da minha admiração e estima". o
o
~
Esses documentos ajudam a compreender como a falta de traquejo (J)
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<(

político, de habilidade social e de outras qualidades mundanas viti- ü


z
""
(!)
mou as pretensões de nomes fundamentais de nossa literatura, como ~
o
Lima Barreto, Jorge de Lima, Mario Quintana e Oswald de Andrade. Machado de Assis >
::,
o
Mulato, pobre, mas louvado pela crítica desde 1911, qua11dopubli- ""
via a Academia como <(

cou Tristefim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto bateu três vezes


nas portas da Academia, todas sem sucesso. A primeira delas foi em uma instituição de
1917, quando escreveu a Rui Barbosa uma carta se colocando como ccboascompanhias'',
candidato à vaga aberta com a morte do advogado e diplomata Sou- na qual o critério de
sa Bandeira. A candidatura nem sequer foi acatada, sob a alegação
de que Lima Barreto não cumprira o protocolo da inscrição formal.
((absoluta respeitabilidade
Quem entrou na vaga foi o também diplomata Hélio Lobo, vindo pessoal'' deveria
de uma família de juristas ilustres. Já naquela época vigorava inter- ser levado em conta
namente a ideia defendida pelo próprio Machado de Assis de que a
Academia deveria ser uma instituição de "boas companhias" e que o na escolha de seus
critério das "boas maneiras" e da "absoluta respeitabilidade pessoal" integrantes
deveria ser levado em conta na escolha dos pares. "Lima Barreto não
tinha o perfil de acadêmico. Era boêmio, andava malvestido, vivia
bêbado e volta e meia internado em hospi ta is psiquiátricos" , afirmou
o acadêmico Alberto Venancio Filho.
Ao ser criada, em 1897, a Academia Brasileira de Letras procurou
garantir a seus integrantes um brilho social que a própria literatura,
quase sem público na época, não conseguia dar. O cenário cultural
era precário. O escritor maranhense Aluísio Azevedo definiu de for-
ma mordaz: "A vida literária de hoje no Brasil é uma coisa tão hipoté-
tica como a vida elegante na costa da África". A frase refletia o ponto
• • ••
de vista de uma elite intele ctual que sobrevivia em um país de po11ca • .• • '
.,• • ,f!.
leitura, onde a profissão de escritor era instável e mal rem11nerada. A • '• •

, • •• •
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Academia representou um avanço para esses literatos. Formada pelos • • •••
• '•
principais escritores da época, entre eles Machado de Assis e Olavo • • • 'i
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.'', .' • • • •
Bilac, tornou-se a instituição cultural mais importante do Brasil. Na ... '
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prática, passou a definir quem era e quem não era escritor. '' • .. ' • ' . •
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Seu prestígio começou a ser abalado pelos ataques dos expoentes •


1

1.:
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da Semana de Arte de 1922. Um dos organizadores do evento, o aca-
dêmico Graça Aranha, voltou-se contra a instituição por seu apego a
Bandeira (acima)
um tipo de literatura arcaica e afrancesada, que prejudica va o flores- escreveu bilhete (no alto)
cimento de um gênero genuinamente nacional. Importantes nomes a Filinto de Almeida, que
da segunda geração do Modernismo brasileiro se recusaram a candi- classificou como
de sua "admiração
datar-se, como Carlos Drummond de Andrade e Graciliano Ramos. e estima". Em 1917,
Lima Barreto (à dir.)
enviou uma carta a Rui

A pesar das rachaduras em sua reputação, a casa permaneceu como


objeto do desejo de muitos escritores, entre eles modernistas his-
tóricos. Em 1940, Oswald de Andrade bateu de maneira intempestiva
Barbosa anunciando
sua candidatura, que
foi recusa da
na porta da Academia. Lançou-se como um "candidato do povo" e
fez campanha em rádios e jornais. Seu objetivo era fazer com que o
HORA DO CHÁ 79

pleito fosse discutido pela opinião pública e deixasse de ser decidido


pelos rituais de reverência e pela troca de favores. Oswald era um
polemista do tipo que causava horror aos velhos acadêmicos desde
muito tempo. Em 1930, foi detido pela polícia quando se dirigia ao
{e...,,.., tA--- -~ /) /) Petit Trianon munido de um chicote, com o qual pretendia castigar o
~- 'f; t~ !u.d,L / /-'(.,t,,,_,L,; 4 I acadêmico Olegário Mariano por causa de uma intriga literária.
Na ocasião de sua candidatura, Oswald dirigiu uma carta a cada
r~ 11mdos acadêmicos, a peça mais ousada já vista até então na casa. Co-
meçava nos seguintes termos: "Será Vossa Senhoria uma das raras in-
teligências desse Grêmio que compreendem a atual situação do mun-
do, e, portanto, a da própria Academia? (... ) Ou será Vossa Senhoria
daquelas teimosas velhas de Botafogo que ainda acreditam no pavo-
neio dos títulos literários, roubados aos verdadeiros trabalhadores da
cultura?". E terminava pedindo o voto com uma ameaça: "O futuro
julgará essa eleição mais do que essa eleição me julgará". A estratégia
naturalmente fracassou. Oswald obteve um único voto, no pleito que
elegeu Manuel Bandeira, com sua campanha cordial e subserviente.

12.<-...
-
O utro modernista a tentar uma vaga foi Emiliano Di Cavalcanti, pin-
tor com veleidades literárias, autor de dois livros de memória, de crô-
nicas de jornal e que também se arriscou na poesia. Foi candidato duas
vezes, em 1964 e 1967. Na primeira, retirou sua candidatura antes da vo-

tação e, na segunda, perdeu para o hoje obscuro Fernando de Azevedo,
/kv:l., ~
I
sociólogo e educador mineiro. Di Cavalcanti foi colunista de jornal de
relativo sucesso, mas sua produção poética deixa a desejar. É autor dos
versos: Sou poeta (asneira)!Dojeito de Manuel Bandeira... /Sou um meni-
)!~~ /~ 4:u, no perdido/Deolhossujos alcoolizados/Aprocurarnos vendavais/Vinicius
de Moraes!.Não foram, no entanto, as rimas pueris que impediram seu
ingresso na Academia, mas a falta de traquejo na campanha. O pintor
não visitou os acadêmicos, segundo alegou, por causa de problemas de
saúde. Outro pecado foi escrever uma carta-padrão, datilografada, aos
imortais, na qual expunha seus feitos artísticos. Não se esforçou minima-
mente em, segundo suas palavras, "exibir uma falsa modéstia que, por ser
falsa, muito difícil me seria assimilar". A altivez da carta irritou os sensí-
veis e também imodestos acadêmicos. Dizia um trecho: "Por muitos sou
considerado uma espécie de patriarca das artes nacionais; e meu nome,
permita que o diga, pertence à história das mesmas artes, como animador
principal que fui da famosa Semana de Arte Moderna de 1922, conforme
' podem testemunhar vários acadêmicos que dela participaram. Não pre-
ciso encarecer, pois decerto não a ignorais, a importância capital que teve
tal movimento na evolução da nossa literatura e nas nossas artes em geral,
no presente século". No dia da eleição, obteve apenas sete votos.
Um dos mais celebrados poetas brasileiros, Jorge de Li1na fez uma
campanha muito mais diligente que a de Di Cavalcanti. É possível que
o exagero no agrado aos acadêmicos tenha provocado efeito inverso ao
desejado e contribuído para seu fracasso. ''O caso de Jorge de Lima é
um mistério. Era um grande escritor, um grande poeta e tinha creden-
ciais para se tornar acadêmico", disse Alberto Venancio Filho. Em me-
nos de uma década, o poeta candidatou-se cinco vezes e perdeu todas.
. Na primeira eleição, em 1936, obteve apenas quatro votos. Na segunda,
• I um ano depois, perdeu para Cassiano Ricardo pelo arrasador placar de
• 18 a 5. Em 1944, candidatando-se duas vezes, perdeu sucessivamente
1
para Peregrino Júnior e Vianna Moog. Autor de livros fundamentais
da poesia brasileira, como Invenção de Orfeu e Anunciação e encontro
80 HORA DO CHÁ Meu eminente a.migo e presado confrade Filinto de hlm&ida,

ratifico por meio desta a participaç5o que lhe f:iz. de minha


candidatura á Ao&derrla conoorrendo á vug& de meu oonterraneo
Goulart de Andrade.~ vaga f de poeta e me po.rece que com seis
voluines de poemas Já publicados não serei um intl'uso entre os
poet~s daquell~ egregla companhia. De uma vez e~ lhe pedi seu
voto:fol no preenchimento da vaga de Rocha Pombo.Corno se trata-
va de Ulll&vaga de historiador,eu retirei em teapo mlnba cand1-
datura.A~ora o poeta deseJa succeder a seu conterraneo poew .
desapparectoo.E o poeta que te~ merecido a holll'a de ser decla-
mado por ll&rgorida Lopes óe Al«eida pede-lhe ~ue ampare a sua
candidatura,que o apoie com o seu grande senso de justlça,co~
o seu prestigio e com. a sua bondade. Brev~mente irei v1s1t4-
Alguns dos maiores lo para ouvir o seu conselho e sentir melhor sus generosa aco-
escritores brasileiros lhida.
, .
tentaram por varias vezes, Sem mais ,sou seu acigo,admirsdor gratissimo:

sem sucesso, urna cadeira


na Academia, entre
Rio,27 de Dezembro de l9õG Prnço Floriano 55 IIº andar .
eles Jorge de Lima,
Mario Quintana
e Lima Barreto

de Mira-Celi, Jorge de Lima foi também médico e político. Chegou a


ser cotado para o Prêmio Nobel de Literatura.
Suas campanhas seguiram fielmente os rituais da casa. Ele fez as
visitas protocolares de beija-mão, escreveu aos acadêmicos pedindo
votos, adulou os mais arredios e chegou a apressar a feitura de uma
importante coletânea, Poemas negros, para aumentar as chances de
sua candidatura. "Na época, mandou carta a Lasar Segall, ilustrador
da obra, cobrando os desenhos porque ele imaginava que o novo livro
pesaria na eleição", diz o pesquisador Daniel Glaydson Ribeiro , que
estudou a obra de Jorge de Lima. O poeta chegou a pedir a seu amigo
Georges Bernanos, escritor francês exilado no Brasil, que escrevesse
aos acadêmicos em favor dele. Foi pedir voto até a Margarida Lopes,
filha do acadêmico Filinto de Almeida, que tinha influência nas deci-
sões do pai. O acadêmico Clementina Fraga certa vez declarou: "Ele
era um ingênuo. Imagine que, uma vez, sendo candidato, mandou-me
um telegrama de quarenta palavras para dar-me os parabéns a uma
Jorge de Lima (acima) se
neta minha , de 10 anos, cujo aniversário um jornal noticiara". Nesse ded icou com afinco às cinco
caso, é possível que o excesso de empenho de Jorge de Lima tenha mi- eleições de que participou,
nado sua intenção de ingressar na casa, demonstrando que no pleito todas fracassadas. De
nada adiantaram as visitas
acadêmico mesmo a bajulação, quando em excesso, pode ser um erro. aos acadêmicos e as
cartas elogiosas, como a
áginas tristes na história da instituição foram as derrotas de Ma- reproduzida no alto. Em 1940,

P rio Quintana. O poeta gaúcho perdeu três vezes num espaço de


dois anos. Descrito por amigos como um sujeito "puro, simples e in-
Oswald de Andrade (à dir.)
fez campanha em rádios e
jornais. Teve apenas um voto
capaz de qualquer manobra", Quintana foi convidado em 1980 por
alguns acadêmicos a se candidatar à vaga aberta com a morte do
HORA DO CHÁ 81

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poeta Otávio de Faria. Tinha 74 anos de idade, uma vasta e delicada
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produção poética e o histórico de nunca ter se batido por qualquer
ô glória literária. O convite insuflou-lhe o desejo da imortalidade, mas,
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:::, Em sua primeira
o campanha, Maria Ouintana logo que aceitou se candidatar, Quintana sentiu o peso da disputa. Na
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(abaixo) não aguentou a
o
o - . mesma ocasião, Eduardo Portella, ministro da Educação do governo
~ pressao e precisou ser
(J)
w internado numa clínica militar de João Baptista Figueiredo, demonstrou interesse em con-
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..,
psiquiátrica. Foi der rotado correr à mesma vaga e deu início a uma violenta campanha eleitoral.
(!) por Eduardo Portella, Atirado ao centro de uma batalha político-literária, Quintana não
:%
~ ministro da Educação do
:::,
o governo militar de João aguentou a pressão e teve de ser internado numa clínica psiquiátrica em
~ Baptista Figueiredo Porto Alegre. Dizia uma reportagem de jornal: "Pressões, jogo político,
telefonemas de alguns acadêmicos para que Mario Quintana retirasse
sua candidatura, o assédio da imprensa, noites sem dormir, sem comer
desestabilizaram emocionalmente o poeta". Na época, o deputado gaú-
cho Carlos Chiarelli fez um discurso na Câmara defendendo Quintana, e
foram colhidas mais de 1.200 assinaturas a favor de seu ingresso na casa.
O resultado da eleição, realizada em março de 1981, foi um golpe
em sua autoestima: perdeu por 31 votos a 6 para o ministro da Edu-
cação. Eduardo Portella ficou 36 anos na Academia, até sua morte,
em 2 de maio do ano passado. Na sexta-feira 16 de março, o poeta,
filósofo e compositor Antonio Cicero assumiu a cadeira 27, cuja dis-
puta trouxe tantos dissabores a Quintana.
Apesar dessa primeira derrota , instado novamente por amigos aca-
dêmicos, o poeta gaúcho decidiu meses depois se candidatar para a vaga
que surgiu com a morte do escritor e diplomata Osvaldo Orico. Perdeu
outra vez, agora para Orígenes Lessa, que já havia sido preterido no ano
anterior para a entrada do então senador e futuro presidente da Repú-
blica José Sarney e que estava, portanto, havia mais tempo na fila.
A última candidatura de Quintana foi em 1982, numa campanha
aparentemente vitoriosa, mas que acabou por perder o rumo. O poeta
passou uma temporada no Rio de Janeiro em busca de votos, escreveu
aos acadêmicos e era franco favorito. Em carta dirigida a Otto Lara
Resende, dizia que estava novamente candidato, "satisfazendo assim
as esperanças de minha gente e de minha terra e antes de tudo o meu
próprio e antigo sonho de poder contar-me um dia entre os membros
da casa". Acabou derrotado pelo jornalista Carlos Castello Branco.
Seu cabo eleitoral na Academia, o gaúcho Vianna Moog, considerou
"prejudicial, inverídica e forjada" uma entrevista concedida pelo poeta
justo na semana da eleição, em que ele declarava que "só se elegem
para a Academia os amigos do presidente da República". Pode ter sido
o tiro de misericórdia em seu projeto.

A o longo de sua história, a instituição imortalizou grandes nomes da


literatura brasileira, como Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Jor-
ge Amado, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e outros. Ao mesmo
tempo, foi pródiga em acolher políticos em seus quadros, entre eles Ge-
túlio Vargas, Lauro Müller, José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e
Marco Maciel. "Existe um combinado de motivos que faz um imortal
ser eleito ou não, de forma que é até difícil prever quem será ou quem
não será acolhido. É um caso diferente, por exemplo, o da Academia
Brasileira de Ciências, onde é proibido fazer campanha e os nomes são
escolhidos por uma comissão que julga estritamente em cima dos mé-
ritos científicos", disse o historiador e acadêmico José Murilo de Carva-
lho. Está agora em aberto a vaga do escritor e jornalista Carlos Heitor
Cony, que morreu em 5 de janeiro deste ano. _________ _
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CONRADO HÜBNERMENDES É DOUTOR PABAQUEM


EM DIREITOE PROFESSORDA USP
JOAO TRABALHA?

J oão Doria orgulha-se de sua capacidade de trabalhar,


de acordar cedo, de acelerar. É sua distinção de mérito,
virtude superior do "João trabalhador". Em seu compas-
Essas credenciais não in spiram admiração, mas preocu-
pam menos do que outros traços de seu estilo. Sua sorriden-
te e calculada ojeriza à política esconde perigo maior. "As
so de valores, abomina a preguiça antes de qualquer ou- pessoas vota ram em mim para ser um bom prefeito, não
tra coisa. Importante saber quanto João trabalha. Mais para ser um bom político", dizia. A embalagem é velha e
importante, porém, é saber para quem João trabalha. infantilizadora. A democracia dispensa apolíticos. Estes
Prestes a trair o compromisso público de concluir seu ignoram a ética da vida pública, que rejeita os dois elemen-
mandato , um ano depois de assumir seu primeiro cargo tos mais marcantes da personalidade de João: a alergia a
eletivo, o momento é propício para a pergunta. direitos e a indisposição com separar o público do privado.
Esse curto período deu amostra suficiente sobre seu Direitos iguais nunca ornaram seu berço. No episó-
esti lo de governar. dio da greve gera l, João chamou grevistas de vagabun-
dos. Sugeriu que se manifestassem fora do expediente,
Poderíamos começar pela no intervalo de almoço. Diante da crítica jornalística,
vulgaridade do hábito de exibir persegue a jornalista. Quando da performance de corpo
em redes sociais cada passo nu em exposição no MAM, "tudo tem limite" foi o que
teve a dizer. Quando vereadores passaram a visitar salas
que dá; de gravar em vídeo de aula da rede pública para patrulhar a "doutrinação
saudação a Emannuel Macron por ideológica" , o silêncio do prefeito levou seu secretário de
sua eleição a presidente da França Educação a pedir demissão. João bate continência aos
movimentos antiliberais brasileiros.
ou a demissão da secretária Soninha Francine, descon- Do berço, por fim, vem sua dificuldade de enxergar a
certada com a cena insólita; de entrevistar celebridades linha que separa o público do privado. Episódios de sua
genéricas, que pouco têm a dizer sobre os desafios da ci- vida privada já o denunciavam: invadiu área pública para
dade; de converter-se em dublê de gari estilizado e par- ampliar sua casa em Campos do Jordão; mandou mensa-
ticipar da limpeza urbana em clima festivo; das mani- gem ao diretor da empresa Oi para antecipar instalação de
festações gratuitas de agressividade contra adversários linha telefônica em seu condomínio em Trancoso, ignoran-
dentro e fora do partido. do prioridades e interesses de acionistas. Quis furar fila e
Poderíamos também apontar sua pressa e seu reforçou o pedido citando vizinhos ilustres, como Nizan
destempero, qualidades que, por definição, não pro- Guanaes e Roberto Carlos. Deu carteirada de celebridade.
duzem boa política pública. A abrupta mudança de No exercício do mandato, empresas associadas ao
velocidade nas vias conhecidas como Marginais, a LIDE, o negócio de Doria, têm sido interlocutores cen-
truculenta e desastrada intervenção na Cracolândia, trais sobre os destinos da cidade. Eve ntos do próprio LIDE
as ações cosméticas de zeladoria da "Cidade Linda" e vendem a presença do prefeito. Fazem também doações à
o enfraquecimento da Controladoria-Geral do Muni- prefeitura, prática que João entende inovadora. Ele só não
cípio são exemplos de ações que passaram por cima contou que entre as doações também existiam, por exem-
de opiniões técnicas e jurídicas. Falharam em entre- plo , remédios perto de vencer. Tiveram de ser descartados,
gar o que prometeram. Acuada diante das críticas, a com custo transferido à prefeitura. Não surpreende que a
prefeitura ainda boicotou informação e jogou contra a revisão do Plano Diretor siga diretrizes do mercado imo-
transparência e a moralidade administrativa. Entre as biliário (Secovi). O patrimonialismo está em toda parte.
más ideias empurradas goela abaixo - e ideias piores Há coisas que não se sujeitam à troca, à compra e venda
das quais desistiu a contragosto, como a infeliz "fa- e ao favor amigo. Isso foge à compreensão de João. A fide-
rinata" - , seu experimentalismo de impro v iso cons- lidade ao eleitor vale pouco. João diz que traba lh a para o
trange o próprio secretariado. povo , mas já passou da hora de indagar que povo é esse. __

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