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Bertrand Editora
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
www.bertrandeditora.pt
editora@bertrand.pt
Tel. 217 626 000
ISBN: 978-972-25-3880-0
Àqueles que nunca tiveram
nenhuma hipótese
1
2002
De regresso à esquadra,
Chandler explicou a situação à
equipa.
— Achas que ele é o assassino?
— perguntou Tanya sem olhar para
cima.
Chandler queria permanecer
imparcial, mas era difícil. As coisas
não pareciam boas para Gabriel,
mas lembrava-se de que ele
quisera sair da cidade e afastar-se
da ameaça à sua vida. Era o tipo de
medo que tornaria a ideia de fuga
difícil de resistir.
— Vamos ter de trazê-lo para cá
e ver — respondeu Chandler. — O
Jim anda à procura dele agora. Eu e
o Luka também iremos. Tanya e
Nick, vocês ficam aqui.
— Porque sou mulher? — Tanya
franziu o sobrolho, olhando para
cima da pilha de formulários na sua
mesa.
— Não, porque confio em ti para
vigiares o suspeito que temos.
— Não achas que está na altura
de ligar para o comando? —
perguntou ela.
A equipa olhou para ele.
— Nós os três não podemos
cobrir toda a cidade — observou
Luka.
Tanya assentiu.
— Ele tem razão.
Chandler sabia que sim.
Também sabia o que implicaria
ligar para o comando e, mais
especificamente, quem implicaria.
Mitch.
Em tempos, tinham sido os
melhores amigos, subido na vida,
entrando na polícia na mesma
turma e sob as mesmas
circunstâncias trágicas. Em 2001,
perto de Newman, um acidente de
avião matara vários agentes e
abrira vagas para novos recrutas.
Uma maneira trágica de conseguir
uma oportunidade.
De início, Chandler nem pensara
em candidatar-se. Tornar-se polícia
não estava nos seus planos.
Deixara-se andar, com um trabalho
na CJ’s Grocery Store, a encher
prateleiras e a pirar-se para as
traseiras sempre que tinha
oportunidade. Mitch fora a única
razão por que se candidatara. E por
sua vez Mitch só se candidatara
devido à pressão da família. O tio
fora um dos agentes que morrera.
Chandler completara o
requerimento, em parte por
solidariedade com Mitch, e em
parte por curiosidade, para saber se
o aceitariam.
Tinham feito juntos o juramento
em agosto de 2001. Ele estivera ao
lado de Mitch, orgulhoso e
espantado em igual medida, os
distintivos brilhantes presos no
peito da farda.
Após a formatura, foram
colocados juntos em Wilbrook, na
parte inferior da escada. Ambos
iriam subi-la a custo. Só que não
ali. Não juntos.
2002
Fechando-se no gabinete,
Chandler ouviu a gravação que
fizera naquela manhã, absorvendo
as vozes que brotavam das colunas.
A voz de Gabriel era já quase
uma memória distante, gerando
uma profunda apreensão em
Chandler por tê-lo deixado ir em
liberdade, mesmo que não pudesse
ter sabido na altura que era a
decisão errada. Ouviu todo o
interrogatório, tentando visualizar a
declaração e os maneirismos de
Gabriel, identificar onde diferiam
dos de Heath, as alturas em que
Gabriel parecera fraco ou pouco
claro, algo que o ajudasse a decidir
contra ou a favor dele.
Enquanto ouvia Gabriel explicar
que seguira a sugestão de procurar
trabalho no interior, o instinto de
Chandler foi acreditar na voz
sedosa que vinha da gravação.
Talvez fosse o tom moderado que o
fez acreditar, ou apenas porque a
história de Gabriel lhe fora contada
primeiro, mas inconscientemente
isso fazia-a parecer mais
verdadeira, a versão da música
ouvida primeiro e que na sua
cabeça se tornou a original.
A gravação continuou. A
desilusão de Gabriel por Heath não
ter seguido viagem. Desilusão
genuína. A descrição do carro —
idêntica à de Heath na cor e na
inutilidade. Em seguida, a frase:
«Nenhum assassino se apresenta.»
Chandler parou a gravação.
Nenhum assassino se apresenta.
Dita como se entendesse o que
um assassino faria, como um
assassino agiria.
Carregou no play. A voz de
Gabriel continuou, explicando que
tinham viajado para o interior,
Heath convencendo-o de que
conhecia lugares melhores para
encontrar trabalho, ordenados mais
justos. Bebendo a água, o gosto
estranho e a descrição vívida de
como isso o paralisara. O barracão
e estar algemado à parede. As
algemas e a bancada de trabalho.
Uma descrição clara do aposento e
do conteúdo.
A ameaça de se tornar o número
55. Tentar libertar-se. As marcas
vermelhas nos pulsos e mãos — em
ambos os pulsos e mãos — de
quando se soltara. A descrever
Heath na secretária desarrumada,
os planos e papéis, a cruz na
parede. Um relato pormenorizado.
A fuga e as campas. Cair no
precipício. Acordar e ver Heath ao
seu lado. Fugir sem verificar se o
seu captor ainda estava vivo antes
de chegar à povoação de bicicleta.
Era uma escolha estranha. Não
o meio imediato de transporte que
Chandler escolheria se estivesse a
mentir, mas também um que era
difícil de confirmar. Além disso, era
uma distância grande de Hill até à
vila. Qualquer pessoa que estivesse
a ser perseguida por um assassino
poderia certamente ter encontrado
algo melhor.
Como tentar roubar um carro.
O depoimento de Gabriel
terminava ali, mas Chandler pensou
no que Gabriel dissera depois,
sobre não ter para onde ir, um
homem sozinho no mundo, um
homem sem vínculos.
Recostando-se na cadeira,
meditou nos pormenores. O que
fazia sentido e o que não fazia e o
que era suspeito. No cimo dessa
lista estava o comentário: nenhum
assassino se apresenta. Uma
declaração extraordinária, uma
verdade fria. Havia também a
excelente descrição do barracão e
da cabana, incluindo a cruz na
parede. Demasiado bem
imaginada. Talvez mais do que
seria visto num olhar relanceado de
pânico, talvez um lugar visto mais
do que uma vez. Mas, por outro
lado, o medo podia ter apurado os
sentidos de Gabriel, armazenando
os pormenores no seu esforço para
fugir.
Com o depoimento de Gabriel
fresco na memória, Chandler
voltou-se para o de Heath. A
primeira coisa que se destacava era
a falta de informação sobre o seu
destino, como se não tivesse tido
tempo de preparar o depoimento
com antecedência. Nada mais se
destacava entre as duas histórias
até ao momento de ele ser
drogado. A lembrança de Heath era
certamente mais nebulosa, a
nebulosidade continuando ao longo
da sua explicação de como fugira,
um pouco menos descritiva, os
pormenores bloqueados pelo medo,
um tremor na voz quando recordou
isso, tenso mesmo na altura, como
se naquele momento estivesse de
volta ao barracão, acorrentado à
parede e a tentar libertar-se. A
nebulosidade era apropriada se ele
realmente tivesse sido drogado,
mas Chandler perguntou-se se seria
um artifício, encobrindo pormenores
de propósito, tentando demasiado
parecer inocente.
Havia novamente poucos
pormenores sobre a fuga de Heath,
uma breve menção de Gabriel à
mesa antes das campas, o encontro
na floresta e a queda. Acordar ao
lado de Gabriel e fugir. O que se
seguia era uma parte que
preocupava Chandler, a fúria
mostrada quando fora acusado de
roubar o carro, a fúria e a falta de
remorso, insistindo que aquilo tinha
de ser feito. O temperamento
revelado e o temperamento que
ainda exibia na cela, a forma como
torcia a corrente em volta do
pescoço, recordando a Chandler a
que fora descrita como pendurada
na cabana.
Havia pontas soltas em cada
história. Chandler precisava de uni-
las para encontrar a verdade.
13
2002
2002
Na viagem de regresso à
esquadra, Chandler refletiu no facto
de, mais uma vez, lhe terem tirado
a liderança. Voltava a ser um moço
de recados.
Ia distraído e não prestou muita
atenção quando parou no
estacionamento. Ao sair do carro,
olhou para o outro lado da estrada
em direção à padaria. O especial
Cheesy Chicken chamava-o, mas os
seus olhos foram atraídos para o
beco ao lado e para a mão que
surgiu durante uma fração de
segundo. Era o beco que as
crianças locais costumavam usar
para chegar ao campo de futebol
atrás.
O seu instinto disse-lhe para
investigar, mandar as crianças
embora com o aviso de que
ficassem dentro de casa. Avançou
até à esquina e saltou para
surpreendê-las. Ficou chocado.
Alguns metros à frente,
segurando o que parecia uma faca
de trinchar com cabo comprido,
estava Gabriel.
Estendeu a mão para a arma,
mas falhou, pois a mão tremia-lhe.
Gabriel recuou alguns passos.
Chandler avançou alguns,
finalmente agarrando na arma e
tirando-a do coldre.
— Fique aí e pouse a faca,
Gabriel.
Gabriel recuou, a faca a abanar
na mão, como se quisesse largá-la,
mas não conseguisse que os
músculos concordassem. Tinha o
rosto retorcido de dor ou de
choque, quase como se tivesse
desmaiado e acordado naquela
cena tensa.
— Gabriel, largue a faca!
Chandler tentou falar alto e com
clareza, para não ser mal
interpretado.
Gabriel olhou para a faca e
depois para Chandler.
— Largue-a, Gabriel!
A mão de Gabriel tremeu, mas a
lâmina permaneceu apontada a ele.
O dedo de Chandler pousou no
gatilho. Que diabo estaria Gabriel a
fazer tão perto da esquadra? Era
quase como se quisesse ser
apanhado. Ou morto por ameaçar
um agente.
— Gabriel, não quero…
Como se de repente se
descolasse, a faca caiu no chão e as
mãos de Gabriel subiram em sinal
de rendição.
Chandler aproximou-se com
cautela.
— Encoste-se à parede.
Gabriel obedeceu, com as mãos
estendidas contra o tijolo.
Chandler foi cauteloso ao baixar
para as costas os braços magros de
Gabriel, ignorando o grito abafado
de dor.
— Por favor… — implorou
Gabriel.
— Porque fugiu do hotel? —
perguntou Chandler, sem esperar
pelo regresso à esquadra para
iniciar o interrogatório. — Onde foi?
E porque está de novo aqui?
— Não sei — gemeu Gabriel.
— E o que estava a fazer com a
faca?
— Precisava de proteção dele.
Estava à espera que ele aparecesse
em cada esquina. Não me sentia
seguro.
Nem Chandler, sozinho com o
suspeito no beco.
— Deite-se no chão! — ordenou.
Parte da natureza maleável de
Gabriel desapareceu com a ordem
gritada.
— Não precisa de fazer isso,
senhor agente — retorquiu. —
Estou a entregar-me. Lamento ter
fugido, mas senti medo encafuado
naquele quarto como se estivesse
preso. Como se estivesse de novo
no barracão. Não consegui lidar
com isso, então tive de sair,
arranjar algum espaço.
— Mandei-o deitar-se, Gabriel.
— Só queria sair…
Como o suspeito se recusava a
obedecer, Chandler não teve
escolha a não ser torcer o pulso do
jovem e forçá-lo a ficar de joelhos.
Gabriel gritou e tentou afastar-se,
mas os seus joelhos cederam e ele
caiu. Agarrando as algemas, o
coração a galopar, as mãos
cobertas de suor, Chandler lutou
para abri-las antes de enfiá-las com
firmeza em volta dos pulsos de
Gabriel. Só nesse momento se
permitiu descontrair um pouco,
guardando a arma no coldre e
levantando o prisioneiro.
— Não precisa de fazer isto… —
Gabriel silvou de dor.
— Já fugiu uma vez.
Gabriel ficou em silêncio.
— Para onde foi depois do hotel?
— perguntou Chandler.
— Está bem, está bem. Tentei
arranjar um carro, mas estavam
trancados. Não queria ficar na rua
para o caso de o Heath chegar
também à povoação, então sentei-
me num beco. Não sei onde… não
sei quanto tempo. Depois ouvi
algumas pessoas dizer que tinham
apanhado um tipo chamado Heath.
Fiquei tão aliviado.
— Porque não se entregou?
— Estava a ganhar coragem.
Com Gabriel algemado, Chandler
virou-o na direção da esquadra.
Onde se poderia esperar uma
fanfarra, não havia nada além de
uma rua vazia e cinzenta.
— E tem coragem agora?
— Não quero que ele saia para
matar novamente. Não me
perdoaria se ele fosse libertado só
porque entrei em pânico. Quero ser
um bom samaritano, portanto não
precisa das algemas.
— Preciso, sim — respondeu
Chandler, alcançando as portas da
esquadra. Decidiu testar o regresso
do autoproclamado filho pródigo. —
Estava certo quanto a termos o
Heath. Mas ele está a contar
exatamente a mesma história que
você.
— Que história? — perguntou
Gabriel, tentando soltar-se de
Chandler.
— A mesma que você contou.
— Então isso é bom, não é? —
Gabriel pareceu esperançoso. —
Confirma o que eu disse.
— Não, senhor Johnson, é
exatamente a mesma história. Mas
a implicá-lo a si como o assassino.
O prisioneiro resistiu. Chandler
segurou os pulsos de Gabriel com
mais força.
— Isso é mentira. Não acredita
nele, pois não? Ainda está preso?
Não o deixou sair, pois não? —
exclamou Gabriel, olhando para as
portas. — Eu disse-lhe a verdade.
Mentir é pecado, sargento. Foi
assim que me educaram.
— Posso garantir que ele está
preso. Está em segurança.
Gabriel olhou para ele, as
lágrimas a ameaçarem cair dos
seus olhos.
Quando Chandler levou Gabriel
para o interior da esquadra, Nick
ficou de queixo caído e saltou da
cadeira, que bateu na parede já
marcada.
Chandler permitiu-se um
pequeno sorriso. A vitória sabia
bem, Mitch a vasculhar a quinta de
Turtle em busca de pistas sobre o
paradeiro de Gabriel enquanto ele
tinha o homem em causa preso.
— Onde o encontrou? —
perguntou Nick, procurando a
papelada para preencher, mas
mantendo os olhos no segundo
potencial assassino em série que
tinham detido naquele dia.
— Caiu-me no colo.
Olhou em volta em busca dos
dois lacaios de Mitch, Bill e Ben, ou
quaisquer que fossem os seus
nomes. Nick antecipou a sua
pergunta.
— O inspetor contactou-os pelo
rádio e mandou-os ir até à quinta
do Turtle. Disse que o sargento
vinha para cá substituí-los. Ainda
bem que chegou. Estava a sentir-
me sozinho.
— Onde está o Heath? —
perguntou Gabriel, os nervos a
fazerem-no tremer.
— Nas celas.
— Não me ponha lá também.
— Temos de pôr. Por enquanto
— respondeu Chandler. — Cela três,
Nick.
— E onde está ele?
— Não na cela número três —
respondeu Nick.
— Oh — fez Gabriel. Chandler
continuou a sentir o tremor
reverberar pelo seu prisioneiro
enquanto Gabriel olhava para ele.
— Lamento o que aconteceu mais
cedo, sargento. O ter ficado agitado
e isso. Estava tão assustado… —
Gabriel parou.
— Não vai estar na cela muito
tempo — tranquilizou Chandler.
— Ótimo. — A preocupação no
rosto do suspeito pareceu diminuir.
— Vai libertar-me?
— Não. Temos de o interrogar
de novo.
A preocupação regressou.
— Porquê? Já tem a minha
história. Não mudou.
— Vamos precisar dela
novamente. Com mais pormenor.
— O que quer dizer? — Gabriel
franziu a testa.
— Esclarecemos isso depois.
— Certo. Tem a certeza de que
ele está seguro?
— Tão seguro como você vai
estar daqui a um minuto.
O prisioneiro estremeceu de
nervosismo.
— Não podemos fazer o
interrogatório noutro lado, como
naquele hotel?
— Não depois da última vez —
respondeu Chandler, severamente.
Não ia voltar a cair na esparrela. Se
o fizesse, mais valia demitir-se em
vez de esperar que Mitch o
expulsasse da corporação.
— Não vou fugir.
— Não importa. Todo o nosso
equipamento de gravação está
aqui. E você também — disse
Chandler, acrescentando: —
Descontraia-se. Não está sob
ameaça.
Gabriel fez uma careta, as rugas
profundas a envelhecer o seu rosto.
— Depois de termos sido
drogados, capturado, perseguidos
pelo campo e nos dizerem na cara
que vamos ser assassinados, há
ameaça em toda a parte, sargento.
Um assassino em todas as sombras.
Rangendo os dentes, Gabriel
fechou os olhos. Inspirou
profundamente pelo nariz.
— Mas estou pronto a enfrentá-
lo, se for preciso.
— Não vai precisar de enfrentá-
lo — declarou Chandler, levando-o
até à porta das celas. — Apenas de
responder a algumas perguntas.
Quando estava prestes a entrar
nas celas, gritou por cima do
ombro:
— Nick, prepara a sala de
interrogatórios!
— E os bloqueios de estrada,
sargento? E informo o inspetor que
o temos?
Chandler hesitou. Devia cancelar
as buscas imediatamente, mas não
havia mal nenhum se elas
continuassem durante algum
tempo. O perigo estava fora das
ruas. Gabriel e Heath.
— Dá-me meia hora — pediu
Chandler.
Com um aceno hesitante, Nick
voltou para a receção. Chandler
ficou desconfiado. Iria o seu jovem
agente obedecer-lhe ou iria contar
a Mitch e aos outros? Na idade
dele, Chandler teria seguido todas
as ordens dadas pelo seu superior,
mas Nick não parecia sofrer desse
tipo de lealdade cega. Dada a
conduta atual de Chandler, isso
podia ser bom.
Quando se aproximaram da cela
número três, Gabriel começou a
tentar fugir das mãos de Chandler,
direcionando o seu corpo para
longe da cela que o aguardava.
— Ele está aqui? — sussurrou
Gabriel, falando tão baixo que
Chandler inicialmente pensou ter
imaginado. Não respondeu e
continuou a puxá-lo para as celas.
2002
A conferência de imprensa
começou com Mitch nos degraus da
esquadra, flanqueado pelos seus
esbirros, o fato recém-escovado, a
olhar de cima para os jornalistas.
Era surreal ver Mitch pavonear-
se diante do que Chandler
considerara a sua esquadra, mesmo
que ele não passasse de uma
engrenagem na máquina. Uma
engrenagem maior ocupara o seu
lugar.
Enquanto ele falava, os flashes
dispararam e os jornalistas
disputaram a melhor posição do
microfone, cada um a tentar captar
o som perfeito do circo que chegara
à cidade, alimentado pelos rumores
nas redes sociais e pelos bloqueios
de estrada.
Mitch respondeu às perguntas
que lhe foram feitas, concentrando-
se em cada pessoa, um político
nato. Era todo sorrisos e acenos, as
suas mãos a moverem-se com
firmeza para tentar incutir uma
sensação de confiança. Era bom a
falar sem dizer nada.
— Como com certeza
compreendem, não posso dar
muitos pormenores nesta fase…
Porque não os sabes, pensou
Chandler.
— … porque é muito cedo para
discutir certos aspetos de uma
investigação em curso. Tudo o que
posso dizer é que atualmente
temos duas pessoas detidas que
estão a ajudar-nos na investigação.
Câmaras e microfones agitavam-
se para a frente e para trás diante
de Mitch, como algas marinhas na
maré alta.
— Investigação sobre o quê? —
perguntou alguém.
A pergunta provocou outro
sorriso vencedor.
— Quando chegar o momento,
podem ter a certeza de que vos
informarei dos pormenores.
Uma pergunta difícil afastada.
Surgiu a seguinte.
— É verdade que um dos
suspeitos escapou, e foi por isso
que montaram os bloqueios de
estrada? Teve um suspeito à solta,
inspetor, e não informou a
população desse facto?
Mitch resfolegou.
— Nada tão sinistro. A pessoa
que procurávamos nessa fase não
tinha como entrar em contacto
connosco, e por isso decidiu-se que
uma série de bloqueios de estrada
era a única opção adequada para
garantir o contacto com ela.
Portanto, nada sinistro. Não preciso
que a imprensa espalhe medo e
rumores.
Por mais que desprezasse Mitch,
Chandler teve de admitir que havia
grande competência na forma como
ele lidava com a multidão.
Agradecendo a todos por terem
vindo, Mitch pediu aos jornalistas
que respeitassem o trabalho que a
polícia agora tinha de fazer.
Terminou, desejando a todos a
sorte de encontrar um local para
passar a noite, brincando em
particular com uma repórter loira
sediada em Port Hedland ao
comentar que talvez tivesse de
dormir na carrinha da estação
televisiva. Ele está a fazer amigos,
pensou Chandler, amigos em todos
os sítios certos.
Mas Mitch não terminara.
— Para finalizar, posso apenas
referir que todas as futuras
perguntas devem ser dirigidas ao
sargento Chandler Jenkins — disse
Mitch, apontando para Chandler —,
que é, como todos sabemos, o
chefe desta esquadra.
Com isso, Mitch afastou-se,
deixando Chandler no papel da
caixa de correio relutante.
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Elaborou-se um plano. A
primeira paragem foi no salão da
igreja, depois nos bares locais,
depois nas quintas dos Carty, dos
East e dos Bolton. A seguir, foram
identificadas outras quintas
próximas com várias pessoas: as de
Toady Cook, Izzy Cheelie, Old Ma
Reisling, Mincey Amaranga e suas
famílias.
Chandler telefonou ao reverendo
Upton, acordando-o. Já passava
bastante das nove da noite, a sua
hora de deitar habitual. Embora
aborrecido, confirmou que tinham
abordado a ideia de uma oração à
meia-noite, mas que a opinião geral
fora ficar em segurança dentro de
casa. Nada ia acontecer no seu
salão e nada aconteceria sem a sua
aprovação.
Três equipas foram enviadas aos
bares locais e Mitch telefonou para
as quintas. Roxanne Carty atendeu
ao segundo toque, irritada por ter
de interromper o seu programa
televisivo. Izzy Cheelie rosnou pelo
telefone a dizer que não havia
ninguém na sua quinta que ele não
tivesse convidado. As outras não
atenderam. Embora o serviço
telefónico pudesse ser descrito
como esporádico, os silêncios eram
preocupantes.
Mitch enviou carros para
verificar as pessoas que não tinham
atendido o telefone, passando pelo
salão da igreja a fim de ter a
certeza absoluta. As equipas
correram para os carros, um jogo
de cadeiras que ninguém queria
perder. Chandler puxou Tanya e
Luka para um lado.
— Preciso que vocês os dois
fiquem aqui, caso ele volte pelo
Heath.
— Não quero — declarou Luka.
— Precisamos de manter… —
começou Chandler.
— Agente, porque é que ainda
não saiu? — interrompeu Mitch às
voltas no gabinete, esfregando o
polegar no indicador com
ansiedade.
— Quero que o Luka fique aqui
— respondeu Chandler. — Como
proteção.
— E eu quero-o lá fora —
declarou Mitch. — Como reforço.
— Eu quero estar lá fora —
implorou Luka, avançando em
direção à porta.
Chandler olhou para o jovem
colega ansioso, que implorava para
não ficar ali dentro como uma
criança de castigo.
— Vai lá — disse ele,
suspirando.
Luka não precisou que lhe
dissessem duas vezes e correu para
se juntar a Flo. Chandler virou-se
para Tanya.
— Eu fico — disse ela com um
aceno de cabeça.
— Não se preocupe, terá
companhia, Tanya — anunciou
Mitch. — Vou deixar o Roper
consigo — disse, apontando para o
homem grande desajeitadamente
preso atrás de uma secretária.
Embora não quisesse deixar
Tanya — e Nick, mais uma vez —
para trás, e preocupado com a
possibilidade de ser mais uma caça
aos gambozinos orquestrada por
Gabriel para deixar a esquadra
aberta a um ataque, Chandler sabia
que tinha de estar lá fora, a
comandar as buscas nas quintas
para tranquilizar alguns dos
moradores mais nervosos e garantir
que os seus concidadãos estavam
em segurança. Nunca ali alguém
fora morto e queria muito que as
coisas continuassem assim.
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