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James Delargy nasceu e cresceu na

Irlanda, mas viveu na África do Sul,


Austrália e Escócia antes de voltar a
Inglaterra, onde mora atualmente.
O conhecimento diversificado dos lugares,
cidades, paisagens e culturas que foi
adquirido é utilizado na sua escrita com
mestria. Tem um sonho: escrever uma
série de romances que lhe permita dar uma
volta ao mundo (nem que seja pelo prazer
de poder desfrutar da investigação).
Título: 55
Título original: 55
1.ª edição em papel: junho de 2019
Autor: James Delargy
Tradução: Ana Lourenço
Revisão: Ana Ribeiro
Design da capa: Rute Selésio

© James Delargy, 2019


Todos os Direitos Reservados.
[Todos os direitos para a publicação desta obra
em língua portuguesa, exceto Brasil, reservados
por Bertrand Editora, Lda.]

Bertrand Editora
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
www.bertrandeditora.pt
editora@bertrand.pt
Tel. 217 626 000

ISBN: 978-972-25-3880-0
Àqueles que nunca tiveram
nenhuma hipótese
1

Ardiam-lhe os pulmões como se


não estivesse a respirar oxigénio,
mas sim o pó vermelho sufocante
que se levantava a cada passo.
Passos que não o levavam a lado
nenhum. Estava no meio do nada,
isso sabia. No meio do nada, e
ainda assim o mundo estrangulava-
o, os ramos baixos a estenderem-se
para reclamarem a sua carne, para
recebê-lo permanentemente.
Quase tinham conseguido. Mas
ele escapara. Agora corria para
salvar a vida. Uma frase
descartável que nunca acreditara
vir a ter de perceber. Não se sentia
vivo, longe disso. O medo
esmagador de ser capturado
consumia tudo, e concentrava-se
em cada passo, em cada subida
pelas rochas e queda entre as
árvores. Sentia-se como um animal,
reduzido a instintos básicos de
sobrevivência, tudo classificado
apenas como perigoso ou seguro.
Os longos dedos do sol
implacável alcançavam-no através
das árvores, cozendo o chão onde
encontrava terra, salpicando o solo
despido de luz, mas sem oferecer
um caminho luminoso para a
liberdade. Havia árvores e pedras,
árvores e mais pedras da porra.
Não sabia se estava a ir na direção
da civilização ou mais para o
interior.
Ao transpor outra rocha
chamuscada pelo sol, os músculos
da barriga das pernas contraíram-
se, como se as algemas ainda
estivessem a prendê-lo. O metal
frio e enferrujado que ele achara
que o acorrentaria até que o
psicopata decidisse matá-lo. Não
conseguia parar. Apesar da dor, da
fadiga e da falta de ar nos pulmões,
não conseguia parar. Parar
significava morte.
Viu uma abertura nas árvores à
frente. O fim do inferno, esperava
ele, onde iria encontrar uma
estrada, uma quinta, um caminho
de terra, qualquer coisa que
indicasse o mundo real. Forçou
mais ar a entrar nos pulmões e
avançou para a luz. Ao levar o pé à
frente, este encontrou uma rocha
que provavelmente estava
enterrada há séculos, sem ser
perturbada até àquele momento.
Desequilibrando-se, estendeu o
braço. Encontrou apenas ar. Então
o seu ombro embateu num tronco
de árvore que estremeceu, mas se
manteve firme. De alguma forma,
ele também.
As árvores diminuíram. A luz do
sol ofuscou-lhe os olhos, e os seus
sonhos de encontrar civilização
desfizeram-se. Deparou-se apenas
com uma pequena clareira com
cinco ou seis manchas distintas de
terra solta; manchas retangulares
que pareciam… campas. Sabia que
se não se levantasse naquele
momento iria parar a uma.
Ergueu-se. Doía-lhe o corpo
todo. O suor ensopava-lhe a roupa.
Contornando o cemitério sem
desviar dele os olhos, entrou numa
paisagem dominada por mais
árvores e pedras. Quase como se
tivesse voltado para trás.
Ali o chão subia mais uma vez, e
as pernas juntaram-se aos pulmões
em protesto contra o esforço
continuado. Ao longe, o leve brilho
azul de um horizonte sem nuvens
indicava o cimo de uma colina; um
local onde se orientar.
Reprimiu a rebelião das pernas e
dos pulmões, mas, ao subjugar o
protesto, não viu a raiz da árvore a
sair do chão. Tropeçou, e não havia
terra solta para lhe amparar a
queda, apenas o solo duro e cozido
e um rosto cheio de pó. Sufocou o
latido de dor, com pavor de
denunciar a sua posição, mas o eco
do seu grunhido escarneceu dele, a
terra dura a amplificá-lo, abafando
o chilrear dos pássaros, o ruído dos
insetos e o som do seu possível
assassino.
O cimo da colina chegou e
trouxe mais desalento: apenas uma
parede quase vertical de três
metros. Um olhar de pânico para a
esquerda e para a direita confirmou
que não havia caminho seguro para
baixo.
Não tinha tempo de procurar
uma rota alternativa. Um empurrão
nas costas fê-lo bater com força na
terra. Rolou a tempo de um punho
encontrar a sua bochecha esquerda.
Um golpe de raspão, mas suficiente
para forçar os seus olhos a
fecharem-se por uma fração de
segundo. Fechando o punho,
impeliu-o com força em retaliação.
Encontrou uma coisa dura,
possivelmente um ombro. Em
resposta, o atacante deu-lhe uma
joelhada no músculo da coxa. A dor
forçou os seus olhos a abrirem-se, a
visão desfocada. Sem qualquer
plano ou coordenação, desferiu
uma série de socos frenéticos.
Alguns encontraram o alvo, outros
apenas ar. Mas recebeu tantos
quantos desferiu, mais até, e
certeiros, encontrando a sua cabeça
e pescoço, golpes violentos que
fizeram surgir um caleidoscópio de
diamantes sem valor na sua visão.
Puxaram-lhe o cabelo e bateram-
lhe com a cabeça na terra, que não
se apiedou dele. O negrume
rondava o seu cérebro, ameaçando
desligá-lo para sempre. Se
desmaiasse, já era. Estendendo a
mão, agarrou na sombra escura
acima dele. Prendendo os braços do
agressor, rolou para o lado
procurando tombá-lo.
Onde deveria haver chão, não
havia, o rebolar continuou pelo que
pareceu uma eternidade, a
ausência de peso a envolvê-lo como
se os golpes na cabeça tivessem
libertado o seu cérebro dos efeitos
da gravidade. Com isso veio uma
sensação de felicidade quase
surreal. Tinha acabado. Ele fora
morto e começava a passar para o
que quer que estivesse além da
terra, e não havia nada que
pudesse fazer.
A aterragem mudou isso.
O chão expeliu a respiração do
seu corpo, como se alma tivesse
fugido. Abrindo os olhos, viu a
parede cinzento-acastanhada do
cume acima, uma pequena neblina
de azul-pálido acima dela. Os
castanhos, cinzentos e azuis
escureceram e ele desmaiou.
2

A vila de Wilbrook era o lar de


Chandler Jenkins. Fora-o durante
toda a sua vida, trinta e dois anos
longos e secos preso no planalto de
Pilbara, no interior da Austrália
Ocidental, uma massa de terra
estimada em dois mil milhões e
meio de anos e outrora parte do
antigo continente de Ur. Alguns dias
Chandler acreditava que aqueles
átomos pré-históricos tinham
penetrado nos seus ossos,
envelhecendo-o prematuramente. O
pó vermelho-cobre, a cobertura
ígnea de uma terra quase
queimada até à morte, fazia isso a
muita gente.
A vila era um afloramento
remoto a cem quilómetros da
povoação mais próxima, Portman,
ligada por uma estrada que se
estendia como a cauda torcida de
um dragão. Wilbrook não era
antiga, mesmo em termos
australianos, referida pela primeira
vez no final do século XIX e batizada
com o nome de um famoso
garimpeiro de Albany, que deixara
a exuberante região vinícola a sul
para revolver a terra em busca de
riqueza. E encontrara-a. Um
depósito de ouro; pepitas que
saíam da terra como cogumelos.
Alguns até precisavam de duas
mãos para as levantar. A notícia
espalhou-se e em breve surgiram
barracas, estruturas de madeira
que desafiavam a gravidade e a
sensibilidade. Depois das barracas
vieram os estabelecimentos: bares,
bordéis. Pelo menos dois de cada. A
população aumentou, milhares de
pessoas a procurar riqueza, artigos
de jornal a proclamar que era o
lugar para realizar sonhos. Mas o
sonho morreu rapidamente, o ouro
a diminuir de forma abrupta para
pouco mais do que partículas
apanhadas em panelas
enferrujadas. Vieram mais ainda, a
garimparem desesperadamente
pedras e terra nos riachos antes de
afogarem as suas mágoas com
uísque e mulheres pelas quais não
podiam pagar. À medida que as
dívidas aumentaram, o mesmo
aconteceu às tensões.
O resultado foi um barril de
pólvora que explodiu numa noite de
verão, quando dez homens se
puseram aos tiros em Main Street;
o único sobrevivente, Tomato Tom
Kelly, morreu no dia seguinte
devido a uma artéria perfurada no
ombro. À medida que a violência
aumentava, as perspetivas de
riqueza diminuíam. Os médicos,
advogados e comerciantes foram os
primeiros a partir, rumo à mais
recente corrida ao ouro, deixando a
outrora florescente vila de cinco mil
habitantes reduzida a apenas um
quinto disso, apoiada por alguns
bares e bordéis que se mantiveram
firmes. Nada era melhor para o
negócio do que o desespero.
Com o ouro desaparecido, as
famílias foram forçadas a tirar o
sustento de uma terra tão dura
para eles como para os animais que
tentavam criar. Foi assim que
permaneceu durante quase
quarenta anos, mal respirando.
Então descobriu-se minério de ferro
e crocidolite sob a terra marcada.
Começou uma nova corrida, as
empresas de mineração a
comprarem grandes extensões de
terra, a preços demasiado bons
para recusar. O que se seguiu foi
uma rápida expansão e a
construção dos primeiros edifícios
de tijolo. A seguir, como antes, os
lucros desceram repentinamente, e
as empresas, sem sentimento ou
remorso, transferiram as operações
para Portman, a algumas horas de
caminho, como uma cobra que
deixa para trás a pele velha.
Chandler e a família viviam
naquela concha vazia e, apesar das
suas falhas, ele orgulhava-se da
vila. A sua vila. Era o sargento e, na
prática, o xerife; apropriado, já que
a cidade mantinha o ar de quem
estava presa na viragem do século
XIX. A ampla rua principal tinha
agora asfalto, substituindo a terra
batida de antes, a brilhar quase
branca ao sol, e uma ilha de betão
no centro oferecia um abrigo
desnecessário em relação ao pouco
trânsito. Varandas coloridas
protegiam do sol os passeios, mas
não do calor implacável, os postes
de metal trabalhado relíquias do
século anterior, os últimos
baluartes de tempos idos.

Quando parou diante da sauna


de betão que era a esquadra,
Chandler olhou para o espelho. O
rosto arredondado que o encarou
era de um homem bonito e trintão.
Um rosto que refletia as noites em
claro como pai solteiro, o cabelo
loiro a perder volume, mas não
ainda terreno. O loiro e o leve
bronzeado que ostentava davam-
lhe a aparência de um surfista
envelhecido, embora nada pudesse
estar mais longe da verdade.
Chandler mantinha-se o máximo
possível afastado do mar. Pelo
menos em terra podia ver o que
vinha matá-lo.
Bill Ashcroft, o velho sargento,
reformara-se em junho anterior,
deixando Chandler no comando
temporário. Não que houvesse
muito para os cinco fazerem:
algumas infrações de trânsito e
disputas domésticas, ou um assalto
ocasional num dos três bares da
cidade que não competiam tanto
pelo negócio mas mais para receber
os clientes temporariamente
impedidos de entrar nos outros.
Ainda assim, cinco era a cota
atribuída à esquadra e a Força
Policial da Austrália Ocidental
lutava para manter os cinco
elementos, com medo de que a
perda de um fizesse os outros
caírem como dominós.
Ao entrar, viu o novo recruta,
Nick Kyriakos, na receção, o seu
posto até Chandler se sentir
confiante de que o rapaz estava
apto para o serviço público. Não
tinha necessidade de arriscar pôr
um jovem de vinte anos armado no
terreno, mesmo que Nick se tivesse
mostrado inteligente e respeitador.
Um jovem maravilhado, desejoso
de agradar e ansioso por aprender,
apesar da sua excessiva
familiaridade com as biografias de
assassinos em série.
Tanya, a sua agente mais antiga
e número dois, já estava à
secretária. Nunca se atrasava,
sempre muito profissional como o
seu rabo de cavalo. Fazia os
primeiros turnos para poder ir
buscar os três filhos à escola
primária do outro lado da vila; as
crianças tinham nascido em rápida
sucessão durante os cinco anos
sabáticos de que ela regressara
recentemente. Chandler imaginava
que o nascimento dos três fora um
procedimento clínico. Com Tanya,
tudo era como uma operação
militar. Se ele fosse promovido,
recomendaria que ela também o
fosse. Merecia-o. Qualquer pessoa
capaz de equilibrar filhos e trabalho
merecia tudo o que conseguia. Ele
sabia-o por experiência, tinha dois
filhos. Pelo menos Tanya contava
com a ajuda de um parceiro.
Chandler entrou no seu
gabinete. O ar condicionado estava
de novo avariado, tornando o ar da
esquadra pegajoso como cola.
Sentou-se e olhou pela janela para
Gardner’s Hill, ao longe, o monte
rochoso coberto de árvores,
batizado em homenagem ao
primeiro presidente da Câmara da
cidade.
Àquela distância, a colina
parecia bonita, as árvores que
envolviam o lado visível da cidade
altas, direitas e a subirem para o
céu, uma luxuriante anomalia verde
numa terra vermelha. Para lá da
crista havia milhares de hectares de
terreno árido. O tipo de terreno que
fora sempre tentador para os
exploradores. Mas até caminhantes
experientes habituados a condições
extremas o achavam difícil. Atraía
aqueles que queriam encontrar-se.
E às vezes, perder-se.
Era um dia típico para Chandler,
calmo e introspetivo. Isso estava
prestes a mudar drasticamente.
Ouviu barulho pela porta aberta.
Uma voz estranha, mas reconheceu
nela o desespero. Tentou identificar
o sotaque: sul, extremo sul, talvez
Perth. Se assim fosse, a pessoa, um
homem, estava longe de casa.
— Sargento, acho que devia vir
aqui — chamou Tanya. A sua voz
geralmente calma parecia
perturbada.
Baixando os pés da secretária,
Chandler deixou a barriga
acomodar-se. Crescera nos anos
posteriores à partida de Teri, como
se o seu corpo pensasse que a
melhor forma de lidar com o
desaparecimento de uma parte de
si fosse criar mais para compensar.
Entrou na zona principal.
Sentado à secretária de Tanya, a
primeira paragem depois da
receção alta, estava um jovem
nervoso de vinte e poucos anos, a
t-shirt e as calças de ganga
mostrando sinais do que parecia ter
sido uma tareia.
Chandler levou a mão ao
pescoço e praguejou. Tinha-se
esquecido da gravata. Não era um
defensor do uniforme em geral,
mas preferia usá-lo quando se
encontrava com um membro da
população. Conferia-lhe um ar de
autoridade.
— Deves parecer ser o dono do
sítio — dissera-lhe Bill —, mas
comporta-te como fosses o gerente.
Quando ele se aproximou,
Tanya manteve-se por perto,
observando o homem com cautela.
Até Nick tinha arrastado a cadeira
para trás, como se, permanecendo
sentado, estivesse a cumprir o seu
papel de rececionista.
O visitante levantou-se. Tanya
recuou em resposta, pronta a agir.
O terror do jovem começava a
espalhar-se. Chandler notou que
tinham estatura semelhante,
embora um físico diferente, e havia
um enorme nervosismo nos olhos
que iam de Chandler para as
paredes, para a porta, como se
procurassem um lugar melhor para
estar. O corpo parecia reconhecer
que os olhos procuravam a fuga e
semicerraram-se para evitar isso.
Parecia ter dores.
— Ele queria que eu fosse o
número cinquenta e cinco — disse o
rapaz, olhando diretamente para
Chandler pela primeira vez.
Estremeceu e fechou os olhos com
força.
Chandler fez algumas anotações
mentais. Era mesmo um sotaque de
Perth. A barba por fazer, irregular,
sugeria que há semanas via apenas
uma gilete romba. Um trabalhador
itinerante, calculou; demasiado
lúcido, demasiado fresco para ser
um vagabundo.
— Do que está a falar? —
perguntou Chandler, mantendo a
calma, mesmo que a súbita
aparição de um estranho
ensanguentado o tivesse apanhado
desprevenido.
— Cinquenta e cinco — repetiu o
homem.
Chandler olhou para Tanya à
procura de ajuda. Ela abanou a
cabeça.
— Cinquenta e cinco… quê? —
perguntou Chandler. Sentiu o
impulso de estender a mão e tocar
no ombro do homem como
demonstração de apoio e conforto,
mas receou poder assustá-lo.
— O t-t-tipo. O assassino.
— Que assassino?
— Aquele que me raptou. Levou-
me… para além. O bosque… as
árvores. — O jovem apontou para a
parede sólida. Chandler percebeu
que estava a apontar para
Gardner’s Hill, do outro lado do
tijolo.
— Que ass…
— Um maluco.
As pernas do jovem tremeram.
Tinha as calças de ganga
manchadas de sangue, mas este
não parecia fresco, secara ao sol.
Chandler, no entanto, não queria
que ele desmaiasse. Estendeu a
mão para tocar no braço do homem
e ele estremeceu de dor.
— Tudo bem, estamos aqui para
ajudar. — Chandler fê-lo voltar a
encostar-se e sentiu que assim
controlava mais a situação. —
Como se chama?
— Gabriel.
— Muito bem, Gabriel. Eu sou o
Chandler, o sargento. Sabe onde
está?
Gabriel abanou a cabeça.
— Está em Wilbrook.
Viu qualquer coisa nos olhos de
Gabriel, algo que identificou como
esperança. Esperança de ter
encontrado um lugar seguro.
Chandler continuou a fornecer
informações para tentar reforçar
isso.
— Wilbrook, Austrália Ocidental.
Esta é a Tanya, a minha agente
sénior, e aquele é o Nick, outro
agente. De onde veio?
Mais uma vez, um dedo
oscilante apontou para a parede.
— Dali.
Chandler tentou esboçar um
sorriso tranquilizador.
— Quero dizer, onde vive?
— Perth… mas viajo bastante.
Voltou a curvar-se. Por um
momento, pareceu que ia deslizar
para o chão.
— Tem alguma identificação?
— Ele roubou-a.
Chandler assentiu.
— Certo… apanhou o nome dele,
Gabriel?
O jovem ficou calado. Os olhos
que tinham percorrido a sala
começaram a fechar-se. Chandler
olhou novamente para as roupas
dele. O sangue seco não sugeria
ferimentos graves, embora não
pudesse descartar uma hemorragia
cerebral não detetada.
— Apanhou…
— Heeeeath — respondeu
Gabriel com um suspiro prolongado.
— Heath? — Chandler acenou
para Tanya, que já estava a
escrever.
Gabriel assentiu.
— O maluco. Chamava-se
Heath. Roubou-me os documentos.
— O corpo que parecera gelatina a
coagular no banco endureceu e
tentou erguer-se. — Tenho de sair
daqui.
Dando um passo à frente,
Chandler voltou a sentá-lo. O
ímpeto da fuga era uma reação a
que estava habituado. Muitas
pessoas que se encontravam numa
esquadra queriam sair de imediato,
acreditando que, se ficassem ali
tempo suficiente, seriam acusadas
de alguma coisa.
— Fique aí. Vamos chamar
alguém para o tratar.
— Não — respondeu Gabriel,
com os olhos arregalados. — Quero
contar-lhe o que aconteceu e
depois sair daqui. Caso ele volte.
— Agora está em segurança —
assegurou Chandler.
— Não até ter saído daqui.
Gabriel respirou longa e
profundamente, lutando contra a
energia nervosa. Estremeceu ao
estender o que Chandler supôs
serem costelas partidas.
— Podemos arranjar-lhe um
médico — disse Tanya, avançando
novamente.
— Não, quero contar-vos o que
aconteceu.
3

Aninhada atrás da receção, a


sala de interrogatórios era pequena
e quase exclusivamente usada
como cafetaria. Em vez do amarelo
estival do escritório, as paredes
eram pintadas de verde-escuro.
Uma cor que, segundo Chandler
lera algures, fazia as pessoas
falarem.
A fina cadeira de plástico gemeu
sob o peso do visitante. Chandler
instalou-se do outro lado da mesa,
cujo tampo de PVC cinzento estava
manchado de mostarda. Tinha de
descobrir de quem era a vez de a
limpar; provavelmente a sua.
Dirigiu-se ao visitante.
— Estamos no dia vinte e três
de novembro de 2012. Por favor,
indique o seu nome completo para
a gravação.
— Gabriel Johnson.
— De?
— Perth originalmente, mas…
Como é que se diz? Sem…?
— Sem morada fixa.
— Isso mesmo. Sem morada
fixa. Desculpe, a minha cabeça está
um pouco… — Os olhos de Gabriel
percorreram o espaço, como se
quisessem abarcar tudo. Não havia
muito para ver.
— Idade?
— Trinta.
Falava com um cansaço que
sugeria que passara por momentos
difíceis, pensou Chandler. Um
bronzeado profundo ganhara raízes
na sua pele, embelezando as
cicatrizes de acne que pontilhavam
as faces ainda arrapazadas.
— E o que está a fazer aqui em
cima?
— A procurar trabalho.
— Como?
— Como trabalhador rural, ou
qualquer coisa. Pensei em tentar
alguns sítios por aqui.
— Algum em particular?
— Não. Mas ouvi dizer que havia
alguns.
Gabriel não estava errado. Havia
muitas quintas de gado e
propriedades nas grandes planícies,
gigantescas em tamanho,
semelhantes a pequenos países. Ele
tinha o físico magro e robusto
necessário para trabalhar, um físico
habituado a viver com uma dieta de
carne e pouco mais, habituado a
fazer qualquer coisa, desde
inspecionar furos a reunir e marcar
gado.
— E como conheceu esse…
Heath?
À menção do nome, o visitante
estremeceu, levando um momento
a recompor-se.
— Eu estava em Port Hedland.
Viera de Exmouth no dia anterior
com um camionista.
— Sabe o nome?
Gabriel encolheu os ombros,
como se isso não importasse.
— Lee qualquer coisa. Um
chinês na casa dos cinquenta.
Gordo, fumava cigarros de enrolar
que tinha enfiados na pala. Mais
nada de especial.
— E ele deixou-o em Port
Hedland? — perguntou Chandler.
— Sim, ia a caminho de Darwin.
— O que fez em Port Hedland?
— Dormi.
— Onde?
— No jardim.
— Nome?
Gabriel abanou a cabeça.
— Não sei. Estive a passear.
Havia relva… árvores… um banco.
Sabe, coisas de jardim.
Chandler tomou nota para
investigar mais tarde.
— Continue.
A voz tensa do jovem acalmara-
se um nadinha, mas ainda tremia
um pouco como um cão nervoso.
— No dia seguinte, decidi ir para
o interior. À procura de trabalho.
— Porque não ficar perto da
costa?
— Um gajo em Exmouth disse-
me que o interior era o melhor sítio.
Disse que a maioria das pessoas
prefere a costa para se deslocar
com facilidade, mas a competição
por postos de trabalho significa que
os patrões pagam mal. Também
parecia uma aventura.
Nesse ponto, Gabriel fez uma
pausa, como se tivesse
interrompido o raciocínio. Chandler
decidiu deixá-lo à vontade, para
que as palavras e os pensamentos
viessem naturalmente.
Gabriel pestanejou com força,
voltando ao presente.
— Fui… para a estrada… a
principal. — Deteve-se e olhou para
Chandler. — Não sei o nome.
Chandler sabia. Highway 1, a
veia negra que acabava por
desembocar na 95, que conduzia a
Wilbrook. Uma estrada que ele
percorrera muitas vezes,
especialmente quando começara a
sair com Teri, a alma das festas da
costa. Não imaginara na altura que
a costa iria sempre exercer a sua
atração sobre ela.
— Estava a pedir boleia, o sol
encandeava-me e não vi o que se
aproximava. Ouvi um motor atrás e
estiquei o polegar. Já tinham
passado dois carros naquela
manhã, portanto esperei que ele
continuasse… mas parou.
— Pode descrevê-lo? —
perguntou Chandler.
Olhou para o vidro espelhado e
esperou que Tanya estivesse a
gravar aquilo tudo. Havia quase um
ano que a última entrevista fora ali
gravada. Um caso de violência
doméstica. June Tiendali não
gostara que o marido passasse as
noites com os seus pombos em vez
de com ela e batera-lhe no braço
com um taco de hóquei.
— Um carro quadrado, matacão.
Não me lembro da marca. O
símbolo caíra, acho. Castanho-
escuro… mas podia ser do pó, que
cobria até as janelas. Uma das
luzes dos travões estava fundida,
lembro-me disso. Corri em direção
a ele pensando que podia partir a
qualquer momento. — Gabriel olhou
para Chandler com pesar. — Quem
dera que tivesse.
— Matrícula?
Gabriel abanou a cabeça.
— Também coberta de pó.
Talvez de propósito.
— Força, continue.
— Então entrei. Se calhar devia
ter olhado primeiro, mas precisava
de arranjar trabalho depressa. Ter
um teto, comida.
— Então, como era… esse
Heath? — Chandler preparou a
caneta para uma descrição.
Esperava que fosse mais completa
do que a do carro: marca
desconhecida, matrícula
desconhecida, um veículo
empoeirado e quadrado. Era
parecido com a maior parte das
coisas que circulavam por aquelas
estradas.
Gabriel fechou os olhos e
respirou fundo. Chandler deixou o
silêncio prolongar-se. Olhou para
vidro espelhado e para o seu
reflexo. Um polícia cansado
retribuiu o seu olhar, o brilho dos
olhos azuis frios a realçar as
olheiras.
— Baixo… alguns centímetros
mais baixo do que eu. Bronzeado,
como se trabalhasse ao ar livre. E
corpulento. Disse que tinha trinta
anos como eu, mas parecia meio…
não sei… nervoso. — Gabriel fez
uma pausa. — Provavelmente devia
ter percebido que havia algo
sombrio nele.
— O que quer dizer com
«sombrio»?
— Alguma coisa… estranha —
explicou Gabriel. — A barba
disfarçava as suas feições. Como se
ele estivesse lentamente a tornar-
se uma sombra.
Gabriel olhou para Chandler
como se procurasse confirmação de
que as palavras faziam algum
sentido fora do seu crânio.
— E não precisa de me lembrar
que é estúpido andar à boleia por
aqui — acrescentou, de repente na
defensiva. — Ele parecia porreiro,
ou o meu cérebro convenceu-me de
que parecia porreiro. Soube… ou
pensei que soube… que se ele
tentasse alguma coisa poderia
defender-me. Disse-me que se
chamava Heath e que vinha da
cidade com mantimentos. Até isso
me fez sentir melhor. Quero dizer,
nenhum assassino se apresenta…
ou apresenta?
Mais uma vez levantou a cabeça
em busca de confirmação. Chandler
assentiu, embora não tivesse a
certeza de que concordava. Se a
intenção de Heath era matar,
porque não revelar vários
pormenores? Mas isso dizia-lhe uma
coisa: o facto de Heath se sentir
suficientemente confiante para
conversar à vontade com a sua
pretensa vítima indicava a Chandler
que tinha feito aquilo antes, que
estava suficientemente
descontraído para controlar a
conversa, suficientemente seguro
para ser franco com a sua vítima: a
número cinquenta e cinco. A
excitação e o medo fizeram-no
sentir borboletas do tamanho de
águias no estômago. Aquilo podia
ser uma coisa em grande. Precisava
de extrair mais pormenores antes
que a vítima se calasse.
— Ele contou-lhe alguma coisa
sobre quem era?
— Apenas que vivia para estas
bandas.
— Em Wilbrook? — Chandler não
se lembrava de nenhum Heath na
zona, embora calculasse que
pudesse ser um nome falso. A sua
atenção voltou-se para quem ali
seria capaz de matar tanta gente.
Wilbrook tinha a sua conta de
malucos, mas nenhum tinha
coragem suficiente para agir.
— Não… não sei... apenas para
estas bandas, disse ele. Tinha
sotaque do Leste, diria. De
qualquer forma, parecia simpático.
Eu queria uma boleia, não uma
alma gémea.
Chandler assentiu, incentivando-
o a continuar.
— Disse-lhe que era de Perth.
Quando comentou que estava
muito longe de casa, expliquei que
tinha de ir para onde o dinheiro
estava, que tudo aqui era estéril,
mas possuía uma certa beleza. —
Gabriel encolheu os ombros e fez
uma careta. — Isso é mentira, mas
descobri que é sempre melhor
lisonjear o condutor de alguma
forma. Como faria uma prostituta,
suponho.
Chandler olhou para o jovem. A
careta sugeria que aquilo não era
uma piada, mas uma filosofia a que
obedecia.
— Uma hora depois passámos
por algumas saídas para quintas.
Disse-lhe que podia ficar ali, mas
ele respondeu que era para onde
todos os candidatos se dirigiam.
Seria como parar no primeiro
bebedouro que se encontra, o
grande, aquele onde os animais já
enlamearam a água. Que me
pagariam uma ninharia e que as
que ficavam mais para a frente
eram melhores. Perguntei-lhe se já
tinha trabalhado nelas, para tentar
arranjar um nome ou uma cunha,
mas ele não respondeu. Pensei que
talvez tivesse trabalhado, sim, mas
que acontecera alguma coisa da
qual não queria falar.
Chandler tomou nota de
perguntar por um Heath em
algumas das quintas; ver se alguém
se lembrava de ele lá ter
trabalhado.
— Seguimos viagem durante
mais meia hora, a paisagem
transformou-se em pó — continuou
Gabriel. — Começava a interrogar-
me como é que alguma coisa
poderia sobreviver ali fora, já para
não falar num rebanho de gado.
Isso fez-me sede. Mesmo com as
janelas escancaradas, o ar
queimava. Ele deve ter lido a minha
expressão. Disse-me que havia
água lá atrás se eu quisesse. Foi
assim que me apanhou.
— Com a água?
Gabriel assentiu.
— Sabia bem, talvez um pouco a
giz, mas por essa altura já não me
importava muito. Era água e eu
estava desesperado. — Olhou para
Chandler, pálido, como se com nojo
de si próprio. — Comecei a sentir-
me sonolento quase
imediatamente. De início pensei
que era do cansaço ou do calor,
mas foi ficando cada vez pior.
Tentei levantar os braços e não
consegui. Não pareciam ligados ao
meu corpo. Lembro-me de me virar
e olhar para Heath. Ele observava-
me tranquilo, como se nada de
errado se passasse. Apenas um
processo a que já assistira muitas
vezes. Não olhava para a estrada,
ou para onde íamos, apenas para
mim, e isso arrastou-se durante o
que pareceram horas. Uma sombra
passou pelo seu rosto até que
conseguir ver apenas o contorno do
seu crânio. Então desmaiei, acho.
Ele deve ter envenenado a água
com alguma coisa.
Os olhos de Gabriel percorreram
novamente o espaço. Chandler
reconheceu o olhar. A vítima
confusa a tentar preencher as
lacunas e a não conseguir.
— Acordei num barracão de
madeira. Não sei há quanto tempo
ali estava, mas ainda havia luz a
entrar pelas ripas, portanto calculei
que tivesse só ficado desmaiado
algumas horas. De repente, a
preocupação transformou o seu
rosto. — A menos que seja sexta-
feira…
— Não, quinta-feira —
assegurou-lhe Chandler.
Aquilo pareceu trazer algum
alívio a Gabriel. O facto de não ter
perdido um dia da sua vida. O facto
de ainda ter sequer uma vida.
— Ele algemara-me os pulsos ao
telhado.
— Algemara? — perguntou
Chandler.
— Sim… com umas coisas
grossas de ferro. Dois aros em
forma de D ligados por uma
corrente presa à parede. O mesmo
logo acima dos tornozelos. Esses
não estavam ligados, mas eram
impossíveis de deslocar. Não que
eu fosse fugir. Ele certificara-se
disso.
— Estava numa quinta? Na
floresta? Num anexo?
— Lá em cima — respondeu
Gabriel. — Naquela colina que
referiu. Via as árvores através das
ripas. Algemado num barracão com
serras e machados e outras coisas.
Nada que não devesse ali estar,
mas como eu estava acorrentado
todas pareciam letais.
— Pode dizer-me mais alguma
coisa sobre o local? Sons? Cheiros?
Gabriel encolheu os ombros.
— Chão de terra. Pilha de lenha
ao canto. Ouvia movimento ao
lado, portanto imaginei que estava
acorrentado ao lado de uma
cabana. Gritei por ajuda e foi
quando o Heath apareceu.
Perguntei-lhe onde estava… ele
disse que em casa. Implorei-lhe que
me deixasse ir, que não contaria a
ninguém o que ele fizera. Disse-me
para me acalmar. Parecia irritado,
como se eu o tivesse perturbado a
meio de alguma coisa importante.
As pernas de Gabriel começaram
a subir e descer debaixo da mesa.
Os seus olhos percorreram a sala
como se tentassem escapar. Não
havia outra saída senão a porta.
— Desculpe, eu… sinto-me
apenas um pouco claustrofóbico.
— Quer a porta aberta?
— Por favor.
Erguendo-se da cadeira,
Chandler abriu a porta para revelar
o escritório e a série de pequenas
janelas bastante acima de uma fila
de armários cinzentos do outro lado
da sala. Gabriel olhou para elas.
— Tive medo de que ele fizesse
alguma coisa nesse momento.
Aproximou-se e encostou o rosto ao
meu. Foi quando mencionou o
número cinquenta e cinco. Foi tudo
o que disse antes de recuar até à
porta. Tive medo de lhe perguntar
o que queria dizer. Mas calculei…
Gabriel parou.
— Calculou o quê? — perguntou
Chandler, ansioso por ouvir as suas
próprias suposições confirmadas.
— Que eu ia ser a sua
quinquagésima quinta vítima.
Apesar de estar um dia
suficientemente quente para
derreter o plástico, Chandler sentiu
um calafrio nas costas. Gabriel
parecia reviver a história, os seus
músculos a dançarem sob a t-shirt
ensanguentada, os tendões do
antebraço tensos. Puro terror.
— Ele disse para não me
preocupar se ia ser morto —
continuou Gabriel. — Porque é claro
que ia ser morto. Estava escrito.
— O que quer dizer com «estava
escrito»? — perguntou Chandler.
Gabriel encolheu os ombros.
— O seu palpite é tão bom como
o meu.
— Certo, continue — disse
Chandler, tomando nota da
expressão.
— Sabia que tinha de me
libertar, portanto quando ele saiu
tentei ver-me livre das algemas. —
Gabriel apresentou as palmas das
mãos e os pulsos, com círculos
vermelhos em ferida, a pele
arranhada, o pelos finos arrancados
pela raiz. — Puxei, tentei arrancá-
las da parede. Continuei a gritar por
ajuda. Nem uma vez ele entrou e
me mandou calar. Não receava que
alguém me ouvisse. Foi quando
soube que estava no meio do nada.
Continuei a puxar e finalmente
consegui quebrar uma das
fechaduras, mas uma mão ainda
estava presa à parede. Estendi a
mão livre para a bancada, a fim de
tentar agarrar numa das
ferramentas. Quase desloquei o
ombro, mas consegui agarrar no
machado. Tentei cortar a algema
restante sem ferir o pulso. Tive
medo que ele entrasse e me
apanhasse. Só queria tentar soltar-
me. Tentar viver. Calei-me, mas
receei que o facto de me ter calado
atraísse a sua atenção, então gritei
para encobrir o som do machado a
bater no metal e que soava como
um maldito sino de igreja. — Olhou
para cima.
Chandler assentiu, incitando-o a
continuar, intrigado pela lembrança
vívida do jovem, pela forma como
as palavras fluíam da sua boca
como água de uma represa
rebentada.
— Não sei como, consegui
dobrar o metal, como se tivesse
feito um esforço sobre-humano, e
libertei a outra mão. A chave das
algemas das pernas estava
pendurada num prego, portanto ao
fim de alguns segundos soltei-me.
Senti-me mais assustado do que
quando estava acorrentado.
Lembro-me de tentar as portas do
barracão, mas estavam trancadas.
A outra saída levava à casa ao lado.
Aquela de onde ele viera. Então
abri-a. Havia uma única assoalhada
cheia de mantimentos.
Gabriel exalou profundamente.
Como se tivesse estado a prender a
respiração.
— E o Heath?
— Sentado a uma mesa coberta
de papéis e mapas. Uma grande
cruz na parede. Fui em bicos de pés
até à porta da frente, mas quando
a abri, as dobradiças rangeram. Ele
virou-se. Encarámo-nos como se
estivéssemos paralisados. Então a
perseguição começou. Consegui
chegar à rua, mas era como se eu
estivesse no meio de um buraco.
Apenas árvores e terra em volta.
Não tinha ideia de que direção
tomar, então fui para a direita.
— Porquê a direita?
— Não sei… porque sou destro,
acho… não sei dizer-lhe porquê.
Cada lado parecia o mesmo. Tinha
as pernas rígidas de terem estado
algemadas, mas sabia que
precisava de me mexer depressa,
pois ele podia ter uma arma.
Chandler quase podia ver o
coração de Gabriel a pulsar debaixo
do tecido. As lembranças estavam a
voltar, intensas e descontroladas.
Depois de um longo suspiro que
pareceu sugar o último oxigénio da
sala abafada, ele continuou.
— Dirigi-me ao cume. Olhei para
trás e ele estava dez metros atrás
de mim. Continuei a correr e a
correr até que tropecei em alguma
coisa e caí numa pequena clareira.
O solo estava todo escavado. —
Gabriel olhou para ele. — Eram
campas.
O ar na sala pareceu ficar ainda
mais opressivo.
— Campas? — Chandler franziu
a testa. — Como sabe isso?
Gabriel abanou a cabeça.
— Não… não tenho a certeza. Só
me lembro de pensar na altura que
pareciam campas. Cinco, seis, sete,
talvez… espaços retangulares. —
Fez uma pausa e olhou para
Chandler como se tivesse percebido
que estivera muito perto da morte.
— Levantei-me, continuei a
correr e cheguei a uma colina.
Pensei que seria capaz de ver lá de
cima, mas não havia nada além de
uma parede vertical do outro lado.
Não devia ter parado.
Outra inspiração. A recompor-se.
Os tendões no seu maxilar
contraíram-se.
— Ele saltou para cima de mim.
Tentei dar alguns socos… mas
nenhum acertou. Nenhum que o
parasse, de qualquer maneira.
Rebolámos várias vezes… e então
caí. Como se não tivesse peso.
Alguma vez sentiu isso? — Gabriel
olhou para Chandler.
— Não.
— Foi estranhamente agradável.
Até aterrar. Como se tivesse levado
com um comboio. Como se tivesse
abandonado o meu corpo. Pensei
que era o fim e entrara no paraíso.
— Olhou para Chandler em busca
de compreensão.
Embora os pais tivessem
incutido as virtudes da religião nele
e nos seus dois filhos, Chandler
nunca fora praticante. A religião
para ele era como tomate cultivado
em casa. Bom para consumir, desde
que não lhe desse trabalho. Era
também um lembrete de que
Sarah, a filha mais velha, faria a
sua primeira confissão no dia
seguinte. Ele ficara de ajudá-la com
isso naquela noite, a ensaiar o que
dizer, quando se ajoelhar, quando
se levantar…
— Acordei algum tempo depois
e, pela segunda vez, tive de
descobrir onde estava. Vi o cume
acima de mim e percebi que tinha
caído. A dor da aterragem voltou,
então lembrei-me do Heath. Ele
estava deitado ao meu lado.
Esparramado, a terra à nossa volta
salpicada de sangue.
— Estava morto? — Um suspeito
morto tornaria a vida de Chandler
mais fácil.
— Não sei.
— Não sabe como?
— Não sei se estava vivo ou
não. Não me aproximei dele, caso
estivesse apenas a fingir. Já vi
muitos filmes. Tinha de fugir. Então
levantei-me e cambaleei para
longe.
— E deixou-o lá?
Gabriel assentiu. Não significava
confirmação da morte. Chandler
teria de partir do princípio de que
Heath sobrevivera. A falta de
clareza era frustrante. Seria
necessário organizar buscas para
encontrar o homem ferido; uma
caçada por aquela floresta. Mas se
Gabriel chegara à cidade ao fim de
poucas horas, significava que Heath
não poderia estar assim tão longe.
Havia a possibilidade de encontrá-
lo, salvá-lo, prendê-lo.
— Como chegou à vila? —
perguntou Chandler.
— Mera sorte. Avancei aos
tropeços durante algumas horas
antes de me deparar com uma
estrada de terra. Segui-a à procura
de ajuda, mas ninguém passou. Foi
quando encontrei a bicicleta velha.
Estava muito enferrujada, mas era
melhor do que nada. Cheguei ao
fim da estrada de terra, vi a
povoação ao longe e rumei a ela,
encolhendo-me de medo sempre
que um carro passava, esperando
que o Heath saltasse de lá, ou
fosse empurrado para a valeta e
morto.
— Que estrada? — perguntou
Chandler. Reduziria a busca.
Gabriel abanou a cabeça.
— Não sei. É tudo muito vago,
senhor agente. Acho que não vi um
nome. Apenas uma estrada de
terra. Ele estava atrás de mim.
Aquele assassino… estava atrás de
mim. Mas consegui.
Com isso, Gabriel curvou-se na
cadeira, exausto por contar a sua
história, o peso levantado
temporariamente dos seus ombros.
Chandler estudou-o. Os olhos
permaneciam fechados, a
linguagem corporal de alívio
cauteloso, ainda com a adrenalina.
— Agora está em segurança.
Os olhos abriram-se. Seguiu-se a
boca, o sorriso cansado e de
esguelha, os dentes perfeitamente
alinhados: bons genes ou um
excelente trabalho ortodôntico.
— Só quero ir para casa — disse
Gabriel.
— Pensei que não tinha casa…
— E não tenho.
— Então para onde irá?
— Para qualquer lado longe
daqui.
— Para outra quinta?
— Não, que se lixe isso.
— Gostava que ficasse por cá.
O sorriso de Gabriel
transformou-se numa carranca. Não
eram as notícias que ele queria.
— Porquê?
Depois de ouvir o depoimento,
Chandler não tinha autoridade para
reter Gabriel, então teve de
inventar uma razão para mantê-lo
por perto.
— Para o caso de precisarmos
de identificar um corpo.
O olhar que recebeu em troca
fez Chandler perguntar-se se
Gabriel fora sincero. Os olhos que
anteriormente procuravam escapar
ficaram parados e concentrados.
Pareciam implorar a Chandler que
dissesse a verdade, censurando as
suas mentiras.
— Onde ficaria?
Chandler pensou imediatamente
nas celas, mas isso não faria um
Gabriel aterrorizado ficar por perto.
Já a oferta de uma noite no luxo…
— Temos um excelente hotel na
cidade.
Aquilo era um nadinha falso. O
estabelecimento de Ollie Orlander
não era um palácio, mas para um
lavrador habituado a partilhar um
dormitório com vinte camas,
poderia ser suficientemente
luxuoso.
— Está bem — respondeu
Gabriel. — E estarei protegido?
— Poremos alguém à porta.
Iria fazê-lo. Seria Jim. Jim
adoraria ficar sentado o dia todo
com as suas palavras cruzadas
incompletas.
— Tem alguém a quem
possamos ligar? — perguntou
Chandler.
— Não — respondeu Gabriel
abruptamente. A bonomia que
Chandler tentara criar entre ambos
desaparecera. O tema da família
parecia ser sensível.
— Não tem familiares? —
perguntou Chandler, insistindo.
A resposta foi uma lenta
sacudidela de cabeça.
— Porquê? — Chandler estava a
forçar a sorte, mas identificar os
pontos de pressão para que
pudessem ser manipulados num
interrogatório era uma competência
que ele desenvolvera e que era
difícil de desligar. Às vezes irritava
não só os outros, mas a si mesmo.
Gabriel ofereceu-lhe o mesmo
olhar frio. Era um olhar perturbador.
Um olhar que sugeria que Chandler
não devia continuar, portanto ele
decidiu não o fazer. O jovem tinha
passado por suficiente naquele dia
sem ter de explicar por que motivo
não tinha família a quem ligar. No
final, Gabriel poupou-lhe o trabalho.
— Já morreram, sargento.
A declaração foi feita sem
emoção, sem tremores, gasta toda
a energia nervosa. Depois da fuga
frenética, da corrida para salvar a
vida, dos maus-tratos que o seu
corpo sofrera, parecia que Gabriel
se tinha finalmente desligado.
— Sargento — disse ele
devagar, a suavidade do seu tom a
cobrir tudo de seda. — A única
coisa que todos temos em comum
quando nascemos é a necessidade
dos nossos pais e o conforto da
religião. Falharam-me ambos.
— O que quer dizer?
Gabriel suspirou e fechou os
olhos.
— Nada. Uma coisa de família.
Estou cansado, zangado e com
medo. Só quero dormir.
Chandler tinha vontade de
disparar mais perguntas, mas os
fios da marioneta à sua frente
tinham sido cortados.
Conduziu Gabriel até ao
gabinete, e os passos deste eram
instáveis, como se lutasse para
permanecer em pé. Tanya juntou-
se a eles, o seu subtil aceno de
cabeça informando Chandler de que
a gravação tinha sido bem-
sucedida.
— O que temos de roupa? —
perguntou ele.
— Pouca coisa — respondeu ela,
tirando uma camisola da caixa de
roupa que nem sequer a loja de
caridade conseguia vender.
Escolheu a melhor: uma t-shirt
laranja com nódoas e um pequeno
logótipo de fogo acima do peito.
— Para que é isto? — perguntou
Gabriel quando Chandler lha
entregou.
— Para vestir.
— Já tenho uma. — Gabriel
olhou para a sua t-shirt
ensanguentada. — Não quero dar
trabalho.
— Não pode andar assim na rua.
Vai assustar toda a gente —
retorquiu Chandler enquanto os
conduzia para o pátio murado ao
lado da esquadra, em direção aos
carros da polícia.
Gabriel olhou para ele. Parte do
ar defensivo desaparecera.
— Não tenho muito, sargento.
Não gosto de dar nada, nem esta t-
shirt.
Chandler compreendia-o. Em
criança, protegera ferozmente as
suas coisas. Até lutara com o seu
melhor amigo — o melhor amigo há
muito perdido —, Mitchell, por
causa de uma velha bola de futebol
que fora chutada tantas vezes que
ficara deformada e rolava de
esguelha.
— Não é preciso. Pegue nesta e
vista-a. Considere-a uma prenda —
disse Chandler.
Gabriel pegou-lhe.
— Vou tomar duche primeiro —
disse ele quando chegaram ao
carro-patrulha branco.
4

Chandler saiu da esquadra e


dirigiu-se ao centro.
Imediatamente, o sol da tarde
começou a tentar cozê-los de fora
para dentro, o calor intenso a
querer colá-los ao plástico preto do
banco e cozinhá-los nos seus
próprios fluidos corporais.
Ao passarem por
estabelecimentos comerciais
familiares e por lojas abandonadas
na rua principal, Chandler olhou
para o passageiro. Gabriel
observava-o, esparramado no
banco, uma calma nos modos que
combinava com a linguagem
corporal. Dado que agora estava
sob proteção policial, Chandler
esperava que não o deixassem ficar
mal.
— Tem a certeza de que não
precisa de um médico? —
perguntou.
— São apenas hematomas,
acho. Não há nada que ele possa
receitar-me. Pelo menos, a dor
lembra-me que tenho de ficar
alerta.
Chandler sorriu.
— Espere até ter uma ex-
mulher.
O seu passageiro esboçou o
arremedo de um sorriso.
— Quando aconteceu isso?
Até a voz de Gabriel se
descontraíra. Os guinchos nervosos
tinham sido substituídos pelo tom
suave e sedutor de um locutor de
rádio noturno. Uma voz quente que
passava músicas tristes para
adormecer os ouvintes. Era como se
estivesse no carro com uma pessoa
completamente diferente.
Chandler hesitou, fazendo
contas de cabeça.
— Sete… sete anos e meio.
— Muito tempo. Sente a falta
dela?
— Não desde que ela ameaçou
levar os meus filhos.
— Oh. — Gabriel olhou para ele.
— Ela tem algum motivo para levá-
los?
Chandler não queria realmente
falar daquilo a um desconhecido,
mas a voz era como um ombro
onde chorar; Chandler, o ouvinte
que ligava a meio da noite, incapaz
de adormecer, desabafando sobre
os seus medos e desgraças.
— Acho que não.
— Quantos filhos tem?
— Dois. Talvez a única coisa boa
que fiz na vida. — Chandler sorriu e
olhou para o passageiro. — Duas
boas coisas.
Se falar de Teri o enervava,
nunca perdia a oportunidade de
exaltar as virtudes dos filhos, quase
como compensação por não
conseguir vê-los tanto como
gostaria. Aquele trabalho cobrava o
seu preço: muitas horas, várias a
desoras, papelada e rotina.
— De que idades?
— A Sarah tem quase onze
anos, o Jasper vai a caminho dos
nove.
— Sarah e Jasper. Belos nomes
— comentou Gabriel.
Chandler notou uma certa
nostalgia no tom.
— Não tem ninguém?
Namorada? Irmãos? Primos? Tios?
Um sacudir da cabeça.
— Não. Ninguém. — O tom
áspero e defensivo da esquadra
estava de volta.
— Desculpe — disse Chandler.
Não conseguia imaginar uma vida
sem família.
Gabriel olhou para ele e não
disse nada durante alguns
segundos. O olhar era enervante.
— Estou habituado — respondeu
por fim num tom resignado.
— Disse há pouco que família e
religião o desiludiram…
Deixou a frase pairar entre eles
ao passarem pela estátua de Stuart
MacAllen, o escocês que descobrira
o minério de ferro que devolvera a
vida à povoação. Pelo menos
durante algumas décadas. Agora,
com os furos secos e abandonados,
os jovens encaminhavam-se
lentamente para partes mais
prósperas da terra. Não podia
culpá-los. As pessoas tinham de ir
para onde havia empregos. E ali
havia poucos.
Embora desse tempo a Gabriel,
não obteve resposta. Talvez não
houvesse nenhuma, apenas um
deslize num momento de tensão,
ou uma discussão familiar, que não
deviam ser comentados com um
desconhecido. Como a eventual luta
pela guarda de filhos, supôs.
Passaram pela varanda cor de
laranja do Red Inn, um
estabelecimento que afirmava
orgulhosamente estar em
funcionamento desde o final do
século XIX, apesar de ter mudado
de instalações duas vezes, antes de
finalmente ocupar a localização
atual em 1950; o ano em que a sua
mãe nascera.
Gabriel interrompeu-lhe os
pensamentos.
— Então o que vai acontecer a
seguir?
— Rotina.
— Não quer explicar? Ficarei
mais descansado se souber que o
sargento sabe o que está a fazer.
— Não confia em nós?
O sorriso vacilante de Gabriel
não ofereceu resposta.
— Sabemos o que fazemos,
senhor Johnson. Eu ando nisto há
mais de dez anos.
— Mas com quantos assassinos
em série já lidou?
Era uma pergunta pertinente.
— Depois de o instalar no hotel,
vou pôr alguém a guardá-lo. A
seguir, contacto o resto do estado,
o Território do Norte e o Sul.
Depois, fazemos uma busca em Hill
para tentar encontrar o tipo ou o
corpo dele e localizar as campas,
embora tenha de admitir que
encontrar esse gajo, encontrar o
Heath, se ele vive por lá, não será
fácil, dado o tamanho da zona.
Chandler olhou para Gabriel.
Podia ver que a sua resposta
deixara o passageiro um pouco
nervoso.
— Enviaremos um helicóptero e
um avião para o analisar o terreno.
— Como se estivesse à procura
de alguém desaparecido?
— Mais ou menos. Também
faremos buscas no terreno.
— Parece coisa de agulha no
palheiro.
Chandler encolheu os ombros.
— É tudo o que temos, a força
dos números: um homem contra
centenas.
— Como Jesus contra os
incrédulos.
Chandler olhou para ele.
— Então você é um homem
religioso?
Gabriel soprou ar pelo nariz.
— Acredito, se é isso que está a
perguntar. E o senhor?
— Os meus pais são crentes. Eu
deixo-me ir. Assim os miúdos têm
uma base moral, suponho. Tomarão
as decisões deles quando forem
mais velhos. Deus não obrigou
ninguém a segui-lo.
— Não… se ao menos os seus
seguidores tivessem feito o mesmo.
A conversa parou abruptamente.
Não importava. Tinham chegado ao
Gardner’s Palace, um edifício de
três andares que parecia feito de
um único bloco de arenito,
vermelho-vivo, mais luminoso até
do que o pó que marcava a
paisagem. O alcatrão preto no
telhado fora pintado de branco para
refletir um pouco do calor cruel, e
as gelosias de madeira guardavam
cada janela, protegendo-as ainda
mais.
As duas poltronas remendadas
na receção estreita deram-lhes as
boas vindas. Não era o Ritz, mas
servia nas raras ocasiões em que
precisavam de manter alguém por
perto.
O proprietário, Ollie Orlander,
cumprimentou-os, a barriga a
oscilar sobre as calças. Ollie não se
importava nada de receber os
hóspedes que a polícia lhe levava.
O governo pagava sempre as suas
contas e ele podia ocupar o seu
quarto mais caro, conhecido como
Suíte Presidencial, pelo preço
integral.
Ollie olhou para o novo hóspede
para se certificar de que ele
entendia quem era o dono do
estabelecimento. Uma tentativa
desnecessária de intimidação e
parte da razão pela qual Ollie
recebia muito poucos hóspedes
pela segunda vez. Pela experiência
de Chandler, os hóspedes preferiam
umas boas-vindas calorosas em vez
de uma desconfiança óbvia.
Os olhos lacrimejantes de Ollie
voltaram-se para Chandler.
— Ele não vai fazer estragos,
pois não?
— O homem não é um criminoso
— respondeu Chandler.
— Então o que está a fazer
consigo?
— Forneceu informações. Temos
de alojá-lo esta noite.
— A suíte habitual?
Chandler assentiu, cansado.
— A suíte habitual serve.
— Muito bem. — Um sorriso de
esguelha surgiu no rosto gordo.
Afastou-se a bambolear para
preparar algumas coisas enquanto
Chandler levava Gabriel para cima.
— Não espere grande coisa —
avisou Chandler.
— Se tiver água quente e uma
cama macia é suficientemente bom
para mim.
Chandler estudou o rosto dele.
Parte do nervosismo regressara,
olhos irrequietos como se
esperassem que Heath aparecesse
a cada esquina.
— Vou pôr um agente lá fora.
— Não é preciso, sargento.
Chegaram à porta da suíte
presidencial.
— Insisto — respondeu
Chandler. Não ia deixar Gabriel
tornar-se vítima da sua própria
coragem.
5

O agente Jim Fall chegou, com o


livro de palavras-cruzadas a
reboque, e extraiu o corpo alto e
magro do carro-patrulha por
etapas; perna direita, depois a
esquerda, a seguir os braços
agarraram o tejadilho antes de içar
o tronco para a rua no final da
tarde. Chandler ainda não sabia
como é que ele sobrevivera nos
túneis apertados das minas.
Embora tivessem entrado na polícia
com dois anos de diferença, Jim
recusara-se a subir acima do posto
de agente, contente com o nível de
responsabilidade que ele
acarretava. Era certinho e de
confiança.
— Qual é o trabalho? —
perguntou enquanto coçava o
cabelo desgrenhado e grisalho.
— Observar o hotel. Garantir
que o nosso convidado está bem.
— Há possibilidade de fuga?
— Não tenho a certeza.
Gabriel parecia ter recuperado o
suficiente para ter o bom senso de
sair da cidade — possivelmente
pelo motivo por que rejeitara de
início a oferta de proteção policial.
— Fica atento — acrescentou
Chandler ao deixar Jim sentado sob
o toldo do Annie’s Cafe, do outro
lado da rua.
Na esquadra, Tanya já chamara
o último elemento da equipa. Luka
Grgić ainda tinha olhos de sono.
Estava de folga e transmitiu a
Chandler o seu desagrado através
de olhar. Podia ser jovem e
ocasionalmente imprudente, mas
sabia que não devia questionar as
ordens de um superior, mesmo que
se sentisse frustrado por estar
abaixo de Chandler e Tanya na
hierarquia. Os acessos de ambição
cega recordavam Mitch a Chandler.
Afastou da cabeça a presença
macabra do seu ex-parceiro. Estava
na hora de se concentrar.
— Então o que se passa, chefe?
— perguntou Luka, bocejando.
— Temos um problema.
As sobrancelhas negras de Luka
franziram-se, fazendo sombra a um
par de olhos intensos de que
grande parte da população feminina
da cidade gostava bastante. Se
Wilbrook organizasse o concurso do
melhor solteiro, Chandler não teria
a mínima hipótese. Luka ganharia
com facilidade.
— Temos a declaração de um
jovem que afirma ter sido atacado
e feito prisioneiro em Gardner’s Hill
por um homem chamado Heath —
continuou Chandler. — Heath, de
acordo com a descrição, tem vinte e
poucos anos, um metro e setenta,
constituição robusta, cabelo e barba
castanhos. Também está
bronzeado. Como se trabalhasse ao
ar livre. Vamos considerá-lo
perigoso, possivelmente armado.
— E é procurado porquê?
Agressão? Rapto? — perguntou
Luka.
— Tentativa de homicídio. —
Chandler olhou em volta. — E
temos motivos para suspeitar que
matou antes.
— Boa!
Chandler virou-se para a origem
da exclamação. Envergonhado pela
demonstração exterior de prazer,
Nick voltou para a secretária e
fingiu rabiscar num papel. Chandler
adivinhara que aquele pormenor o
animaria. O seu fascínio por
assassinos em série era tal que
Chandler acreditava que não havia
um de que ele não conhecesse a
história toda.
Olhou para Tanya. Ela era a
única que não o ouvia, pois
preparava o alerta.
— Quanto tempo até podermos
enviar isso?
— Está pronto — anunciou ela.
Chandler leu-o rapidamente.
— Envia-o.
Com o premir de um botão, o
alerta seguiu para todas as
esquadras em Pilbara, Austrália
Ocidental, Território do Norte e
Austrália do Sul. A polícia estadual
também receberia uma cópia. Em
breve Wilbrook iria tornar-se o
centro das atenções.
Tencionando preparar-se,
Chandler analisou mapas gerados
por computador para ter uma ideia
da área que precisavam de cobrir.
No ecrã, parecia viável para uma
equipa pequena, linhas de contorno
e marcações espalhadas de forma
esparsa pelo mapa, mas as velhas
cópias em papel espalhadas sobre a
mesa de reuniões confirmavam o
tamanho e a extensão da região.
Podia não haver nada lá, mas era
uma zona vastíssima.
— Vai ter de ligar para o
comando — disse Tanya.
Chandler sabia disso. Também
sabia o que tal implicaria. O
comando era em Port Hedland. E
Port Hedland significava Mitch.
— Eu sei.
— Precisamos de pelo menos…
vinte, não acha? — perguntou Luka,
tornando imediatamente claro que
nunca pusera os pés em Hill.
— Vezes três, a menos que
tenhamos sorte — respondeu
Chandler. Olhou para Tanya. — Vê
se conseguimos um helicóptero ou
um avião hoje. Eles que procurem
qualquer coisa rara, talvez possam
reduzir a área. — Virou-se para
Luka. — Luka… procura o nome
Heath, qualquer criminoso com
esse nome ou apelido. Concentra-te
em qualquer pessoa acusada ou
condenada por homicídio ou
agressão. Reúne toda a informação
possível.
Dadas as ordens, todos
deitaram mãos ao trabalho. Isso
deixou Chandler com a tarefa que
temia. Envolver Mitch. Reduzir o
seu papel de líder a assistente. Mas
se Gabriel estivesse certo, tinham
um criminoso à solta. Ele precisava
de apoio para bater a zona, erguer
barreiras para conter o suspeito,
bem como organizar uma busca em
Hill e nas quintas próximas. Era
demasiado para cinco agentes.
Pegou no telefone, mas foi
interrompido por um grito da sala
principal. O sotaque de Nick,
originário de Melbourne, atravessou
o ar como uma língua estrangeira.
— Zero-zero-um, sargento.
Uma piada interna, código para
um telefonema da mãe dele.
Chandler era o seu serviço de
emergência pessoal. O mais
provável era o pai ter tentado algo
de que ela não gostara. Como era
verão, estaria provavelmente a
tentar transportar a grande piscina
de borracha da garagem para o
quintal. Outro dos trabalhos de
Chandler. Em troca de serviço grátis
de babysitting.
— Do que se trata, Nick? —
perguntou Chandler. Dispensava a
distração naquele momento. A
gargalhada sufocada podia ter sido
imaginada, mas bastara para irritá-
lo.
— Algo que ver com a Sarah.
— Certo, transfere a chamada.
Chandler atendeu a meio do
primeiro toque.
— Chandler?
— Sim, sou eu, mãe. — Ele
suspirou.
— Com o sotaque do teu novo
rapaz, pensei que tinha ligado para
o número errado.
— Telefonas duas vezes por dia,
mãe.
— Não telefono nada.
Embora a sua voz fosse suave,
ela declarava tudo com a confiança
de uma mulher que conhecia a sua
posição no mundo e estava
contente com ela. Chandler decidiu
recuar. Não precisava de entrar
numa discussão inútil.
— O que se passa com a Sarah?
— Ah, sim, a Sarah. Acho que
precisas de falar com ela. Está
preocupada com a primeira
confissão amanhã.
— O que é que a preocupa? Só
precisa de dizer as palavras,
ajoelhar-se, levantar-se.
— Ela tem dez anos.
— Eu sei a idade dela, mãe.
— Nessa idade, não gostavas de
dormir sem a luz acesa.
Tendo ouvido aquilo antes,
Chandler interrompeu.
— Não podes tratar disso? Ou o
pai?
— Podíamos, mas acho que
seria melhor a ajuda vir do pai.
— Estou ocupado.
— Não podes estar assim tão
ocupado.
— Trata do assunto por
enquanto, mãe. Apareço mais tarde
para falar com ela. Ou pede a uma
das amigas para conversar com ela.
— Então o teu conselho é uma
criança de dez anos aconselhar
outra da mesma idade? — Parecia
incrédula. Chandler não a culpava.
Não era uma das suas melhores
sugestões, mas tinha a cabeça
ocupada com o problema em mãos.
Com Gabriel.
— Tenho de ir, mãe — disse e
desligou.
A vítima aterrorizada na
esquadra e a voz calma e sedosa
no carro a caminho do hotel.
Surgiu-lhe a ideia de que Gabriel
inventara tudo; queria chamar a
atenção. Agitar uma existência de
outra forma trivial. Andava à
procura de fama. Ou de infâmia.
Como um assassino em série
poderia fazer. Mas ele tivera
realmente um ar assustado. Além
disso, o sangue e as contusões
eram reais. Tal como a pele ferida
em volta dos pulsos e as mãos
cheias de bolhas. E se Chandler
descartasse a ideia de ser uma
representação… tudo o que restava
era a possibilidade muito real de
haver um assassino lá fora.
Olhou para o telefone. Talvez
Mitch decidisse mandar outra
pessoa. Era uma esperança ténue.
Como a que albergara de nunca ter
de trabalhar novamente com Mitch.
6

2002

Mesmo para finais de novembro,


era um dia quente. Chandler
encostara-se à linha das árvores
para roubar qualquer sombra que
pudesse entre os ramos
espalhados, seguindo em
ziguezague de tronco em tronco. Os
outros faziam o mesmo, parecendo
um bando de bêbedos fardados
perdidos no mato,
desesperadamente à procura de
água e abrigo. O sal fazia arder o
corte provocado pela gilete às seis
da manhã. Um turno de doze horas
a percorrer aquela zona árida não
era exatamente o motivo por que
entrara na polícia, à procura
naquele inferno de um caminhante
perdido. Mas, como novatos, ele e
Mitch não estavam em posição de
recusar a missão.
O parceiro tinha pelo menos a
vantagem das pernas compridas no
chão irregular. Isso e um queixo
que se projetava como uma antena,
guiando-o sobre e em volta das
pedras salientes. Embora tivessem
a mesma idade, Mitch parecia mais
velho, emaciado, quase com um ar
doente, com braços e pernas
demasiado compridos, como se
esticado e recolhido de novo numa
forma arbitrária. Quando se
zangava, tinha a tendência de os
agitar como aqueles bonecos
insufláveis junto aos
concessionários de automóveis;
menos o sorriso, claro. Mitch
raramente sorria.
Bundabaroo, a região que incluía
as encostas de Gardner’s Hill, era
um deserto particularmente
inóspito. Montanhas
intransponíveis, árvores e rochas
que ou se desintegravam sob os
pés e faziam uma pessoa cair, ou
eram ainda suficientemente afiadas
para cortar osso. Uma experiência
de Deus para testar as condições
mais extremas em que a vida
poderia prosperar. Um lugar onde a
única civilização era Wilbrook,
embora, como dizia a piada, se
Wilbrook fosse a última fonte de
civilização, uma pessoa estava
realmente em apuros.
Apesar de estarem no século
XXI, a região ainda não fora
totalmente explorada a pé. Havia
apenas duas entradas: uma estrada
de terra que contornava o sopé de
Gardner’s Hill; ou uma descida
perigosa de helicóptero através de
uma mistura de árvores altas e
arbustos até à superfície instável
abaixo.
A razão pela qual estavam todos
ali era um rapaz de dezanove anos
chamado Martin Taylor. Havia
quatro dias que Martin
desaparecera e, naquele dia, uma
equipa de cães viera de autocarro
da costa para ajudar; os caninos
tinham o luxo de um dia de
trabalho de três horas no calor do
verão, ao passo que os humanos
buliam doze.
Com o barulho do helicóptero
em cima e os latidos ansiosos dos
cães, Chandler concentrou-se no
barulho mais próximo: o som das
suas botas na vegetação rasteira.
Externamente, procurava Martin e,
internamente, sentia pena da sua
situação. Mais um citadino em
busca dos grandes espaços abertos
apesar de estar completamente
despreparado para aquilo que o
esperava. Ali não havia trilhos
definidos, nada para orientação
além dos olhos, de bússolas e de
mapas. O GPS era um sonho. Aquilo
era a terra como fora há dois mil
milhões e meio de anos,
inteiramente indefinida, rochas,
árvores e paisagem a fundirem-se,
juntando terra e céu numa mancha
indistinta e não oferecendo
nenhuma pista quanto à saída.
Todas as informações que
tinham sobre os movimentos de
Martin vinham de Eleanor Trebech,
a proprietária do Gardner’s Palace,
o hotel onde ele se hospedara na
noite anterior. Eleanor transmitiu
tudo o que sabia no seu estilo
desinteressado, com o cabelo
enrolado em espirais intermináveis.
As respostas tinham sido
expelidas tanto em sinais de fumo
como em palavras, as cigarrilhas
nunca se afastando dos seus lábios.
Continham uma descrição e uma
ideia do equipamento do jovem.
Botas resistentes e óculos de sol.
Uma camisola leve de um verde
radioativo intenso no átrio mal
iluminado. Uma pequena mochila
que não tinha espaço para conter
mais do que comida para um dia.
Um jovem zangado, calculara ela,
que terminara recentemente com a
namorada. Uma separação
desagradável, supusera.
B i l l Ashcroft fez mais uma
pergunta no seu estilo rude e
inimitável.
— Ele disse-lhe quando
tencionava voltar?
Eleanor abanou a cabeça. Martin
não lhe pedira para guardar o
quarto, portanto que tinha ela que
ver com o assunto? Terminou a
conversa voltando para a revista
lustrosa no balcão à sua frente.
As informações recolhidas junto
da família e amigos sugeriam que
era um caminheiro razoavelmente
experiente, com uma série de
caminhadas de fim de semana no
currículo, mas para aquela Martin
ignorara alguns princípios básicos:
caminhar sozinho e não informar
uma pessoa responsável do
percurso e da hora esperada de
regresso. Ninguém chamaria
responsável a Eleanor Trebech,
muito menos os seus três maridos e
meio e uma história de acidentes
de viação com muito álcool. Mas
não lhe fornecer qualquer
informação sobre os seus planos
parecia um ato deliberado de
negligência.
A única pista a respeito de onde
ele partira era o enferrujado Holden
abandonado na clareira que
constituía o estacionamento de
terra a meio de Gardner’s Hill.
Alguns testes mostraram que não
havia nada além de vapores no
depósito do Holden, a suspensão
mantida inteira com orações em
vez de mecânica. Era um mistério
como sobrevivera à estrada
traiçoeira e chegara tão longe.
No carro, encontraram uma
bússola, estacas e um casaco,
imprescindível quando a
temperatura baixasse durante a
noite. Debaixo do banco do
passageiro havia um pequeno
estojo de primeiros socorros, onde
poderia ser facilmente esquecido.
Talvez de propósito.
Naquela fase ninguém
expressara a possibilidade, pelo
menos em voz alta, de Martin estar
morto. O que se especulava era que
ele estava vivinho da silva e
completamente alheio às buscas
em curso. Que apanhara boleia
para outro lado sem informar
ninguém. Talvez até para os
antigos terrenos da mina. Não era
raro. Nos últimos dois anos tinham
sido chamados três vezes para
incidentes em que ativistas
ambientais haviam invadido esses
terrenos para caírem num dos
muitos poços abertos. Dois tinham
escapado com ossos partidos e uma
multa substancial, mas um deles
escolhera o buraco errado para cair
e partira o pescoço. Apenas fora
descoberto seis meses depois. Era o
mesmo ali em Hill, poços e buracos
naturais escondidos na abundante
vegetação rasteira. Se Martin
tivesse caído num, ninguém o
ouviria gritar.
7

Foi o grito amargurado que lhe


chegou primeiro, seguido de
indignação. Chandler estivera a
falar com Tanya sobre uma
alteração no alerta, que deveria
incluir uma advertência sobre a
aproximação ao suspeito, quando
um desconhecido entrou a coxear
na esquadra, o coxear exacerbado
pelo cano da caçadeira encostada à
parte inferior das costas. A
caçadeira era empunhada por Ken
Kid Maloney, de cinquenta e seis
anos, nascido e, como dizia sempre,
mal criado ali, ostentando uma
barba tão selvagem como os seus
olhos. Murmurou qualquer coisa a
respeito de apanhar aquele estupor
na sua terra, o resto foi difícil de
entender na linguagem distorcida
que poucos entendiam.
Lançando um olhar aos colegas,
Chandler fez-lhes um aceno de
cabeça reconfortante. Um lembrete
para não reagirem. Ainda não. Era
a segunda vez naquele ano que Ken
levava ali alguém com a caçadeira
apontada. Da primeira vez fora um
jovem casal de mochila que ele
alegara ter roubado coisas da sua
casa. Uma alegação que acabou por
ser apenas um casal sedento que
queria um pouco de água e — da
parte de Ken — um mal-entendido
intencional. Daquela vez tinha uma
única vítima. Chandler desviou os
olhos da arma para o trémulo
refém, a fim de tentar acalmá-lo. O
seu coração parou.
O homem era exatamente igual
à descrição de Heath.
Cerca de um metro e setenta e,
como Gabriel descrevera, com o
centro de gravidade robusto e baixo
de um lavrador, criado para
transportar equipamento pesado. O
cabelo castanho-amarelado estava
desgrenhado, como se há meses
não visse um pente, a barba de
uma semana mais escura que o
cabelo. Escorria suor. Uma pequena
cruz pendia sob uma camisa
axadrezada verde a que faltava um
bolso. Com as calças a três quartos,
parecia um lenhador, à vontade ao
ar livre, à vontade a manter alguém
trancado antes de matá-lo. O
sangue que manchava a sua roupa
dava credibilidade a essa hipótese.
— Então alguém vai prendê-lo?
— perguntou Ken, a arma
firmemente encostada às costas do
homem.
Com um movimento da mão,
Chandler indicou aos colegas que
recuassem. O rosto de Ken
espelhava frustração. Frustração
perigosa.
— Nós ficamos agora com ele,
Ken. Baixe a arma.
Chandler esperava transmitir
autoridade na ordem, mas não
sabia se conseguira.
— Por que diabo devo baixar a
arma? — perguntou Ken. — Alguém
tem de mantê-lo controlado.
— Baixe-a, Ken — disse
Chandler. Não podia deixar de
pensar que, se Ken soubesse quem
aquele homem provavelmente era,
não se atreveria a abordá-lo. Ken
era maluco, não estúpido.
— Não baixo a minha arma até
alguém vir prendê-lo — respondeu
Ken, com a voz presa na barba
como se os pelos lhe tivessem
fechado os lábios.
Chandler avançou para ouvi-lo
melhor. Uma má jogada. Ken
reajustou a sua posição,
ameaçador.
Houve um resmungo indecifrável
do refém. Implorava.
Chandler decidiu tentar aplacar
Ken.
— Certo, Ken, o que fez ele? —
perguntou.
— Pergunte antes o que o
apanhei a fazer.
Chandler esticou a cabeça para
a frente, sem se atrever a mover o
resto do corpo, não fosse provocar
Ken.
— Estava a tentar roubar o meu
carro.
— Na sua casa? — admirou-se
Chandler. Se era mesmo Heath,
devia estar à procura de um carro
para fugir. Ou perseguir a sua
presa.
— Não, eu estava perto da
quinta do Turtle, a caçar uns
malditos coelhos. Ia a voltar para o
carro quando apanhei este estupor
a tentar ligá-lo. As coisas de um
homem são as coisas de um
homem — declarou Ken, de olhos
arregalados e arvorando um ar tão
inocente como os coelhos que
alegadamente estivera a caçar.
Chandler sabia muito bem que a
história do coelho era treta. Se Ken
estivera perto da quinta de Turtle,
era quase certo que andara a
roubar ovos dos galinheiros; mas
isso era conversa para outro dia.
Naquele momento precisava que
Ken recuasse e o deixasse deter o
prisioneiro para lhe poder fazer
mais perguntas e confirmar as suas
suspeitas.
— Tem razão, Ken, tem razão —
concordou Chandler. — Agora, se
mo entregar, posso prendê-lo.
— Eu não estava a tentar…. —
começou o jovem. O cano
encostado às suas costas deteve-o.
— Estavas sim, apanhei-te —
disse Ken, gritando ao ouvido do
seu refém antes de voltar a desviar
a atenção para Chandler. — Haverá
impressões digitais no volante. E
antes que pense, não tenho nada
que ver com o sangue. Não me
pode prender por isso. Já o tinha
nele.
— Acredito em si, Ken. Agora…
— Não lhe toquei com um dedo.
Diz-lhe. — Ken empurrou a arma
contra as costas do refém.
— Não foi … — gaguejou ele.
Ken não o deixou terminar.
— Pronto, está a ver?
— Estou — respondeu Chandler.
Dirigiu-se ao refém, que tinha a
certeza tratar-se do assassino em
série. — O senhor está bem?
Havia mágoa nos olhos do
jovem.
— Não, não estou bem. Pareço-
lhe bem? — retorquiu,
estremecendo de dor. Não o cano
da arma daquela vez; outra coisa
lhe causava desconforto.
Ken espetou-lhe o cano
novamente nas costas, provocando
um grunhido.
— Diz-lhes o que fizeste, rapaz.
Ou o que estavas a tentar fazer
quando te apanhei.
— Ken, deixe-nos tratar disto —
pediu Chandler.
— Se eu o fizer admitir, não me
pode acusar de nada.
— Não vou acusá-lo de nada,
Ken, mas tem de baixar a arma.
Agora! — Chandler percebeu que
tinha de pôr fim àquilo. Quanto
mais tempo Ken permanecesse ali,
mais nervoso o seu dedo ficaria no
gatilho.
Luka interveio.
— Não podemos aceitar nada
disto como prova, Ken, uma vez
que o tem sob a mira de uma arma.
Chandler virou-se para o seu
agente. Luka estava tecnicamente
certo, mas não era um comentário
útil. Já tinha um potencial assassino
em série nas mãos; não precisava
de outra investigação de homicídio.
— Ken! A arma. Já! — Chandler
estendeu a mão para a caçadeira.
Embora tentasse, não conseguia
impedi-la de tremer.
— A arma é minha — declarou
Ken.
— E há de tê-la de volta.
— Tenho direito a ela.
— Mas não o direito de a
apontar às pessoas.
— Mesmo a estupores a
roubarem-me o carro?
— Trouxe-o até nós. É o
suficiente.
— Ele não o admitiu — disse
Ken.
De novo o refém estremeceu, o
maxilar cerrado. Envolvia-o uma
aura de derrota. O assassino em
série apanhado por acaso, os
cuidadosos planos frustrados por
um habitante local meio atrasado…
mas perigoso.
Ao ver que Ken não estava
prestes a largar a arma, Chandler
olhou para o jovem.
— Tentou roubar o carro dele?
Um aceno de cabeça. A
confissão sob a mira de uma arma.
— Sim, tentei. Precisei de o
fazer. Tinha de fugir, há um…
A sua confissão foi interrompida
por outro empurrão da arma.
— Tretas, rapaz. Não há
desculpas, vocês idiotas da cidade
acham que podem safar-se com
tudo aqui.
— Já tem a sua confissão, Ken.
Pode deixá-lo ir agora — disse
Chandler.
— Mas ele não está arrependido.
— Ken!
Ken fez uma careta, afastando a
arma das costas do refém e
apontando-a ao teto. Chandler
soltou o ar dos pulmões e sentiu a
tensão coletiva diminuir, os ombros
contraídos a baixarem-se como um
só. Tanya e Luka adiantaram-se
para separar Ken do seu refém.
Chandler aproximou-se dele
enquanto Ken resistia às tentativas
de Tanya de tirar lhe a caçadeira.
— A arma é minha.
— Quarenta e oito horas, Ken —
disse Chandler. — Para lhe dar a
oportunidade de se acalmar. Da
próxima vez que encontrar um
intruso, chame-nos.
— Quero-a de volta. Dois dias,
sargento. Preciso dessa arma. —
Ken franziu o cenho, parecendo
perdido sem a caçadeira, os olhos
arregalados de dor, como se o seu
único filho lhe tivesse sido
arrancado das mãos.
— Dois dias — confirmou
Chandler, ignorando o olhar de
frustração de Tanya. Sabia a
opinião dela. Só a polícia devia ter
armas. Podia ser por causa dos três
filhos, mas a verdade é que ela
nunca gostara de armas, apesar de
não ter medo de apontar uma
quando era necessário. Chandler
indicou-lhe que levasse Ken para a
rua. Ele era, para variar, o maluco
menos perigoso presente.
Com Ken fora, Chandler estudou
o suspeito. Tinha a cabeça baixa;
nada nas faces suadas e
rechonchudas sugeria que era
capaz de matar cinquenta e quatro
pessoas. Os olhos que subiram
quando ele se aproximou, porém,
estreitaram-se e Chandler detetou
neles um indício de malícia. O
homem respirou fundo e grunhiu,
com os dentes à mostra. A mão de
Chandler deslizou para a sua arma,
tocando o metal, pronta a sacá-la.
— Tive de roubar o carro. Tive
mesmo — sussurrou.
Luka deteve-se junto ao
suspeito, a aguardar instruções.
Chandler olhou para o lado da sala.
Mensagem entendida, o colega
recuou.
— O senhor é o Heath? —
perguntou Chandler com os dedos a
curvarem-se em volta da coronha
da arma. O homem aparentemente
ferido levantou devagar a cabeça, o
maxilar fechado. Tinha o ar de um
homem que acabara de ser
exposto.
Os olhos castanhos olharam
para Chandler, antes de
observarem os outros. Chandler
preparou-se, os dedos a retesarem-
se sobre a arma. Se o tipo tentasse
escapar, seria naquele momento.
Ele assentiu uma vez, e o seu
rosto revelava confusão, em vez de
ameaça.
— Como é que…?
— Chama-se Heath? — repetiu
Chandler.
— Sim, Heath Barwell — disse
ele franzindo a testa. A expressão
confusa tinha desaparecido. Fora
apenas fingida, embora muito
realista.
— É do Leste?
— Sim, de Adelaide.
— E o que o trouxe aqui? —
Chandler estava a começar
devagar, perguntas fáceis para o
embalar; como a desenterrar
artefactos numa escavação
arqueológica, era melhor usar um
pincel do que um trator.
— Trabalho.
— Que tipo de trabalho?
— Qualquer um. Agricultura,
apanha da fruta, trabalho. Tudo o
que sugerir, já fiz.
— Então conhece bem a zona?
Heath abanou a cabeça
lentamente.
— Não.
Chandler apercebeu-se da
desconfiança e da hesitação na voz
de Heath: parecia procurar o
caminho seguro através do campo
minado.
— Senhor Barwell, vou ter de o
prender…
— Eu precisava de roubar… de
levar o carro — grunhiu Heath. —
Estava a fugir de…
— Não estamos interessados no
carro — interrompeu Chandler,
pondo os braços de Heath atrás das
costas e colocando-lhe as algemas
nos pulsos vermelhos e feridos, as
palmas das mãos cheias de bolhas
devido ao calor ou a excesso de
trabalho. — Queremos falar consigo
sobre alguns homicídios.
Imediatamente as mãos
algemadas escaparam do seu
alcance. Heath virou-se para ele, os
olhos em chamas. Quando deu um
passo para longe de Chandler,
Tanya e Luka aproximaram-se.
— É sobre isso que lhe quero
falar — declarou Heath.
— Quer confessar? — perguntou
Chandler, lutando contra uma
curiosa sensação de anticlímax e
excitação. Mas se uma confissão
significasse que não teria de trazer
Mitch até ali, então…
— O que quer dizer com isso? Se
quero confessar? Eu é que fui
atacado! — exclamou Heath,
inclinando a cabeça como se
estivesse a indicar a direção. — Lá
em cima. Na floresta.
Tanya e Luka encurralaram o
suspeito e fizeram-no sentar.
Chandler parou diante dele,
perguntando a si mesmo o que
estaria Heath a tentar fazer. A dar
pistas erradas? A mentir para se
salvar? Um jogo?
— O que quer dizer? —
perguntou, alinhado na brincadeira.
— Quero dizer — começou
Heath, parecendo afrontado — que
alguém me raptou e tentou matar.
Consegui sair de lá até encontrar o
estupor com a caçadeira.
— Quem o atacou? — perguntou
Chandler.
— Qual deles?
— O da floresta.
— Diz chamar-se Gabriel —
respondeu Heath, passando a
língua pelos lábios gretados.
O nome fez surgir um milhão de
pensamentos no cérebro de
Chandler, mas foi Tanya quem
falou, ainda tensa e pronta a
atacar.
— E como era esse Gabriel?
— Alto…. mais alto do que eu.
Talvez da sua altura — olhou para
Chandler —, mas mais magro.
Falava… não sei… como se fosse
daqui.
Ai isso é que não, pensou
Chandler. Gabriel era mesmo de
Perth, embora calculasse que, para
alguém do Leste, todos os outros
falassem da mesma maneira.
Advertiu-se para não cair na mesma
armadilha. Estereótipos fortuitos
equivaliam a trabalho policial
incompetente.
— Mais alguma coisa? —
perguntou Chandler. A descrição
não ajudava muito. Não havia como
ter a certeza de que era Gabriel
Johnson.
— O que quer saber? Era da sua
altura, bronzeado, com barba por
fazer, mas o rosto dele era… não
sei, demasiado jovem. Como se não
combinassem, como se a barba
tivesse sido colada. Era de falinhas-
mansas. Uma voz sedosa.
Era aquilo. Heath descrevera
Gabriel ao pormenor. Na verdade, a
lembrança podia ser demasiado
boa, mais um estudo prolongado do
tema do que um olhar fugaz em
pânico. Especialmente para um
cérebro supostamente assustado.
Chandler olhou para os colegas.
Tanya parecia tão atordoada como
ele. Luka fitou-o, procurando
orientação sobre o que fazer a
seguir. O último elemento, Nick,
permanecia na receção de olhos
arregalados, a apreciar o
espetáculo.
Heath preencheu o silêncio.
— E foi por isso que tentei levar
o carro. Estava a fugir, a tentar
salvar a minha vida. Tem de
acreditar em mim.
O pedido foi dirigido a Chandler.
Este não respondeu, ainda confuso.
— Sargento? — perguntou Luka,
a pressioná-lo por uma resposta. O
rapaz gostava sempre quando
alguém estava sob pressão, ainda
mais quando era o seu chefe.
— Enfia-o numa cela —
respondeu Chandler. Aquela tática
só servia para adiar as coisas, mas
era o melhor que podia fazer até
ordenar as ideias.
Quando Luka assentiu, Heath
explodiu, tentando em vão libertar-
se dos dois agentes, pondo-se em
pé.
— Não pode fazer isto! — gritou
quando foi levado para as celas. —
Tenho os meus direitos. Não pode
prender-me.
— Posso, se estiver detido —
respondeu Chandler aos seus
protestos.
— Por que motivo?
— Roubar um carro, para
começar.
— Ele estava a tentar matar-me!
— Então estará a salvo nas celas
— respondeu Chandler, ouvindo os
protestos desvanecerem-se à
distância.
8

Chandler sentou-se à secretária


de Tanya e tentou ordenar os
pensamentos. Tinha dois homens,
cada um a alegar ter sido atacada
pelo outro. Um que prendera e
outro que libertara. Quem dizia a
verdade? Quem achava ele que
dizia a verdade? O que tinha ali
entrado voluntariamente ou o que
fora para lá empurrado com uma
caçadeira? Começaria por interrogar
aquele que tinha ali.
— Ligo para o comando? — A
voz entusiasta de Nick interrompeu
os seus pensamentos.
— Deixa-me pensar.
— Podemos ter um assassino
em série, sargento. — A voz de Nick
soava fervorosa.
Luka entrou na sala vindo das
celas.
— Ele está trancado? —
perguntou Chandler.
— Está — respondeu Luka,
tirando uma lata de Coca-Cola do
frigorífico. Chandler tinha a
sensação de que a temperatura na
esquadra subira, por impossível que
isso parecesse naquele calor
escaldante. — Talvez queira por um
travão na imaginação do jovem
Nick.
Chandler concordou. Competia-
lhe controlar as emoções, mesmo
que estivesse com alguma
dificuldade em controlar as suas.
— Não sabemos com o que
estamos a lidar. Pode ser apenas
uma discussão entre amigos que se
descontrolou. Vamos reunir alguns
factos antes de ligarmos para o
comando. Precisamos de manter a
calma.

Era o mantra que Chandler


repetia para si mesmo diante da
porta da sala de interrogatórios, a
tentar acalmar os nervos. Lá dentro
estava um homem que assassinara
cinquenta e quatro pessoas. Ou um
tipo que discutira com um amigo e
não representava uma ameaça
maior do que as moscas que
zumbiam em torno da luz do teto.
Heath ficara a marinar vinte
minutos antes de ser transferido da
cela para a arena.
No intervalo de vinte minutos,
Chandler ligara a Jim, que o
informou de que não havia nada a
relatar sobre Gabriel, a sua
testemunha e vítima, agora
implicado como possível suspeito.
Ordenou a Jim que continuasse a
vigilância e ligasse se houvesse
alguma alteração. Depois do
interrogatório traria Gabriel para a
esquadra.
Chandler entrou na sala de
interrogatórios. Heath estava
sentado à mesa, algemado, Tanya
de guarda ao fundo. Os olhos de
Heath encontravam-se fechados
quando Chandler se sentou.
Deixou-o meditar por um momento,
estudando o homem,
simultaneamente inquieto e
excitado em relação ao que estava
prestes a descobrir.
— Senhor Barwell, está
connosco?
Os olhos abriram-se e
concentraram-se em Chandler.
Esperara frieza e calculismo, mas
havia apenas cansaço e um ar que
sugeria que estava acordado há
demasiado tempo ou que o seu
cérebro tentava conter um segredo
terrível.
— Claro que estou convosco —
retorquiu Heath, levantando as
algemas. Cansado, mas com humor
suficiente para ripostar.
— Preciso de lhe fazer algumas
perguntas.
— Já lhe contei tudo o que sei.
Disse-lhe quem me prendeu e
tentou matar-me. Até lhe dei uma
descrição… no entanto, eu é que
estou preso.
— Roubou um carro, senhor
Barwell.
— E já expliquei porquê. Estava
a fugir de um assassino. Isso
sobrepõe-se a qualquer tentativa
de roubar um carro, não? — Houve
uma pausa, e Heath voltou atrás,
percebendo que acabara de
confessar um crime. — Não pode
usar isso, não começou o
interrogatório, nem me leu os meus
direitos.
O suor pingava do cabelo
castanho emaranhado, um suor que
foi rapidamente engolido pela
barba que parecia ter-se tornado
um pouco mais escura na última
meia hora.
— Já sei do carro — retorquiu
Chandler. — Quero saber do resto.
Quero que me conte a sua história.
Como chegou aqui?
Houve uma longa pausa, como
se Heath estivesse a decidir se
podia confiar em Chandler. Não
importava; na sua situação atual,
não tinha escolha. Inclinando-se
para trás, Heath agarrou no cabelo,
emaranhando-o ainda mais, antes
de arrastar as mãos sobre o rosto
tão bronzeado e castigado pelo
tempo como o de Gabriel. Era aí
que as semelhanças físicas
terminavam.

As suas histórias, no entanto,


eram quase idênticas. Como
Gabriel, Heath estava
desempregado, falido e viajava
para o interior para garantir algum
trabalho agrícola.
— Tinha algum contacto? Uma
localização? Um número de
telefone?
— O quê, para ligar primeiro e
reservar? — ripostou Heath num
tom de desdém.
— Deve ter tido alguma
indicação para vir até aqui.
Heath suspirou em frustração.
— Estava a fazer o que
normalmente faço… a improvisar.
Um apanhador de fruta disse-me
que o interior era o melhor lugar,
que a maior parte das pessoas fica
na costa para se deslocar com mais
facilidade, mas há muita
concorrência. — Heath olhou para
ele. — Mas improvisar não é crime.
Ou é?
Não era, mas também o tornava
menos credível. Chandler precisava
de mais.
— Continue.
— Bem, eu estava à boleia para
sair de Port Hedland quando o
Gabriel parou.
— Que carro tinha?
— Não sei. Um carro merdoso.
Também cor de merda.
— Marca?
Heath encolheu os ombros.
— Parou. Era só isso que me
importava. Lata velha ou não, era
melhor do que arrastar-me debaixo
da porra do sol.
— Matrícula?
Heath suspirou e fechou os
olhos.
— Se não me lembro da marca,
o que o faz pensar que vou
lembrar-me disso?
Chandler não respondeu. As
descrições do carro de Gabriel e de
Heath eram parecidas, embora
fossem igualmente vagas.
— E anda sempre à boleia? —
quis saber Chandler.
— Só se não tiver escolha.
— Não teve nenhuma má
impressão sobre ele?
— Era alto e magro. Nada com
que eu não pudesse lidar se ele
tentasse alguma coisa. Apresentou-
se como Gabriel, a regressar da
cidade com mantimentos.
— Mais alguma coisa?
Os olhos de Heath vaguearam
até à parede do fundo.
— Apenas que vivia por estas
bandas, sozinho. Parecia verdade.
Quero dizer, ele não falou muito e,
quando o fez, foi tão baixinho que
mal o consegui ouvir. Até pensei
que devia ser, sabe, gay. —
Concentrou-se em Chandler. — Não
que tenha alguma coisa contra
eles… O que cada um faz é lá
consigo. Quero dizer, não os odeio
nem nada disso — balbuciou Heath,
claramente com dificuldade em
expressar-se.
Chandler deixou-o continuar, à
espera que revelasse alguma coisa.
— O que estou a dizer é que não
senti medo. Tinha tudo controlado.
— Heath fechou os olhos num
momento de reflexão. — Pensei
que tinha tudo controlado.
Perguntei-lhe o que fazia, apenas
para ser simpático e isso, mas o
que eu mais queria era dormir
umas horas. Como ele era um
desconhecido, não o fiz.
— De que falaram?
— De nada, realmente. Disse-
lhe que era de Adelaide e que esta
região parecia tão árida como a que
vai de Coober Pedy a Alice Springs,
mas que é onde há dinheiro.
Saímos da cidade rumo ao interior.
Passámos por algumas saídas…
— Teve a impressão de que ele
era estranho? — interrompeu
Chandler.
— Não, só que estava a passar
por sítios onde eu podia arranjar
trabalho. Explicou-me que toda a
gente lá vai primeiro. Usou uma
expressão … — Heath revirou os
olhos para o teto — … qualquer
coisa como parar no primeiro
bebedouro que se visse. — Olhou
para ele. — Conhece-a?
Chandler abanou a cabeça,
querendo que Heath continuasse.
— Qualquer coisa acerca de
chegarmos lá e já todos os animais
terem revolvido o solo e deixado a
água demasiado turva para beber.
Disse que as quintas mais adiante
eram melhores, portanto
continuámos. Era bom estar em
movimento, em vez de assar na
berma da estrada. Disse-me que
havia água atrás, se eu quisesse. —
Heath estremeceu. — Porque não,
pensei? Estava com sede.
Chandler adivinhava o rumo da
história. Água envenenada. Como
Gabriel também descrevera.
— Passaram alguns minutos e só
depois comecei a ficar fraco. Como
se estivesse a desligar-me. De
início, pensei que era apenas o meu
corpo a descontrair, a ansiedade de
estar no carro de um desconhecido
a passar e o ar quente que entrava
pela janela a deixar-me sonolento,
mas fui ficando cada vez pior até
não conseguir sentir os braços e as
pernas. Então devo ter desmaiado.
Calculo que a água tenha sido
drogada.
Chandler deixou-o continuar,
rabiscando notas.
— Acordei num barracão com
ferramentas. — Heath inspirou. —
Cheirava a seiva doce, talvez da
lenha cortada ao canto. Estava
preso com umas algemas antigas
que me magoavam os pulsos. —
Mostrou a Chandler a pele ferida
que marcava os seus pulsos
grossos. — Os pés também.
Correntes como as que vemos nos
filmes antigos sobre o Ned Kelly e
afins. Ferro grosso preso por uma
corrente à parede. Ele não queria
que eu fosse a lado nenhum.
— Pode descrevê-las
exatamente?
Heath abanou a cabeça.
— Em forma de D… ligadas por
uma corrente. Nas pernas também.
Tinha os pulsos presos à parede. As
pernas não, mas as correntes eram
demasiado pesadas para deslocar,
como se tivessem sido feitas de
betão. Gritei por ajuda, mas não
ouvi nada fora, a não ser grasnidos
e chilreios… e movimento ao lado.
Foi quando percebi que devia estar
acorrentado num barracão ao lado
de uma cabana. O que me
preocupou foi imaginar para que
seriam todas as ferramentas. —
Olhou para Chandler. — Tudo
parece sinistro quando estamos
presos. Continuei a gritar por ajuda
até ficar com a garganta a arder,
mas o Gabriel não se importou.
Sabia que não havia ninguém por
perto para ajudar. Ao fim de algum
tempo apareceu à porta, não
zangado, não alegre… ali, assim.
Implorei-lhe que me deixasse ir e
ele disse-me que me acalmasse
naquela sua estranha voz suave.
Tive medo de que fosse fazer
alguma naquele momento, mas
disse apenas qualquer coisa sobre o
cinquenta e cinco. Perguntei a que
diabo se referia, mas ele respondeu
que tinha trabalho a fazer e saiu.
Disse-lhe que não precisava de me
matar. Nessa altura, ele respondeu
uma coisa que ainda me deixa
gelado. «Não precisas de te
preocupar com isso. Não precisas
de te preocupar com nada. Claro
que vais ser morto.»
Heath olhou para Chandler,
como se a seriedade da ameaça
tivesse de ser reforçada.
Chandler continuou.
— Se o Gabriel tencionava
mesmo matá-lo, como é que
escapou?
O seu suspeito colocou os pulsos
algemados sobre a mesa, a pele
rasgada, enegrecida nos bordos,
terra na ferida.
— Sorte. Continuei a puxar as
algemas e esperei que elas fossem
tão velhas que se pudessem partir.
E assim foi. Um dos fechos caiu.
Durante segundos fiquei imóvel, a
olhar para o chão, sem acreditar
que acontecera mesmo. Inclinei-
me, agarrei num machado que
estava na bancada e bati com ele
na outra algema, tentando não
cortar o pulso. Continuei a martelar,
atento ao regresso dele.
— E ele não regressou?
Heath sorriu com visível orgulho.
— Recomecei a gritar para
encobrir o barulho das pancadas,
gritando mais alto quando batia
com mais força. Consegui dobrar o
metal o suficiente para tirar a mão.
— Heath olhou para a palma da
mão inchada. — Ia fazer o mesmo
com os ferros da perna, mas
encontrei a chave pendurada num
prego. Quis usar o machado para
rebentar a porta do barracão, mas
estava tão rombo que fui até à
porta de ligação e espreitei lá para
dentro.
Heath fechou os olhos, a
recordar a cena.
— Lá estava ele, de costas para
mim, papéis e mapas espalhados
por toda a parte como se planeasse
alguma coisa. Provavelmente onde
me enterrar.
— Então ele estava de costas
para si? — perguntou Chandler.
— Sim.
— E você tinha o machado?
— Sim.
— Porque não o atacou?
Heath fez uma pausa, como se
só naquele momento a pergunta
lhe tivesse ocorrido.
— Só queria sair dali, sargento.
De qualquer forma, ele virou-se e
olhou para mim. Parecia tão
admirado como eu. Fugi para a
porta, saí e comecei a correr.
Lembrou-me o quanto odeio o ar
livre.
— Mas trabalha ao ar livre —
recordou Chandler.
— Só pelo dinheiro. Prefiro
tijolo, asfalto e ar condicionado,
mas não tenho miolos nem
qualificações para ganhar a vida a
uma secretária.
Chandler encaminhou-o de novo
para a sua história.
— Então correu, mas não o
despistou?
— Não. Ele tem a constituição
de um daqueles atletas de
maratonas, pelo amor de Deus!
Consegui mantê-lo à distância até
chegar às campas.
— Campas? — repetiu Chandler,
fingindo ignorância.
— Sim, campas. Ou pelo menos
foi o que me pareceu.
O recuo instantâneo deixou
Chandler desconfiado… como se o
suspeito estivesse a fingir não
saber muito.
— Quantas campas?
— Seis, acho. Foi como se
tivesse entrado no inferno, com as
campas e o calor. — Heath esboçou
um sorriso fraco, mas abandonou-o
rapidamente quando Chandler não
o retribuiu. — Dirigi-me ao cimo de
uma colina a pensar que ali
encontraria uma saída, mas não
havia nada além de uma parede
vertical de três metros. Então ele
apanhou-me e atirou-me ao chão.
— Heath pigarreou. — Não me
lembro muito da luta, a não ser que
nenhum de nós acertou em cheio
no outro. Fartámo-nos de rebolar
para conseguir desferir um soco,
mas devemos ter chegado à beira e
caímos. Quando aterrei, lembro-me
de pensar que estava morto, sem
ar nos pulmões, incapaz de mover
os braços ou pernas. Então acho
que desmaiei e acordei algum
tempo depois, a olhar para o cume.
Não fazia ideia de onde estava.
— Quanto tempo esteve
desmaiado?
— Não sei. O sol ainda estava a
subir, portanto acho que algumas
horas.
— Certo. E onde estava o
Gabriel?
— Ao meu lado. Coberto de
cortes e contusões. Vivo… morto,
não me interessava. Deixei-o lá.
Então nenhum dos suspeitos
tentara matar o outro. Chandler
supôs que, se um dos dois fosse
realmente um assassino em série,
teria aproveitado a oportunidade.
Uma coisa era certa: um deles não
estava a dizer a verdade.
Heath continuou a sua história.
— Cambaleei durante algumas
horas antes de me deparar com
uma estrada de terra. Segui-a e fui
dar a uma quinta. Não parecia
haver ali ninguém, então pensei em
tentar levar o carro. Foi quando o
idiota da arma me encontrou. E
aqui estamos, sentados a conversar
enquanto aquele psicopata continua
lá fora.
Chandler decidiu ser franco com
Heath para avaliar a sua reação.
— Esse psicopata está a contar
exatamente a mesma história… que
você o raptou e tentou matá-lo.
Heath empalideceu e
pestanejou rapidamente.
— Ele está a mentir.
— Certo. Porquê? — perguntou
Chandler.
— O que quer dizer com porquê?
— Porque mentiria o Gabriel?
Heath deslocou-se até à
extremidade da cadeira, fazendo as
pernas raspar no chão.
— Já lhe disse. Porque ele é um
psicopata.
— Quero dizer, haverá uma
razão específica? Há alguém que
queira raptá-lo e matá-lo? Que o
odeie o suficiente para organizar
isto? Algum inimigo? Dívidas?
Qualquer coisa?
— Não tenho nada para dever
alguma coisa — ripostou Heath.
Talvez seja a primeira coisa
verdadeira que diz, pensou
Chandler. Havia uma intensidade
na postura de Heath que dava a
Chandler a impressão de que por
dentro ele estava
permanentemente no limite, tão
nervoso como um gato assustado,
garras enterradas no tecido macio
da roupa.
— Ele é apenas um psicopata,
senhor… sargento… ou lá como se
chama.
— Sargento serve.
O nervosismo do jovem
corpulento acentuou-se, as pernas
a movimentarem-se para cima e
para baixo como pistões debaixo da
mesa.
— Não há mais nada que possa
dizer-lhe, sargento.
Chandler assentiu. Espremera
tudo o que conseguira daquele
homem por enquanto. Precisava de
tempo para planear o passo
seguinte. Naquele momento tinha
apenas a palavra de um
desconhecido contra a do outro e a
sua opinião acerca de quem dizia a
verdade. Se é que algum deles
dizia.
— Posso sair agora? —
perguntou Heath.
— Para onde?
— Qualquer lado.
— Acho que é melhor ficar aqui,
não concorda? Se um assassino em
série anda atrás de si…
Heath abriu a boca como se
estivesse prestes a discutir, mas
não disse nada.
Chandler e Tanya saíram e
foram para a sala das secretárias.
Foram recebidos por Luka, que
andava de um lado para o outro,
ansioso.
— Então?
— Vamos ter de detê-lo —
respondeu Chandler.
Os olhos de Luka iluminaram-se,
mas foi Nick quem falou, a sua voz
sem corpo a flutuar desde a
receção.
— Sempre foi ele?
— Não sei — admitiu Chandler.
— As histórias deles são idênticas.
— Não podem ser idênticas —
retorquiu Luka.
Tanya interveio.
— São, sim. Quase palavra por
palavra.
— Então de que o acusamos? —
perguntou Nick.
— Ainda não sei — admitiu
Chandler. Virou-se para Tanya. —
Mete-o numa cela, por enquanto. E
tem cuidado.
Falava a sério. Formara um
vínculo com todos eles. A última
coisa que queria era ter de explicar
a Simon, Errol ou Katie que
acontecera alguma coisa à mãe
deles. O mesmo em relação à mãe
inválida de Jim. No ano anterior,
tinham enterrado o pai dele, que
perdera a batalha com o enfisema
contraído nas minas. Um homem
que combatera na guerra tão
corajosamente como combatera a
doença. Um homem que insistira
que o seu funeral fosse uma
celebração da vida. E conseguira.
Três dias de duração, uma festa a
que alguns enlutados tinham
sobrevivido com dificuldade.
E embora soubesse menos sobre
os outros dois, gostava de Luka e
Nick; Luka, apesar das suas falhas
óbvias, e Nick, porque era difícil não
se sentir paternal em relação ao
rapaz, já que ele atravessara o país
vindo de Melbourne para trabalhar
ali. Essa preocupação aumentava a
sua relutância em colocar Nick no
terreno, embora percebesse que o
cordão teria de ser cortado em
breve.
— Mete-o na cela mais distante.
Vou buscar o Gabriel e não os quero
muito próximos um do outro. —
Cruzou o olhar com Luka e Tanya.
— E não façam nada sem ter apoio
um do outro. Tanto quanto
sabemos, os dois homens são
extremamente perigosos.
9

A vila estava silenciosa, ainda


mais do que o habitual, como se o
assassino em série tivesse limpado
o sebo aos habitantes enquanto
Chandler estava ocupado a
entrevistar Heath. Sentiu o calor
aumentar um pouco mais.
O caminho para o hotel levou-o
perto da casa dos pais e pensou em
parar para lidar com o problema de
Sarah. Talvez a avó lhe tivesse
tentado tirar o telemóvel. Sabia-se
que isso a deixava um pouco
transtornada. Não parou; tinha algo
mais mortífero para enfrentar do
que o mau humor de uma pré-
adolescente.
No hotel, Jim continuava em
posição, tão fixo como o ponteiro
dos minutos do relógio da
povoação. Entupira-se com pó há
alguns anos, uma relíquia na era
digital. Enquanto Chandler
estacionava, Jim saiu do carro da
polícia, moreno e magro como uma
árvore chamuscada por um raio.
— Ele ainda ali está — disse Jim,
prevendo a pergunta do chefe. —
Por que motivo vamos detê-lo?
— Para lhe fazer mais
perguntas. Há aqui qualquer coisa
que não bate certo — respondeu
Chandler quando começou a
atravessar a rua. Chegando ao
hotel, fez uma pausa. — Na
verdade, Jim, é provavelmente o
oposto. É tudo demasiado perfeito.
Tenho de descobrir porquê.
Encontraram Ollie na receção
debruçado sobre um jornal, as
corridas do dia destacadas com
uma mistura de círculos negros e
nomes sublinhados; o código
indecifrável de Ollie.
Este franziu a testa de surpresa.
— O que estão os dois aqui a
fazer outra vez? Sabem que não
gosto de duas visitas da polícia num
dia. Uma é sociável, a segunda
significa problemas.
— Precisamos do seu hóspede.
Ollie mostrou-se indignado.
— O que quer dizer com
hóspede? Tenho muitos hóspedes.
— Empurrou o registo em direção a
Chandler como prova. Chandler
ignorou-o.
— Leve-me mas é ao quarto
dele, Ollie.
Ainda a resmungar baixinho,
Ollie conduziu-os à Suíte
Presidencial no último andar.
— O plano é pedirmos-lhe que
nos acompanhe à esquadra para
responder a mais algumas
perguntas — sussurrou Chandler a
Jim. — Se ele resistir, algemamo-lo
e arrastamo-lo.
Chandler bateu à porta. Não
disse quem era nem o que queria.
Não havia necessidade de dar a
Gabriel a possibilidade de fugir ou
de se armar. Era mais seguro partir
do princípio de que estava a lidar
com um assassino maluco.
Nada. Chandler bateu de novo,
mais alto, na esperança de acordar
um Gabriel possivelmente
adormecido.
Mais uma vez, nada.
Ollie aproximou-se.
— Ele tomou banho mais cedo
— sussurrou. — Gastou-me quase
toda a água quente. Vou ter de
estender os lençóis sujos na rua e
deixar que o sol asse os percevejos
que tiverem.
— Tem a chave mestra? —
perguntou Chandler, impaciente.
— Sim, espere! — Ollie falou
num sussurro alto.
Chandler olhou para ele.
— Despache-se.
Ollie enfiou a custo a chave na
fechadura, fazendo demasiado
barulho para o gosto de Chandler. A
sua bota tamanho quarenta e
quatro teria sido mais eficaz.
Com a porta destrancada,
Chandler afastou Ollie para um
lado, e entrou com a arma em riste.
Jim seguiu-o.
O quarto estava vazio.
— Gabriel? — gritou Chandler,
atravessando o aposento até à casa
de banho. A banheira de madeira
estava cheia de água, mas não
havia sinal do homem.
— Alguma coisa? — gritou por
cima do ombro.
— Nada — respondeu Jim.
Gabriel desaparecera.
Passaram revista ao hotel.
Quartos, armários, escadas,
lavandaria e receção. Nada; não
havia sinal do suspeito ou sequer
de qualquer outro hóspede. A
cozinha estava vazia, tirando os
tachos e as frigideiras e vestígios
de excrementos de rato. Gabriel
evaporara-se.
Quando terminaram a busca,
ocorreu a Chandler um pensamento
horrível: que no curto espaço de
tempo entre deixar Gabriel ali e a
chegada de Heath à esquadra,
Gabriel de alguma forma fora vítima
de Heath. Era apertado, mas
poderia Heath ter estado à espera
do lado de fora da esquadra, para
depois os seguir até ao hotel e
matar Gabriel? Mas então como
conseguira Ken capturar e manter
Heath como refém? Poderia ter
percorrido a pé todo o caminho
naquele espaço de tempo? O sítio
de Ken ficava a uns bons quinze
quilómetros da povoação.
— Não ouviu nada estranho? —
perguntou a Ollie ao chegar à
receção.
— Nada além do banho.
— E não podia ter passado por
si?
— Estive sempre aqui. Não há
hipótese de ele ter saído sem eu
ver. Já agora, quere-o para quê?
Ollie podia ser pouco
escrupuloso, mas não era estúpido.
A polícia não se dava a tanto
trabalho sem motivos para
suspeita.
— Ele é testemunha de uma
agressão.
— A sério? — perguntou Ollie,
claramente cético.
Não acreditara, mas Chandler
não se importou. Queria verificar o
quarto de Gabriel mais uma vez.
A cama estava feita, nada fora
retirado do minibar, e os frascos em
miniatura de champô e amaciador
estavam cheios. Chandler ficou com
a impressão de que Gabriel partira
quase imediatamente. E se não
tinha saído pela frente, passando
por Ollie e Jim, então…
Ao fundo do corredor havia a
escada de incêndio. Uma
verificação revelou que a etiqueta
de segurança estava partida. A
porta conduzia a umas escadas de
metal, ao beco, a Anzac Street e à
liberdade.
Mandou Jim dar uma volta pela
zona exterior da povoação, para o
caso de poder deparar-se com o
suspeito a tentar sair da zona. Era
um tiro no escuro, mas tudo o que
tinha naquele momento.

De regresso à esquadra,
Chandler explicou a situação à
equipa.
— Achas que ele é o assassino?
— perguntou Tanya sem olhar para
cima.
Chandler queria permanecer
imparcial, mas era difícil. As coisas
não pareciam boas para Gabriel,
mas lembrava-se de que ele
quisera sair da cidade e afastar-se
da ameaça à sua vida. Era o tipo de
medo que tornaria a ideia de fuga
difícil de resistir.
— Vamos ter de trazê-lo para cá
e ver — respondeu Chandler. — O
Jim anda à procura dele agora. Eu e
o Luka também iremos. Tanya e
Nick, vocês ficam aqui.
— Porque sou mulher? — Tanya
franziu o sobrolho, olhando para
cima da pilha de formulários na sua
mesa.
— Não, porque confio em ti para
vigiares o suspeito que temos.
— Não achas que está na altura
de ligar para o comando? —
perguntou ela.
A equipa olhou para ele.
— Nós os três não podemos
cobrir toda a cidade — observou
Luka.
Tanya assentiu.
— Ele tem razão.
Chandler sabia que sim.
Também sabia o que implicaria
ligar para o comando e, mais
especificamente, quem implicaria.
Mitch.
Em tempos, tinham sido os
melhores amigos, subido na vida,
entrando na polícia na mesma
turma e sob as mesmas
circunstâncias trágicas. Em 2001,
perto de Newman, um acidente de
avião matara vários agentes e
abrira vagas para novos recrutas.
Uma maneira trágica de conseguir
uma oportunidade.
De início, Chandler nem pensara
em candidatar-se. Tornar-se polícia
não estava nos seus planos.
Deixara-se andar, com um trabalho
na CJ’s Grocery Store, a encher
prateleiras e a pirar-se para as
traseiras sempre que tinha
oportunidade. Mitch fora a única
razão por que se candidatara. E por
sua vez Mitch só se candidatara
devido à pressão da família. O tio
fora um dos agentes que morrera.
Chandler completara o
requerimento, em parte por
solidariedade com Mitch, e em
parte por curiosidade, para saber se
o aceitariam.
Tinham feito juntos o juramento
em agosto de 2001. Ele estivera ao
lado de Mitch, orgulhoso e
espantado em igual medida, os
distintivos brilhantes presos no
peito da farda.
Após a formatura, foram
colocados juntos em Wilbrook, na
parte inferior da escada. Ambos
iriam subi-la a custo. Só que não
ali. Não juntos.

Chandler estava sentado no


gabinete a olhar para o telefone, à
espera de que Nick lhe passasse a
chamada para o comando. Temia
aquilo; ter de falar com Mitch outra
vez. Perguntou-se se o seu velho
amigo continuaria a ser o magricela
pálido com os lábios estranhamente
azuis que conhecera antes. Tinham-
se passado dez anos desde a última
vez que se tinham visto, mas, por
intermédio do primo de Mitch, que
morava na cidade, Chandler sabia
que Mitch subira na hierarquia
desde que fora para Perth. Não que
ele se importasse. Não até chegar
um despacho a anunciar que um
novo inspetor assumira a direção de
Port Hedland, um inspetor Mitchell
Andrews. Isso mudara as coisas.
Mitch era o seu chefe. Até ao
momento, as circunstâncias e a
terra árida tinham-nos mantido
separados, mas os seus mundos
ameaçavam colidir.
O telefone tocou.
— Inspetor Mitchell Andrews,
Port Hedland.
A voz era serena, à vontade no
comando. Atrás dela, Chandler
quase podia ouvir as engrenagens
do cérebro de Mitch a trabalhar. O
homem que ele conhecera tinha a
capacidade de compartimentar os
seus pensamentos para fazer
avaliações racionais. Às vezes isso
levava-o a ser demasiado racional e
a ignorar qualquer sentimento. Mas
talvez a tensão tivesse diminuído
nos dez anos desde então. Talvez
Chandler devesse começar do zero,
transformá-los num simples chefe e
subordinado. O seu estômago
embrulhou-se num nó que não
podia ser desfeito.
— Sargento Jenkins, está aí?
Chandler percebeu que não
tinha falado.
— Sim, Mitch, estou aqui.
Houve uma pausa do outro lado.
A voz regressou, revelando
indignação e uma certa ameaça.
— É inspetor Andrews, sargento.
Dirija-se a mim dessa forma.
Isso respondia à sua dúvida. Em
vez de atenuar a vaidade de Mitch,
o tempo claramente exacerbara-a.
— A sua equipa está toda aí? —
perguntou Mitch.
— Não, apenas nós os dois… —
Não conseguiu pronunciar o título
completo de Mitch, a sua mente a
reagir, a rebelar-se contra um
pedido tão egoísta.
— Reúna-os e ponha-me em
alta-voz. Quero falar com todos.
Chandler chamou a equipa com
um gesto; todos, menos Nick, que
ele manteve na receção, por não
querer deixá-la abandonada. Para
compensar, manteve a porta aberta
para que Nick pudesse ouvir.
Premiu o botão.
— Está em alta-voz.
A voz dominadora soou no
altifalante.
— Fala o inspetor Mitchell
Andrews, do comando de Port
Hedland. Lembrei-me de me
apresentar, visto saber que alguns
de vocês ainda não me conhecem.
Como com certeza o vosso…
sargento vos informou, temos
atualmente nas vossas celas um
suspeito numa possível
investigação de múltiplos
homicídios e outro em fuga. Até
agora, a situação não foi tratada
tão bem como eu gostaria, mas
mais uma vez isso não é culpa
vossa.
A indireta era óbvia; Mitch
afirmava que a culpa fora de
Chandler.
— A situação exige agentes
experientes neste tipo de assunto,
pessoas devidamente treinadas…
— Precisamos de alguém aqui
para nos ajudar a organizar a
busca, ajudar a liderar uma
segunda equipa — interrompeu
Chandler, ansioso por realçar a falta
de apoio.
— Está tudo a ser tratado,
sargento Jenkins — disse Mitch com
calma.
Chandler olhou para Tanya, o
único membro da equipa que já
trabalhara com Mitch. Esperando
um revirar de olhos ou um sorriso, o
que viu foi pior: uma expressão de
pena.
— Identifiquei alguém com a
experiência adequada e que
conhece a área — disse Mitch.
— Quem? — perguntou
Chandler.
— Eu.
E pronto. Decisão tomada.
Chandler tentou respirar fundo, mas
a respiração ficou-lhe presa na
garganta, alojada ao lado das
péssimas memórias da última vez
em que ele e Mitch tinham
trabalhado juntos.
10

2002

A família de Martin juntara-se à


busca. Chandler fora incumbido de
ficar perto do pai de Martin, Arthur,
um homem que parecia à beira de
um ataque cardíaco. Estava perto
dos sessenta anos, era corpulento e
bastante baixo, como se estar
sentado atrás de uma secretária
toda a sua vida profissional lhe
tivesse prejudicado o crescimento.
A sua estrutura pesada pairava com
o peso da expectativa, curvando-se
mais a cada segundo ali passado, a
esperança perdida na terra
ressequida.
O acampamento parecera
promissor, apesar de as pedras
enegrecidas da fogueira estarem
semienterradas na terra, as cinzas
há muito tempo levadas pelo vento.
Arthur insistiu em revistá-lo, apesar
de Chandler lhe dizer que deveriam
continuar e cobrir outro quilómetro
antes de a noite cair. O homem
vasculhou o local em busca de
pistas que indicassem que o filho
estivera ali, arrastando um pau pelo
pó, varrendo o chão na tentativa de
descobrir a menor prova. Era
desanimador vê-lo andar para trás
e para frente na clareira, varrendo
folhas há muito mortas e insetos.
Chandler refugiara-se na sombra
quando Mitch se aproximou dele. O
entusiasmo inicial do amigo
diminuíra e agora, revelando a sua
personalidade cada vez mais
rancorosa, decidira dar ordens aos
voluntários como se fossem seus
escravos pessoais. Nada de
«obrigado», apenas um aviso para
manterem os olhos abertos. Mais
reprimenda do que encorajamento.
Nas últimas semanas, a própria
aparência de Mitch alterara-se, as
faces encovadas de fome, as
marcas do acne adolescente mais
acentuadas.
— Vim para fazer trabalho de
polícia, não de cão pisteiro —
sussurrou Mitch.
— Isto é trabalho de polícia.
Estamos a tentar determinar o que
lhe pode ter acontecido. Não sentes
que tens o dever de o fazer?
Chandler ficara bastante
admirado com aquele sentido de
dever. Fora inexistente em si
durante toda a adolescência e
ainda tentava aceitá-lo. A polícia e
a futura paternidade tinham-no
amadurecido. Estava a transformar-
se no pai, sólido e de confiança.
Não era mau, mas tinha apenas
vinte e dois anos.
Mitch levantou uma sobrancelha.
Não fora naquela tentativa de
Chandler o motivar.
— O que sinto, Chandler, é que
estamos a procurar alguém que não
quer ser encontrado. Se ele veio
até aqui, sabia para onde ia. E
sabia que não voltaria.
— O que queres, Mitch?
Homicídios? Prostituição?
Experimenta a grande cidade.
Mitch arrancou um ramo podre
de uma árvore, a madeira seca a
soltar-se do tronco.
— Estou a pensar nisso — disse
ele, desfazendo a madeira
ressequida na mão e deixando as
sobras caírem na terra.
— A sério? — perguntou
Chandler, sem desviar a atenção do
idoso que vasculhava a terra.
Mitch assentiu.
— Sim.
— Só estás na polícia há um
ano.
— E então?
— Então quem é que te vai
aceitar?
Mitch passou a língua pelos
lábios estranhamente azuis.
— Conversei com uma oficial em
Perth. Ela está aberta a isso.
— Perth…? Na maldita Perth?
— Sim, na maldita Perth. Não
vou a lado nenhum aqui a brincar
às escondidas.
— Grandes planos — comentou
Chandler, com algum sarcasmo —,
grandes planos.
— Lá porque estás encalhado…
— Não estou nada encalhado.
O sorriso de Mitch revelava
desprezo e Chandler quis bater-lhe.
— Enfiaste-o na Teri, agora
estás encalhado aqui.
A imagem da namorada grávida
de oito meses surgiu na mente de
Chandler. Queria estar na sua
companhia em vez de a percorrer
aquela floresta. Disse a Mitch o que
lhe dissera a ela.
— A vida continua. Tem de ser.
Não há outra escolha.
Com isso, deixou Mitch sob a
árvore e voltou para junto de
Arthur. O velho tinha descoberto
um invólucro de plástico e estava a
tentar perceber o que tinha sido
originalmente.
Era outra pista falsa, o plástico
demasiado velho e degradado para
ter sido descartado recentemente.
Deixaram a clareira, seguindo para
o mato, na direção de alguns
montes de pedras que os guiaram
até uma zona plana e larga entre
duas elevações, como um
desfiladeiro para o desconhecido.
Ao chegarem ao cimo, a
paisagem abriu-se, as copas das
árvores a ocultarem o chão,
impenetráveis, mas pelo menos a
oferecerem proteção do sol
inclemente. Chandler foi dominado
por uma sensação de isolamento, a
visão maravilhosa e assustadora.
Poucas pessoas haviam chegado
até ali, mesmo que fossem
malucas. Perguntou a si mesmo por
que motivo Martin lá fora. Havia
maneiras mais fáceis de se matar.
Lembrou-se de que passara apenas
uma semana. Ainda havia uma
hipótese de o rapaz estar vivo.
Dando os seus primeiros passos
no outro lado da colina, chegou-lhe
a voz de Mitch a ordenar aos
voluntários que se espalhassem.
Alguns ficaram irritados com as
ordens gritadas, mas Chandler
percebeu que Mitch não se
importava nada. Será que Martin
pudera sobreviver ali uma semana?
Poderia Arthur? Poderia Mitch? Ele
próprio?
11

— Certo, vai fazer o seguinte,


sargento Jenkins. — A voz
omnisciente e condescendente saiu
de novo do altifalante, impossível
de ignorar. — Primeiro, certifique-se
de que a Polícia Rodoviária Estadual
tem uma descrição do homem que
queremos.
— Gabriel — interveio Chandler,
sentindo a necessidade de
acrescentar algo de valor. Desejou
que Mitch dispensasse as
formalidades. Estava a comportar-
se como se não se conhecessem.
— Peça-lhes uma boa descrição,
que inclua o facto de ele poder
alterar a sua aparência de alguma
forma.
— Feito — disse Chandler.
— Mais importante ainda,
bloqueie as estradas. As principais
rotas…
— Não tenho agentes suficientes
para isso — interrompeu Chandler.
A resposta foi calma.
— A polícia estadual já foi
chamada para ajudar.
— Isso vai levar tempo, Mitch…
— Chandler decidiu alinhar no jogo.
— Inspetor Andrews… e o Gabriel já
pode estar muito longe. Bloquear
as estradas pode ser o mesmo que
bloquear a porta do celeiro…
Mitch intrometeu-se, o seu tom
severo a deixar claro que não
gostava que as suas decisões
fossem postas em causa.
— Temos de tentar colocar uma
espécie de tampa nas coisas,
sargento Jenkins. Depois da
porcaria que fez. Deixar um
suspeito sair da esquadra… não,
pior do que isso, levá-lo de carro e
hospedá-lo num hotel. À custa dos
contribuintes. Revelando uma
incrível compaixão para com os
criminosos.
Chandler imaginou o rosto
presunçoso e cheio de cicatrizes de
acne do outro lado da linha e
decidiu recordar ao inspetor
Andrews um facto importante.
— O Gabriel pode não ser um
criminoso.
— Vamos apanhá-lo primeiro e
deixar que os especialistas decidam
isso, pode ser? — Houve uma pausa
momentânea. — Além disso, há
uma terceira coisa que tem de
fazer… manter isto longe dos
jornais. Pelo menos até reunirmos
mais provas. Não queremos que a
investigação seja prejudicada pela
imprensa.
— Blackout total?
— Total — confirmou Mitch.
— O que digo às pessoas da
vila?
— Nada, sargento Jenkins.
Informá-las representa outra
oportunidade para uma fuga de
informação. Cinco minutos e tudo
estará no Twitter e no Facebook. É
assim que as coisas funcionam nos
dias de hoje. Acesso instantâneo a
notícias instantâneas. Talvez não se
aperceba disso aí em baixo. E a
notícia de que deixou desaparecer
um dos principais suspeitos não o
favorecerá, sargento.
Aquilo Chandler compreendia,
mas não avisar os amigos e
familiares de que um potencial
assassino em série vagueava pelas
ruas também não era
particularmente agradável.
— Acho que devia dizer-lhes.
— Insisto que não o faça,
sargento Jenkins.
— Chandler, Mitch… é Chandler.
Sabe isso.
Houve uma pequena pausa.
— Se espalhar a notícia,
sargento Jenkins, só irá piorará as
coisas. Pode provocar o pânico e
ajudar a fuga do nosso suspeito.
Além disso, as consequências de
desobedecer a uma ordem direta
são graves, como sabe. Ora, estarei
aí muito em breve, portanto…
— Está a mais de quatrocentos e
cinquenta quilómetros de
distância…
— Três horas — respondeu
Mitch. — Vou sair já, por isso,
sargento Jenkins, agradecia que
arranjasse espaço na esquadra para
mim e para a minha equipa e
tivesse comida e bebida à nossa
espera.
O inspetor Andrews fez uma
pausa.
— E, sargento Jenkins… tente
não piorar a situação entretanto.
Houve um clique e, em seguida,
o som de linha soou alto, como se
Mitch tivesse deixado cair o
microfone após um insulto final e
incontrolável.
Houve um silêncio momentâneo
na sala — como se em homenagem
à dignidade de Chandler.
Procurando de alguma forma
restabelecer o equilíbrio, ele dirigiu-
se às suas tropas. A mensagem não
foi positiva, mas foi franca.
— As coisas estão prestes a ficar
desagradáveis.
Houve acenos de cabeça do
grupo reunido em volta da mesa,
mas foi Nick quem falou primeiro.
— Não sei o que houve entre
vocês os dois, sargento, mas esse
tipo é um idiota.
Tanya entrou na conversa.
— Um idiota arrogante.
Foi a vez de Chandler assentir.
— Eu guardaria essas opiniões
para mim, por enquanto. Vamos ao
trabalho.
Apesar do embaraço de ser
desrespeitado diante dos seus
funcionários, Chandler seguiu as
instruções de Mitch.
— Tanya, fica com a Cento e
Quarenta e Dois e a Highway até a
polícia estadual chegar. Luka, vais
para a Daly, caso ele siga para sul
e não para norte. Vou mandar o Jim
para a Stockman e teremos de
esperar que seja o suficiente. E
tenham cuidado lá fora. Não
sabemos do que ele é capaz.
— Talvez ele use os mesmos
meios para sair que usou para
entrar — sugeriu Nick.
— Improvável — disse Chandler,
mas satisfeito por ver que o jovem
agente não tinha medo de se
envolver. — Ele veio de bicicleta,
segundo a sua declaração. Mas
verifiquem se alguém comunicou o
roubo de um carro, de uma
bicicleta, de um trator ou de
qualquer outro veículo.
Luka e Tanya saíram assim que
Nick confirmou que ninguém
comunicara o roubo de um veículo.
Chandler calculara que assim fosse.
Numa povoação pequena, um
incidente tão grave como o roubo
de um carro, ou até o roubo de uma
bicicleta, ter-se-ia sabido
imediatamente. Aquilo serviu para
lhe lembrar a gravidade da
situação. Por quase nunca ali
acontecer nada, tinham um
potencial assassino detido e outro
em fuga. Como Chandler já se
habituara, uma desgraça nunca
vinha só: uma mulher, depois
nenhuma, nenhum filho, depois dois
para criar sozinho.
No entanto, aquela situação
ameaçava submergir todos antes
que tivessem a oportunidade de
respirar.

Quinze minutos depois, recebeu


confirmação de que Luka, Tanya e
Jim estavam em posição e reinava
a calma. Sabia que seria uma
estupidez Gabriel sair pelas
estradas principais — se é que não
tinha já partido —, mas era o
mínimo que podiam fazer. O
mínimo que Mitch esperava dele.
Nick estava na receção de
ombros curvados, a imagem da
frustração.
— Não tarda nada vais lá para
fora — disse Chandler, esperando
que fosse devido a algo um pouco
mais rotineiro do que aquilo.
— Quando? Quantas vezes é que
isto acontece?
Chandler tentou consolá-lo.
— Vê as coisas da seguinte
maneira, Nick. Nunca esperei que
algo assim acontecesse aqui e
aconteceu. Então, se pode
acontecer aqui, pode acontecer em
qualquer lado e a melhor forma de
ajudares agora é ficares nessa
secretária no centro das coisas.
Podes achar que não estás a ver
ação, mas não podemos deixar o
telefone e a esquadra sem
ninguém, especialmente com um
suspeito detido e outro por aí que
pode ter tentado matá-lo. Se tentou
uma vez, nada nos diz que não
tente de novo. Podes não estar na
linha de frente, mas estás aqui.
Agora dá uma descrição do Gabriel
à polícia estadual.
Nick assentiu, endireitando-se
na cadeira.
Chandler não gostava nem
aprovava a ordem seguinte, mas
deu-a de qualquer maneira.
— E recorda-lhes que não
devem dizer nada à imprensa. Isto
é confidencial, nada de Facebook,
Twitter ou Snapchat. — Chandler
enumerou-os como se soubesse do
que estava a falar, mesmo que
fosse apenas o que ouvira da filha.
Estava encalhado, e nada podia
fazer, a não ser esperar que
chegassem notícias ou reforços.
Custava-lhe muito esconder aquele
segredo de todos na povoação, mas
tinha de admitir, a contragosto, que
Mitch podia ter razão. Não
precisavam de pânico geral naquele
momento.
Sem saber quando voltaria a ver
Sarah e Jasper, ligou para os pais.
Como sempre, Jasper foi o primeiro
a chegar ao telefone.
— Estou? — trinou, cheio de
entusiasmo. O filho mais novo de
Chandler possuía uma natureza
inquisitiva ou uma voz interior que
parecia insistir que ele enfiasse os
dedos em coisas que não devia ou
desmontasse objetos e os deixasse
numa pilha para os outros
reconstruírem.
— Sou eu, Jasper.
— Papá!
O menino praticamente gritou
para o bocal.
— Sim, é o papá. O que andas a
fazer? Está toda a gente em casa?
Quero apenas verificar,
tranquilizou-se; não ia avisar
ninguém, queria apenas confirmar
onde estavam.
— Hum, sim, os avós estão a ver
televisão e a Sarah está no quarto.
— Muito bom. Porque não pedes
ao avô para te pôr um vídeo?
Isso manteria ambos dentro de
casa e longe de problemas.
— Mas disseste que não é bom
ficar em casa o dia todo.
— Eu sei, mas às vezes não faz
mal. Agora vai chamar a Sarah.
O auscultador bateu. O filho
largara-o e deixara-o pendurado.
Olhou para a receção. Nick estava
ao telefone, a transmitir a descrição
de Gabriel.
— Sim? — A voz era irritadiça, a
antítese completa do irmão. Sarah
só queria voltar para o seu iPhone.
Ele tentara afastá-la do vício, mas,
dada a quantidade de tempo que
passava no trabalho, isso fora
impossível, estando ela tão presa
aos Angry Birds e ao Candy Crush, a
qualquer jogo em que os animais
fossem alvejados ou contornassem
obstáculos. Experimentara jogar um
deles uma vez. Não vira onde
estava a graça.
— Também é bom ouvir a tua
voz — disse Chandler.
— Sim, pai, tenho coisas para
fazer.
— Como correu o ensaio da
primeira comunhão?
Era a única coisa, além do
telemóvel, que a entusiasmava. A
oportunidade de se exibir diante
das amigas.
— Sim. Há ainda um último
ensaio, mas não levaremos os
nossos vestidos. Eles nem usam as
palavras certas, mas tenho falado
com o Nic e a Amy e eles…
— Pediste ajuda ao teu irmão?
— Ao Jasper? Não! Porque iria
eu querer que ele ajudasse? Ele
não sabe… ele é um… só iria
estragar tudo. — Parecia
horrorizada com a ideia.
— Pede-lhe por mim. Sei que ele
gostaria de ajudar.
— Mas que ajuda poderia ele…?
— Qualquer coisa —
interrompeu Chandler. — Para não
se sentir excluído.
Houve uma pausa, um
resfolegar, a indignação ainda a
sair.
— Está bem, qualquer coisa —
disse, e acrescentou: — Pai?
— Sim, querida.
— Quando vens para casa?
— Não sei. Talvez não esta
noite.
— Porque não?
— Surgiu uma coisa.
— Ah, está bem.
E pronto. A deceção pelo facto
de o pai não ir para casa foi
facilmente superada. Entristecia-o
ela estar tão habituada à sua
ausência que nem a questionava.
Não admirava que Teri tivesse
tentado ficar com a guarda dos
filhos. Não iria admitir isso, mas a
ex-mulher tinha razão, ele passava
muito tempo no trabalho. O que
Teri não conseguia perceber era
que ele era responsável por uma
pequena força policial com uma
grande área para cobrir. Uma
desculpa válida, além do facto de
terem um agente a menos depois
da reforma de Bill no ano anterior.
Outra desculpa que podia não
pegar quando chegasse a tribunal.
Mas isso era uma batalha para
outro dia. Um dia mais tranquilo.
— Papá? — Era Jasper. Durante
quanto tempo vagueara a sua
mente? Chandler repreendeu-se por
nem conseguir dar-lhes toda a sua
atenção durante um telefonema de
cinco minutos.
— Sim, ainda aqui estou, Jasper.
Imaginou o filho do outro lado
da linha. Nove anos de idade e
apenas um metro e trinta e sete, o
seu cabelo uma juba indomada por
pente ou gel. Apenas uma dose
liberal de água o prendia o
suficiente para o achatar.
— Vi hoje o kart na garagem.
Podemos andar nele quando
voltares?
O kart fora o projeto do último
verão. Já parecia ter anos. Desde o
final do verão que estava no fundo
da garagem à espera de chamar de
novo a atenção do miúdo.
Chandler pensou em fazê-lo
pedir ao avô, mas ficou calado.
Mantém-nos dentro de casa,
lembrou a si mesmo. Não precisava
de se ter preocupado. Jasper já
tinha afastado essa opção.
— O avô não serve. É
demasiado velho. Não consegue
empurrar-me. Cansa-se muito.
Chandler sorriu ao imaginar a
fúria do avô se ouvisse aquilo.
— Sim, não o faças correr atrás
de ti. Já te avisei em relação a isso.
— Sim, papá.
Chandler olhou para a receção.
Nick continuava ao telefone.
— Agora chama a avó ou o avô,
pode ser?
— Está bem. Adeus, papá.
— Adeus, Jasper.
Houve um barulho imediato no
auscultador. A voz da sua mãe
atravessou os fios, já danada.
— Então não voltas para casa?
— O que é que ouviste?
— O suficiente. — Um tom
exasperado. — O que foi? O que
aconteceu?
Como sempre, a mãe era
perspicaz. Percebia que, se o filho
não voltava para casa depois de
prometer fazê-lo, era porque
alguma coisa importante
acontecera e queria saber o quê.
Havia uma insistência na voz como
se sentisse que merecia saber e
não pararia até conseguir extrair-
lhe a informação.
— Uma coisa — respondeu
Chandler. — Tudo o que posso dizer
é que deves ficar dentro de casa.
Houve uma pequena pausa.
— Isso parece sério.
— Pode ser.
— Estás à espera de uma
grande tempestade? — perguntou
enigmaticamente, como se achasse
que a linha se encontrava sob
escuta.
— Não te preocupes comigo.
— No dia em que uma mãe não
se preocupar é porque a
enterraram.
— Mãe — disse Chandler,
frustrado. — Não digas essas
coisas.
— É só um ditado. Não te
ponhas em perigo — acrescentou
baixinho.
— É isso que me pagam para
fazer.
— Não o suficiente.
Com aquilo, Chandler
concordava.
— Muito bem, vai lá à tua vida.
O pai manda um abraço.
E desligou. Era o fim padrão das
suas chamadas. Chandler sabia que
o pai não mandara nenhum abraço.
Na verdade, provavelmente nem se
apercebera da conversa, absorvido
por algo completamente diferente,
a televisão, o jornal ou o que quer
que fosse. Quando o pai metia na
cabeça fazer uma coisa, era tão
difícil chamar a sua atenção como a
do neto de nove anos.
Embora o telefone tivesse ficado
em silêncio, Chandler ainda podia
ouvir as palavras da mãe. «Não te
ponhas em perigo.» Podia não ter
escolha. Naquele momento,
existiam duas opções: ou tinha um
jovem muito assustado à solta
algures da cidade ou um assassino
em massa esperto e engenhoso.
12

Chandler desejava estar nas


ruas. Mas só quanto tudo estivesse
pronto é que poderia considerar
juntar as suas botas à operação.
Naquele momento, estava no
mesmo purgatório onde forçara
Nick a ficar, tendo de aceitar
manter-se atrás de uma secretária.
A polícia estadual confirmou que
poderiam ter homens em posição
dentro de uma hora. A pesquisa de
Nick nas redes sociais confirmava
que tudo estava calmo, além de
alguns comentários sobre os
polícias serem mais visíveis do que
o normal. Nada de extraordinário.
As coisas estavam controladas.
Varridas para baixo do tapete,
recordou a sua consciência. Tinha
sido capaz de alertar indiretamente
a família para ficar dentro de casa,
mas o resto da povoação
permanecia vulnerável.
Enquanto aguardava os
inevitáveis telefonemas e pedidos,
decidiu testar Nick.
— O que achas que pode ter
acontecido depois de o Gabriel fugir
do hotel?
Nick arrancou os auscultadores,
como que ansioso pelas perguntas
de Chandler.
— Certo… então aqui está o que
sabemos, ou podemos presumir,
tendo em conta os vestígios de que
ele saiu pela escada de incêndio.
De lá, desceu para a rua, um
estranho numa cidade estranha, por
assim dizer. No lugar dele, eu iria
em direção a algum sítio conhecido.
Ou a alguma coisa conhecida. Ou
seja, o que quer que ele usou para
chegar à cidade.
— Uma bicicleta — lembrou
Chandler.
— Exatamente. Mas sair da
cidade a pedalar dá nas vistas. E
sabemos que nenhum carro ou
veículo grande foi roubado. Isso
deixa-nos com uma coisa mais
pequena, talvez uma moto-quatro?
O desaparecimento de uma coisa
dessas pode não ser notado pelo
proprietário durante algum tempo.
Especialmente se estiver guardada
num celeiro.
— Certo, vamos admitir isso —
disse Chandler, seguindo as
suposições do seu jovem agente. —
Então onde? Saiu da cidade numa
moto-quatro? E foi para onde? O
terreno é muito perigoso assim que
escurece, com os cangurus a
lamberem o orvalho dos riscos
brancos da estrada.
— Vias secundárias?
— Possivelmente. É difícil vigiá-
las.
— Ou ficou na cidade —
comentou Nick.
— É possível — disse Chandler
—, mas não há muitos lugares para
um estranho se esconder aqui. E
ele disse que temia pela vida. As
pessoas assustadas não ficam
paradas.
— Partindo do princípio de que
ele é inocente, claro. Se eu fosse
um assassino em fuga, procuraria
alguém que me tirasse da cidade.
Chandler assentiu, tão
impressionado com a dedução de
Nick como com a paixão com a qual
foi dita.
— Talvez ele se comporte como
um turista perdido. Deu boleias e
apanhou boleias, então sabe o que
dizer, o que fazer. Usa o seu
encanto para se enfiar no carro e
força-os a levá-lo da vila.
— Eu faria isso — disse Nick.
— Bem pensado, Nick — elogiou
Chandler. — Contacta a Tanya, o
Luka e o Jim e diz-lhes para ficarem
atentos a alguém daqui que saia da
vila, caso estejam a ser
pressionados. Fá-los verificar os
veículos, mas pede-lhes que sejam
subtis… para não haver uma
escalada.
— Posso ser o seu especialista
no assunto — disse Nick,
desfazendo rapidamente um pouco
do seu bom trabalho. — Sei como
funciona a mente de um assassino
em série.
Chandler estava prestes a
lembrar-lhe que o trabalho da
polícia tinha pouco que ver com as
séries de televisão, mas foi
interrompido. Heath estava a
chamar.
Deixando Nick ao telefone com
Jim, Chandler entrou na zona das
celas.
— Quem é? — berrou Heath
dentro da cela.
— O sargento Jenkins —
respondeu Chandler e abanou a
cabeça desgostoso. A doença de
usar títulos formais estava a
contagiá-lo.
— Não pode manter-me aqui,
sargento! Não quero ficar preso
enquanto o Gabriel anda à solta lá
fora.
— Pelo que sabemos, ele está a
fugir de si — lembrou Chandler.
— Não sabe peva. — Heath fez
uma pausa. — Não podemos ser
suspeitos da mesma coisa.
— Neste momento, tudo é
possível, senhor Barwell. E se ele
anda lá fora atrás de si, então o
sítio mais seguro onde pode estar é
este.
Heath riu, um grito estridente
que pareceu um pouco
desequilibrado.
— Seguro? Depois de o senhor
acreditar naquela história da treta e
de o ter soltado.
— Uma história idêntica à sua.
— Não podem ser exatamente
iguais.
Chandler abriu a portinhola de
metal da cela para ver o prisioneiro.
Heath estava perto da porta, a cruz
em volta do pescoço a estrangular
a pele gordurosa e manchada de
suor.
— Basicamente, sim.
— Como por exemplo?
Chandler sorriu.
— Não posso divulgar isso.
— Então vai manter-me aqui
trancado e esperar para ver o que
acontece? E se ele entra aqui à
força e termina o que começou?
— Temos de seguir o protocolo…
— Protocolo uma ova. Só quer
ver se consegue encontrá-lo
novamente. E se não conseguir, vai
culpar-me dessa merda. Sei como
é. Que diabo aconteceu àquilo de
inocente até prova em contrário?
— Alguns diriam que o senhor
pisou o risco ao tentar roubar um
carro. Temos o suficiente para o
acusar disso.
— Sim? E porque roubaria eu um
carro se não temesse pela minha
vida? Não sou criminoso. — Heath
fez uma pausa, os seus dedos a
brincar com a cruz em volta do
pescoço, fazendo-a girar. — Certo,
uma pequena agressão —
continuou —, mas eu estava
bêbedo e eles também. Tinham
insultado um amigo meu.
Enquanto Heath falava,
Chandler estudou o seu
comportamento. Sentia dificuldade
em analisá-lo. Transpirava como
um homem culpado, mas naquela
cela abrasadora teria de ser não
humano para não transpirar, já que
pouca ou nenhuma brisa soprava
através da pequena janela
quadrada. Heath estava sozinho ali,
rodeado por paredes ensopadas
com os pecados daqueles que
tinham vindo antes. Enquanto
continuava a falar, começou a
soprar, a bochechas a encherem-se
de ar. Dados os seus modos
agressivos e temperamento volátil,
não custava muito considerar Heath
um possível assassino.
— Então bati-lhe — continuou
Heath. — Não foi nada de especial.
Ele não quis apresentar queixa, eu
não quis apresentar queixa; mas o
gerente chamou a polícia à mesma.
Heath parou. Olhou para
Chandler, parecendo notar algo de
que não gostava. Talvez um olhar
que lhe dizia que não estava a ir a
lado nenhum.
— Está a cometer um grande
erro — declarou, o seu tom de
repente ameaçador. — Assim que
eu sair daqui… — Chandler esperou
pela explosão e pela confissão
impelida pela fúria. Se conseguisse
esclarecer a situação antes que
Mitch chegasse, evitaria o seu
próprio pelotão de fuzilamento.
— Vou pôr o meu advogado ou
qualquer advogado a processá-lo.
Aos políticos também. Avisaram-me
que o oeste estava cheio de gente
esquisita, pessoas que nos
esfaqueiam porque não têm mais
nada para fazer, mas ver-me numa
vila cheia deles…
Heath estava agora a ferver;
gotas de saliva espalhavam-se em
torno dos seus lábios secos. A fúria
em breve se transformou em
desespero, e bateu com a palma da
mão na parede gordurosa.
— Arranja-me alguma coisa para
beber? Ou liga o ar condicionado?
Tenho direitos.
— Incluindo o direito de
permanecer em silêncio — observou
Chandler ao afastar-se, bastante
dececionado. Esperara algo da
explosão, alguma indicação de que
tinha o homem certo atrás das
grades. Obtivera apenas um
discurso desequilibrado.

Fechando-se no gabinete,
Chandler ouviu a gravação que
fizera naquela manhã, absorvendo
as vozes que brotavam das colunas.
A voz de Gabriel era já quase
uma memória distante, gerando
uma profunda apreensão em
Chandler por tê-lo deixado ir em
liberdade, mesmo que não pudesse
ter sabido na altura que era a
decisão errada. Ouviu todo o
interrogatório, tentando visualizar a
declaração e os maneirismos de
Gabriel, identificar onde diferiam
dos de Heath, as alturas em que
Gabriel parecera fraco ou pouco
claro, algo que o ajudasse a decidir
contra ou a favor dele.
Enquanto ouvia Gabriel explicar
que seguira a sugestão de procurar
trabalho no interior, o instinto de
Chandler foi acreditar na voz
sedosa que vinha da gravação.
Talvez fosse o tom moderado que o
fez acreditar, ou apenas porque a
história de Gabriel lhe fora contada
primeiro, mas inconscientemente
isso fazia-a parecer mais
verdadeira, a versão da música
ouvida primeiro e que na sua
cabeça se tornou a original.
A gravação continuou. A
desilusão de Gabriel por Heath não
ter seguido viagem. Desilusão
genuína. A descrição do carro —
idêntica à de Heath na cor e na
inutilidade. Em seguida, a frase:
«Nenhum assassino se apresenta.»
Chandler parou a gravação.
Nenhum assassino se apresenta.
Dita como se entendesse o que
um assassino faria, como um
assassino agiria.
Carregou no play. A voz de
Gabriel continuou, explicando que
tinham viajado para o interior,
Heath convencendo-o de que
conhecia lugares melhores para
encontrar trabalho, ordenados mais
justos. Bebendo a água, o gosto
estranho e a descrição vívida de
como isso o paralisara. O barracão
e estar algemado à parede. As
algemas e a bancada de trabalho.
Uma descrição clara do aposento e
do conteúdo.
A ameaça de se tornar o número
55. Tentar libertar-se. As marcas
vermelhas nos pulsos e mãos — em
ambos os pulsos e mãos — de
quando se soltara. A descrever
Heath na secretária desarrumada,
os planos e papéis, a cruz na
parede. Um relato pormenorizado.
A fuga e as campas. Cair no
precipício. Acordar e ver Heath ao
seu lado. Fugir sem verificar se o
seu captor ainda estava vivo antes
de chegar à povoação de bicicleta.
Era uma escolha estranha. Não
o meio imediato de transporte que
Chandler escolheria se estivesse a
mentir, mas também um que era
difícil de confirmar. Além disso, era
uma distância grande de Hill até à
vila. Qualquer pessoa que estivesse
a ser perseguida por um assassino
poderia certamente ter encontrado
algo melhor.
Como tentar roubar um carro.
O depoimento de Gabriel
terminava ali, mas Chandler pensou
no que Gabriel dissera depois,
sobre não ter para onde ir, um
homem sozinho no mundo, um
homem sem vínculos.
Recostando-se na cadeira,
meditou nos pormenores. O que
fazia sentido e o que não fazia e o
que era suspeito. No cimo dessa
lista estava o comentário: nenhum
assassino se apresenta. Uma
declaração extraordinária, uma
verdade fria. Havia também a
excelente descrição do barracão e
da cabana, incluindo a cruz na
parede. Demasiado bem
imaginada. Talvez mais do que
seria visto num olhar relanceado de
pânico, talvez um lugar visto mais
do que uma vez. Mas, por outro
lado, o medo podia ter apurado os
sentidos de Gabriel, armazenando
os pormenores no seu esforço para
fugir.
Com o depoimento de Gabriel
fresco na memória, Chandler
voltou-se para o de Heath. A
primeira coisa que se destacava era
a falta de informação sobre o seu
destino, como se não tivesse tido
tempo de preparar o depoimento
com antecedência. Nada mais se
destacava entre as duas histórias
até ao momento de ele ser
drogado. A lembrança de Heath era
certamente mais nebulosa, a
nebulosidade continuando ao longo
da sua explicação de como fugira,
um pouco menos descritiva, os
pormenores bloqueados pelo medo,
um tremor na voz quando recordou
isso, tenso mesmo na altura, como
se naquele momento estivesse de
volta ao barracão, acorrentado à
parede e a tentar libertar-se. A
nebulosidade era apropriada se ele
realmente tivesse sido drogado,
mas Chandler perguntou-se se seria
um artifício, encobrindo pormenores
de propósito, tentando demasiado
parecer inocente.
Havia novamente poucos
pormenores sobre a fuga de Heath,
uma breve menção de Gabriel à
mesa antes das campas, o encontro
na floresta e a queda. Acordar ao
lado de Gabriel e fugir. O que se
seguia era uma parte que
preocupava Chandler, a fúria
mostrada quando fora acusado de
roubar o carro, a fúria e a falta de
remorso, insistindo que aquilo tinha
de ser feito. O temperamento
revelado e o temperamento que
ainda exibia na cela, a forma como
torcia a corrente em volta do
pescoço, recordando a Chandler a
que fora descrita como pendurada
na cabana.
Havia pontas soltas em cada
história. Chandler precisava de uni-
las para encontrar a verdade.
13

2002

Num mundo capaz de identificar


tudo, desde os menores átomos às
supernovas que engoliam o Sol, o
paradeiro de Martin permanecia
desconhecido. Análises térmicas do
terreno tinham-se mostrado
ineficazes, assim como os
transmissores. Os olhos no céu
tinham descoberto apenas terra
estéril, e a análise do telemóvel
não dera em nada, a bateria há
muito descarregada. Tudo o que
restava eram os olhos, orelhas e
pés humanos, e o terreno difícil de
percorrer.
Estavam na primeira pausa da
manhã e Chandler lembrara ao
grupo para analisar com atenção a
zona; não à procura de pistas, mas
para fazer dispersar qualquer
criatura ansiosa por uma refeição
fresca. Naquela manhã, Chandler
dera por si sentado com dois
agentes de Mount Magnet,
recrutados devido à sua experiência
em procurar caminheiros
desaparecidos. Já reparara que eles
não conversavam enquanto
andavam, poupando energia,
cobrindo o terreno rápida e
eficazmente, despachando uma
zona em segundos antes de
seguirem em frente.
A conversa foi parar às poucas
probabilidades de sobrevivência de
Martin depois de uma semana ali
fora. Tudo dependeria do
equipamento que levara e do seu
estado de espírito.
— Irascível, pelo que sabemos
— comento Mitch —, um misto de
emoção, choque e fúria.
Jared, o agente de Mount
Magnet com uma voz estrepitosa,
interrompeu.
— Se ele quisesse partir de vez,
poderia facilmente fazê-lo. Damos a
uma pessoa razoavelmente em
forma uma vantagem inicial de
quarenta e oito horas e as
hipóteses de a encontrarmos são
pequenas. Não será a fome ou a
sede que a vai afetar, mas sim o
pânico. Perceber que está na
merda, mas ser incapaz de fazer
qualquer coisa para solucionar isso.
Vai ficar desesperado, cometer um
erro, e a seguir irá cair, partir uma
perna e morrer no fundo de uma
vala.
Fez-se silêncio. Chandler pensou
que felizmente ninguém da família
estava ali para os ouvir.
— Com que frequência os
encontra? — perguntou Mitch.
— Talvez dez por cento das
vezes — respondeu Jared, fazendo
com que os voluntários
murmurassem entre si. — Bem…
provavelmente quatro ou cinco por
cento — corrigiu-se.
Ouviram-se mais gemidos, os
voluntários a perguntarem-se
porque estavam ali atrás de uma
causa perdida. Chandler também se
sentiu derrotista, a sua mente a
regressar a Teri e ao filho ainda por
nascer e ao facto de estarem mal
preparados para serem pais.
Só a conhecera no último fim de
ano, numa festa. E não como
convidado. Sendo jovens, novatos e
solteiros, Chandler e Mitch tinham
ficado de serviço na noite de Ano
Novo, permitindo aos colegas
voltarem para junto das famílias
para celebrar. Teri também viera da
costa visitar a família, aproveitando
a viagem como desculpa para ir a
algum lugar obscuro fazer
travessuras.
Chandler e Mitch foram
chamados por um vizinho receoso
de que houvesse menores a beber
álcool na festa ao lado. Era um
pormenor que não importava
muito; iam ser criticados de
qualquer maneira, por
interromperem uma festa ou por
correrem com as pessoas.
Entrou na casa ao som dos
protestos habituais, dos insultos e a
ver pessoas a fugirem da polícia.
Mas não Teri. Ela confrontou os
dois, já obviamente embriagada, o
vestido azul a escorregar-lhe dos
ombros, expondo as alças do
biquíni vermelho. Bastante mais
alto do que ela, Chandler pediu ao
dono da casa que se apresentasse.
Teri disse a ambos que se fossem
embora pois estavam a estragar o
ambiente, mas só quando ela lhe
deu um empurrão no peito é que
Chandler realmente lhe prestou
atenção e aos seus penetrantes
olhos castanhos. Eram grandes e
perigosos como um incêndio
florestal. Vendo que já estava
bêbeda, preparou-se para negociar
com ela, no entanto Mitch não se
mostrou tão indulgente. Tinham
passado apenas dois meses, mas o
parceiro já usava o uniforme como
uma segunda pele, desfrutando da
autoridade e mostrando o distintivo
com um fervor que roçava o
fanatismo, ansioso por exercer o
poder que nunca tivera em
adolescente.
Com Mitch e Teri a ameaçar
iniciar o novo ano com alguma
forma de agressão, Chandler foi
forçado a meter-se entre eles.
Enquanto conduzia Mitch porta fora,
lembrando-lhe que permanecesse
profissional — um pedido que só
deixou Mitch mais furioso —
conseguiu sentir a minúscula Teri a
empurrá-lo insistentemente nas
costas.
Deixando Mitch a dar voltas ao
carro como um touro enfurecido,
Chandler voltou para lidar com a
queixa original. Por fim, persuadiu o
dono da casa e Teri de que iria ser
apenas uma conversa e, quanto
mais cedo ela concordasse, mais
cedo poderia voltar para celebrar.
Avisou-a sobre os perigos de beber
sendo ainda menor e aconselhou-a
a proteger-se — ao que Teri
respondeu que, se alguém tentasse
alguma coisa, levaria com um copo
na cara. Chocado com a sua
honestidade e brutalidade, ele
advertiu-a contra essa reação. Ela
perguntou se lhes devia enviar uma
carta, pedindo-lhes educadamente
que se afastassem. Chandler
percebeu que não havia uma
resposta correta para ela e
possivelmente nunca haveria. Teri
era uma força da natureza e, no fim
da conversa, lá conseguira que ele
concordasse em voltar depois de o
seu turno terminar dali a uma hora.
Chandler deixou o assunto ficar
por ali, avisando o dono da casa
para arrastar todos os foliões do
jardim para o interior, a fim de
manter o barulho lá dentro. E
também para ficar de olho nos
convidados mais jovens,
informando-o de que voltaria para
verificar.
O turno chegou ao fim algumas
horas depois, Mitch ainda furioso
com a rapariga da festa que
mostrara tamanho desrespeito por
ele e pelo distintivo. Chandler
assentiu e desejou ao colega uma
boa noite de sono. A caminho de
casa, passou pela festa. O jardim
da frente estava vazio, além do
som dos grilos… até que a porta da
frente se abriu e um homem em
boxers saiu, a batida da música
aparentemente a empurrá-lo para
fora.
Chandler entrou, ainda fardado.
Mais uma vez, as pessoas abriram
caminho para ele.
— Onde está o idiota do seu
parceiro?
Chandler virou-se. Lá estava ela.
Teri. Ainda bastante alerta mesmo
depois de toda a farra, a sua
pequena estatura de alguma forma
capaz de processar o álcool.
— Em casa — respondeu
Chandler.
Teri pareceu impressionada,
talvez até aliviada por Chandler o
ter largado.
— Ele era um chato.
— É apenas sisudo.
— Um chato de galochas.
Chandler não discordou. Já sabia
que não deveria discordar dela.
— Então está de serviço?
— Não, acabei de sair do turno.
— Ótimo — disse Teri, pondo-
lhe uma cerveja na mão. — Mas é
melhor tirar o distintivo.
O resto da noite passou, e
beberam e conversaram até às
quatro ou cinco da manhã, Chandler
a sentir rapidamente os efeitos das
incontáveis garrafas.
Depois daquela noite e durante
os primeiros meses, ele ia até Port
Hedland para se encontrar com ela
quando não estava de serviço. Em
fevereiro, ela completara dezoito
anos. Em abril, estava grávida e,
em junho, ele já não precisava de ir
até à costa. Ela mudara-se para
Wilbrook para viver com ele e os
pais. Junho e julho passaram com a
animação de um novo sítio para
viver e de uma nova vida, mas em
setembro as folhas caíam das
rosas, as discussões dela com os
pais autoritários dele a fazer
murchar o que restava das flores.
Agora, no início de dezembro, a
frieza aumentara. Ela estava
grávida de oito meses, irritável e no
meio de um verão escaldante ali no
cu de judas, como começara a
chamar ao sítio. Chandler queria
voltar para casa e ajudá-la. Mas
tinha um trabalho a fazer. Ali fora
no deserto. A procurar um rapaz
que se perdera.
14

— A estadual quer falar consigo


— gritou Nick da receção.
O agente transferiu a chamada.
— Chandler?
— Steve.
Ali não havia formalidades.
Steve Yaxley era um antigo capitão
sediado em Newman, esforçado
mas acessível, disposto a ajudar no
que pudesse. A sua voz trovejou na
linha.
— Soube da situação que tem
aí. Os nossos homens estão em
posição, na Highway e na Noventa
e Cinco. Não há como entrar ou
sair.
Mitch trabalhara rapidamente,
mexendo os cordelinhos para ter
tudo a postos e sem a ajuda de
Chandler. A exibir-se.
— Obrigado, Steve.
— Também estive com o
inspetor Andrews ao telefone —
continuou Steve. — Só para o
avisar, ele vai a caminho daí. Não
sei o que é pior. Ele ou um
assassino fugitivo.
— Pelo menos o Mitch tem de
seguir algumas regras.
— Pois…
— Precisa de mais alguma coisa
minha?
— Não pode fazer mais nada. As
principais vias de acesso à vila
estão bloqueadas. Se tiver homens
disponíveis, pode querer colocá-los
nas estradas de terra que não
conseguimos cobrir. Conhece-as
melhor do que nós.
— Obrigado, Steve — respondeu
Chandler, sentindo-se um pouco
ultrapassado, como se fosse parte
do problema e não da solução.
Desligando, comunicou com os
seus três agentes. Nenhum tinha
nada de suspeito para relatar,
alguns moradores a fazer
perguntas, mas nenhum a
transportar um passageiro que
correspondesse à descrição de
Gabriel. Depois disso, voltaram a
esperar, o calor crescente apenas a
exacerbar o medo de que algo iria
acontecer e a frustração de que não
pudessem controlar a situação.
Agora tudo dependia do tempo. E
não sabiam quanto tinham até
Gabriel reaparecer ou outro corpo
ser encontrado.
— Sargento?
Chandler olhou para Nick, que
parecia demasiado inquieto para
tratar da papelada.
— Sim?
— Já teve algum assassino em
série nas celas antes?
— Nick… — começou Chandler,
mas não adiantava tentar travar a
imaginação fervorosa do agente.
Durante os dez minutos
seguintes, Chandler ouviu os frutos
dos estudos informais de Nick,
listando os infames — Chandler
deteve-o quando os proclamou
«grandes» — assassinos em série
australianos, incluindo Worrell e
Miller, que estrangularam sete
mulheres na zona de Adelaide nos
anos setenta. Peter Dupas, que
matou pelo menos três em Victoria,
antes de passar para o pior, Ivan
Milat. Até Chandler tinha ouvido
falar dele, um homem difícil de
esquecer, o psicopata que tinha
assassinado sete campistas na
Floresta Estadual de Belangalo no
final dos anos 80 e início dos anos
90.
— Sabe, sargento — disse Nick,
interrompendo a sua biografia
horripilante —, talvez este tipo seja
um imitador: apanha jovens
viajantes e acaba com eles, antes
de os enterrar em Hill.
Aquilo deixou Chandler ainda
mais preocupado. Talvez tivesse o
novo Ivan Milat nas celas. Ou a
vaguear pela cidade.
Nick continuou.
— Houve também John Wayne
Glover no final dos anos oitenta.
Matou seis idosas porque odiava a
sogra. Acabou por se enforcar na
prisão…
Aquela afirmação fez surgir um
momento de pavor. Tinham tomado
todas as precauções necessárias
com a remoção de cintos e
atacadores ao prisioneiro, mas o fio
que se enterrava na pele de
Heath…
Chandler correu para a porta
que levava às celas, esperando
ouvir algum movimento, um eco,
um ronco, qualquer coisa. Obteve
mais do que isso.
— Ouvi-vos lá dentro — disse
Heath num tom desesperado, a
respiração embargada.
Abrindo a portinhola, Chandler
olhou para dentro. Heath não
estava a balançar das grades da
janela como ele temia, mas sim
muito vermelho, ainda a brincar
com a cruz, torcendo-a na carne
como se tentasse forçar Deus a
ajudá-lo.
O prisioneiro aproximou-se da
abertura, inclinando-se e torcendo a
cabeça como se quisesse enfiar-se
nela.
— Não sou um assassino.
Chandler deu um passo atrás,
mantendo a distância.
— Também não sou um monstro
— implorou ele. — Tenho cara de
um?
A voz de Nick reverberou nas
paredes nuas.
— Ted Bundy parecia normal,
até se ofereceu para trabalhar nas
linhas telefónicas de apoio; Robert
Lee Yates também, e matou treze
prostitutas. Dean Corll era vice-
presidente de uma fábrica de doces
e assassinou pelo menos…
Chandler interrompeu o colega.
— Nick, já percebemos. Estás a
perturbar o nosso hóspede.
Num lampejo inesperado de
velocidade, Heath bateu com a mão
na porta de aço sólida, deixando
escapar um grito de dor.
— Claro que estou perturbado —
balbuciou. — Não fiz nada, mas
estou trancado como se fosse o
Hannibal Lecter.
— Tem de ter paciência, senhor
Barwell. Se é tão inocente como
diz, hei de descobrir.
— Sou — choramingou Heath,
olhando para a mão que agora
estava vermelha como o rosto.
— Além disso, vou precisar
desse fio — disse Chandler.
— Porquê?
— Para evitar acidentes.
Heath hesitou, praguejou,
depois retirou o fino fio de ouro e
passou-o pela abertura antes de
recuar para o banco e se sentar.
Enquanto via o suspeito deixar-
se cair no banco, algo incomodou
Chandler. Embora não tivesse
nenhuma prova, tinha a sensação
de que metera o homem errado
atrás das grades e que não passava
de um peão num jogo a ser
disputado entre Heath, Gabriel e
agora Mitch. A sensação de
impotência não era nada agradável.
15

Afinal, Wilbrook não precisou de


esperar muito pelo regresso do
inspetor Mitchell Andrews. Apenas
duas horas e vinte e dois minutos.
Com as estradas desimpedidas, e
com poder para acelerar à vontade,
percorreu a toda a brida as
estradas que atravessavam a
paisagem estéril.
Chandler viu do exterior do
gabinete Mitch entrar na esquadra,
seguido pelo seu séquito.
Conhecendo Mitch, ele
provavelmente insistira para que o
resto aguardasse e o deixasse
entrar primeiro, rei dos reis. Vestia
um fato cinzento que não pareceria
deslocado num agente do FBI da
década de 1930: ombros largos
com chumaços, mangas afiladas e
lapelas pontiagudas, as calças
vincadas e coladas à perna como se
tivesse saído de um frigorífico em
vez do calor escaldante. Os
membros da equipa vestiam fatos
pretos e pareciam um cortejo
fúnebre sinistro, olhando em volta
como se ainda lhes faltasse
escolher o futuro defunto. Chandler
teve a sensação de que poderia ser
ele.
De facto, havia um ténue sorriso
no rosto impávido de Mitch
enquanto se aproximava de
Chandler, ignorando
completamente as boas-vindas de
Nick. Não havia necessidade de
confraternizar com os subalternos.
Um pouco para sua surpresa,
Mitch estendeu a mão. Chandler
apertou-a. O aperto foi frio e um
tanto superficial, mas mais do que
esperara. Na expressão focada do
colega, Chandler viu uma ligação,
um elo frágil com o passado, fios
bons e maus tecidos lado a lado,
apertados. E apertado era como ele
se sentia. Interrogou-se se Mitch
sentia o mesmo.
Apesar de usar um fato que
visava ampliar-lhe o físico, parecia
que Mitch não tinha engordado um
quilo nos últimos anos. Continuava
mais alto do que Chandler, o queixo
saliente, os lábios do mesmo azul.
Uma coisa que os anos e o
ziguezague de rugas em volta dos
olhos lhe tinham dado era a
aparência de um estadista.
Possivelmente era esse o objetivo
do fato, um aumento da aura que
criara em torno de si, conferindo
autoridade à sua posição, mas para
Chandler ele continuava a parecer
um político disfarçado de polícia;
plástico, como se retirado de um
molde e com partes móveis. O GI
Joe dos polícias. Estava muito longe
do miúdo que roubara doces na loja
de Penny Hall, perto do coreto,
quando eram pequenos.
— Passaram uns anos, não é
verdade, sargento Jenkins? —
perguntou Mitch, ainda a absorver a
visão triste de uma esquadra que
parecia ter sido esculpida num
único pedaço de betão.
— Sim — respondeu Chandler,
apanhado desprevenido.
— A povoação ainda parece
estar parada no tempo — comentou
Mitch. — Tal como as pessoas —
acrescentou, apontando para a sua
comitiva imóvel, embora a piada
fosse dirigida a Chandler. Uma
amostra do que estava por vir.
— Temos assuntos a tratar —
disse Chandler, esperando voltar a
começar com o pé direito.
— Sim, limpar o seu chiqueiro,
sargento.
— Ainda não sabemos o que é…
inspetor.
— Se tem de nos arrastar da
costa para tratar disto… é um
chiqueiro. — Mitch olhou em volta
novamente. — E onde está o café?
— Não vos arrastámos; vocês é
que vieram. Vou pedir a alguém
para tratar disso — respondeu
Chandler, com sarcasmo.
— Faça isso, sargento, e já que
estamos com a mão na massa, não
temos espaço de estacionamento
suficiente.
— Não sabia que ia trazer toda a
divisão — respondeu Chandler,
apontando para os fatos pretos a
espalharem-se lentamente pela
sala como células cancerígenas. —
Além disso, se estão todos
estacionados lá fora, podem
suscitar alguns rumores… na
comunicação social que tanto
temem.
— Não se preocupe, sargento.
Os carros são todos
descaracterizados. E a maioria está
estacionada na rua ao lado —
respondeu Mitch, tirando o chapéu
e pousando-o firmemente no meio
da mesa, como se estivesse a
marcar o seu território. — Além
disso, as primeiras pessoas que já
passaram pelo bloqueio na estrada
provavelmente terão twittado
acerca do assunto, portanto se o
nosso suspeito tiver acesso à
Internet, saberá o que o espera. E
quem está a caçá-lo.
— Isso pode não ser mau —
disse Chandler. — Talvez aumente
as hipóteses de rendição.
— Ou o force a esconder-se —
retorquiu Mitch. — Partindo do
princípio de que não escapou já.
— Bem, nenhum suspeito tinha
telemóvel quando aqui chegou.
Ambos afirmam que lhes foi
retirado durante o incidente,
portanto há uma possibilidade de o
Gabriel não saber.
— Haver uma possibilidade não
chega para mim, sargento.
Precisamos de respostas, de
localizá-lo e apreendê-lo.
— O que acha que estamos a
tentar fazer? — perguntou Chandler
em frente à mesa, sem querer
recuar. — A maioria dos meus
agentes está lá fora à procura dele.
— São três — disse Mitch com
um sorriso.
— Sim, três bons agentes.
— Tanya, Jim e… — Mitch parou,
a cabeça inclinada para o lado, o
sorriso a persistir.
— Luka. E o nosso novo agente
Nick, além — disse Chandler,
olhando para a receção. Nick
acenou.
Mitch não retribuiu o gesto e
começou a dar ordens à sua equipa.
— Roper, Darren, Flo, ficam com
essa mesa — disse Mitch,
apontando para o espaço de
trabalho atafulhado de Luka. —
Yohan, Suz, Erin, com aquela —
acrescentou, apontando para a
mesa vazia de Jim. — Os outros
instalem-se onde puderem.
Chandler viu a equipa de Port
Hedland assentar arraiais, metendo
a papelada inacabada de Luka
numa pilha ao canto antes de
tirarem dos sacos computadores
portáteis pretos reluzentes,
e n f i a r e m pens cheias de
instrumentos eletrónicos e
implementos, os processadores a
zumbirem quando arrancaram, as
luzes a piscar como a torre de
controlo num aeroporto.
— Quer instalar-se na sala de
interrogatórios? — perguntou
Chandler. Quanto mais portas entre
ele e Mitch, melhor.
— Oh não, isso não é
necessário, sargento. Podemos
precisar dela. Vou ocupar o seu
gabinete.
— Certo, vou libertar algum
espaço.
— Liberte todo o espaço. Não
precisamos de nada vosso além dos
depoimentos.
— Não pode entrar aqui e…
— E o quê? — perguntou Mitch,
aproximando-se, o volume a baixar,
mas a agressividade a aumentar. —
Posso fazer o que quiser… Chandler
— acrescentou, abandonando a
formalidade, mas certificando-se de
que nenhum dos outros ouvia.
Chandler sentiu-se como um cão
a ser repreendido pelo dono.
Tentou retaliar.
— E para onde espera que eu
vá… Mitch?
Mitch recuou, impassível.
— Não deixe que disputas
mesquinhas atrapalhem a
investigação, sargento. Estamos
todos aqui para trabalhar em
conjunto.
— Certo. Então o que quer que
eu faça? — perguntou Chandler,
testando essa teoria. Se o homem
tivesse um plano, e conhecendo
Mitch ele já elaborara um, devia ser
capaz de anunciar o que Chandler e
a sua equipa podiam fazer.
— Vamos preparar-nos primeiro
— respondeu Mitch com um sorriso
antes de gritar para o outro lado da
sala. — Suz, vai ao computador do
sargento e manda-me os dois
depoimentos.
Suz, uma mulher perto dos
trinta, mas vestida como uma
banqueira de quarenta anos, deixou
a sua mesa recém-alocada e
passou pelos dois rumo à de
Chandler — que em breve seria de
Mitch. O casaco preto pendia-lhe
dos ombros estreitos, as lapelas da
blusa branca agitando-se a cada
passo. O que era notório era que
Mitch continuava a gostar de dar
ordens aos subordinados. Faltava
apurar se se tinha tornado melhor a
ouvir os conselhos dos outros.
Num abrir e fechar de olhos, a
esquadra da vila transformou-se na
sede de Mitch, a sua equipa a girar
como piões, instalando
impressoras, gravando números em
telefones, rotulando equipamento
como um divorciado irritado a
etiquetar os objetos enumerados no
acordo. Havia uma fúria na forma
como trabalhavam e, Chandler
tinha de admitir, uma presença e
autoridade na maneira como Mitch
os liderava que o impressionaram,
exibindo uma arrogância da qual
Chandler não era capaz. Chandler
supôs que, para subir na escada da
hierarquia, era preciso poder pisar
alguns dedos.
— Reunião no meu gabinete —
anunciou Mitch.
Chandler conteve-se e entrou no
gabinete com todos os outros, a
dezena de corpos extras a
aumentar ainda mais a temperatura
na pequena sala.
Mitch dirigiu-se a eles,
projetando um mapa da cidade na
parede com o auxílio de um velho
aparelho.
— Certo, suponho que fomos
todos informados sobre a situação,
mas, para resumir, temos um
suspeito em fuga, talvez escondido
na povoação, talvez a sair dela. Até
agora temos tentado contê-lo, mas
precisamos de ser mais proativos.
Brandindo um ponteiro laser,
apontou para o mapa.
— Roper e Flo, vão pela Watkins
até Fenley; Darren e Neil, pela
Pomarroo até Creek. Erin, tu e o
Mick pela North até Eagle’s Brook;
MacKenzie e Sun, ficam com esta
área — disse Mitch, apontando para
George Street e Dieskirt, onde
ficava a casa de Chandler.
— E a minha equipa? —
perguntou este.
Mitch não se virou do mapa.
— Podem ficar onde estão e
verificar os carros, como até agora.
— E eu?
— O senhor está no comando,
sargento. Comigo. — Com isso
levantou o ponteiro laser,
apontando de novo para o mapa. —
Temos até ao anoitecer para
localizar o suspeito. Se não
conseguirmos, seremos forçados a
tentar outra coisa. Entendido?
Emitidas as ordens, virou-se
para o seu público a fim de aceitar
os acenos de cabeça fervorosos
antes de os membros da equipa
saírem rapidamente, um a um,
como robôs. Chandler esperava que
não fossem desprovidos de
emoções como o chefe.
Deixou-se ficar para trás. Tinha
curiosidade em saber o que Mitch
quisera dizer com «forçados a
tentar outra coisa». Parecia sugerir
que ele tinha um plano para essa
eventualidade. Se partilhasse
realmente o comando com ele,
devia dizer-lhe o que era.
— E se não o localizarmos até
ao anoitecer? — perguntou
Chandler.
Mitch não mordeu o isco.
— Então, como eu disse,
tentamos uma coisa diferente.
— Eu conheço-o, Mitch — disse
Chandler. — Sabe exatamente o
que quer fazer.
Mitch assentiu.
— Correto, sargento. E se
acontecer, revelarei o que é.
Se já era suficientemente mau
ser posto à margem quando Mitch
ali não estava, era dez vezes pior
agora que estava.
— O que fazemos agora? —
perguntou Chandler. — O que mais
precisa de saber?
— O que preciso de saber,
sargento, é onde são todas as
entradas e saídas da povoação.
— Pode vê-las no mapa. Porque
não usa o ponteiro laser?
— Sim, mas quero saber por si
quais são as mais viáveis. Desenhe-
as e dê-mas. Mostre-me como uma
ratazana entra e sai daqui com a
menor possibilidade de ser notada.
— O Gabriel não há de conhecer
isso; é de Perth, ou daquelas
b a n d a s . Você conhece esses
caminhos melhor do que ele.
Mitch ficou calado por um
momento, e respirou fundo.
— Certo. Vou pôr as coisas de
outra maneira. Vamos supor que
ele conhece. Vamos supor que ele é
uma ratazana. Descubra a melhor
saída, sargento. Depois volte a falar
comigo.
E pronto. Mitch calou-se e virou
os olhos para a porta.
Chandler percebeu a indireta,
feliz por sair dali. O espaço estava
vazio, as formigas expulsas do
formigueiro para começar a caçada.
Na receção, Nick parecia
perturbado, mas ansioso.
— E aquele é o Mitch — disse
Chandler.
— Ele é muito… sério —
comentou o jovem agente, com
dificuldade em encontrar a palavra
certa.
— É o crachá a falar —
respondeu Chandler. Queria
acreditar que, algures no fundo de
Mitch, ainda residia o antigo
adolescente imprudente.
— Pelo menos pôs as coisas em
movimento — disse Nick, antes de
voltar atrás. — Não que o sargento
não estivesse a fazê-lo, mas ele
trouxe mais pessoas e…
Era evidente que o seu agente
estava impressionado com a
demonstração de autoridade.
— Tudo bem, Nick. Limita-te a
fazer o que ele diz… se ele te dirigir
a palavra.

Com o seu próprio computador


enfiado no canto do novo centro de
comando de Mitch, Chandler entrou
no de Tanya e fez surgir um mapa
da vila. Descobriu rapidamente que
havia um sem-fim de recantos que
podiam ter protegido a fuga de
Gabriel. As traseiras de Fraser
Street e o canal de drenagem;
Yoppy’s Lane, atrás do campo de
futebol; Rose Avenue; Lincoln
Street; até o beco atrás de Cook, se
ele fosse suficientemente
sorrateiro. Desenhou-os a todos,
linhas vermelhas a sair do hotel
como torrentes de lava, e levou-os
ao seu superior.
Mitch estava recostado na
cadeira de Chandler, o sorriso no
rosto a confirmar a sua satisfação
por ver o ex-parceiro fazer o que
lhe pedia.
— Isto é o que temos — disse
Chandler. — Muitas maneiras de
entrar e sair. O Jim está aqui —
continuou, apontando com o dedo
para a imagem projetada na parede
e tentando não ficar cego com o
clarão da lâmpada. — A Tanya
aqui, o Luka aqui. A estadual na
Noventa e Cinco e na Cento e
Trinta e Oito. O hotel de onde ele
fugiu é o Gardner’s Palace, que
fica…
— Eu sei onde fica.
— Certo. Se ele foi pela escada
de incêndio, o caminho mais rápido
para fora daqui seria pela Rooster,
enfiando-se ao lado da lavandaria,
antes de atravessar o beco para o
terreno baldio atrás. Não mais que
dez ou quinze minutos, se quiser
certificar-se de que fica escondido.
— Sabe que a lavandaria tem
muito movimento — observou
Mitch. — Há sempre gente nas
traseiras a estender roupa.
— Sim — disse Chandler,
aproveitando a oportunidade para
convencer Mitch de que precisava
do seu conhecimento local e
recente. — Mas a lavandaria fechou
o ano passado, portanto não
haveria ninguém para lhe perturbar
a fuga se ele decidiu ir por esse
caminho. O Jim verificou e não viu
nada a indicar que o tenha feito.
Mitch parecia não se importar de
ser apanhado de surpresa.
— Plausível, sargento, plausível,
mas como disse, não havia sinal do
suspeito. Pode conhecer este
buraco melhor do que eu, mas
ainda não o encontrou, portanto é
necessário um novo raciocínio.
— Precisa da minha ajuda.
— Preciso da sua opinião,
sargento — corrigiu Mitch. — E da
da sua equipa. Mas da sua ajuda?
Se precisar da sua ajuda, peço —
disse ele já sem o sorriso, o rosto
transformado em granito; duro,
cheio de marcas de borbulhas e
impenetrável. — E do que preciso
de si neste momento é que garanta
que esta esquadra funciona sem
problemas e que a minha equipa
tem tudo aquilo de que precisa.
Papel, canetas, telefones, uma
linha aberta para a estadual e para
qualquer outra pessoa com quem
queiram contactar. O senhor é a
engrenagem que mantém isto a
funcionar, sargento.
Chandler ouvira o suficiente.
Virou-se para sair.
— É um trabalho importante,
sargento — disse Mitch. — Os
grandes não conseguem nada sem
que os seus secretários façam todo
o trabalho de sapa.
Chandler virou-se.
— Não vou servir chá nem
bolachas.
Mitch riu.
— Claro que não. A minha
equipa não precisa que faça essas
coisas, é mais do que capaz. O que
pode fazer é tratar do ângulo local.
Haverá muitas perguntas sobre o
que está a acontecer, a polícia nas
ruas e desconhecidos de fato preto
a andar por aí. É trabalho seu
acalmar os receios da populaça,
sargento — disse Mitch, o uso
constante da formalidade a
desgastar os nervos de Chandler.
Mas o antigo colega ainda não
acabara. — Trate do aspeto local,
que eu trato do regional.
Chandler respirou fundo.
— Não mudaste, pois não,
Mitch?
Mitch reprimiu um sorriso.
— Eu podia dizer o mesmo. A
merda nunca se transforma em
ouro, por muito tempo que passe
na vala.
— Pensei que isto não ia ser
uma batalha…
O sorriso voltou, um sorriso que
parecia esconder alguma coisa.
Chandler teve um vislumbre do
velho Mitch por um momento, o
Mitch sempre com algum truque na
manga para fugir da confusão.
— A batalha ainda nem
começou, velho amigo.
16

Como previsto, ao fim de quinze


minutos, os telefones começaram a
cantar. Nick ficou rapidamente
sobrecarregado e começou a
desviar as chamadas para Chandler.
A maioria era de moradores locais a
aproveitar a maior agitação que a
cidade testemunhava em anos;
mães ansiosas e pais protetores,
aposentados afrontados e
adolescentes cheios de risos, todos
curiosos sobre os sinistros carros
pretos que percorriam
vagarosamente as ruas.
Alguns queriam saber se era o
Serviço Secreto ou uma convenção
de espiões, cheios de teorias
estapafúrdias. Assim que ele
acalmava um morador, outro
ligava, a perguntar se deviam
aperaltar-se e reunir uma comissão
de acolhimento para o visitante
obviamente ilustre. Alguns queriam
saber quem era apenas para serem
os primeiros a espalhar a notícia.
Outros porque não queriam que
fosse o primeiro-ministro ou um
desses bandidos. A cada um
Chandler dava o mesmo conselho,
palavras que lhe ficavam presas na
garganta e tinham de ser forçadas
a sair: que nada estava a
acontecer, que deviam ficar dentro
de casa por enquanto e que, se
acontecesse alguma coisa, ele os
avisaria pessoalmente.
Já tinha atendido dez chamadas
quando alguém fez a pergunta que
ele mais temia, sobre os bloqueios
na estrada e por que motivo Jim,
Tanya e Luka andavam a revistar
carros. A pergunta chegou de uma
fonte furiosa, o reverendo Simon
Upton, que não podia acreditar que
a polícia fora capaz de parar um
homem de Deus e revistar-lhe o
carro, reclamando de forma um
pouco exagerada para alguém que
normalmente era bastante calmo.
Como se tivesse algo a esconder.
Algo que confirmaria os rumores da
povoação de que o seu passado
não era nada sagrado.
— Eles revistaram o seu carro,
reverendo? — perguntou Chandler.
— Não, mas pararam-me a
caminho da casa da Georgina
Patterson e ela está muito doente,
como sabe.
— Sei, reverendo. Por favor,
envie os meus desejos de
melhoras.
— Porque estão a revistar os
carros, posso perguntar? — inquiriu
o reverendo, a sua voz agora tão
imponente como no púlpito todos
os domingos.
Antes de o santo homem,
famoso pela sua bisbilhotice, ter a
oportunidade de espalhar ainda
mais o pânico — não totalmente
indevido —, Chandler admitiu que
era apenas uma precaução.
— Vamos lá, sargento Jenkins,
não bloquearia as estradas por
precaução. Não pode sonegar essa
informação à vila.
Chandler hesitou. Teria de dar
alguma coisa ao reverendo.
— Tem razão. Suspeitamos que
um ladrão está a tentar sair da
cidade.
Houve uma pausa como se o
reverendo estivesse à espera de
inspiração divina para confirmar
que Chandler dissera a verdade. A
resposta chegou. O Senhor não
estava convencido.
— Não manda parar e revistar
carros por causa de um ladrãozeco
qualquer, sargento, portanto
pergunto de novo: essa pessoa que
procura é perigosa? Ele, ou ela, é
talvez um recluso em fuga?
— Não, reverendo — respondeu
Chandler calmamente —, apenas
alguém que queremos interrogar.
Mas, para ajudar a encontrá-lo,
precisamos que todos permaneçam
dentro de casa enquanto nos
concentramos no suspeito sem
distrações.
O reverendo aproveitou o
deslize de Chandler.
— Suspeito! Ah, então ele é um
recluso. Ou prestes a ser!
Chandler sentiu o cérebro entrar
em modo de gestão de crises, com
a voz a tornar-se mais doce,
tentando acalmar o reverendo.
— Reverendo, esse é o termo
que usamos. Um suspeito. Estamos
apenas a verificar se não apanhou
boleia de alguém ou roubou um
carro.
— Não sou um homem que
encobre criminosos, sargento. Ele
não estaria no meu carro.
Chandler ficou aliviado. A subtil
mudança de tom e direção ajudara
a levar o reverendo para onde
Chandler queria que ele fosse.
— Eu sei, reverendo, mas
mandei os meus agentes
verificarem todos os carros. Nesta
fase, não podemos ter sequer a
certeza de que ele ainda está por
cá. Pode já encontrar-se muito
longe daqui, tornando-se um
problema da polícia estadual, mas
gostaria de jogar pelo seguro e
revistar os carros apenas para
confirmar. Estou certo de que não
tem nenhuma objeção.
O representante do Senhor na
Terra não tinha como voltar atrás.
Houve um murmúrio quase
incoerente em resposta, algo que
soou como uma oferta para fazer
tudo o que pudesse para ajudar.
Durante a missa da manhã
perguntaria à sua congregação —
composta por dez pessoas, pensou
Chandler — se tinha notado alguma
coisa. Depois de lhe agradecer,
Chandler desligou.
As chamadas continuaram a
chegar, as pessoas presas nos
postos de controlo a perguntar por
que diabo não podiam entrar ou
sair da vila. Até Nick foi destacado
para ajudar, passando timidamente
por Chandler para entrar em ação.
Chandler ficou sozinho a enfrentar
as reclamações de moradores
irritados enquanto ouvia Mitch e a
sua equipa decidirem o que fazer e
aonde ir em seguida.
De repente, a porta da esquadra
abriu-se. Dois membros da equipa
de Mitch entraram e foram direitos
ao gabinete onde este montara
arraiais.
Chandler ignorou a voz
inquiridora ao telefone e tentou
ouvir o que se dizia no seu
gabinete. Só captou palavras
indistintas. Menos de um minuto
depois, os dois saíram novamente
da esquadra.
Mitch chegou à porta quando
Chandler desligou o telefonema.
— O que se passa? — perguntou
Chandler.
— Nada que lhe diga respeito —
respondeu Mitch.
— Para onde vão eles?
O telefone de Chandler começou
a tocar novamente.
— Concentre-se apenas em
manter as pessoas calmas — disse
Mitch, e perguntou: — A senhora
Juniper já ligou?
A senhora Juniper era a
quadrilheira local, a ex-mulher de
Kid Maloney que se casara com ele
num acesso de rebelião e se
divorciara ao cair em si. Se alguma
coisa deitava cheiro, ela tinha o
nariz em cima dela. Ou pelo menos
costumava ter.
— Morreu há quatro anos —
respondeu Chandler.
O que devia ter sido um
momento de reflexão ou
desconforto limitou-se a provocar
um encolher de ombros a Mitch e o
seu regresso sem pressa ao
gabinete.
Nick passou por Chandler,
voltando para a receção.
— Para onde vão eles, Nick?
O jovem agente abanou a
cabeça e continuou em frente. A
velocidade da sua fuga fez Chandler
acreditar que escondia alguma
coisa. Mitch estava lentamente a
destruir a esquadra unida que ele
construíra.
— Nick? — chamou Chandler.
— Não sei, sargento, a sério.
Eles falaram em sussurros. Não
ouvi.
Mitch apareceu atrás de
Chandler.
— Quero interrogar o senhor
Barwell.
— O que o impede?
— As chaves estão consigo,
sargento.
Chandler levantou-se da cadeira,
mais baixo do que Mitch, mas mais
intimidante fisicamente; não
precisava de chumaços nos ombros
largos.
— Vou consigo.
Mitch abanou a cabeça.
— Não, não quero nenhuma
contaminação do interrogatório
anterior. Uma nova folha de papel.
— Mas eu saberei dizer se ele
mudou a história.
— Eu também — retorquiu
Mitch, apontando para a têmpora.
— Já a sei de cor.
— Um par de ouvidos extra
nunca fez mal.
Mitch hesitou, empurrando o
maxilar e o queixo para a frente,
um reflexo involuntário e
desajeitado que tinha desde
pequeno.
— Está bem, sargento, mas eu é
que falo. Mantenha-se em silêncio.
— Você é que fala — repetiu
Chandler, reprimindo uma resposta
torta. Qualquer coisa era melhor do
que atender telefones.
Chandler entrou nas celas, com
Mitch logo atrás. Abriu a portinhola,
o barulho a ecoar pelo corredor. O
rosto de Heath surgiu no espaço
vazio como um cão à procura de
comida, apenas a boca visível. Os
seus latidos estavam cheios de
perguntas.
— O que se passa aí fora? Quem
são todas essas pessoas?
— Senhor Barwell, por favor,
afaste-se da porta — ordenou
Mitch, calmo mas autoritário, sem o
menor vestígio do sotaque da
infância. Chandler não ficaria
admirado se ele tivesse recorrido a
u m coach de voz para a melhorar,
dado o dinheiro e dedicação que
punha no seu estilo e indumentária.
— Quem é ele? — perguntou
Heath a Chandler, indicando Mitch.
— O meu advogado?
— É um inspetor. Veio interrogá-
lo. Agora, por favor, recue.
Enquanto Chandler se preparava
para abrir a porta da cela, Mitch
despiu o casaco e pousou a mão na
arma. Chandler perguntou a si
mesmo se ele já a teria usado e
decidiu rapidamente que sim.
Chandler entrou primeiro e
sacou das algemas.
— Não há necessidade disso —
disse Heath, levantando as mãos.
— Quero um advogado.
— Porque precisa de um
advogado se é inocente? —
perguntou Mitch, franzindo a testa.
— Toda a gente tem um
advogado.
— Talvez, mas apenas os
culpados insistem em ter um. Quero
apenas rever a sua história. Para
pôr aqui o meu colega a par dela e
entendermos aquilo por que o
senhor passou.
Heath franziu a testa, olhando
para Mitch, como se tentasse
avaliar as suas verdadeiras
intenções.
Depois de um momento de
pausa, virou-se para a parede,
deixando que Chandler pusesse as
algemas nos pulsos magoados.
Chandler sentiu o homem
estremecer de dor. Levando-o para
a sala de interrogatórios, sentou
Heath numa cadeira antes de
retirar cuidadosamente as algemas.
— Só me vou repetir — declarou
Heath, esfregando suavemente os
pulsos enquanto olhava primeiro
para Mitch e depois para Chandler,
que se posicionara atrás do colega.
Mitch conduziu o interrogatório,
com os botões de punho prateados
a cintilar na luz, grandes, angulosos
e caros, vistosos mas não de mau
gosto, discretamente elegantes. A
prata sempre fora o metal preferido
de Mitch, possivelmente um
lembrete do distintivo que tanto
adorava, mas talvez apenas porque
a prata era uma declaração de
grandeza. Mitch gostava de
declarações.
Heath começou a falar. Contou
uma história que se manteve muito
próxima da original, talvez um
pouco mais polida ao recitá-la pela
segunda vez, juntando pormenores
na parte de apanhar boleia, sendo
vago sobre a droga e a fuga.
Chandler apenas notou uma
diferença, a lembrança de um nome
num dos papéis da cabana: Seth.
Quando Mitch o pressionou, Heath
disse que só se lembrara naquele
momento, um nome escrito em
grandes letras vermelhas como se
fosse da maior importância.
Chandler tomou nota de procurar
Seths entre os registos de pessoas
desaparecidas.
— Se tivesse conseguido roubar
o carro para onde teria ido? —
perguntou Mitch, olhando para as
anotações como se fosse apenas
uma pergunta para passar o tempo.
— Para qualquer lado —
respondeu Heath, gotas de suor a
escorrer da linha do cabelo.
— Alegou no seu depoimento
original que vinha para cá. Para a
vila — disse Mitch, erguendo os
olhos para enfrentar o suspeito.
— E vinha… mas só queria fugir
dele. Ainda quero, mas vocês
prenderam-me aqui, enquanto ele…
Todo o corpo de Heath tremeu,
e algumas gotas de suor escaparam
da sua pele vermelha e aterraram
na mesa.
— Tentar roubar um carro não é
a atitude de um inocente —
observou Mitch.
— Mas é a atitude de um cheio
de medo — retorquiu Heath.
— E o seu passado? —
perguntou Mitch. Chandler sabia
que Mitch estava a mudar de
assunto para tentar apanhar o
suspeito desprevenido, levá-lo a
revelar alguma coisa.
— O que tem?
— Família?
— Não tenho.
Mitch permaneceu calado,
permitindo que Heath
desenvolvesse. Ele assim fez.
— Os meus pais já morreram.
— Lamento ouvir isso.
Heath abanou a cabeça.
— Morreram há anos. Quando
eu estava no fim da adolescência.
— Como?
— Cancro. A minha mãe, na
mama, o meu pai, no intestino.
Com dois anos de diferença.
Chandler sentiu que aquilo era
motivo para uma pausa de
condolências. Mas Mitch estava
lançado.
— Ainda pensa neles?
Mitch olhou para a mesa por um
momento.
— Sim, mas aceitei o que
aconteceu. Também aceitei que
posso ter maior propensão para
contrair um cancro.
Havia uma certa lassidão na
forma como Heath deixou sair as
palavras que era quase mórbida,
como se esperasse que a morte
estivesse à espreita ao virar da
esquina. Talvez o seu contacto com
Gabriel tivesse confirmado isso, ou
talvez essa sentença de morte
autoimposta simplesmente o
fizesse sentir que devia levar com
ele o máximo número de pessoas.
— Já lhe disseram que vai
morrer? — perguntou Chandler.
Heath concentrou-se em
Chandler, Mitch claramente furioso
por ver o seu interrogatório
interrompido.
— O Gabriel disse-mo, mas mais
ninguém. Mas toda a gente morre.
— De novo as palavras caíram sem
nada que as segurasse, apenas
uma aceitação cansada, como se
ele já fosse apenas pó.
— É só uma questão de como,
não é, senhor Barwell? — comentou
Mitch.
A pergunta voltou a atrair a
atenção de Heath.
— O que quer dizer com isso?
Mitch acenou com a mão para
indicar que era um comentário sem
importância.
— Esqueça. Continue a falar-me
da sua família.
— Tenho um irmão e uma irmã.
Ambos mais velhos.
— Nomes? — Mitch preparou-se
para anotar os seus nomes, uma
promessa tácita de que iria
confirmar essa informação, um
aviso para Heath não mentir.
— Ross e Pippa. Philippa. Não
nos falamos. Um litígio sobre o
testamento.
— Os pais deixaram-lhe tudo?
Como era o mais novo?
— Não — respondeu Heath,
abatido. — O oposto. Recebi
algumas coisas; eles, uma parte da
casa. Mas isso já foi há muito
tempo. Não nos falamos.
— Não se importariam que você
estivesse detido?
— Só se importarão quando
souberem que estou morto — disse
ele com amargura. — O Gabriel
esteve perto de lhes conceder esse
desejo.
Mitch assentiu.
— Mas não tem nada que
confirme a sua identidade?
— Ele tirou-me tudo: carteira,
carta de condução, tudo.
— Muito bem.
— Tem a pessoa errada,
sargento.
Mitch ergueu as sobrancelhas,
um lampejo de fúria por ter sido
inadvertidamente despromovido.
— De momento é a única
pessoa que temos, senhor Barwell
— disse ele, olhando para Chandler
aparentemente frustrado, antes de
prosseguir. — Mencionou o número
cinquenta e cinco.
— Foi o que ele disse que eu
era.
— Falou dos outros?
— Não.
— Nada?
— Não. Nada.
Mitch respirou fundo, esfregando
o polegar e o indicador. Chandler
reconheceu o hábito. A ligação de
um fusível, como se estivesse a
tentar criar uma faísca entre os dois
dedos. Chandler tinha curiosidade
em saber que forma a explosão
tomaria atualmente.
— E quanto a esse Seth, será
que podia ter sido uma das vítimas?
Heath abanou a cabeça.
— Foi apenas um nome que vi.
Pode não significar nada.
— Mas viu as campas.
— Vi o que pareciam ser
campas.
— Quantas?
— Não sei.
— Tente adivinhar. — O
temperamento de Mitch começava
a notar-se.
— Aconteceu demasiado
depressa. Não tenho a certeza.
— Um número, senhor Barwell,
dê-me um número. Cinco? Dez?
Doze? Mais?
Heath gaguejou.
— Seis, sete, oito… não tenho a
certeza. Estava a fugir para salvar a
vida.
Com isso, Mitch ergueu-se
bruscamente, inclinando-se sobre a
mesa, cara a cara com o suspeito.
Levantou a voz.
— Precisamos de mais do que
isso, senhor Barwell. Até agora não
nos deu nada além de boatos. O
que diz ter visto e o que diz que lhe
foi feito. Dê-nos um facto com o
qual possamos trabalhar, ou ficará
naquela cela durante muito tempo.
Com Mitch suficientemente perto
para Heath o agarrar, Chandler
interveio, arrastando o colega para
trás, tentando que as mãos não
escorregassem na seda fria.
A ira de Mitch mudou de alvo.
— Tire as mãos de cima de mim,
Chandler!
— Não vai sacar-lhe mais nada
— disse Chandler em voz baixa.
— Que diabo sabe? Quantos
suspeitos de homicídio já
interrogou?
— Nenhum — admitiu Chandler
—, mas olhe para ele, está um
caco: cansado, ferido, transpirado.
O que conseguirmos dele agora
pode ser a verdade, uma mentira
ou apenas algo para nos calar.
Deixe-o acalmar algum tempo.
Mitch não baixou o olhar. Mas
também não disse nada. A fúria que
ardia nos seus olhos castanhos
suavizou-se. Chandler procurou
neles um resquício do seu velho
amigo, mas qualquer compaixão
desaparecera deles nos últimos dez
anos.
— Leve-o para a cela, deixe-o
descansar uma hora e tente
novamente mais tarde —
aconselhou Chandler.
Mitch afastou as mãos de
Chandler do fato brilhante e virou-
se para Heath com um sorriso
forçado.
— Creio que chega por agora,
senhor Barwell. O sargento vai
levá-lo para a sua cela.
Mitch encaminhou-se para a
porta. Ao alcançá-la, olhou para
Chandler. Embora estivesse
zangado, Mitch não iria ser acusado
de abandonar o seu dever e
permitir que um colega lidasse com
um suspeito perigoso sozinho.
Chandler aproximou-se de um
Heath que agora tremia e colocou
as algemas no sítio. Olhando para
cima, viu que Mitch tinha
desaparecido da porta, e Tanya
estava no seu lugar.
17

Chandler levou Heath para


dentro da cela. Parecia um bêbedo
depois de uma noitada, conduzido
sem problemas ou resistência. Não
era o que Chandler consideraria a
conduta de um assassino perigoso.
Mas qual era a conduta de um
assassino perigoso?
Ao entrar no seu antigo
gabinete, viu Mitch mover o rato
furiosamente, de olhos postos no
ecrã.
— Então… acredita na história
dele? Ou na do Gabriel?
Mitch afastou os olhos do
computador. O seu tom era
inexpressivo; claramente não se
tinha esquecido de que Chandler o
confrontara na sala de
interrogatórios.
— A história do senhor Barwell
parece plausível, ainda mais com a
ausência continuada do nosso
segundo suspeito. Precisamos de
encontrá-lo e descobrir quem
poderia ser esse Seth. — Com isso,
os seus olhos voltaram para o ecrã,
a loja fechada, os estores corridos.
Chandler instalou-se na
secretária de Tanya e começou a
trabalhar. Sentia-se como um cão
que, apesar dos maus-tratos
constantes, voltava a correr para o
dono. Forçou-se a concentrar-se no
trabalho diante de si. Procurou na
base de dados de pessoas
desaparecidas homens com o nome
Seth, na esperança de encontrar
uma correspondência. O motor de
busca encontrou imediatamente um
resultado. Um vazio completo.
Modificou os parâmetros para incluir
a última década. Assassinar
cinquenta e quatro pessoas sem
atrair atenção indevida levaria
algum tempo, mesmo para a mente
mais brilhante — que Heath
certamente não possuía. Ou fingia
não possuir. Mais uma vez, a busca
não produziu resultados. Nada de
Seths. Começou a achar que o
nome era uma alucinação de um
homem assustado.
Ou uma pista intencionalmente
falsa para distraí-los.
Frustrado por ter sido
ridicularizado e posto de parte,
depois trazido de volta apenas para
esbarrar imediatamente num beco
sem saída, recostou-se na cadeira.
Olhando para Gardner’s Hill ao
longe pela janela, os pés de
Chandler começaram a bater no
chão com crescente impaciência. A
impaciência fez surgir uma ideia.
Até ao momento, não tinham
conseguido localizar Gabriel, mas
isso não significava que não
pudessem localizar o lugar que
ambos tinham descrito em
pormenor: a cabana. Gabriel podia
até ter voltado para lá para se
esconder, confiante de que a polícia
não seria capaz de encontrá-lo.
— Tenho de sair daqui, Nick —
sussurrou ele, embora Mitch
estivesse enfiado no gabinete e
Yohan e Suze concentrados nas
suas tarefas. — Vou tentar Hill.
Ambos mencionaram a mesma
cabana, portanto deve existir.
— Sim, mas os dois disseram
que não sabiam onde ficava —
recordou Nick.
— Deve ser algures perto da
quinta do Turtle. Onde o Heath foi
apanhado a tentar roubar o carro.
— Eu posso ser novo por estas
bandas e tudo, sargento, mas isso é
uma área grande.
— Eu sei, mas talvez consiga
localizá-la. Pelo menos, posso
tentar.
— E o que lhe digo? —
perguntou Nick, inclinando o
pescoço na direção de Mitch.
— Que estou a seguir uma pista.
— Certo… — disse Nick,
parecendo pouco convencido.
Chandler pegou nas chaves e no
casaco e estava perto da porta da
esquadra quando Mitch saiu do
gabinete.
— Onde é que vai, sargento?
Por um instante, Chandler
pensou em inventar alguma
desculpa.
— Vou dar uma olhadela ao
bosque atrás de onde o Heath foi
apanhado.
O rosto de Mitch transformou-se
de novo em pedra, os olhos a
moverem-se de um lado para o
outro, a decidirem se a ideia tinha
pernas para andar e se poderia
aproveitá-la.
— Vou consigo.
Chandler tinha pensado num
plano B.
— Lembra-se do Turtle, Mi…
inspetor? — perguntou.
— Turtle Seifert? Sim, lembro,
sargento.
— Ótimo. Mas o Turtle não se
lembra de si. Tem má memória.
Deu um tiro no último tipo que
tentou dizer-lhe que o John Howard
não era o primeiro-ministro. E esse
tipo era o seu próprio irmão!
Chandler absteve-se de
mencionar que Turtle só ferira o
irmão no braço e não fora
apresentada queixa.
— Vou consigo, sargento —
declarou Mitch.
E pronto. Chandler tinha de novo
um parceiro.

A viagem de carro foi feita em


silêncio; um silêncio que Chandler
não se atreveu a quebrar, não fosse
dizer alguma coisa inoportuna num
espaço confinado de que nenhum
podia escapar.
Felizmente foi um silêncio breve.
Vinte minutos depois, deteve o
carro no quintal de Turtle. A
primeira coisa que viram foi o
Chevy amolgado amarrado ao poste
de betão como um cavalo, em vez
de uma máquina. Em seguida,
repararam que o próprio Turtle não
estava no quintal, a brandir a sua
caçadeira. Fora essa a origem da
sua alcunha: sempre na defensiva,
um cartucho nas costas e outro na
caçadeira.
— Lembre-se, ele não é grande
fã da polícia — disse Chandler
quando saíram do carro.
— Eu sei — respondeu Mitch,
examinando o jardim da frente.
— Então deixe-me falar.
Mitch não respondeu enquanto
avançavam devagar por entre os
celeiros e máquinas dilapidados, o
alpendre rebaixado a afastar-se,
inclinado, da construção de
madeira, como se tentasse fugir.
Era uma quinta a precisar de
reparações. Uma quinta com muitos
esconderijos.
Chegaram a meio caminho da
casa quando foram recebidos por
um velho engelhado e retorcido,
que saiu pela porta de rede. Tinha
a caçadeira baixa, mas
suficientemente alta para ameaçar.
— O que estão aqui a fazer? —
perguntou Turtle na sua típica voz
arrastada, o maxilar a mover-se
como uma das ceifeiras-
debulhadoras a apodrecer no
quintal.
Antes que Chandler tivesse
oportunidade de responder, Mitch
falou.
— Somos da polícia, senhor
Seifert.
— Perguntei o que estão aqui a
fazer — disse Turtle, sem sair do
alpendre.
— Importa-se que nos
aproximemos para não termos de
gritar?
— Importa-se de me dizer o seu
nome, rapaz?
— Turtle — disse Chandler,
interrompendo. — Sou eu,
Chandler. O sargento Jenkins.
Turtle inclinou a cabeça, o olho
bom a examinar o horizonte, o
outro a olhar em frente, mas tão
cego como o de um morcego. A
menos de nove metros dele,
Chandler reparou também que as
suas sobrancelhas pareciam ter sido
desenhadas com um marcador
preto e grosso, a meio da testa,
numa expressão de surpresa
permanente. Voltara a fazer das
suas: acendera o fogão a gás no
máximo, projetando uma nuvem de
chamas em direção ao seu rosto já
carbonizado.
— E o que quer, Chan’ler?
Mitch aproximou-se.
— Queremos que fique calmo.
— Eu estava calmo, rapaz. Estou
calmo. O que quer?
— Precisamos de dar uma
olhadela, Turtle — explicou
Chandler.
A cabeça de Turtle girou para
que o seu bom olho ficasse de
frente para Chandler. A infeliz
consequência disso foi que a
caçadeira apontou diretamente
para eles.
— Não fiz nada de mal. Não
podem provar que apanhei aqueles
peixes.
— Nós… — começou Chandler.
Lançou um olhar a Mitch, cuja mão
agarrara a coronha da arma, com
receio da caçadeira e do velho cada
vez mais perturbado. — Não
estamos aqui para isso. Só
precisamos de dar uma olhadela.
— Qual a possibilidade de ele
saber alguma coisa acerca disto? —
grunhiu Mitch para Chandler em voz
baixa
— Bastante reduzida —
respondeu Chandler, igualmente
em voz baixa, os olhos postos em
Turtle, que mantinha a arma
apontada a eles. — Ele não é de ter
sócios. A pior coisa em que está
metido é a caça e a pesca furtivas.
— Continuo a querer passar isto
a pente fino — disse Mitch, com os
olhos em Turtle.
— O sítio que procuramos fica
mais adiante.
— Quero riscar este sítio da
lista.
— Estou a dizer-lhe…
— Você mesmo disse que a
memória já não é o que era. O
nosso suspeito pode estar aqui
agora, ou talvez já cá tenha estado,
a fingir ser o filho, aquele que era
recetador de carros roubado em
Sydney, se bem me lembro.
Turtle podia estar a perder a
memória, mas a de Mitch
funcionava na perfeição. O Seifert
mais novo ainda estava na prisão,
perto de Sydney, por ter tido uma
oficina num armazém abandonado
onde desmontavam carros.
Chandler voltou-se para Turtle.
— Vamos ser rápidos, Turtle.
Não estamos à procura de nada que
você tenha feito. Achamos que
alguém pode ter entrado na sua
propriedade.
— Quem? — perguntou Turtle,
franzindo o rosto, mas as
sobrancelhas a permanecer
estáticas.
— Um forasteiro.
Turtle virou-se como se o diabo
fosse aparecer nesse momento.
Com o seu cérebro e visão fracos,
era uma possibilidade preocupante.
— Ele ainda está nas minhas
terras?
— Não — garantiu Chandler. A
última coisa que queria era que
Turtle fosse verificar e os
atrapalhasse. — Queremos ver se
conseguimos encontrar alguma
pista sobre o destino dele depois de
sair daqui.
O velho ficou em silêncio,
considerando o pedido.
— Não vamos tocar em nada de
que não precisarmos — acrescentou
Chandler.
— Não partam nenhum dos
meus tratores — avisou Turtle.
Não te preocupes, pensou
Chandler. A maioria já estava
partida, relíquias de um passado
agrícola, quando a família tinha
trabalhado a terra em vez se
dedicar ao furto de carros, à pesca
furtiva e a ameaçar polícias.
Mitch recuou cuidadosamente
em direção ao carro enquanto
Chandler se certificava de que
Turtle concordava com o que iria
acontecer.
— Vão dar cabo da minha
maldita quinta.
— Se alguém der cabo de
alguma coisa, pode pedir um
reembolso.
— A sério?
Chandler apontou para Mitch.
— Dirija-o ao inspetor Andrews.
Ele é o homem no comando.
— Aquela bosta de coala vestida
como um pinguim engomado?
— Nascido e criado aqui em
Wilbrook. Pode confiar nele.
— Não falou como a gente
daqui.
Chandler assentiu em resposta
antes de se juntar a Mitch no carro.
Este observava um mapa da área
circundante num tablet.
— Primeiro, verificamos os
anexos — disse Chandler —, depois
a casa principal. Posso ir…
— A sua presença não será
necessária, sargento.
Chandler hesitou, com
dificuldade em absorver essa nova
informação.
— Porque não serei necessário?
Não pode vasculhar este sítio
sozinho.
— Eu sei. Já chamei a minha
equipa.
— Mas eu conheço a área,
posso…
— Temos isto tratado, sargento.
A minha equipa chegará em breve.
Sabe como trabalho. Preciso que
explique ao velho…
— Esquece-se de que também
sei como trabalha.
— Como costumava trabalhar.
— Qual é exatamente o
problema de me ter por perto,
Mitch?
Mitch pousou o tablet no capô
do carro e olhou para Chandler.
— Preciso de pessoas em quem
possa confiar.
— E o que fiz eu para perder a
sua confiança?
— Nada, sargento Jenkins.
Nunca a teve sequer. Só precisa de
aceitar que eu dou as ordens e
escolho a minha equipa.
— Está a permitir que a merda
que aconteceu entre nós no
passado atrapalhe esta
investigação.
Mitch abanou a cabeça devagar.
— Não temos passado, no que
me diz respeito, sargento. Isto é
uma decisão baseada puramente
no que acho que deve ser feito.
Você conhece estes campónios, é
verdade, mas também está
demasiado próximo deles e, quando
isso acontece, é fácil deixar escapar
alguma coisa. Ou olhar para o outro
lado.
— Então está a acusar-me de
quê? Falta de profissionalismo?
Parcialidade? Corrupção?
— Não estou a acusá-lo de
nada, sargento. Isto é o que um
inspetor… — fez uma pausa na
palavra — tem de fazer. Tomar
decisões impopulares.
— E se eu decidir ficar?
Mitch pegou novamente no
tablet.
— Não tenho escolha senão tirá-
lo do caso e suspendê-lo.
Chandler não duvidou da
seriedade da ameaça.
— De qualquer forma, porque se
queixa? — continuou Mitch. —
Enquanto eu liderar o grupo de
trabalho, você é responsável pelas
operações de base. Com a Suze e o
Yohan. No caso de surgirem novas
pistas.
Chandler percebeu que Mitch
estava a afastá-lo, mas, dada a
confusão com Turtle, se Gabriel
tivesse ali estado, já dispusera de
tempo suficiente para fugir. Além
disso, a quinta de Turtle não era o
local dos raptos e dos homicídios. O
velhote maluco podia ser cegueta,
mas ouvia bem. Qualquer grito a
pedir ajuda a poucos quilómetros
dali teria sido ouvido por Turtle. E
ele era suficientemente metediço
para ir verificar.
18

2002

— Vê onde pões os pés, Mitch!


Chandler gritou, embora não
houvesse qualquer hipótese de o
colega o ter ouvido por causa do
barulho do helicóptero. Recuou para
uma distância segura das lâminas
assassinas que levantavam um
turbilhão de pó que quase ocultava
a aeronave.
A busca de Martin começara
cinco dias antes e continuavam a
avançar pelo mato, tanto que agora
precisavam de ser
aerotransportados com
mantimentos suficientes para
sobreviver alguns dias. Ali, o
terreno era bonito, selvagem e
intocado, sedutor e desconhecido,
apelando ao lado aventureiro de
Chandler, o lado adolescente, o
lado perdido. Ele e Mitch tinham
acampado no mato quando eram
mais novos, mas nunca tão longe.
Teriam levado um dia inteiro e dois
depósitos de combustível para
chegar tão longe em motos, o
terreno íngreme e por descobrir,
sem trilhos naturais, o que
significava pouca velocidade e
perigo real.
Enquanto Mitch avançava pelo
chão esburacado, longe das
lâminas, o helicóptero começou a
sua lenta ascensão, levantando pó
num arco cada vez mais amplo,
obrigando o já desembarcado
Chandler a proteger o rosto. Só
quando o helicóptero transpôs as
copas das árvores é que o remoinho
diminuiu, o aparelho inclinando-se
para a frente e regressando à
povoação.
Faziam parte do segundo grupo
transportado naquele dia, elevando
o número de participantes para
quinze, uma cifra que estava a
diminuir a cada dia que passava e,
na opinião de Chandler, um esforço
inglório dado a extensão de terreno
que tinham de cobrir. Com a
mochila às costas, ele avançou para
ir ao encontro dos outros.
Quando recuperaram a audição,
começaram a falar da reunião
matinal de Bill. Fora indicada a área
a ser analisada nos três dias
seguintes e feito o aviso para
encontrarem um ponto desimpedido
até ao final do terceiro, para que os
helicópteros pudessem retirá-los.
Depois disso, o resto da reunião foi
passado a tentar aumentar a
motivação, mas Chandler sentiu
que até Bill estava frustrado pelo
facto de a busca aérea se ter
mostrado infrutífera.
Havia também outro motivo
para a sua frustração. Algum
iluminado decidira convidar os
familiares de Martin para aqueles
briefings, entre eles Sylvia, a mãe
do rapaz desaparecido. Mesmo na
sala com ar condicionado, o seu
rosto macio exibia uma tonalidade
vermelha. Dava a impressão de que
estava à beira do colapso, como
acontecera no segundo dia da
busca, quando precisaram de
chamar um helicóptero para a
transportar até ao hospital. Depois
disso, Arthur proibira-a de sair
novamente.
A presença da família tivera o
efeito de transformar os briefings
em reuniões formais, toda a gente
com receio do que dizia e como o
dizia, não se fosse dar o caso de ser
considerado demasiado negativo.
As palavras eram ajustadas para
transmitir esperança em vez de
realidade, cada dia infrutífero no
deserto vendido como mais área
coberta. A ligação emocional que
tinham trazido conseguira
inicialmente impulsionar os
voluntários, mas estava a tornar-se
um fardo. Chandler sentia que era
mais psicólogo do que polícia,
preocupado com o bem-estar da
família, além de supervisionar o
progresso da busca.
Aquele dia, quando muito, era
ainda pior. Como se lidar com as
emoções torturadas dos pais não
fosse já suficientemente difícil,
Arthur arrastara o único filho com
ele. O rapaz tinha apenas doze
anos. Largado numa paisagem
alienígena para lutar com o resto
do grupo, tinha os olhos vidrados e
arregalados, mas Chandler podia
ver que ele estava decidido a fazer
a diferença; tinha uma teimosia que
sem dúvida herdara do pai — e do
irmão.
Enquanto o grupo se preparava
para partir, Arthur ofereceu a sua
oração matinal, a vermelhidão
ainda evidente em volta dos olhos,
da entrevista chorosa na televisão
na noite anterior, a que Chandler
assistira depois de enfiar uma
exausta Teri na cama. A paixão e a
mágoa que Arthur demonstrara na
entrevista transformaram a busca
localizada do filho mais velho numa
notícia de âmbito nacional,
resultando em Chandler ser
perseguido por repórteres na
esquadra e no acampamento base
naquela manhã. Tinham recebido
ordens do comando para não falar
acerca dos progressos e deixar as
chefias fazer o papel de porta-
vozes, mas Chandler não precisava
que lho dissessem; desconfiava dos
abutres que se alimentavam da
miséria humana, portanto
atravessou a floresta de câmaras e
microfones em silêncio. Se não
fosse pela atenção nacional e pelo
medo incapacitante de perder uma
cacha, nenhum deles se teria
importado com o sofrimento da
família. E quando os ossos tivessem
sido limpos e captassem o cheiro de
sangue no vento, voariam para
longe novamente, em busca da
próxima vítima desafortunada.

Apesar do início pouco


auspicioso, o meio-dia trouxe uma
pista, logo antes da pausa de duas
horas para deixar passar a parte
mais quente do dia. Um dos
voluntários, um adolescente de
Murray River, a sul de Perth,
encontrou uma peça de roupa presa
num arbusto, agitando-se como
uma bandeira na brisa suave.
Chandler chegou logo ao local,
uma multidão a rodear a faixa
vermelha quase com medo de se
aproximar, não fosse ela
desaparecer diante dos seus olhos.
As primeiras observações foram de
que tinha sido arrancada da peça
de vestuário original em vez de
cortada, os rebordos esfiapados,
fibras a agitar mil dedos minúsculos
para ele.
— O que é isso? — perguntou
Mitch ao aproximar-se.
— Uma peça de roupa, talvez.
Rasgada — respondeu Chandler,
com os olhos fixos na tira de tecido.
O facto de dançar tão facilmente ao
vento disse-lhe que era um material
leve. — Passa-me um saco.
Mitch vasculhou a mochila à
procura de um saco de provas.
Soltando com cuidado o tecido do
ramo, Chandler colocou-o no saco e
fechou-o.
Levantou-o para o analisar mais
de perto. Todos os olhos seguiram
os seus movimentos com
reverência. Havia parte de um
logótipo impresso no tecido. Um
«N» e o que parecia ser a maior
parte de um «O» em maiúsculas
brancas.
— O que achas? — perguntou
Chandler.
— No Fear… North Face ? —
sugeriu Mitch.
— Se foi arrancado, ele deve ter
avançado rapidamente.
— Então, onde está o resto?
— Deixem-me ver — pediu
Arthur, aproximando-se com a
barriga à frente, o filho mais novo a
seu lado.
Chandler passou o saco ao
velho, cuja mão estava inchada do
calor.
— North Face — disse Arthur. —
O Martin comprava muito essa
marca. Também tem roupa dessa
cor, mas a Sylvia seria capaz de vos
dar mais pormenores.
— É uma marca popular —
comentou Mitch num tom amável.
— É alguma coisa — respondeu
o velho, bruscamente. — Diz-nos
que ele chegou até aqui.
— A menos que tenha sido
soprado…
A sobrancelha levantada de
Chandler foi o suficiente. Mitch
fechou a boca. A verdade é que a
descoberta da roupa gerou tantas
perguntas como respostas. Teria
Martin chegado até ali ou não? Fora
soprada pelo vento ou arrancada?
Era sequer a roupa de Martin? O
facto de ter sido rasgada também
podia significar que ele fora
atacado por alguma coisa. O
desaparecimento de Martin
permanecia tão misterioso como a
região que continuaram a percorrer.
O melhor que podiam fazer era
procurar mais peças de roupa.
Mitch também estava
preocupado, mas por diferentes
razões.
— Estamos a ficar cada vez mais
perto do inferno.
— Onde queres estar, Mitch?
— Na praia. A dar um mergulho
matinal antes de um turno. Talvez
a deixar que a corrente me levasse
silenciosamente como ao Harold
Holt. Como ao Martin.
Chandler olhou zangado para o
parceiro.
— Não deixes que ninguém te
ouça dizer essas coisas.
Mitch olhou em volta.
— Não conseguem ouvir-me. E
sejamos realistas, não há mais
ninguém no espaço de quilómetros.
E isso inclui o Martin.
Era brusco, mas provavelmente
verdadeiro.
Mitch ainda não acabara.
— Achas que ele fez isto de
propósito?
— O quê?
— Desaparecer.
— Como uma espécie de suicídio
elaborado? — perguntou Chandler,
não rejeitando logo a teoria
estapafúrdia de Mitch.
— Eu inclino-me para um
fingimento. Fugir e tornar-se outra
pessoa. Fixa o que te digo, ele
aparecerá daqui a vinte anos, as
suas impressões digitais na arma
de um crime. Quero dizer, que
razão existe para fingires a tua
morte e assumires outra
identidade, a menos que tenhas
feito ou tenciones fazer algo ilegal?
Como Chandler esperava, uma
teoria estapafúrdia. Uma
investigação intensiva ao passado e
ao presente de Martin não revelara
nada, nenhuma razão ostensiva
para ele querer desaparecer e
começar uma nova vida. Apenas o
recente rompimento com a
namorada, que fora mau, segundo
Sylvia, causara alguma ondulação
num lago espelhado.
Mas a ideia de Mitch pôs
Chandler a pensar. Se o
adolescente quisesse desaparecer
— de vez —, então aquele era o
lugar ideal para fazê-lo. Mudar de
país deixava um rasto de papel, no
mar o corpo acabaria por vir à
superfície, mas ali, ao fim de algum
tempo, teriam de se render à
natureza e classificá-lo como
desaparecido, supostamente morto
— livre para começar uma nova
vida.
— Ele nunca quis voltar —
continuou Mitch. — O carro estava
lixado. Sem combustível, a
suspensão partida, só um fio de
água no radiador.
Por mais tentador que fosse
segui-las, Chandler decidiu calar as
teorias de Mitch. Estava na altura
de trabalhar.
— Deixa os outros pensar, Mitch,
somos pagos para procurar.
Mitch arqueou uma sobrancelha.
— Eh pá, isso foi cruel.
— Se anda não percebeste, este
lugar é cruel.
— Ainda não me respondeste.
— Não posso responder a todas
as tuas perguntas idiotas.
— Sabes que tenho razão.
Chandler mordeu o isco.
— Fingir a morte é um grande
salto.
— Mas o correto. É por isso que
hei de ir longe neste jogo.
Mitch esboçou um sorriso
orgulhoso. Chandler aproveitou a
oportunidade para lhe rebentar a
bolha.
— Não se deixares o outro
miúdo perder-se como o irmão —
disse, apontando para o filho mais
novo de Arthur, que se afastava dos
outros, o pai demasiado ocupado a
analisar a terra para proteger a
descendência que lhe restava.
Chandler afastou-se para
intercetar o rapaz com Mitch na sua
peugada.
19

Na viagem de regresso à
esquadra, Chandler refletiu no facto
de, mais uma vez, lhe terem tirado
a liderança. Voltava a ser um moço
de recados.
Ia distraído e não prestou muita
atenção quando parou no
estacionamento. Ao sair do carro,
olhou para o outro lado da estrada
em direção à padaria. O especial
Cheesy Chicken chamava-o, mas os
seus olhos foram atraídos para o
beco ao lado e para a mão que
surgiu durante uma fração de
segundo. Era o beco que as
crianças locais costumavam usar
para chegar ao campo de futebol
atrás.
O seu instinto disse-lhe para
investigar, mandar as crianças
embora com o aviso de que
ficassem dentro de casa. Avançou
até à esquina e saltou para
surpreendê-las. Ficou chocado.
Alguns metros à frente,
segurando o que parecia uma faca
de trinchar com cabo comprido,
estava Gabriel.
Estendeu a mão para a arma,
mas falhou, pois a mão tremia-lhe.
Gabriel recuou alguns passos.
Chandler avançou alguns,
finalmente agarrando na arma e
tirando-a do coldre.
— Fique aí e pouse a faca,
Gabriel.
Gabriel recuou, a faca a abanar
na mão, como se quisesse largá-la,
mas não conseguisse que os
músculos concordassem. Tinha o
rosto retorcido de dor ou de
choque, quase como se tivesse
desmaiado e acordado naquela
cena tensa.
— Gabriel, largue a faca!
Chandler tentou falar alto e com
clareza, para não ser mal
interpretado.
Gabriel olhou para a faca e
depois para Chandler.
— Largue-a, Gabriel!
A mão de Gabriel tremeu, mas a
lâmina permaneceu apontada a ele.
O dedo de Chandler pousou no
gatilho. Que diabo estaria Gabriel a
fazer tão perto da esquadra? Era
quase como se quisesse ser
apanhado. Ou morto por ameaçar
um agente.
— Gabriel, não quero…
Como se de repente se
descolasse, a faca caiu no chão e as
mãos de Gabriel subiram em sinal
de rendição.
Chandler aproximou-se com
cautela.
— Encoste-se à parede.
Gabriel obedeceu, com as mãos
estendidas contra o tijolo.
Chandler foi cauteloso ao baixar
para as costas os braços magros de
Gabriel, ignorando o grito abafado
de dor.
— Por favor… — implorou
Gabriel.
— Porque fugiu do hotel? —
perguntou Chandler, sem esperar
pelo regresso à esquadra para
iniciar o interrogatório. — Onde foi?
E porque está de novo aqui?
— Não sei — gemeu Gabriel.
— E o que estava a fazer com a
faca?
— Precisava de proteção dele.
Estava à espera que ele aparecesse
em cada esquina. Não me sentia
seguro.
Nem Chandler, sozinho com o
suspeito no beco.
— Deite-se no chão! — ordenou.
Parte da natureza maleável de
Gabriel desapareceu com a ordem
gritada.
— Não precisa de fazer isso,
senhor agente — retorquiu. —
Estou a entregar-me. Lamento ter
fugido, mas senti medo encafuado
naquele quarto como se estivesse
preso. Como se estivesse de novo
no barracão. Não consegui lidar
com isso, então tive de sair,
arranjar algum espaço.
— Mandei-o deitar-se, Gabriel.
— Só queria sair…
Como o suspeito se recusava a
obedecer, Chandler não teve
escolha a não ser torcer o pulso do
jovem e forçá-lo a ficar de joelhos.
Gabriel gritou e tentou afastar-se,
mas os seus joelhos cederam e ele
caiu. Agarrando as algemas, o
coração a galopar, as mãos
cobertas de suor, Chandler lutou
para abri-las antes de enfiá-las com
firmeza em volta dos pulsos de
Gabriel. Só nesse momento se
permitiu descontrair um pouco,
guardando a arma no coldre e
levantando o prisioneiro.
— Não precisa de fazer isto… —
Gabriel silvou de dor.
— Já fugiu uma vez.
Gabriel ficou em silêncio.
— Para onde foi depois do hotel?
— perguntou Chandler.
— Está bem, está bem. Tentei
arranjar um carro, mas estavam
trancados. Não queria ficar na rua
para o caso de o Heath chegar
também à povoação, então sentei-
me num beco. Não sei onde… não
sei quanto tempo. Depois ouvi
algumas pessoas dizer que tinham
apanhado um tipo chamado Heath.
Fiquei tão aliviado.
— Porque não se entregou?
— Estava a ganhar coragem.
Com Gabriel algemado, Chandler
virou-o na direção da esquadra.
Onde se poderia esperar uma
fanfarra, não havia nada além de
uma rua vazia e cinzenta.
— E tem coragem agora?
— Não quero que ele saia para
matar novamente. Não me
perdoaria se ele fosse libertado só
porque entrei em pânico. Quero ser
um bom samaritano, portanto não
precisa das algemas.
— Preciso, sim — respondeu
Chandler, alcançando as portas da
esquadra. Decidiu testar o regresso
do autoproclamado filho pródigo. —
Estava certo quanto a termos o
Heath. Mas ele está a contar
exatamente a mesma história que
você.
— Que história? — perguntou
Gabriel, tentando soltar-se de
Chandler.
— A mesma que você contou.
— Então isso é bom, não é? —
Gabriel pareceu esperançoso. —
Confirma o que eu disse.
— Não, senhor Johnson, é
exatamente a mesma história. Mas
a implicá-lo a si como o assassino.
O prisioneiro resistiu. Chandler
segurou os pulsos de Gabriel com
mais força.
— Isso é mentira. Não acredita
nele, pois não? Ainda está preso?
Não o deixou sair, pois não? —
exclamou Gabriel, olhando para as
portas. — Eu disse-lhe a verdade.
Mentir é pecado, sargento. Foi
assim que me educaram.
— Posso garantir que ele está
preso. Está em segurança.
Gabriel olhou para ele, as
lágrimas a ameaçarem cair dos
seus olhos.
Quando Chandler levou Gabriel
para o interior da esquadra, Nick
ficou de queixo caído e saltou da
cadeira, que bateu na parede já
marcada.
Chandler permitiu-se um
pequeno sorriso. A vitória sabia
bem, Mitch a vasculhar a quinta de
Turtle em busca de pistas sobre o
paradeiro de Gabriel enquanto ele
tinha o homem em causa preso.
— Onde o encontrou? —
perguntou Nick, procurando a
papelada para preencher, mas
mantendo os olhos no segundo
potencial assassino em série que
tinham detido naquele dia.
— Caiu-me no colo.
Olhou em volta em busca dos
dois lacaios de Mitch, Bill e Ben, ou
quaisquer que fossem os seus
nomes. Nick antecipou a sua
pergunta.
— O inspetor contactou-os pelo
rádio e mandou-os ir até à quinta
do Turtle. Disse que o sargento
vinha para cá substituí-los. Ainda
bem que chegou. Estava a sentir-
me sozinho.
— Onde está o Heath? —
perguntou Gabriel, os nervos a
fazerem-no tremer.
— Nas celas.
— Não me ponha lá também.
— Temos de pôr. Por enquanto
— respondeu Chandler. — Cela três,
Nick.
— E onde está ele?
— Não na cela número três —
respondeu Nick.
— Oh — fez Gabriel. Chandler
continuou a sentir o tremor
reverberar pelo seu prisioneiro
enquanto Gabriel olhava para ele.
— Lamento o que aconteceu mais
cedo, sargento. O ter ficado agitado
e isso. Estava tão assustado… —
Gabriel parou.
— Não vai estar na cela muito
tempo — tranquilizou Chandler.
— Ótimo. — A preocupação no
rosto do suspeito pareceu diminuir.
— Vai libertar-me?
— Não. Temos de o interrogar
de novo.
A preocupação regressou.
— Porquê? Já tem a minha
história. Não mudou.
— Vamos precisar dela
novamente. Com mais pormenor.
— O que quer dizer? — Gabriel
franziu a testa.
— Esclarecemos isso depois.
— Certo. Tem a certeza de que
ele está seguro?
— Tão seguro como você vai
estar daqui a um minuto.
O prisioneiro estremeceu de
nervosismo.
— Não podemos fazer o
interrogatório noutro lado, como
naquele hotel?
— Não depois da última vez —
respondeu Chandler, severamente.
Não ia voltar a cair na esparrela. Se
o fizesse, mais valia demitir-se em
vez de esperar que Mitch o
expulsasse da corporação.
— Não vou fugir.
— Não importa. Todo o nosso
equipamento de gravação está
aqui. E você também — disse
Chandler, acrescentando: —
Descontraia-se. Não está sob
ameaça.
Gabriel fez uma careta, as rugas
profundas a envelhecer o seu rosto.
— Depois de termos sido
drogados, capturado, perseguidos
pelo campo e nos dizerem na cara
que vamos ser assassinados, há
ameaça em toda a parte, sargento.
Um assassino em todas as sombras.
Rangendo os dentes, Gabriel
fechou os olhos. Inspirou
profundamente pelo nariz.
— Mas estou pronto a enfrentá-
lo, se for preciso.
— Não vai precisar de enfrentá-
lo — declarou Chandler, levando-o
até à porta das celas. — Apenas de
responder a algumas perguntas.
Quando estava prestes a entrar
nas celas, gritou por cima do
ombro:
— Nick, prepara a sala de
interrogatórios!
— E os bloqueios de estrada,
sargento? E informo o inspetor que
o temos?
Chandler hesitou. Devia cancelar
as buscas imediatamente, mas não
havia mal nenhum se elas
continuassem durante algum
tempo. O perigo estava fora das
ruas. Gabriel e Heath.
— Dá-me meia hora — pediu
Chandler.
Com um aceno hesitante, Nick
voltou para a receção. Chandler
ficou desconfiado. Iria o seu jovem
agente obedecer-lhe ou iria contar
a Mitch e aos outros? Na idade
dele, Chandler teria seguido todas
as ordens dadas pelo seu superior,
mas Nick não parecia sofrer desse
tipo de lealdade cega. Dada a
conduta atual de Chandler, isso
podia ser bom.
Quando se aproximaram da cela
número três, Gabriel começou a
tentar fugir das mãos de Chandler,
direcionando o seu corpo para
longe da cela que o aguardava.
— Ele está aqui? — sussurrou
Gabriel, falando tão baixo que
Chandler inicialmente pensou ter
imaginado. Não respondeu e
continuou a puxá-lo para as celas.

— Não — disse Gabriel, o rosto


bronzeado muito pálido. Olhou por
cima do ombro para Chandler, o
seu captor. A sua voz era suave
como uma brisa de verão, quase
impercetível, mas escaldante. Uma
voz que contrastava com a barba
rala e a expressão de medo.
— Quem está aí?
Comparada com a suavidade da
voz de Gabriel, a pergunta zangada
de Heath ecoou pelas celas,
fazendo Gabriel imobilizar-se,
olhando na direção do som,
tentando localizar a fonte.
— Sou eu, senhor Barwell —
respondeu Chandler. — Agora faça
pouco barulho e descanse um
pouco — acrescentou, levando
Gabriel para a cela número três
antes de lhe soltar as algemas.
Recuou rapidamente para a porta e
fechou-a. Tinha ambos detidos.
Presos. Onde não podiam fazer mal
a ninguém.
Ao ouvir o som da porta a
fechar-se, Heath ficou ainda mais
curioso.
— Quem está a meter numa
cela, sargento? É ele? — A voz
potente gaguejou, perdendo
rapidamente a força. — É ele? —
repetiu.
Chandler não respondeu. Tinha
dois prisioneiros que pareciam
igualmente assustados um com o
outro, mas nenhum parecia mostrar
a natureza fria de um assassino em
série que ele esperara depois dos
livros que lera e das séries que vira.

Continuou a pensar nisso ao


voltar para a zona das secretárias.
Nick aguardava-o impaciente.
— Ele disse alguma coisa?
— Não. Um daqueles homens é
um excelente ator.
— Ou são os dois — observou
Nick. — A sala de interrogatórios
está pronta.
— Ótimo.
— Sabe que quase todos os
assassinos em série são bons
mentirosos. O Ted Bundy era…
Chandler ficou quase contente
por outra das biografias de
assassinos em série de Nick ter sido
interrompida por Heath a gritar.
— O que foi? — perguntou
Chandler abrindo a portinhola da
cela de Heath.
Este aproximou-se
imediatamente.
— Estou magoado. Acho que
parti uma costela.
— Não se queixou disso antes.
— Queixei-me aos outros dois.
Eles não se deram ao trabalho de
me examinar. Sei que me podem
deter sem provas… fazem essa
merda há anos… mas estou com
dificuldade em respirar.
O pedido foi reforçado por uma
mão pressionada contra o flanco,
contra a roupa ensanguentada, a
dor a transparecer na voz. Chandler
não percebeu se ele estava ou não
a representar.
— Deixe isso comigo —
respondeu Chandler.
— Vai chamar alguém? —
bradou Heath.
— Disse para deixar isso
comigo, senhor Barwell.
Chandler virou-se para sair.
Passou pela cela três. Apesar da
explosão de Heath, não ouvira ali
nenhum pio. Curioso para
testemunhar a reação do seu novo
inquilino e surpreendido pelo
estranho pressentimento de que, de
alguma forma, Gabriel
desaparecera de novo, abriu a
portinhola e olhou lá para dentro.
Para seu alívio, o prisioneiro estava
encolhido na cama, a olhar para a
parede na direção da cela número
um como se esperasse que Heath
atravessasse o tijolo reforçado.
Uma criatura patética, apavorada.
Também parecia ferido, mas não se
queixara.
Chandler sentiu-se dividido. Se
permitisse que fossem tratados,
perderia um tempo valioso de
interrogatório, mas negar ajuda
médica poderia dar origem a um
processo e prejudicar um eventual
julgamento por homicídio. Havia
apenas uma escolha.
— Depois de ligar ao doutor
Harlan, cancela os bloqueios das
estradas — disse ele a Nick,
perguntando a si mesmo se poderia
deixá-lo acompanhar o médico
quando fosse tratar Heath
enquanto ele interrogava Gabriel.
Decidiu rapidamente que seria
demasiado arriscado deixar um
médico idoso e um agente novato
sozinhos com um potencial
assassino em série.
Chandler deixou uma mensagem
no atendedor de chamadas de
Mitch, informando-o de que tinham
Gabriel nas celas. Mitch demorou
menos de cinco segundos a ligar-
lhe.
— Não faça nada com o
prisioneiro, sargento Jenkins.
Mantenha-o aí até eu voltar. Não o
perca de vista.
Havia uma fúria na sua voz que
Chandler recordava bem, uma fúria
por ter sido batido, por ter sido
superado. Chandler considerava-se
um tipo moralmente correto,
daqueles que não fazia aos outros o
que não gostava que lhe fizessem,
mas ouvir Mitch sofrer deu-lhe uma
energia renovada.
Mitch estava a uns bons vinte
minutos de distância. O doutor
Harlan Adams apareceu em pouco
mais de dois. A sua casa ficava a
menos de duzentos metros da
esquadra, mas ainda assim o
médico local estava sem fôlego,
apoiando-se na mesa de receção
assim que chegou, a barriga a arfar
como se fosse um enorme pulmão.
— Então o que temos? —
perguntou entre arquejos.
— Não precisa de uns minutos
para recuperar?
O médico agitou a mão como se
aquilo fosse um disparate, pelo que
Chandler continuou.
— Temos dois homens com
cerca de vinte e cinco anos, ambos
com uma série de cortes e
contusões, um a queixar-se de falta
de ar e autodiagnosticando-se com
uma costela partida.
— Autodiagnosticou-se —
repetiu Harlan, empurrando os
óculos no nariz e fazendo-os
assentar na depressão aí existente.
— Isso é para os hipocondríacos e
para os fracos de espírito, meu
amigo. Aposto que não tem nada.
— Pode ir verificar.
— É para isso que aqui estou.
— Mas tenho de avisá-lo para
não se aproximar muito.
— E porquê? — perguntou
Harlan, erguendo uma sobrancelha
espessa.
Chandler sabia que devia
advertir o médico, mas também
sabia que Harlan reagiria de três
formas possíveis: com intrigas,
horror ou tratando-o como uma
celebridade. Os pacientes presos
com que Harlan lidava
normalmente eram bêbedos e
gente miserável apenas com
ferimentos superficiais. E embora os
ferimentos de Gabriel e Heath
parecessem ser do mesmo nível
inconsequente, os seus crimes
certamente não o eram.
Antes de entrarem nas celas,
Chandler levou-o para um canto.
— Tem de me prometer não
falar disto a ninguém quando sair
daqui, Harlan.
Os olhos do médico pareciam
enormes atrás das lentes grossas.
— Estou a falar a sério, Harlan,
e digo-o para sua própria
segurança. Deve guardar segredo.
— Sou um túmulo.
Restava a Chandler esperar que
Harlan estivesse a dizer a verdade,
embora lhe custasse acreditar. As
notícias costumavam espalhar-se
com Harlan Adams, especialmente
depois de ele ter bebido, o
juramento de Hipócrates batido
pela tentação de partilhar
mexericos. Mas era o único médico
na povoação. Não era fácil
conseguir que um jovem médico
viesse viver no meio do nada.
Depois de alguns segundos de
silêncio forçado, o cérebro de
Harlan não conseguiu lidar com a
intriga e obrigou a sua boca a dizer
alguma coisa.
— Quem lutou com quem,
então? Alguém que conhecemos?
Mineiros? Locais? Uma altercação
doméstica? Há tão pouco a fazer
por aqui que a violência doméstica
é um passatempo.
Com a mão na porta, Chandler
deteve o homem gorducho, tocando
na camisa húmida de manga curta.
— Não, nada disso. E tenha
cuidado.
A seriedade na voz de Chandler
conseguiu moderar o médico. Pelo
menos momentaneamente.
— Quem tem aqui? Devem ser
perigosos.
— E são. Podem ser.

Como fora Heath quem se


queixara, foi o primeiro. Enquanto
Harlan o examinava, Chandler
manteve-se por perto, pronto a
intervir. Embora barulhento e
irritante, Harlan era bom no que
fazia. Começou por limpar o rosto
de Heath com uma miríade de
gazes e cotonetes, explicando ao
seu paciente e ao seu guarda-
costas que não havia motivo de
preocupação, algumas escoriações
e um lábio cortado, apenas uma
questão de os desinfetar, sem
necessidade de pontos.
A seguir Harlan começou a
conversa fiada.
— Então como é que veio aqui
parar? — perguntou, enquanto
limpava a bochecha de Heath que
tinha ficado preta devido ao pó.
— Harlan… — avisou Chandler.
— Eles acham que… — começou
Heath.
— O senhor Barwell também —
interrompeu Chandler. — Qualquer
conversa e levo o médico embora.
— Tenha cuidado consigo, filho
— disse Harlan com um sorriso
travesso. — Não acabe como o
Skinny Bishop. O Skinny também
achava que não era culpado. Mas
depois de algum tempo aqui,
descobriu-se que, apesar de todas
as provas (ou falta delas), afinal
era!
— Harlan, vou levá-lo já daqui
para fora — disse Chandler, mesmo
sabendo que, ao mandar o médico
calar-se, dava credibilidade ao mito
e que uma sorte semelhante
poderia calhar a Heath.
— Quem é o Skinny? —
perguntou Heath, o seu rosto
vermelho parecendo um pouco em
pânico.
Abanando a cabeça e rindo
baixinho, o médico pousou as suas
mãos experientes nas costelas de
Heath, pressionando-as
delicadamente. Heath recuou de
repente, levantando as mãos como
se quisesse afastar o médico.
Chandler interveio para subjugá-lo,
mas Heath baixou-as novamente
enquanto o médico retirava os
dedos.
Só quando Harlan recuou e
esfregou o queixo liso é que
Chandler percebeu que o seu
coração batia com força.
— Magoadas. Possivelmente
partidas — disse Harlan.
— Parecem partidas — disse
Heath, mudando de posição e
fazendo uma careta.
— Tem de lhe tirar as algemas
— disse Harlan.
— Porquê? — perguntou
Chandler, olhando para Heath, à
procura de um motivo para negar o
pedido.
— Tenho de verificar a
amplitude de movimentos dele.
Confirmar que não é uma coisa
mais grave.
— Isso é necessário? —
perguntou Chandler.
Harlan inclinou-se para ele.
— A menos que queira que ele
dê algum mau jeito e,
acidentalmente, perfure um
pulmão.
Chandler olhou para Heath.
— Muito bem, levante-se e
volte-se para a parede, senhor
Barwell.
Heath não precisou que lhe
dissessem duas vezes e levantou-
se, olhando para a parede,
enquanto Chandler lhe tirava as
algemas.
Chandler virou-o. O rosto de
Heath estava coberto de suor, e
revelava dor e medo.
— Agora nada de movimentos
repentinos, ou volta a ficar
algemado, independentemente das
costelas partidas.
Heath assentiu, então Chandler
ajudou-o a sentar-se. Daquela vez,
ficou ao alcance de um braço do
suspeito, Harlan entre eles para
efetuar o exame.
Agarrando nos antebraços de
Heath, Harlan ergueu-os.
— Mantenha-os aí, filho.
Heath fez o que lhe disseram,
olhando primeiro para o médico e
depois para Chandler. Chandler
sentiu um mal-estar crescer dentro
dele, ficando exposto quando
Harlan o afastou e fazia Heath
virar-se para o lado.
— Então? — perguntou
Chandler, querendo as algemas de
novo no prisioneiro o mais depressa
possível.
Heath abriu a boca. Chandler
esperou que ele emitisse um
suspiro de dor.
Em vez disso, levantou-se num
instante, empurrando o médico
gordo para cima de Chandler.
— Não se mexa! — gritou
Chandler enquanto recuava para
evitar o médico em queda. Tentou
sacar a arma, mas um Harlan
descoordenado tropeçou nas
próprias pernas e tombou Chandler.
Caíram ambos no chão duro de
betão como peças de dominó.
Heath não esperou e correu
para a porta enquanto Nick chegava
para ajudar.
— Nick, cuidado…
Heath reagiu primeiro, baixando
o ombro e chocando no jovem
agente como um jogador de
râguebi.
Não contava com a segunda
linha de defesa. Mitch tinha
aparecido e, usando uma força que
parecia impossível no seu físico
magro, agarrou o desequilibrado
Heath, pregando-lhe uma rasteira e
fazendo-o cair esparramado contra
a parede do lado de fora da cela. O
grito de angústia de Heath pareceu
genuíno daquela vez, mas Mitch
não parou, aterrando em cima do
suspeito num instante, prendendo-
o, dobrando-lhe os braços atrás das
costas e causando ainda mais
interjeições de dor.
— Por que raio não está o
senhor Barwell algemado? — rugiu
Mitch, dirigindo a pergunta a
Chandler.
Este levantou-se, decidindo não
ajudar o médico a fazer o mesmo.
Sentiu que tinha um holofote sobre
ele, o feixe de luz a elevar a
temperatura na cela já sufocante.
— O Harlan tinha de verificar…
— Está determinado a perder os
dois? Detê-los, classificá-los e soltá-
los como se fossem uma espécie
em vias de extinção?
— Ele queixou-se de dores no
peito. Estávamos a verificar…
— Dói — arquejou Heath, preso
sob o joelho bem posicionado de
Mitch nas costas.
Mitch ignorou-o.
— Algeme-o e meta-o na cela,
sargento.
— Por favor senhor… chefe —
balbuciou Heath —, eles estão
combinados com o Gabriel para me
incriminar. Ou matar-me. Sei como
são estes pacóvios. Tem de me
ajudar.
— Porque não me informou
imediatamente que tinha o Gabriel?
— perguntou Mitch antes de se virar
para Nick, que se encolheu
visivelmente com a pergunta.
— Isso não teve nada que ver
com o Nick. A decisão foi minha —
declarou Chandler.
— Eu sei que foi, sargento.
Estava apenas a perguntar-me se a
sua estupidez era contagiosa.
Embora trancado de novo,
Heath continuou a soltar uma
mistura de queixas e teorias da
conspiração loucas.
— Inspetor, o seu sargento e o
Gabriel estão a trabalhar juntos, a
tentarem pôr as culpas em mim.
— Faça pouco barulho, senhor
Barwell — respondeu Mitch.
— Não vou ficar calado
enquanto me lixam! — gritou
Heath.
Mitch ignorou-o e virou-se para
Harlan, que repousava no banco de
madeira em frente às celas.
— Há alguma possibilidade de
poder sedá-lo? — perguntou Mitch.
Quando Harlan estava prestes a
responder, Mitch interrompeu-o:
— Não, esqueça. Quero
interrogá-lo novamente. Mas
primeiro quero o Gabriel.
Abrindo a portinhola, o inspetor
dirigiu-se a Gabriel, o seu tom mais
uma vez agradável.
— Como vai isso por aí?
Enquanto Mitch tentava
estabelecer um primeiro contacto
com o suspeito, Chandler reparou
que, embora Gabriel permanecesse
deitado no catre, se virara para
encará-los. A sua expressão ainda
era de choque, mas, apesar disso, o
seu corpo estava perfeitamente
imóvel, como uma cobra à espera
de atacar. Chandler tentou afastar
a comparação dos seus
pensamentos. Era apenas o
confronto anterior com Heath a
atormentá-lo; a facilidade com que
fora enganado. Mitch salvara-o de
deixar fugir outro suspeito. A dívida
de gratidão que sentia em relação a
ele era opressiva e indesejada.
— Tire-o dali, sargento —
ordenou Mitch.
Chandler assim fez, desconfiado
de qualquer movimento súbito,
mãos levantadas ou tentativas de
desarmá-lo. Não houve
necessidade. Gabriel foi
complacente, lançando apenas um
olhar nervoso na direção da cela de
Heath quando foi levado para a
sala de interrogatórios.
Sentando-o na cadeira e abrindo
as algemas, Chandler perguntou a
Gabriel se ele precisava de ser visto
pelo médico. Mitch interveio.
— Ele não vai ver o médico até
eu acabar de o interrogar.
Não houve protestos de Gabriel,
mas, por um breve segundo, os
seus olhos brilharam com outra
coisa que não medo: frieza,
aceitação de que sentiria dores por
algum tempo ou arrependimento
por se ter rendido. Aquele seria o
seu terceiro interrogatório do dia.
Daquela vez, Chandler não estaria
presente.
— Pode sair, sargento — disse
Mitch enquanto Chandler enfiava as
algemas prateadas no cinto.
— Mas eu conheço a história
dele. Tal como com o Heath.
Mitch olhou para ele com pouca
simpatia.
— Desta vez usarei os meus
homens. Está na hora de um par de
ouvidos novos, sargento.
Chandler virou-se para sair.
Assistiria do cubículo de
observação. Não era o ideal, mas
melhor do que nada.
Quando chegou à porta, Mitch
chamou-o.
— Há alguns jornalistas lá fora.
Como sabe, são como zombies;
quando aparece um a pensar que
pode haver algo de que se
alimentar, aparecem todos. Deixe-
me ser claro, sargento — disse ele,
levantando a voz: — Sou a única
pessoa que fala com eles, okay?
Diga isso à sua gente. Já fiz uma
declaração a dizer que não temos
nenhum comentário a fazer
enquanto a investigação decorre e
não quero que dê cabo disso ao
dizer alguma coisa errada. Ou ao
dizer alguma coisa, já agora.
Luka e Jim tinham voltado.
Tanya também, e estava na sala de
gravação a preparar o equipamento
para registar cada palavra e gesto,
rodando, premindo e ajustando
botões, os auscultadores fora de
uma orelha como um DJ da mais
pequena e feia discoteca do mundo.
A melodia que tocava era a da voz
abrasiva de Mitch, a conversar
informalmente com os seus dois
esbirros, Sun e MacKenzie, e
ignorando Gabriel. A sua voz era
clara, o tom do seu discurso
captado, os microfones prontos
para gravar tudo, desde os
pormenores mais insubstanciais até
aos últimos momentos da vida de
alguém. O confessionário estava
pronto.
Ao fim de alguns minutos, Mitch
voltou-se para Gabriel e começou o
interrogatório. A história deste
permaneceu inalterada, Mitch a
esgaravatar, mas não encontrando
nada de novo.
— Em que quintas tem
trabalhado? — perguntou, a sua voz
a vibrar nos altifalantes como um
eco do passado distante.
— Em algumas perto de Murray
River, depois em Carnarvon e
Exmouth. Apanha de tomate, de
fruta, qualquer coisa, tudo. Não há
zona neste país em que eu não
tenha trabalhado, ou assim parece.
— Alguém pode confirmar que
esteve em algum desses sítios?
Gabriel encolheu os ombros.
— Pode tentar, mas foi dinheiro
na mão. Antes que o diga, sei que
não é legal, mas se ser pago por
fora é a diferença entre conseguir
um emprego e não conseguir, então
aceito.
— A falta de um álibi parece
bastante conveniente — comentou
Mitch como se estivesse a dar um
conselho em vez de a conduzir um
interrogatório.
— É a verdade — respondeu
Gabriel. — Não me interessa se é
conveniente.
Mitch passou a interrogá-lo
sobre os pais e a família. Do seu
ângulo elevado, Chandler viu a
calma de Gabriel alterar-se um
pouco. Como se lhe tivessem
tocado num nervo. Tal como
acontecera no carro a caminho do
hotel.
Gabriel explicou que os pais
tinham morrido. O irmão também.
Um tio e uma tia também.
— A morte parece segui-lo —
observou Mitch. Embora estivesse
de costas para a câmara, Chandler
imaginou um sorriso no rosto de
Mitch, um golpe baixo, uma
tentativa de quebrar o gelo nas
veias de Gabriel. — Como
morreram? — perguntou após uma
pausa.
Gabriel não disse nada. O seu
corpo permaneceu imóvel, mas os
olhos estavam fixos. O olhar
enervava Chandler.
— Morreram num acidente de
viação.
O aceno de Mitch não tinha
empatia, tratando a informação
apenas como mais uma peça do
quebra-cabeças.
— E desde então?
— Desde então, tenho andado a
perambular, inspetor. A ir ao sabor
do vento.
— Muito poético — disse Mitch,
sem esconder o sarcasmo.
— Não. Apenas muito verdadeiro
— emendou Gabriel, agora irritado.
Mitch conseguira. O suspeito
mordera o anzol e agora era preciso
puxá-lo pelas águas escuras e
lamacentas em direção à margem.
Mas ainda não sabiam o que
tinham apanhado.
20

Gabriel recostou-se, tendo


contado a sua história pela terceira
vez. Mitch insistiu imediatamente
numa repetição.
Aquilo bastava para Chandler. A
mesma história, quatro vezes num
dia, era algo que dispensava,
portando saiu da sala de gravação.
A equipa de Mitch trabalhava sem
descanso, revelando uma
impressionante ética de trabalho,
mas uma clara falta de
individualismo, clones do seu líder.
Chandler aproximou-se da sua
própria equipa: Jim, Luka e Nick
junto à receção a assistir, Tanya
trancada na sala de gravação
provavelmente durante mais uma
hora a ouvir a repetição.
— Isto é trabalho policial? —
perguntou Jim, olhando para a
equipa de Mitch. Como sempre, era
difícil perceber se estava a falar a
sério ou a exercitar o seu sentido
de humor seco.
— Trabalho policial sério —
respondeu Luka.
— Vamos envolver-nos? —
perguntou Jim.
— Se quiseres — respondeu
Chandler. — Mas podes ter de os
forçar a aceitar tua participação.
— Sempre gostei de um desafio
— disse Luka.
Chandler pensou que, se alguém
fosse entrar na outra equipa, seria
Luka. Era o mais oportunista de
todos.
Atrás deles, Nick retirou os
auscultadores.
— Sargento?
— Sim, Nick, também podes
tentar.
— Não, não é isso, sargento. O
Ken ligou. Diz que há alguma coisa
a arder na floresta atrás da quinta
do Turtle.
— A que distância?
— Ele diz, e cito:
«Suficientemente longe para não
ter de verificar.»
Chandler perguntou a si mesmo
se seria o lugar que procuravam.
— Eu vou lá — disse ele.
— Eu também — ofereceu-se
Nick.
— Não, tu ficas aqui.
O jovem agente afundou-se na
cadeira.
— Luka, Jim, quem quer vir? —
perguntou Chandler.
Jim levantou uma sobrancelha e
olhou para Luka, a sua expressão a
sugerir que não tinha vontade de
caminhar por Gardner’s Hill no pico
do verão.
— Parece que alinho — disse
Luka, sorrindo.
Sair da esquadra foi fácil, pois
estavam todos ocupados. Com Luka
ao volante, arrancaram a grande
velocidade em direção a Hill.
Inclinando-se para ver pelo para-
brisas, Chandler não avistou
nenhum fumo na encosta e esperou
que não fosse Ken a vingar-se pelo
que acontecera mais cedo. O velho
estupor seria bem capaz disso.
Enquanto continuava a analisar
o céu, Luka falou.
— Sei que não é da mesma
opinião, mas acho que ele fez um
bom trabalho.
— Quem?
— O inspetor. Ele veio,
responsabilizou-se, fez as coisas
acontecer.
— E chateou muita gente.
— Principalmente o sargento.
Chandler ignorou o comentário.
— Às vezes é demasiado brando
— continuou Luka.
— Queres que vos trate como
robôs?
— Às vezes a lei tem de ser
dura. As pessoas respeitam isso,
precisam disso.
Chandler olhou para o jovem
colega.
— De que merda de livro de
autoajuda roubaste isso?
— É verdade. Às vezes as
pessoas têm de nos ver a usar
alguma força.
Chandler sentiu-se triste pelo
facto de outro membro da sua
equipa ter ficado impressionado
com Mitch, mas, no caso de Luka,
Chandler percebia a atração, a
mesma implacabilidade em
avançar. Não havia dúvida de que
Luka era um bom agente, ansioso
por aprender, ansioso por fazer,
mas também exibia uma
imprudência que se transmitia à
sua vida privada. Já percorrera a
maioria das mulheres solteiras na
povoação, como uma gripe
particularmente virulenta. Cada
elemento daquela equipa tinha um
grupo que sondava em busca de
informações: Tanya, as ansiosas
línguas do círculo das mães; Jim, as
línguas molhadas dos operários no
Black Stump e Luka, a sua brigada
feminina na casa dos vinte e poucos
anos, que estava lentamente a
alienar ao namorá-las e depois
largá-las. Chandler tinha a
impressão de que Luka achava que
podia caminhar sobre água.
Estavam um quilómetro a sul da
quinta de Turtle quando Chandler o
viu, fumo a subir no céu no meio da
floresta, a mão cinzenta de uma
vítima de afogamento a agitar-se
acima da superfície das árvores. A
expectativa deixou-o ansioso.
Tentou acalmar-se, lembrando-se
de que poderia não ser nada e fez
Luka percorrer mais dez
quilómetros até à entrada secreta
de Bluff’s Bluff — a alcunha de um
ex-presidente da Câmara que se
recusara a deixar que uma estrada
de terra fosse batizada em sua
homenagem.
Subiram a colina, o carro a
debater-se nas curvas íngremes e
apertadas, cada vez mais elevadas,
com a fina linha de fumo a aparecer
e a desaparecer.
Chandler mandou Luka parar
antes do parque de
estacionamento. Saindo, preparou-
se para caminhar pelo mato que os
seus dois suspeitos alegavam ter
atravessado. Tirou do carro uma
mochila cheia de água e outros
itens essenciais. Não esperava ter
de passar ali a noite, mas não ia
ser apanhado desprevenido.
— Em qual deles acredita? —
perguntou Luke, pegando na sua
mochila.
— Já falámos disto, Luka.
Primeiro recolhemos algumas
provas e depois…
— O seu palpite, sargento —
interrompeu Luka. — Todos temos
um palpite. Eu escolho o Heath.
Entrou ali com uma arma apontada,
foi apanhado a tentar roubar o
carro, atacou-o e ao médico. Tudo
aponta para uma certa astúcia, a
capacidade de planear e o
temperamento necessário para
matar.
Chandler apertou as alças da
mochila. Tentava ignorar Luka, mas
o jovem agente tinha alguma
razão. Ele sentira na pele a ameaça
que Heath representava, mas,
apesar de todas as setas
apontarem para Heath, não podia
descartar Gabriel. O seu
comportamento inconstante, da
pilha de nervos à calma gelada,
incomodava-o.
Enquanto considerava isso, Luka
avançou, entrando no bosque como
um cão de caça a vir à tona, o
rapaz impaciente de Sydney, a
cidade em que crescera antes de os
pais artistas se mudarem para
oeste em busca de paz,
tranquilidade e inspiração. Luka
dissera-lhe mais de uma vez que
estava desejoso de voltar à cidade
— ou a algum sítio que tivesse mais
que uma discoteca — e se
candidatara a empregos para sair
dali. Quando entrou na berma da
estrada, não pôde deixar de pensar
que era outro lembrete de Mitch,
outro lembrete da última vez que
ali estivera.
Partiram para o bosque para
procurar o que estava em chamas.
Revelou-se difícil, o terreno a
não oferecer pontos de referência,
deixando-os seguir os fiapos de
fumo que se elevavam pouco
visíveis daquele ângulo acima das
árvores.
Avançaram, a luz do dia a
diminuir, tropeçando em pedras,
pedregulhos e árvores caídas, sem
encontrar campas recentemente
escavadas nem precipícios de onde
cair.
Durante o caminho, Luka
apresentou outra teoria que
estivera a desenvolver: que alguém
ainda podia estar na cabana, um
parceiro ou outra vítima. Se o
assassino tivesse alguém trancado,
podia ter outra pessoa amarrada
para depois, como pendurar carne
para curar; uma reserva para o
inverno. Embora fosse apenas mais
uma das fantasiosas especulações
de Luka, as palavras fizeram
Chandler acelerar direito ao fumo
que pairava acima das árvores. A
zona estava em silêncio: não havia
cigarras ou grilos a cantar, como se
todos se tivessem calado na
expectativa de uma descoberta
horrível. Era enervante, como o
silêncio de uma multidão antes de o
júri pronunciar o seu veredito.
Tanto que Chandler ouviu com
agrado o silvo do rádio a
interromper o silêncio, até ao
momento em que a voz de Mitch
irrompeu do ruído branco. A fuga
deles tinha sido notada, tal como o
seu destino e a possibilidade de
isso fazer soar alguns alarmes.
— Chandler, é o Mitchell.
As formalidades tinham
desaparecido, e havia um certo
pânico na voz de Mitch.
— Não faça nada aí. Vamos a
caminho.
21

Chandler deparou-se com pouco


mais do que uma pilha de cinzas
fumegantes, restos de paredes a
surgir do chão carbonizados como
fósforos queimados até a fim.
Avistou um pequeno depósito de
água metálico a cerca de cinquenta
metros da cabana em ruínas,
suportado por uma estrutura
coberta de trepadeiras a tentar
alcançar o céu. Apesar da ordem
clara de não mexer em nada,
Chandler não podia simplesmente
deixar que aquilo continuasse a
arder e destruísse qualquer prova
que pudesse restar.
— Luka, por aqui — disse ele,
correndo em direção ao depósito. —
Consegues subir?
O seu jovem agente impetuoso
não costumava recusar um desafio.
Largando a mochila, subiu
rapidamente para o ninho, a
estrutura surpreendentemente
sólida, apesar da idade e do
estado. Com Luka em posição,
Chandler entregou-lhe um dos
baldes enferrujados que estavam
no chão e, em troca, recebeu um
cheio, a água a derramar-se e a
encharcar-lhe a roupa.
Vertendo o conteúdo do balde
na mistura fumegante, a cinza e o
fumo elevaram-se em volta dele
como gelo seco num concerto.
Tossindo para expelir a cinza da
garganta, regressou ao depósito
para uma recarga.
Deslocou-se para a frente e para
trás com balde após balde,
humedecendo parte dos anexos,
tentando evitar ser queimado pelo
calor e pelas chamas aleatórias que
surgiam do nada.
Cego pelo calor escaldante e
pela luz intensa, cambaleou até ao
tanque.
— Ainda sobra muito? —
perguntou, cuspindo a cinza que lhe
secara na língua.
— Metade. O suficiente — gritou
Luka enquanto Chandler voltava
para as brasas, virando a cabeça
para o lado e lançando água noutra
zona fumegante, as cinzas a
subirem e a afastarem-se, e o que
pareciam ser restos de metal
carbonizado a brilhar ao sol. A
descoberta deu alento a Chandler,
apesar do ardor nos olhos, e ao fim
de cerca de meia hora tinha o fogo
controlado. Os dois bombeiros
improvisados trocaram palmadinhas
de congratulação nas costas, as
mãos enegrecidas de Chandler a
deixar marcas escuras na camisa
suada do colega. O que estava
diante deles não parecia muito,
mas tinham salvado o que restara.
Chandler aproximou-se. Olhando
para a massa quente, viu metal
retorcido. Teria de arrefecer um
pouco mais antes de poder mexer-
lhe.
— Fogo posto? — perguntou
Luka.
— É difícil ter a certeza, mas
parece que sim.
O fogo fora intenso e rápido,
destruindo o que ali existira, mas,
embora as árvores em volta
tivessem sido chamuscadas pelas
chamas, o fogo permaneceu
localizado, as ripas de madeira
ressequidas a fazer o edifício arder
como lenha. Chandler sabia que
tinham sorte por não ter começado
um grande incêndio florestal.
Agarrando um ramo já
queimado, começou a contornar as
ruínas, vasculhando os escombros,
descobrindo pedaços de metal que
tinham resistido ao calor das
chamas: juntas em ângulo reto de
uma mesa ou bancada de trabalho
e uma serra que se soldara com o
calor a um machado, criando um
instrumento pesado. Remexendo
nos escombros com o pau, enfiou-o
numas algemas, os elos da corrente
solidificados, e arrastou-as para o
chão para arrefecerem.
Contornando a cabana, viu
madeira e papel carbonizados a
flutuar na corrente térmica,
suspensos no ar, demasiado
pesados para se afastarem, mas
demasiado leves para cair de novo
no solo. Chandler estendeu a mão
para alguns, mas desintegraram-se
em pó.
Passou de novo o ramo pelos
detritos, levantando um turbilhão
de fuligem. Algo amarelado e
chamuscado nos cantos tentou
soltar-se. Papel. Ele agarrou-o na
segunda tentativa, delicadamente,
tentando não danificá-lo ainda
mais. Outra análise cuidadosa de
um canto, onde a parede não fora
totalmente queimada, trouxe um
segundo papel, maior que o
primeiro. Em breve tinha
recuperado uma série de
documentos — incluindo algo muito
importante, a carta de condução
desaparecida de Heath, o plástico a
sobreviver melhor ao inferno do que
o papel. O nome ardera, mas o
rosto de Heath fitava-o a preto e
branco, sem sorrir, quase soturno.
Como uma fotografia tirada numa
esquadra.

Mitch e a sua equipa chegaram


de repente, aparecendo no bosque
como fuzileiros navais numa missão
secreta, armados com sacos de
provas e luvas de látex. Tinham
levado apenas quarenta e cinco
minutos.
Em vez de grato, Mitch estava
zangado. Chandler não esperara
outra coisa.
— O que fez? — perguntou a
Chandler em tom acusador.
— Apaguei o fogo. Tínhamos de
nos certificar de que não havia
outra vítima ali.
— E havia?
— Não, mas havia alguns
papéis…
Mitch agarrou no ombro de
Chandler e puxou-o para o lado, o
contacto inesperado e indesejável,
atravessando uma barreira tácita
durante um breve segundo antes de
soltá-lo.
— Devia ter-me informado do
telefonema, sargento. Goste ou
não, sou seu superior e responsável
por esta investigação. Qualquer
erro irá recair sobre mim e não
estou disposto a deixar isso
acontecer. Não é assim que
trabalho.
— Lidei com o assunto da forma
que achei adequada — respondeu
Chandler, permanecendo firme.
— Lida com o assunto da forma
que eu achar adequada, sargento.
Entendido? E se isso significa vir
falar comigo para receber
autorização para mijar, então é isso
que faz. Tudo passa por mim.
Tomou a decisão de ficar aqui,
Chandler. Isso foi consigo. Não
deixe que o ciúme tolde as suas
decisões.
— Não, Mitch, você acha que eu
estou com ciúmes. Eu escolhi ter
uma família, você escolheu ter uma
carreira.
Isso mereceu apenas um sorriso
do seu oponente.
— Talvez eu tenha as duas —
disse ele.
— O que quer dizer?
Mitch não respondeu. Estaria a
insinuar que tinha família? Os
primos não tinham dito nada sobre
casamento ou família quando os
vira pela última vez. Não tinha
aliança no dedo, mas claro que isso
não provava nada. Chandler
perguntou a si mesmo porque se
importaria. Mitch estava — estivera
— dez anos e centenas de
quilómetros afastado da sua vida.
Fora apenas aquela infeliz série de
acontecimentos que os pusera de
novo em contacto.
— Voltemos ao trabalho — disse
Mitch, apontando para Chandler e
depois para as árvores. — Vá isolar
a ár…
Um estalido alto interrompeu-os,
fazendo Mitch tropeçar para trás e
estender a mão para o coldre. Algo
negro elevou-se no ar e aterrou ao
lado da equipa de Mitch, que
registava as provas que Chandler
retirara dos destroços. O objeto
carbonizado fumegou a seus pés,
uma lata de aerossol rebentada que
escapara com sucesso da cabana.
— Talvez queira interrogá-la —
sugeriu Chandler, indo para as
árvores.

Enrolou a fita amarela e azul em


volta dos eucaliptos mais próximos
e viu a equipa de Mitch retirar mais
destroços do manto de cinzas, Luka
no meio do grupo como um deles.
Enquanto os esbirros vasculhavam
os destroços, o mestre rondava o
edifício, um iPhone junto aos lábios
a registar os seus pensamentos e
observações, e Roper, um tipo
musculoso cuja boca se curvava
para baixo numa carranca
permanente, registava cada
movimento com uma câmara de
vídeo.
Depois de todas as provas
imediatamente visíveis terem sido
assinaladas com cones ou
etiquetas, Mitch organizou a sua
equipa de forma a começarem por
um lado e vasculharem
cuidadosamente as cinzas,
espalhando-se devagar pelo solo.
Descobriram mais alguns
fragmentos de papel, incluindo o de
um mapa, a falta de curvas de nível
a sugerir uma zona de terreno
plano em vez da colina onde se
encontravam. Com a investigação
preliminar concluída, Mitch mandou-
os procurar provas de como o
incêndio começara: embalagens de
líquido inflamável ou distribuição
pouco comum de combustível,
como pilhas de jornais ou móveis
muito juntos. Procuraram
dispositivos incendiários — tirando
a lata de aerossol — como
isqueiros, fósforos ou até alguma
espécie de cronómetro. Retiraram
mais metal das cinzas, incluindo o
resto dos elos de uma corrente, um
deles quebrado, o corte limpo a
indicar que fora serrado em vez de
se partir com o calor.
Em seguida, dedicaram-se à
tarefa que prolongaria a sua
permanência no local até tarde:
encontrar vestígios de pessoas que
lá tivessem estado,
voluntariamente ou não: cabelos,
fibras, impressões digitais, sangue,
fluidos corporais. O fogo teria
destruído a maior parte, mas
Chandler sabia que Mitch não
desistiria facilmente. Mandou
Chandler voltar para os carros e
recuperar mais kits de provas. Era
uma tarefa subalterna, para alguém
de menor categoria, mas Mitch
esforçava-se muito para humilhar
Chandler.
Enquanto este se dirigiu aos
carros, Mitch estava a encorajar as
suas tropas, o inspetor tranquilo e
seguro que entrara na esquadra de
Wilbrook a começar a derreter sob
a pressão, o cabelo com risco ao
lado colado ao couro cabeludo, o
aspeto molhado a manter-se até no
calor. Era como se estivesse a
verter suor apenas da cabeça, o
rosto ainda anormalmente seco,
como se os poros estivessem
entupidos com amargura.
22

2002

Mitch passou os dedos pelo


cabelo escorrido, cada fio como um
marinheiro agarrado ao convés do
navio que se afundava.
— Vamos! Vamos! Não há
tempo para descansar — anunciou
ele. — Mais um quilómetro e
paramos por hoje.
Os voluntários estavam reunidos
em volta de uma enorme rocha de
arenito vermelho que parecia
deslocada entre as árvores, um
farol no deserto, a vegetação a
aproveitar a sombra abundante
para crescer. Os voluntários
também aproveitavam a proteção
de um sol que começava a baixar
no céu, ganhando velocidade a
cada minuto como se estivesse a
ser puxado pelo horizonte.
— Cinco minutos — suplicou um.
— Pode descansar a noite toda
— disse Mitch. — O Martin ainda é
capaz de estar por aqui.
Era a ferramenta motivacional
de Mitch: Martin. Mas Chandler
sabia que havia apenas uma razão
pela qual o colega queria agora
encontrar Martin. A que Mitch
confessara nos últimos dias e que
causara a mudança drástica na sua
atitude: Mitch queria ser conhecido
como o agente que encontrara o
adolescente — vivo ou morto — e
ver o seu nome no jornal.
Não tinha muita concorrência.
Apenas Chandler, na verdade. As
buscas tinham sido reduzidas, os
recursos desviados para o horrendo
homicídio de um camionista em
Port Hedland alguns dias antes. O
papel de Chandler e Mitch também
mudara de forma subtil — e não
oficial. Dado que a possibilidade de
encontrar Martin era reduzida, o
seu trabalho principal era agora
impedir que os voluntários e a
família tivessem um destino
semelhante.
Mas com essa ordem vinha a
autoridade. A opção de cancelar as
buscas. Naquela manhã — dia treze
no total e segundo dia daquela fase
— Chandler abordara o assunto
com Mitch, que declarara
imediatamente que tinham de
continuar.
O entusiasmo falso irritava
Chandler. Mitch procurava a glória
no desespero dos outros e Chandler
dissera-lho na cara. Acreditava que
pelo menos ele estava a ser sincero
em relação às suas intenções;
quanto mais depressa
encontrassem Martin, ou os seus
restos mortais, mais depressa ele
poderia voltar para Teri. Houvera
outra discussão com os seus pais na
noite anterior e outra longa noite
de lágrimas e recriminações por ele
ter de se ausentar por mais três
dias naquela maldita busca. Teri
lamentava que o jovem estivesse
morto, mas queria Chandler com
ela.
Para animar as tropas, Arthur
lançou-se numa das suas orações
bem-intencionadas, mas demasiado
emotivas. Tentava persuadir os
voluntários remanescentes a
continuarem e só conseguiu irritá-
los.
Ao afastarem-se, Chandler
chamou Arthur à parte e lembrou-
lhe que ele e Mitch eram os
profissionais.
— Eu sei, desculpe — disse
Arthur, limpando dos olhos suor ou
lágrimas, Chandler não sabia dizer.
— Sei que vocês são os
profissionais, mas a vossa lógica
calma também precisa de um pouco
de coração.
— Nós temos coração —
retorquiu Chandler. — Ninguém
estaria aqui se não tivesse.
O velho fez sinal ao filho mais
novo para ir andando. Só depois de
uma segunda insistência, mais
firme, é que ele obedeceu, os
papéis trocados, o rapaz a agir
como guardião do pai, e não o
contrário.
Livre agora, Arthur caminhou ao
lado de Chandler em silêncio
durante alguns segundos antes de
soltar uma gargalhada.
— Somos todos muito parecidos
com o Martin, sabe.
— O que quer dizer? —
perguntou Chandler, olhando para o
matagal ao lado dele, sem esperar
nada e encontrando exatamente
isso.
— Estarmos aqui… a perdermo-
nos lentamente. Estamos todos a
menos de uma, talvez duas horas,
de entrar no meio do nada e
desaparecer.
A preocupação de Chandler com
o bem-estar mental de Arthur
aumentou.
— O que o faz dizer isso?
— É a verdade.
— Se não se sente bem…
O velho abanou a cabeça.
— Não há nada de errado
comigo além das bolhas e das
queimaduras solares. É só o
cansaço a falar, o não encontrar
nada, pisar mortos a cada passo
que damos: plantas mortas,
animais mortos, terra morta.
Virou-se para encarar Chandler.
— Sei que não quer que eu faça
orações e tagarele, mas isto não
tem nada que ver com motivar os
outros. É para me motivar.
Chandler viu Arthur acelerar
para se juntar ao filho. Então foi
para junto de Mitch na retaguarda.
— Está na altura de cancelarmos
isto, Mitch.
O parceiro mostrou-se incrédulo.
— O quê? Passaram apenas
duas semanas.
— Sim, e o pai está prestes a ir-
se abaixo, o rapaz parece um
zombie, cada vez mais voluntários
estão a desistir todos os dias.
Pareço mais um psicólogo do que
um polícia.
— Continuaremos enquanto a
família quiser.
— Isso não é realista e tu sabe-
lo perfeitamente.
— Vais dizer-lhe? — perguntou
Mitch e inclinou-se para ele. — Se o
encontrarmos, então a morte dele
resultará em algo positivo,
significará alguma coisa.
Chandler abanou a cabeça.
— Para ti. Já significa alguma
coisa para esta família.
— Sim — respondeu Mitch —,
mas se desistirmos agora foi tudo
um pouco inútil, não te parece?
Caminhar rumo ao desconhecido. E
não me venhas com essas merdas
dos jornais acerca de um jovem
adulto que decidiu fazer o seu ritual
de iniciação. Um ritual de iniciação
tem um significado próprio, não é
apenas um jovem deprimido à
procura da morte.
— Dizes isso, mas não o
conheceste, talvez isto tenha sido a
transformação dele em adulto.
— É isso que a Teri te vai fazer?
Transformar-te em adulto?
— Esquece, Mitch.
Mitch abanou a cabeça.
— Desistir da vida.
— Não, o oposto.
— Não podes ter a certeza disso,
Chandler. Não até teres passado
pelo mesmo.
23

A luz desaparecia rapidamente,


mas Mitch viera preparado, e a sua
equipa montou uma série de
holofotes no local, assassinos em
série em volta do lume, em vez de
a torrar marshmallows. Chandler
observou de fora enquanto os
outros retiravam mais papéis e
metal das cinzas, os dedos negros
de fuligem à procura do mais ínfimo
fragmento que pudesse indicar o
que realmente acontecera ali.
Mitch passou por ele, focado
apenas na cena, gravando os
pormenores no seu iPhone.
— Vão fazer turnos? —
perguntou Chandler.
— Fazer o quê? — Mitch franziu
o sobrolho, frustrado por ser
interrompido.
— Fazer turnos para continuar
durante a noite.
Mitch fez uma pausa.
— Não. A minha equipa
aguenta. Pode ir para casa.
— É assim tão teimoso?
— Vá para casa, sargento.
Descanse um pouco. Teve um dia
longo.
Com isso Mitch afastou-se.
Chandler fora corrido. Ainda
considerou ficar à mesma para
ajudar a recuperar o que fosse
possível, mas uma noite com os
filhos e uma cama quente era
melhor do que uma noite fria ali, a
vasculhar os destroços. Aqueles
idiotas que fizessem isso. Mesmo
que conseguissem encontrar
alguma coisa para acusar um dos
suspeitos, Mitch só poderia acusá-
los de rapto, talvez tentativa de
homicídio. Nada mais. Pelo menos
até localizarem as campas. E isso
era trabalho para um novo dia e luz
natural.
Ao passar pelo clarão amarelo
das lâmpadas, Chandler viu Flo
retirar qualquer coisa dos
destroços. Um pedaço de metal
carbonizado, mas ainda inteiro,
inconfundivelmente a figura de
Cristo, livre da cruz de madeira que
outrora o segurava, braços abertos,
um lembrete para Chandler de que
ambos os suspeitos tinham
mencionado uma cruz nos seus
depoimentos e que, à sua espera
em casa, estava uma menina
nervosa sobre a sua primeira
confissão. De repente, sentiu-se
desejoso de vê-la.

Primeiro, no entanto, passou


pela esquadra agora
estranhamente vazia. Apenas
Tanya e Nick estavam de serviço,
Tanya a preencher papelada e Nick
a tocar um solo de bateria na mesa
da receção. Informaram-no do
silêncio nas celas, os prisioneiros
conformados com o facto de que
não valia a pena reclamar, pois
teriam de lá passar a noite.
Terminada a verificação,
Chandler conduziu até casa e ficou
desapontado ao descobrir que os
filhos já estavam na cama. Foi um
desapontamento partilhado pela
mãe; com ele, por não ter voltado
mais cedo.
Recebeu-o à porta, o cabelo
loiro cheio de grisalhos a cair liso
sobre os ombros, perfeitamente
penteado apesar da hora tardia. Era
uma verdadeira mulher de
Wilbrook, com um sentido de humor
tão seco como a terra em que
crescera.
— Vou ver como eles estão —
disse Chandler.
Ela atravessou-se-lhe no
caminho, os braços estendidos
como o Jesus de metal resgatado
do incêndio.
— Não, não os acordes — disse
ela com voz rouca, mas assertiva.
— Fica descansada.
— Estavam zangados contigo
por não teres voltado para casa.
Isso só fez Chandler querer vê-
los ainda mais.
— Fui retido, não pude fazer
nada.
— Caroline, para com isso. — A
voz do pai veio da sala, calma. —
Eles não estavam zangados por o
rapaz não ter voltado.
Daquele ângulo, parecia que a
velha poltrona bege estava a falar,
marcas de tinta de folhear o jornal
a manchar um dos braços. A
maioria das mulheres poderia ficar
zangada com o chiqueiro, mas
Chandler sabia que a mãe ficava
contente por vê-las, pois se Peter
estivesse colado ao assento não
poderia fazer disparates. No
passado tentara esfregar as marcas
de tinta, mas assim que o fazia
apareciam outras magicamente,
mais pronunciadas, o artista a criar
uma nova imagem sobre a sombra
da anterior.
Usando os braços como apoio, o
pai levantou-se. Agora, no fim da
casa dos sessenta, o pouco cabelo
que tinha estava a desaparecer, o
rosto enrugado como um mapa em
relevo, um nariz bicudo a dominar
as feições. A fisionomia dava a
impressão de que se tratava de um
homem duro, mas nada poderia
estar mais longe da verdade. Era
um cachorrinho, tão excitado e
curioso em relação à vida como fora
sessenta anos antes.
— Estavam zangados por causa
daquilo da primeira confissão —
começou o pai.
— Missa — corrigiu a mãe.
— A missa foi cancelada. As
outras crianças culpam-te porque tu
é que mandas.
— Não com o Mitch por perto —
murmurou Chandler.
— E como está o jovem Mitchell
Andrews? — perguntou a mãe.
A última coisa que Chandler
queria era falar sobre Mitch,
portanto encolheu os ombros e
fingiu não saber.
— Se ele veio é porque se passa
alguma coisa importante —
acrescentou ela.
— Durmo cá, se não se
importam — disse Chandler,
mudando de assunto. Embora os
dois suspeitos estivessem detidos e
ele levasse apenas dois minutos a
chegar a casa, queria dormir sob
um teto seguro como os filhos.
A expressão inquisitiva da mãe
transformou-se graças a um sorriso
radioso.
— Queres comer?
— Não, estou bem.
— Vou preparar-te qualquer
coisa — disse ela, empurrando-o
para a cozinha.

Chandler dirigiu-se ao sofá que o


engoliu no seu conforto branco.
Incapaz de dormir, reviu as provas
mentalmente. Tinha dois suspeitos
que eram praticamente opostos
idênticos: um Gabriel Johnson
assustado, o tremor na voz a
sugerir nervos, mas também com
uma qualidade sedosa calma, uma
voz que sem dúvida poderia
persuadir alguém desejoso de uma
boleia a entrar num carro. Mas se
e l e era o raptor e assassino, por
que motivo fugira apenas para
voltar e se deixar apanhar?
Provavelmente queria ser o Bom
Samaritano e impedir Heath de
matar novamente. Um Heath que
era barulhento e veemente e
violento, negando tudo menos o
roubo de um carro e a protestar por
se encontrar sob o mesmo teto que
Gabriel. Se estava a representar era
muito convincente, de novo o tipo
de atuação capaz de persuadir um
tipo nervoso à boleia a entrar num
carro com ele. Embora Gabriel se
tivesse rendido duas vezes, Heath
não fizera nada de forma
voluntária.
Também eram opostos físicos,
Gabriel alto e magro, Heath baixo e
corpulento. Ambos ostentavam o
inconfundível bronzeado associado
ao trabalho ao ar livre. Nenhum
tinha pais e contactavam pouco
com os irmãos; por opção no caso
de Heath, devido a morte no de
Gabriel. Chandler não tinha o
suficiente para considerar um deles
o principal suspeito, portanto eram
ambos. E se assim era, então havia
a possibilidade de terem estado a
trabalhar em conjunto até que
outro evento, ainda desconhecido,
os fizera separarem-se. Era por isso
que estavam com tanto medo um
do outro? Porque sabiam do que o
outro era capaz?
A cabana também o
incomodava. As provas encontradas
até ao momento indicavam que era
o local onde os homicídios tinham
ocorrido, ou pelo menos onde as
vítimas tinham estado
acorrentadas, mas como pegara
fogo? Fora um acidente? Raios do
sol ampliados numa pilha de papel?
Talvez quando se perseguiam um
aquecedor a gás tivesse sido
tombado e transformado a cabana
num inferno. Mas por que haveria
necessidade de um aquecedor a
gás com aquele calor? Restava a
teoria de que o assassino tinha
propositadamente iniciado o
incêndio. Talvez um dispositivo
incendiário acionado por um
temporizador caso ele não
regressasse até determinada hora?
E se sim, quando? Heath, no
período entre Gabriel entrar na
esquadra e ele ser conduzido até lá
com a caçadeira de Ken nas costas?
Ou Gabriel, depois de fugir do hotel
e voltar a subir a colina para
destruir as provas? Mas como
poderia Gabriel chegar lá? E porquê
voltar e entregar-se à polícia?
Porque não pegar fogo à cabana e
depois fugir?
Os intervalos de tempo e o
motivo estavam a fritar o cérebro já
confuso de Chandler, mas não iam
deixá-lo parar. Um pensamento
final abriu caminho. E se não
estavam a trabalhar um com o
outro, mas tinham um terceiro
parceiro a ajudá-los com os seus
crimes?
Isso abria toda uma nova
avenida. Chandler precisava de algo
para diminuir as possibilidades.
Sempre preferira trabalhar dentro
de parâmetros definidos. Por isso
ficara em Wilbrook. A cidade e os
filhos eram como o seu sol, a sua
atração gravitacional a significar
que ele não podia, e não queria,
afastar-se deles.
Embora fossem três da manhã,
um dos seus sóis entrou na cozinha.
Sarah, de camisa de dormir,
espreitou para o interior do
frigorífico sem o ver. Estava a
crescer depressa, já tinha quase a
altura da mãe, com as mesmas
maçãs do rosto salientes e rosto
estreito. Podia tê-los, desde que
não herdasse o feitio da mãe.
Ela nem tentou fazer pouco
barulho enquanto tirava o leite, a
porta do frigorífico a bater e o copo
a tinir na bancada. Foi atrapalhada
como sempre pela sua insistência
em usar o telemóvel ao mesmo
tempo que tentava fazer outra
coisa.
— Não podes estar a mandar
mensagens a alguém a esta hora!
— admirou-se ele.
Ela arquejou e o leite, que até
ao momento encontrara o copo,
entornou-se.
— Mer… — começou Sarah e
depois parou.
— Vais ter de confessar isso —
admoestou Chandler.
A filha voltou a verter o leite.
— Ai vou? Sempre se vai
realizar? — Ela olhou para baixo e
os toques no telemóvel
continuaram.
— Veremos.
Sarah não respondeu.
— A quem estás a mandar
mensagens a esta hora? —
perguntou ele, curioso e um pouco
preocupado.
— A ninguém. Estou a preparar
mensagens de texto.
— Pre… preparar?
— Para amanhã — disse Sarah.
— Espera…
Ela segurou o telefone à
distância de um braço e tirou uma
selfie a segurar um copo de leite.
Chandler não entendeu porquê.
Talvez não quisesse. Talvez aquilo
fosse o que passava por
entretenimento nos dias de hoje. E
tudo bem, supôs. A sua noção de
entretenimento provavelmente era
igualmente estranha para ela. Uma
garrafa de cerveja e um pouco de
desporto na televisão depois de as
crianças irem para a cama:
críquete, golfe, futebol americano,
não era esquisito. Às vezes podia
assistir a um jogo inteiro e não
saber a pontuação no final, a sua
mente desanuviada e a barriga um
pouco maior.
Sarah acabou de tirar a selfie e
analisou o resultado.
— Estás zangada comigo? —
perguntou Chandler.
A pausa sugeriu que sim.
— Não — respondeu, o cabelo
preto em volta do rosto.
— Sarah?
Escapando às garras do sofá, foi
ter com ela à cozinha; a filha já
bebera metade do copo.
— Sei que estás desapontada.
Ela agitou a cabeça de um lado
para o outro como se o seu cérebro
fosse uma Magic 8-Ball e estivesse
à procura de uma resposta.
— Eles acham que a culpa é tua.
Que impediste a confissão de
acontecer.
— Fomos forçados a isso.
— Porquê? — perguntou ela. Ele
ouviu uma certa amargura na sua
voz.
— Havia a possibilidade de eu
não estar lá.
— Porquê? E só tu não estarias
lá? Sempre nos disseste para não
sermos egoístas.
Chandler sorriu. Dito assim,
soava egoísta: adiar o
acontecimento porque tinha outros
planos.
— É egoísta, mas não vou faltar
a uma coisa tão importante como a
tua primeira confissão por estar a
investigar um caso.
— O que fez a pessoa?
— Não temos a certeza. Ainda
não confessou os seus pecados.
Não o fizemos confessar os seus
pecados. Mas iremos fazer —
acrescentou com determinação,
como se tentasse convencer a filha
de que era capaz. — E mesmo que
a missa não tenha lugar no
domingo, terá lugar noutra altura.
— Então faz parte do plano de
Deus?
— Só Deus te pode dizer isso.
Um sorriso voltou ao rosto dela,
portanto, ao ver o copo de leite
vazio, encaminhou-a delicadamente
na direção do quarto. Em poucos
segundos, ela estava de volta ao
telemóvel, os polegares a descrever
padrões malucos no ecrã,
atualizando o seu status com o
mínimo de palavras possível. Era
fácil vê-la a ser seduzida pelas
maravilhas do grande e mau mundo
fora daquele buraco. Isso
preocupava-o. Preocupava-o que a
possibilidade de ir viver em Port
Hedland com a mãe a atraísse. Se
fosse esse o caso, ele não sabia se
poderia — ou até se quereria —
impedi-la.
24

A manhã chegou com o típico


arrependimento por ter dormido
pouco. Arrastando-se do sofá,
Chandler saiu antes que alguém em
casa acordasse.
Ao entrar na esquadra, viu Jim
sentado na receção, parecendo
desajeitado como sempre ali à
frente, um dedo a bater com força
no teclado. Enquanto Chandler
acenava com a cabeça, dando-lhe
os bons-dias, Jim apontou para o
gabinete das traseiras. Banhado
pela luz fluorescente estava Mitch,
de cabeça baixa e a prestar pouca
atenção à sua chegada.
Chandler aproximou-se.
Duvidava que Mitch o informasse do
que acontecera durante a noite,
mas tinha o dever de perguntar. Ao
chegar mais perto, o que parecia
ser um estudo profundo dos dossiês
à sua frente era, de facto, Mitch a
falar baixinho ao iPhone. Chandler
ficou ao lado da porta, esperando
ouvir pormenores do caso.
— Vai indo — disse Mitch, antes
de fazer uma pausa. Chandler
percebeu que, em vez de ditar, ele
estava a conversar. — Não, ainda
não os vi, porque haveria de ver?
Estou aqui para trabalhar.
A consciência de Chandler disse-
lhe para se afastar da porta, mas
quem estava do outro lado da linha
fazia Mitch passar um mau bocado,
e isso era bom de mais para deixar
passar.
— Não… sim, não me importo
com crianças já criadas.
Uma declaração estranha. Mitch
devia ter pensado o mesmo,
olhando para cima depois de dizer
aquilo e vendo Chandler à espreita
do lado de fora da porta. Pela
primeira vez desde que voltara,
Mitch pareceu nervoso, com os
membros trémulos, lembrando o
adolescente que Chandler
recordava. Aquele com alguma
empatia e compaixão.
Houve um silvo audível e
insistente do outro lado da linha, o
interlocutor ainda a falar. Esperou
que Mitch reconhecesse a sua
presença e regressasse à chamada,
mas ele não fez nem uma coisa
nem outra, imobilizado, o grunhido
eletrónico a ficar mais alto.
— Falamos depois — resmungou
ele por fim, e desligou. Com o
telefone pousado, a autoridade
regressou rapidamente. — Sim?
— Bom dia — disse Chandler.
— Ai é? — retorquiu Mitch com
uma carranca, esfregando o rosto,
enfatizando o facto de ter passado
a noite em claro.
— Encontraram alguma coisa
ontem à noite no local?
— Dê uma olhadela.
Era um pedaço de papel como
os que Chandler vira a flutuar entre
as cinzas, mas aquela secção
parecia estar particularmente bem
preservada, contendo o que lhe
pareceu uma lista de palavras
rabiscadas à mão, intitulada
«nomeadas no princípio».
— Encontrámos isso no local do
crime — disse Mitch, afirmando o
óbvio. — Estamos a tentar descobrir
se é uma lista das pessoas que ele
matou.
— Estão todas listadas como
desaparecidas?
O sorriso de Mitch esmoreceu
momentaneamente.
— Algumas. Estamos a verificar.
— Quantas?
— É cedo.
— Então pode ser uma lista de
qualquer coisa. — Chandler
começava a habituar-se a apagar
incêndios.
— Só ainda não encontrámos a
ligação, sargento. As potenciais
vítimas são de diferentes partes do
país.
— Devia ter-me chamado —
declarou Chandler.
A resposta foi imediata.
— Agora sabe qual é a
sensação.
— Pensei que não queríamos ser
mesquinhos.
— Não queremos, mas você
precisa de passar mais tempo com
a sua família.
— Como é que isso é da sua
conta?
Mitch fechou os olhos.
— Parece que passa a maior
parte do tempo aqui a tomar conta
deste grupo.
— São um bom grupo.
Mitch franziu a testa.
— Pode haver esperança para o
Luka, mas a Tanya é muito velha, o
Jim é muito fraco e o Nick… Bem,
não para de falar, como se tivesse
de deitar cá para fora tudo o que
tem na cabeça.
— Ele dará um bom agente.
— Talvez, se se calasse e
deixasse o cérebro pensar.
Com isso Mitch enfiou o
telemóvel no bolso e virou-se para
o portátil.
— Então, o que vai acontecer
hoje? — perguntou Chandler.
— Vou falar da descoberta da
lista aos nossos dois suspeitos. Ver
se conseguimos descobrir alguma
coisa. Alguém provocou aquele
incêndio de propósito. Encontrámos
uma botija de gás de campismo
com um fio ligado a uma bateria
agora destruída. Deliberado e
premeditado, não particularmente
inteligente, mas com certeza eficaz.

Chandler assistiu da sala de


gravação enquanto Mitch lia a lista
a cada suspeito. Nomes, idades,
locais de nascimento das três
pessoas encontradas na base de
dados de pessoas desaparecidas.
Aquilo não provocou a menor
reação em ambos. Em seguida,
tentou descrições, mas mais uma
vez… nada. A cada não reação
Mitch cavava mais fundo,
divulgando nomes de pais e irmãos,
entes queridos, brandindo o anzol
para fazê-los compreender o que
tinham feito. Invadiu-lhes o espaço,
inclinando-se para tão perto que
Chandler receou que o atacassem,
mas sempre que se levantava para
se juntar a Mitch na sala de
interrogatórios, Mitch recuava,
quase como se brincasse com
Chandler e não com o suspeito.
Apesar das táticas de pressão,
Mitch saiu de mãos a abanar, os
dois suspeitos a manterem as suas
histórias, declarando a sua
inocência. Nenhum deles ouvira
falar daquelas pessoas e apenas
queria ser libertado.
Depois de passar uma hora com
cada homem, Mitch saiu furioso, a
frustração gravada no rosto.
— Nada de novo? — perguntou
Chandler enquanto Tanya
começava a desligar o
equipamento. Tudo o que lhes
restava era rever as provas, ir até à
cabana ou localizar uma
testemunha que pudesse colocar
Heath ou Gabriel no local de um
desaparecimento.
— Achas que ele está a roubá-
los? — perguntou Tanya, quando
saíram da sala.
Chandler virou-se para ela.
— O que queres dizer?
— Rapta-os, tortura-os para lhe
revelarem informações pessoais e
depois limpa-lhes as contas?
— Nada do que vimos aponta
para um motivo financeiro. É óbvio
que nenhum dos dois tem acesso a
grandes meios, dada a forma como
estavam vestidos.
— Então, se não é dinheiro, o
que é? Vingança? Sede de sangue?
— Talvez apenas mera luxúria —
sugeriu Chandler. — Um jogo
sexual que deu para o torto?
A andar pelo escritório como se
estivesse à procura de uma
discussão, Mitch atacou Chandler
imediatamente.
— Não há provas de que uma
coisa assim tenha acontecido.
Também não encontrámos
implementos ou dispositivos dessa
natureza nos destroços.
— Nada além do pau que tem
enfiado — respondeu Chandler.
Um silêncio abateu-se sobre a
esquadra.
Mitch quebrou-o o silêncio,
voltando-se para o gabinete.
— O que temos aqui é uma
parceria — anunciou —, ou uma
antiga parceria. Cada um está a
tentar incriminar o outro.
— Já considerei isso —
interrompeu Chandler. — Não há
nada que os ligue…
— Para além da cena do crime e
das histórias iguais? — perguntou
Mitch. — Não, houve uma parceria
e houve uma zanga. Isso deu lugar
a um desentendimento e cada um
culpou o outro. Explica por que
motivo as suas histórias são tão
semelhantes.
— Não os vejo a trabalhar
juntos. Têm medo de… — começou
Chandler, mas Mitch já se afastara
e estava a falar com um elemento
da sua equipa, MacKenzie, um
jovem que parecia mal ter idade
para fazer a barba. Ou talvez
tivesse sido intimidado o suficiente
pelo chefe para voltar a ser infantil.
Mitch mandou-o organizar uma
conferência de imprensa com os
abutres lá fora.
O que Chandler estivera prestes
a dizer já lhe ocorrera há algum
tempo, mas a conversa com Tanya
trouxera a recordação à tona. Se
Gabriel e Heath estivessem de facto
a trabalhar juntos como uma dupla
de assassinos e depois se tivessem
desentendido, cada um teria uma
história diferente de como chegara
à floresta. Mitch podia julgar-se
esperto, mas estava errado. Era
impelido pela história e não pelas
provas. Um deles, e apenas um
deles, era a verdadeira vítima e o
assassino estava a aproveitar-se da
sua história. Não havia outra
explicação.
25

A conferência de imprensa
começou com Mitch nos degraus da
esquadra, flanqueado pelos seus
esbirros, o fato recém-escovado, a
olhar de cima para os jornalistas.
Era surreal ver Mitch pavonear-
se diante do que Chandler
considerara a sua esquadra, mesmo
que ele não passasse de uma
engrenagem na máquina. Uma
engrenagem maior ocupara o seu
lugar.
Enquanto ele falava, os flashes
dispararam e os jornalistas
disputaram a melhor posição do
microfone, cada um a tentar captar
o som perfeito do circo que chegara
à cidade, alimentado pelos rumores
nas redes sociais e pelos bloqueios
de estrada.
Mitch respondeu às perguntas
que lhe foram feitas, concentrando-
se em cada pessoa, um político
nato. Era todo sorrisos e acenos, as
suas mãos a moverem-se com
firmeza para tentar incutir uma
sensação de confiança. Era bom a
falar sem dizer nada.
— Como com certeza
compreendem, não posso dar
muitos pormenores nesta fase…
Porque não os sabes, pensou
Chandler.
— … porque é muito cedo para
discutir certos aspetos de uma
investigação em curso. Tudo o que
posso dizer é que atualmente
temos duas pessoas detidas que
estão a ajudar-nos na investigação.
Câmaras e microfones agitavam-
se para a frente e para trás diante
de Mitch, como algas marinhas na
maré alta.
— Investigação sobre o quê? —
perguntou alguém.
A pergunta provocou outro
sorriso vencedor.
— Quando chegar o momento,
podem ter a certeza de que vos
informarei dos pormenores.
Uma pergunta difícil afastada.
Surgiu a seguinte.
— É verdade que um dos
suspeitos escapou, e foi por isso
que montaram os bloqueios de
estrada? Teve um suspeito à solta,
inspetor, e não informou a
população desse facto?
Mitch resfolegou.
— Nada tão sinistro. A pessoa
que procurávamos nessa fase não
tinha como entrar em contacto
connosco, e por isso decidiu-se que
uma série de bloqueios de estrada
era a única opção adequada para
garantir o contacto com ela.
Portanto, nada sinistro. Não preciso
que a imprensa espalhe medo e
rumores.
Por mais que desprezasse Mitch,
Chandler teve de admitir que havia
grande competência na forma como
ele lidava com a multidão.
Agradecendo a todos por terem
vindo, Mitch pediu aos jornalistas
que respeitassem o trabalho que a
polícia agora tinha de fazer.
Terminou, desejando a todos a
sorte de encontrar um local para
passar a noite, brincando em
particular com uma repórter loira
sediada em Port Hedland ao
comentar que talvez tivesse de
dormir na carrinha da estação
televisiva. Ele está a fazer amigos,
pensou Chandler, amigos em todos
os sítios certos.
Mas Mitch não terminara.
— Para finalizar, posso apenas
referir que todas as futuras
perguntas devem ser dirigidas ao
sargento Chandler Jenkins — disse
Mitch, apontando para Chandler —,
que é, como todos sabemos, o
chefe desta esquadra.
Com isso, Mitch afastou-se,
deixando Chandler no papel da
caixa de correio relutante.
26

2002

Dezasseis dias depois, a


presença policial fora novamente
reduzida. Oito agentes tinham
passado a quatro, Chandler e Mitch
dois deles, Sylvia e Arthur a criticá-
los, e à polícia em geral, por
desistirem do filho, que pagavam os
seus impostos para aquele esforço
miserável.
Até ao momento, a distância
percorrida a cada dia diminuíra e a
culpa não era apenas do terreno
acidentado. A doença das pistas
falsas atacara, a esperança sendo
vista em cada rocha ou bocado de
terra perturbadas, qualquer
fragmento de civilização tratado
como prova de que Martin passara
por ali recentemente.
Embora entendesse o desejo de
encontrar o filho, Chandler não
compreendia realmente o
desespero, a forma como agarrara
a família e arrancava qualquer
lógica remanescente de Arthur, um
homem inteligente que passara a
vida atrás de uma secretária, mas
que fora lançado para o interior do
país no meio do verão naquilo que
estava a transformar-se na busca
infrutífera pelo filho. Embora
Chandler se tivesse afeiçoado ao
velho, tentava distanciar-se
emocionalmente, o que era mais
fácil de dizer do que fazer com o
miúdo por perto a precisar de
supervisão constante, a afastar-se
de forma descuidada e apenas a
voltar quando lhe gritavam. Aquilo
era uma aventura para ele, melhor
do que a escola. O seu entusiasmo
deveria ter sido contagioso, mas
esses dias já tinham passado há
muito. A lógica ditava que o rapaz
ficasse na cidade, onde estaria em
segurança, mas a lógica não
abundava.
— Ele só está a atrapalhar —
admitiu Chandler para Mitch.
— O que sugeres então?
Amarrá-lo a uma árvore e vir buscá-
lo mais tarde?
Chandler encolheu os ombros.
— Talvez. Merda, estou a
transformar-me em ti!
— Fico orgulhoso por teres
ganhado bom senso — disse Mitch.
— Mas não exatamente em ti.
— Pois não. Eu teria dado um
tiro na perna do puto para já o ter
deixado para trás.
Mitch soltou uma gargalhada
penetrante, e Chandler não
percebeu se ele estava a brincar ou
a falar a sério; decidiu que não
queria saber.
Depararam-se com um riacho
que serpenteava através das rochas
empoeiradas, levantando
ocasionalmente a sua cauda
prateada para fazer uma breve
aparição na terra antes de voltar às
profundezas mais frescas.
O pequeno grupo aglomerou-se
junto dele, olhando-o maravilhado.
Era o primeiro indício de água
corrente que viam em três dias.
Tinham perdido outros três
voluntários quando voltaram à vila
da última vez, pessoas que tinham
vidas e empregos a que regressar.
A vida continuava, refletiu
Chandler, com ou sem Martin.
— Devemos encher os cantis? —
perguntou Arthur.
— Eu teria receio de beber —
respondeu Chandler.
— Porquê? — perguntou o
menino, balançando a ponta do
ténis empoeirado sobre a superfície
da água.
— Nunca se sabe o que contém.
Pode ter apanhado um pouco de
mercúrio das rochas e isso faz mal
à saúde.
O garoto olhou para ele com
cara de idiota.
— Pode ter mantido o Martin
vivo… — sugeriu. «Se ele chegou
até aqui» ficou por dizer.
Depois de um rápido olhar em
volta, Arthur virou-se para
continuar, como se receasse que,
se ficasse parado muito tempo,
alguém pudesse persuadi-lo a
desistir.
Os outros seguiram-no, um
grupo triste de andarilhos atrás de
Moisés numa terra inóspita, os
passos pesados de Arthur a
esmagar a terra queimada debaixo
dele como se estivesse a puni-la
por lhe ter tirado o filho, tentando
torturar a rocha para abdicar dos
seus segredos. Venceu todas as
batalhas menores, a terra seca a
desintegrar-se sob a sola das botas,
mas a guerra estava gradualmente
a ser perdida.
Ouviu-se um grito. Chandler
sentiu esperança e medo.
Esperança de que tivesse acabado,
que tivessem encontrado Martin,
mesmo que fosse apenas o seu
cadáver ressequido. Poderia chamar
os helicópteros e levá-los dali para
fora dentro de algumas horas.
No meio dos arbustos encontrou
a origem dos gritos, o adolescente
de Murray River, com o seu rosto
fresco e falta de medo, o rapaz que
queria ser guarda-florestal. Quando
Chandler o avisara que o trabalho
no mato era raro, e só para aqueles
com muita experiência, o jovem
respondera que tinha aprendido a
ser batedor na escola, seguindo
uma pessoa diferente todos os dias,
e de longe. Nunca fora apanhado.
Chandler não teve coragem de lhe
explicar que o que estava a
descrever eram as competências de
um perseguidor e não de alguém
que tinha de saber sobreviver no
mato.
Quando Chandler chegou ao
local, o jovem dançava
descontroladamente, as mãos a
rasgar as coisas brancas coladas ao
seu corpo. Chandler percebeu de
imediato o que tinha acontecido.
Entrara às cegas numa teia de
aranha gigantesca e tentava
arrancá-lo antes que quem a tecera
decidisse vingar-se.
— Tirem-me isto! — gritou,
contrariando os esforços para o
ajudar ao afastar-se das mãos que
tentavam arrancar-lhe a seda
pegajosa.
— Fica quieto — ordenou
Chandler, puxando um punhado da
teia pegajosa.
— Está em cima de mim?
— Não és um guarda-florestal?
Acalma-te.
Chandler disse ao jovem que
não corria perigo. Era uma teia de
u m a Huntsman, uma aranha
grande, peluda mas inofensiva, que
fugiria ao primeiro sinal de
problemas. Ao ouvirem isto, mais
pessoas entraram em cena para
ajudar, incluindo o filho de Arthur.
Chandler viu o rapaz a rir enquanto
sacudia as mãos furiosamente para
remover a teia pegajosa e
repreendeu-se por ter desejado
encontrar o cadáver de Martin para
poder voltar para casa.
27

Chandler descobriu rapidamente


que os jornalistas estavam
desesperados por informações.
Queriam saber quem eram as
pessoas detidas, de que eram
suspeitas, antecedentes e crenças,
qualquer coisa, em busca da menor
fissura para penetrarem e criarem
raízes.
Quando terminou o último
briefing, Erin e Roper tinham
regressado e estavam a pôr Mitch
ao corrente, com Luka um pouco
afastado, um novo planeta na
órbita do Sol. Alguns minutos
depois, Mitch dirigiu-se à esquadra,
não conseguindo esconder a sua
deceção. Principalmente com eles.
— Até agora não conseguimos
encontrar uma campa perto da
cabana, portanto vou tornar isso a
nossa prioridade número um. Sem
campas, sem corpos, não temos
homicídios, não temos um
assassino em série, apenas dois
homens que se acusam do mesmo.
Se… quando… localizarmos as
campas, poderemos pressionar um
deles a denunciar o outro. Vão
ceder como um castelo de cartas.
— Partindo do princípio de que
trabalham juntos — disse Chandler.
Mitch lançou-lhe um olhar furioso,
mas Chandler continuou. — E se
trabalharam e se chatearam, teriam
inventado histórias diferentes sobre
como chegaram à floresta. Não
haveria razão para serem iguais.
— Esse podia ser o plano. Para
nos afastar do rasto. E está a
resultar — disse Mitch.
— Não — disse Chandler. — Se
têm a mesma história, isso significa
que o assassino se está a
aproveitar dela. Isso significa
apenas um…
Mitch reagiu.
— Ambos admitem ter visto as
campas.
Chandler estava lançado, e não
ia permitir que o parassem.
— Explique-me por que motivo
admitiriam ver as campas se
estivessem a tentar safar-se, ou a
tentar culpar o outro. Não faria
sentido. Só os mete mais em
problemas.
— Eles podem não ser muito
espertos, sargento.
— São suficientemente espertos
para nos fazerem andar às voltas…
— Voltas cada vez mais
pequenas — corrigiu Mitch. —
Vamos apanhá-los em breve. O que
quero agora é uma atitude positiva.
— Virou-se para o grupo, mas
continuou a olhar para Chandler. —
Preciso de equipas na colina à
procura das campas. Serei o
coordenador. — Apontando para os
pares, continuou: — Erin e Roper
estão de serviço novamente. Yohan
e Suze. MacKenzie e Sun. — Os
seus olhos examinaram a sala,
passando por Chandler. — Luka,
pode trabalhar com a Flo. Jim e
Tanya, vocês também.
Tanya interrompeu.
— Devia levar o Chandler —
disse ela. — Dar-lhe uma equipa.
Mitch tentou ignorá-la.
— Todos prontos em dez
minutos.
Tanya continuou,
independentemente disso.
— Ele conhece a região.
Conhecem os dois. Quer encontrar
essas campas, não quer? Então tem
de trazê-lo.
Foi um discurso apaixonado de
uma colega leal. Chandler sentiu
um enorme orgulho.
Mitch hesitou, passando a língua
pelos lábios da cor do céu noturno.
— Tem razão, agente.
Quaisquer diferenças pessoais que
o Chandler e eu possamos ter serão
deixadas de lado. — Mitch olhou
para todos. — Vamos resolver este
caso.
Chandler regressara ao círculo
interno.
— Se formos procurar as campas
— disse Chandler — não podemos
seguir o que eles disseram nos
interrogatórios.
— E porquê, sargento? —
perguntou Mitch.
— Porque a informação deles é
vaga. Talvez até seja errada.
— É a única informação que
temos — lembrou Mitch.
— Eu sei. É por isso que acho
que a nossa única opção é arrastar
um… ou os dois… até lá para nos
guiar. Precisamos dos olhos deles.
— Isso é… — começou Mitch.
— … uma estratégia arriscada —
interrompeu Chandler. — Eu sei.
Mas é a única que temos.
Esperava discordância imediata,
mas Mitch parecia ter sido
apanhado desprevenido. Não houve
discordância dos outros, todos à
espera da reação de Mitch. Pareceu
passar uma eternidade antes de
alguém falar.
— Qual deles levamos? —
perguntou Luka num tom
excecionalmente reservado,
olhando para Mitch em vez de
Chandler.
A pergunta permitiu a Mitch
encontrar a sua voz.
— Levamos o senhor Johnson —
afirmou. — O senhor Barwell não é
de confiança. Já tentou fugir.
— O senhor Johnson também —
lembrou Chandler.
— Mas o senhor Johnson é
calmo.
— Demasiado calmo.
— Está cansado, acho.
— Ou exibe o temperamento
imperturbável de um assassino.
Mitch endireitou as lapelas.
— Ou, sargento, é um tipo que
aceitou que foi apanhado. Se está
tão receoso de deixá-lo escapar
novamente, podemos fazer isto
através de vídeo. Usamos as novas
câmaras corporais.
Chandler recebera o memorando
a informar que Port Hedland
começara a usar essas câmaras, as
imagens passíveis de download e
disponíveis como prova. Mas o
plano de Mitch tinha uma falha
importante, que ele explicou.
— Lá em cima não terá sinal.
Mitch espetou o queixo.
— Nesse caso, não temos
escolha. Levamos o senhor
Johnson. Não tiro daqui os dois ao
mesmo tempo. E toca a andar.
Cinco minutos.

Embora derrotado daquela vez,


Chandler ofereceu-se para ir buscar
Gabriel à cela. Quando a porta se
abriu, a figura esguia não se mexeu
do catre. Chandler não pôde deixar
de recordar um artigo que lera
sobre o facto de os criminosos
terem a sua melhor noite de sono
depois de serem apanhados,
desaparecida finalmente a
ansiedade de estarem
constantemente vigilantes.
Gabriel levantou-se quando
Chandler lhe pôs as algemas.
— Não tenho mais nada a dizer
— disse num tom cansado.
— Vamos levá-lo a Hill —
explicou Chandler.
Gabriel franziu a testa.
— Porquê?
— Para nos ajudar a localizar as
campas.
— Porquê eu? Porque não ele?
— Chandler sentiu alguma
resistência nas algemas.
— Não queremos que o Heath
tente fugir outra vez.
Ao falar, Gabriel sussurrou como
se não quisesse que ninguém,
especialmente Heath, ouvisse. A
sua voz transformou-se em seda,
recuperando aquela qualidade
hipnotizante.
— Vocês… eles… ainda não
perceberam que ele mente?
Chandler estudou o jovem
inclinado ligeiramente para a
frente, as costas dobradas como se
tivesse envelhecido muito depois da
noite na cela. Parecia arrasado.
— Ainda não.
— Ainda acha que eu…?
— Nenhum de vocês pode ser
excluído.
Gabriel pareceu um pouco
chocado com a resposta. Chandler
levou-o das celas. Mitch dirigiu-se
ao suspeito.
— Espero que o sargento lhe
tenha explicado o que lhe pedimos
que faça. — Gabriel assentiu. — Só
para estar plenamente ciente, não
tem obrigação de ajudar. Mas
esperamos que o faça.
— Não tenho nada a esconder —
disse Gabriel, indo para a porta com
Chandler a guiá-lo.
— Para onde o levam?
Gabriel parou imediatamente. O
mesmo aconteceu com Chandler. A
voz desencarnada de Heath saiu da
cela. Gabriel virou-se para a voz. E
para o rosto. A portinhola fora
deixada aberta para ajudar a
entrada e saída de ar. Os suspeitos
entreolharam-se. Chandler manteve
a mão nas algemas, mas não puxou
Gabriel, curioso para ver como a
cena se desenrolaria.
Os dois suspeitos mantiveram o
olhar fixo, ambos em silêncio.
Gabriel não se mexeu, uma veia a
latejar na têmpora suada. Dentro
da cela, o rosto de Heath contraiu-
se, os seus olhos a piscar de forma
descontrolada. Parecia assustado.
Heath cedeu primeiro.
— Ele é um estupor mentiroso!
— gritou, batendo com os punhos
na porta de aço. — Admite, seu
estupor! Admite que me apanhaste,
me levaste para aquele sítio e me
tentaste matar. Estes tipos podem
ser demasiado estúpidos para
perceber isso, mas eu sei.
Gabriel virou a cabeça ao ouvir
aquilo, os olhos fechados como se
tentasse recompor-se. Respirando
fundo, olhou primeiro para Chandler
e depois para Mitch.
— Eu não sou… Ele é… — Houve
outra inspiração profunda. —
Podemos ir, por favor? Agora? Vou
ajudar-vos a encontrar aquelas
campas, aquelas pessoas.

Mais um dia quente em terreno


difícil. Chandler ia atrás, a guardar
Gabriel, e Mitch à frente com Roper.
Seguiam-nos quatro carros da
polícia e uma caravana de carrinhas
das notícias. O terreno era
especialmente difícil para estas,
mas cada uma subiu o trilho da
floresta, os veículos obviamente tão
obstinados como os jornalistas no
seu interior.
Chandler viu o pequeno parque
de estacionamento aparecer diante
deles. Como tudo ali em cima, não
mudara em anos. Olhou para o
banco da frente para avaliar a
reação de Mitch. Não houve
nenhum lampejo de
reconhecimento.
Quando pararam, Chandler
manteve Gabriel escondido
enquanto os jornalistas eram
encaminhados para a metade
distante do estacionamento.
Organizou-se uma conferência de
imprensa, Mitch a gritar sobre o
murmúrio de vozes, explicando à
multidão de microfones que iam
levar um dos detidos à cena do
crime para obter uma melhor
compreensão da linha temporal e
dos acontecimentos.
— Que acontecimentos? —
perguntou um jornalista perspicaz.
— Dizer qualquer coisa neste
momento seria prematuro —
respondeu Mitch, provocando
resmungos descontentes na
multidão.
— Ainda não disse nada —
observou uma voz anónima.
— Está em posição de acusar
alguém? E se sim, de que crime? —
perguntou outro.
Eram perguntas válidas, pensou
Chandler. Teriam de acusar um
homem — ou ambos, se Mitch
conseguisse o que queria — em
breve. Era isso ou libertar os dois.
Estudou a reação de Gabriel ao
clamor que causara e de que estava
a ser protegido. Não havia nada,
apenas passividade, como se fosse
um jogador menor e não um ator
principal. Como Mitch, parecia ser
capaz de ocultar os seus
sentimentos. Ou erguera um escudo
diante do que vivera e ao que
sobrevivera.
— Lamento, mas não podem ir
mais longe — disse Mitch e ouviu
um gemido de desapontamento dos
jornalistas. — Eu sei, eu sei,
estamos todos desiludidos, mas não
quero perturbar o possível local de
um crime. — Apontando, continuou:
— Aqui o Roper e o Big Jim vão
ficar para trás para evitar que
tentem seguir-nos. Não quero que
se percam aqui. Sei o que pode
acontecer.
A máscara de Mitch caiu por
breves momentos. Chandler não viu
nada, mas o tremor na voz do ex-
amigo dizia tudo. Mitch lembrava-
se.
Algemado e sob vigilância,
Gabriel foi à frente até à cabana
incendiada, Erin e Yohan perto dele
para o caso de tentar escapar.
Chandler ia atrás com Flo e
Luka. Os dois agentes tinham
simpatizado de imediato um com o
outro, ambos jovens e bonitos.
Sussurravam entre si a discutir o
caso, acreditando que não podiam
ser ouvidos.
— É tudo um truque — disse
Luka, desviando-se de um ramo
baixo. — Uma caça aos
gambozinos. Uma brincadeira de
que não podem desistir.
Flo encolheu os ombros
estreitos, o cabelo preto franzido
devido ao calor, a pele escura a
brilhar ao sol. Tinha uma opinião
diferente.
— Se for esse o caso, o que
ganham o senhor Johnson e o
senhor Barwell? Serão fantasistas?
Luka encolheu igualmente os
ombros.
— Talvez quisessem criar o
crime perfeito; talvez até acreditem
que cometeram o crime perfeito,
sem terem cometido nenhum crime.
— Mas porquê?
— Para terem alguma coisa que
fazer? Para escreverem um livro
sobre isso?
A mão dela tocou no braço dele.
— É uma forma de conseguir um
contrato para um livro, acho. Os
meus dias na prisão como assassino
em série.
Luka pousou a mão livre sobre a
dela, arriscando o equilíbrio no chão
rochoso, arriscando-se a ser
rejeitado.
— Tudo é possível.
Apesar de sentir um misto de
inveja e náusea enquanto via o
amor jovem florescer diante dele,
outra ideia surgiu no crânio de
Chandler. Ainda mais estranha do
que a deles, mas igualmente
concebível. E se o par de suspeitos
estivesse a preparar-se para os
processar por detenção ilegal? Já
estavam há bastante tempo na
esquadra, sem acesso a um
advogado ou qualquer forma de
representação. Talvez fosse com
isso que estavam a contar.
Empatar, empatar, dizer meias-
verdades ou não verdades, deixar
tudo dar em nada e processar mais
tarde o departamento. Sair com um
acordo generoso e/ou o contrato
para um livro, como Luka sugerira.
Assim que voltassem à esquadra,
Chandler teria de falar rapidamente
com o magistrado; Mitch parecia
não se importar com esse assunto,
um perdigueiro a seguir o rasto,
alheio a tudo à sua volta.
Ao chegarem à cabana, deram a
Gabriel tempo para se orientar.
Reinava o silêncio no local, a fita da
polícia a agitar-se na brisa suave. O
fogo estava bem apagado, os
restos passados cuidadosamente a
pente fino e recolhidas todas as
provas possíveis. Da habitação
restavam apenas algumas tábuas
carbonizadas e suposições sobre o
que tinha sido em tempos: uma
cabana de caçador, possivelmente
até um laboratório de
metanfetamina, embora não fosse
frequente ter esse tipo de coisa ali
e nunca num local tão isolado.
Chandler esperava descobrir
exatamente o que ali acontecera,
descobrir a verdade. Parecia que
Gabriel também.
— O que aconteceu aqui? —
perguntou ele, olhando para as
ruínas. Um tremor pareceu
percorrer o seu corpo. — Porque
ardeu?
— Diga-nos o senhor —
respondeu Chandler.
Gabriel encolheu os ombros, o
tremor a persistir.
— Não sei. Ardeu tudo?
Chandler tentou ler o rosto com
a barba a despontar, avaliar se
Gabriel estava contente por tudo
ter sido destruído. O seu estudo foi
interrompido por Mitch, que se
colocou no local onde estivera a
porta da frente da cabana.
— Então, diga-nos para onde foi
ao sair daqui.
Quando Gabriel fechou os olhos
e se preparou para reviver a
história da sua fuga, Chandler olhou
para o cimo da colina. Cerca de
cem metros acima e emolduradas
pelo baixo ângulo do sol,
apercebeu-se de sombras na terra.
Aproximando-se, viu dois conjuntos
de pegadas que se dirigiam ao
cume. Seriam de alguns dos muitos
agentes que ali tinham estado a
recolher provas? Ou dos suspeitos?
Seriam um remanescente da
perseguição entre Heath e Gabriel?
Chegando às primeiras pegadas,
Chandler inclinou-se para ver
melhor. A marca era nítida e não
correspondia às botas da polícia.
Eram de uns ténis, calculou, e
esperava que do tipo que Gabriel e
Heath calçavam.
Assinalando o local com uma
caneta que espetou na terra,
dirigiu-se cuidadosamente para a
crista seguindo as pegadas,
deixando todos para trás. Dois
conjuntos diferentes de pegadas
tinham ido naquela direção,
seguindo quase exatamente o
mesmo caminho, a passo de
corrida, restos de ramos partidos e
folhas rasgadas a assinalar o
caminho, incluindo o que pareciam
ser algumas fibras de roupa
arrancadas pela casca áspera de
um tronco. Chegou ao cimo.
Inclinou-se suavemente para o
outro lado. Era difícil ver muito
além da primeira camada de
árvores. Precisaria de ajuda para
pesquisar mais. Virando-se,
começou a dirigir-se para a cabana.
Gabriel passou por ele.
Chandler quase caiu para trás
com a surpresa. Gabriel olhou para
ele com a sugestão de um sorriso.
Mas o suspeito não estava livre.
Logo atrás dele seguia a comitiva
uniformizada, gradualmente a
entrar no mato.
Passou-se uma hora, Gabriel
movendo-se de forma nada linear,
ziguezagueando, virando e
tornando a virar, praticamente
caótico. Parecia óbvio para
Chandler que o cão deles não se
lembrava do caminho que tomara
antes. Ou isso ou era uma tentativa
de afastá-los do cheiro.
Ainda assim a comitiva seguiu-o,
o ambiente tenso a tornar-se
insuportável quando o sol atingiu o
zénite. Chandler tentou concentrar-
se na tarefa, mas o seu corpo
clamava por água e sombra. O suor
encharcava-lhe o uniforme e
pingava pelas sobrancelhas até aos
olhos, obscurecendo-lhe a visão. Ao
passar por baixo de um ramo,
tentou afastá-lo e, por um
momento, na névoa de calor, a
figura esguia de Gabriel
transformou-se na forma atarracada
de Arthur há todos aqueles anos
atrás, o velho a arrastar-se numa
busca vã. Semicerrando os olhos,
afastou a miragem da cabeça.
Nesse momento, Gabriel fez
uma pausa e olhou para a
paisagem.
— Precisa de uma pausa? —
perguntou Mitch, com o casaco
pendurado no braço. A camisa
branca permanecia engomada e
seca, como se ele não tivesse
nenhuma glândula sudorípara. Uma
aberração da natureza, pensou
Chandler.
— Não — respondeu Gabriel
bruscamente, como que zangado
por ter sido distraído.
— O que foi? — perguntou
Chandler, aproximando-se.
— A floresta aqui parece
familiar. Aquela pedra — respondeu
Gabriel e partiu, acelerando.
— Como? — perguntou Chandler
atrás dele.
— A curva no horizonte. —
Virado para eles, Gabriel tropeçou,
batendo num tronco, e caiu no
chão.
— O senhor está bem?
Gabriel fez um esgar de dor e
tentou em vão levantar-se.
Chandler agarrou-o e ajudou-o a
pôr-se em pé.
— Estou, mas posso livrar-me
disto? Por enquanto? — pediu,
indicando as algemas que estavam
nas suas costas. — Para o caso de
cair novamente. É difícil mexer-me.
— Não vou ser apanhado como
os outros, senhor Johnson —
declarou Mitch.
— Não vou fugir.
— Já disse que não.
Chandler aproximou-se do
antigo colega.
— E se ele se magoar? —
perguntou em voz baixa.
— Vamos certificar-nos de que
não magoa. Vamos vigiá-lo. Você
vai vigiá-lo — disse Mitch.
Chandler olhou para ele. Era
como olhar para uma rocha, dura,
esculpida e intransigente.
— Se ele cair, pode processar-
nos. E como vai isso ficar na sua
folha?
— Não.
Gabriel encolheu os ombros,
virou-se e seguiu em frente. O seu
ritmo abrandou, possivelmente em
protesto, possivelmente por estar
exausto de andar e falar,
recordando pormenores da sua
fuga, uma árvore que se lembrava
vagamente de ver, um riacho seco
que conjurava imagens do dia
anterior. Fechando os olhos no que
disse ser um esforço para ajudar a
memória, Gabriel tropeçou várias
vezes, fazendo com que Chandler,
Mitch ou quem estava mais perto se
aproximasse e o mantivesse de pé.
Foi precisa meia hora daquele
progresso lento para irritar Mitch.
— Tirem-nas — ordenou
finalmente, para ninguém em
particular.
Todos pararam, incluindo
Gabriel. Quando Chandler se
adiantou para retirar as algemas,
Mitch assumiu o comando.
— Senhor Johnson, vamos tirar-
lhe essas algemas por enquanto,
mas preciso de ver mais
progressos.
Gabriel assentiu.

Gabriel manteve a sua promessa


e o ritmo aumentou
imediatamente; o jovem parecia
quase flutuar pelo chão. Os
sentidos de Chandler ficaram mais
apurados. Com as algemas, Gabriel
fora bastante impotente, mas agora
tinham um suspeito com liberdade
de movimentos e um possível
conhecimento do entorno. Apesar
do aumento no ritmo, o ziguezague
aleatório continuou, com o grupo
atrás.
O dia foi-se arrastando, o
implacável sol a desgastar os
nervos e a paciência. Quando
Chandler começava a pensar que
era uma perda de tempo e que
deviam voltar e trazer Heath,
Gabriel parou de repente, o grupo a
espalhar-se atrás dele.
— O que foi? — perguntou
Chandler.
— Caí aqui — respondeu Gabriel,
tremendo de terror. Chandler
recuou, como se o contacto
pudesse quebrar o feitiço. — Ele
quase me apanhou.
O tremor voltou, ainda mais
intenso. Chandler perguntou-se que
diabo fariam se o suspeito tivesse
um colapso nervoso. Então, de
repente, Gabriel desatou a correr, a
rapidez do movimento a
surpreender toda a gente, e ganhou
facilmente um avanço de dez
metros antes que a comitiva
pudesse reagir.
— Pare!
Mitch e Chandler gritaram
simultaneamente, mas isso não
abrandou Gabriel, que se movia
com uma desenvoltura firme.
Chandler liderou o grupo. Roper
e outros elementos da equipa de
Mitch correram pelo lado de fora;
Luka também, embora fosse cada
vez mais difícil determinar a qual
das equipas pertencia.
Apesar de mais pedidos para
parar, Gabriel aumentou a sua
vantagem. Ao fim de algumas
centenas de metros, desapareceu
atrás de umas pedras. Pegando na
arma, Mitch mandou os seus
homens pegarem nas tasers,
encontrar Gabriel e neutralizá-lo.
Chandler avançou a ofegar.
Contornando os pedregulhos,
esperava descobrir que Gabriel
tinha desaparecido, mas ali estava
ele, parado junto a uma pequena
clareira, o solo perturbado por
manchas retangulares, as bordas
demasiado perfeitas para serem
naturais. O cemitério.
— Não se mexa, senhor
Johnson! — gritou Mitch, os seus
homens a posicionarem-se para
soltar as farpas elétricas das tasers
se necessário.
Mas Gabriel não se mexeu.
Estava de costas para eles, os
ombros a tremer enquanto soluçava
e continuava a olhar para a
clareira; Mitch forçou-o a ajoelhar-
se e voltou a algemá-lo.
Chandler olhou para Gabriel. O
horror estava estampado no seu
rosto, lágrimas de alívio a manchar
as faces empoeiradas. Era ali que
podia ter ido parar. Debaixo de um
daqueles seis montes de terra,
incluindo o mais próximo, que
parecia recente. Tinha no máximo
alguns dias, o solo mais escuro
ainda a reter alguma humidade, o
barro queimado do sol com uma
crosta em cima como um bolo.
28

O cheiro pairava no ar, o solo


seco a oferecer pouca resistência
ao aroma implacável de
decomposição por baixo. Quando
Chandler virou a cabeça para
reprimir um vómito, viu Mitch a
andar de um lado para o outro ao
telemóvel, a chamar a equipa
forense e a comentar o que fora
descoberto.
O ambiente estava carregado
devido ao fedor e a uma ardente
mistura de tensão, antecipação e
suor. Virando a cabeça para longe
das campas, arriscou outra
inspiração. Estava determinado a
permanecer ali quando as abrissem.
Ao inalar o ar abrasador, viu-se a
olhar para Gabriel, que observava à
parte, roendo as unhas com um ar
de apreensão e choque.
Chandler voltou-se para a cena.
O cheiro do que estava debaixo da
terra invadiu as suas narinas. Não
conseguiu resistir mais. Correndo
para os arbustos, expeliu o
pequeno-almoço. E fez a primeira
descoberta. Uma picareta
escondida sob algumas pedras. Em
torno do cabo parte de uma camisa.
Quadrados verdes. Chandler
reconheceu o padrão.
— Aqui! — gritou.
Mitch aproximou-se, tentando
manter um ar de autoridade
através do seu prazer palpável.
Chandler apontou para o objeto.
— O tecido combina com a
camisa de Heath.
— Ótimo — disse Mitch, antes
de se dirigir a todos, em voz alta. —
Esta pode ser a descoberta de que
precisávamos. Isolem esta área
para os técnicos.
Enquanto alguns membros da
equipa de Mitch tratavam do
assunto, Chandler fez uma pausa.
Heath. O assassino. Isso explicaria
o estado das suas mãos quando
chegara à esquadra: bolhas
causadas por escavar a terra dura.
O pedaço de camisa usado como
proteção. O instinto de Chandler
enganara-o. Gabriel era de facto
inocente e apenas tentara fugir das
garras de um maníaco.
Chandler percebera tudo mal.

A equipa forense saiu do


helicóptero como se tivesse caído
diretamente numa zona de
contágio, já com fatos-macaco
brancos, o equipamento em caixas.
Não os invejou por terem de usar
aquela indumentária ali no verão. A
equipa de oito pessoas passou por
ele sem o cumprimentar,
profissionais em missão, parando
apenas para apertar a mão de
Mitch.
Chandler levantou-se e
aproximou-se, ficando a observá-los
enquanto começavam a trabalhar,
toda a equipa ajoelhada em volta
das campas, varrendo camadas de
terra amassada com os seus pincéis
finos. Chandler perguntou a si
mesmo em que estado
encontrariam o corpo e se
descobririam primeiro roupa ou
pele.
— Continuemos — disse Mitch
para todos. — Temos provas que
ligam um dos suspeitos à cena.
Vamos ver a que o ligamos.
Quanto mais fundo a equipa
forense escavava, pior ficava o
cheiro. Chandler viu-os passar uma
embalagem de Vaporub para
aplicar sob o nariz e disfarçar o
cheiro. Alguém lhe passou
finalmente a embalagem e ele
usou-a, mas o cheiro azedo e
sufocante da morte abriu caminho à
mesma através do cheiro intenso a
mentol.
A passagem de um pincel em
breve vez surgir a primeira
sugestão de um corpo: uma mão,
nua e descoberta, a pele solta e
cinzenta como cera de vela a
pingar, as unhas gretadas, ásperas
e quadradas, as de um homem que
trabalhava com as mãos, o encolher
da pele a dar o aspeto de que
tinham crescido desde a morte. O
trabalho parou e todos absorveram
a confirmação visual de que tinham
um corpo.
O rosto foi revelado com
trabalho delicado, as pálpebras
felizmente fechadas. Chandler
notou que o corpo estava bem
preservado, a falta de humidade a
ajudar e tornando difícil determinar,
à primeira vista, há quanto tempo
havia sido enterrado. O seu palpite
era de pelo menos algumas
semanas, dada a decomposição. A
vítima era do sexo masculino, com
trinta e poucos anos, cabelo
castanho curto e nariz partido —
era impossível saber naquela fase
se fora partido antes ou depois da
morte.
— Como morreu ele? — Mitch
quebrou o silêncio para fazer a
pergunta.
Isso era fácil, até a partir da
perspetiva limitada de Chandler.
Com a descoloração escura e as
fibras de corda desgastadas em
volta da garganta, a causa era
evidente.
— Estrangulado — respondeu,
olhando para Gabriel para ver como
a alegada vítima recebia a notícia.
Gabriel olhava para o corpo
assassinado com uma expressão de
choque.
— Com quê? — perguntou Mitch.
— Parece corda — respondeu o
chefe da equipa forense.
— Fotografem isso. Recolham
algumas fibras — disse Mitch. Virou-
se para o homem. — Quero saber
imediatamente quem é o morto.
Reviste-o, para ver se tem alguma
identificação.
Mitch virou-se e chamou Yohan,
que segurava o telefone via
satélite.
— Temos um — gritou ele para
o telefone. — Um corpo. Sexo
masculino na casa dos trinta, sem
identificação ainda. — Um sorriso
apareceu no seu rosto, um sorriso
que Chandler conhecia bem. As
coisas estavam finalmente a correr
como Mitch queria.
Com o primeiro corpo
descoberto, a equipa forense voltou
a sua atenção para as outras
campas. Cada pedaço de solo
perturbado revelava outra vítima,
em breve totalizando cinco, em
estados mais avançados de
decomposição do que o primeiro, o
sexo de cada um impossível de
determinar. Mas a causa da morte
parecia ser a mesma,
estrangulamento e a suposição de
que tinha sido uma morte horrível.
Enquanto cada campa era
aberta, Chandler estudou o
comportamento de Gabriel.
Permanecia à margem, de olhos
arregalados, revelando pouco.
Chandler perguntou-se se ele
estaria a pensar que por pouco não
tivera a sua própria campa ali
naquele terreno implacável.
29

Com os técnicos a trabalhar,


Mitch dispensou a maioria dos
outros agentes, colocando dois
membros da sua equipa a guardar o
local e outros dois no
estacionamento para controlar os
jornalistas que sem dúvida estariam
desesperados por descobrir o que
se passava, agora que o helicóptero
tinha aparecido.
Chandler aproximou-se de Mitch
e acenou na direção de Gabriel,
ainda algemado.
— O que fazemos com ele?
— Pediu para ser libertado?
Chandler abanou a cabeça.
Esperara queixas por ter sido
mantido em cativeiro e depois
arrastado até ali para reviver a sua
experiência, mas Gabriel apenas
observava como se estivesse
realmente chocado com a
descoberta dos corpos.
— Não, mas há de pedir com
certeza, dado que sabemos que é o
Heath.
Em resposta, Mitch mordeu o
lábio inferior, estranhamente azul.
A teoria de Mitch de que os dois
trabalhavam em conjunto parecia
não ter pernas para andar, mas
Chandler reconheceu a relutância
em admitir que estava errado. Não
que ele próprio estivesse em
posição de se vangloriar.
A pergunta seguinte apanhou
Chandler desprevenido.
— O que acha?
Chandler hesitou. Esperou por
alguma rasteira, mas parecia não
haver nenhuma.
— Acho que não há mal nenhum
em mantê-lo por perto, a pretexto
de amarrar as pontas soltas. Se o
deixássemos ir, ele poderia
desaparecer. Não tem morada fixa
e não há razão para ficar por estas
bandas depois do que lhe
aconteceu. Fugiu uma vez e foi
difícil de encontrar. Se lhe dermos
um dia de vantagem, talvez nunca
mais o encontremos.
O aceno de Mitch sugeriu que
concordava. Parecia estranho
trabalhar de novo numa verdadeira
parceria, e Chandler sentiu um calor
que era apenas parcialmente
devido ao clima.
— Há a possibilidade de ele nos
agradecer por o termos salvado —
observou Mitch.
— Uma possibilidade remota —
retorquiu Chandler.
— Se ele começar a dizer que
quer um advogado, ou a ameaçar
processar-nos, solte-o — disse
Mitch. — Mas veja se consegue
alguma morada onde o possamos
contactar.
Aquela era a resposta que
Chandler queria. Heath podia ser o
assassino, mas ainda havia
algumas perguntas por responder a
incomodá-lo.
Chandler preparou-se para guiar
Gabriel de volta pela floresta.
— Obrigado pela sua ajuda,
senhor Johnson — disse Mitch,
retirando as algemas dos pulsos de
Gabriel.
— Tive muito gosto em ajudar,
mas ainda bem que isto acabou.
Recordei-me de tudo aqui fora. —
Olhou para Mitch, depois para
Chandler. — Esperemos que
consigam acusá-lo. Agora
encontraram a camisa dele.
— Faremos o melhor que
pudermos, senhor Johnson — disse
Mitch, antes de se afastar para
retomar o comando.
Chandler notou que Gabriel
estava aliviado, todo o nervosismo
e medo desaparecidos agora que
era, na sua mente, um homem
livre, agora que tinham descoberto
as provas que incriminavam Heath.
Mas, até ao momento, o fragmento
de tecido era a única ligação que
tinham, importante, mas
circunstancial.
Foram na direção do
estacionamento. Em breve ele e
Gabriel ficaram sozinhos, tendo
apenas as árvores, o mato e a
conversa como companhia.
— É um sítio muito vasto —
disse Gabriel, ao chegar a uma
pequena elevação.
— Pois é — concordou Chandler.
— O que tenciona fazer agora?
Chandler esperou por uma
resposta, mas recebeu outra
pergunta em troca.
— Vem aqui muitas vezes? —
perguntou Gabriel. Antes que
Chandler tivesse a possibilidade de
responder, Gabriel continuou: —
Provavelmente não, suponho. É
muito fácil uma pessoa perder-se
aqui. Digamos que eu me perdia;
quanto tempo o senhor, a polícia,
passaria à minha procura?
Chandler sabia muito bem a
resposta, mas não disse nada.
Gabriel não se perdera, encontrara
a saída. Um dos sortudos.
— Até o encontrarmos.
— A sério? Perdeu alguém aqui
no passado? — Depois de fazer a
pergunta, parou de forma tão
abrupta que Chandler quase
esbarrou nele. — Este sítio… não
sei, provoca-me arrepios. Como se
houvesse fantasmas a assombrar
esta colina. Um deles podia
facilmente ter sido o meu se eu não
tivesse escapado. Mas suponho que
também tenha fantasmas,
sargento.
— O que quer dizer?’
— Que seja assombrado por
pessoas que prendeu sem razão ou
não ajudou?
Chandler perguntou-se onde
quereria o outro chegar. Estaria a
referir-se à detenção ilegal? Fosse o
que fosse, a conversa tornara-se
demasiado mórbida para um
homem agora livre.
— Tento. É o melhor que posso
fazer.
— Isso não é uma resposta,
sargento.
— As coisas acontecem e
tentamos corrigi-las.
— E se falhar…?
— Tento não falhar.
— Que nobre — comentou
Gabriel num tom sarcástico apesar
do sorriso.
Chandler decidiu procurar as
suas próprias respostas.
— Porque acha que o Heath o
escolheu?
O jovem encolheu os ombros.
— Podia ter sido qualquer
pessoa que andasse à boleia.
— Mas não foi. Foi você.
— Sim — suspirou Gabriel.
— Antes mencionou Deus. Acha
que ele o ajudou a fugir? Porque
acha que ele o escolheu para ser
apanhado?
— Suponho que ele tenha um
plano para mim.
— E qual é esse plano?
— Não tenho a certeza. Algo que
tenho de fazer, de continuar. Ou
algo que preciso de parar.
— Você parou o Heath.
Gabriel fez uma pausa como se
considerasse aquilo.
— Ainda não.
— O que quer dizer?
Gabriel olhou o cemitério agora
longe da vista.
— Suponho que preciso de
testemunhar, não é? Metê-lo atrás
das grades para sempre.
— Não, se nos perdermos aqui
— respondeu Chandler, conduzindo-
o à cabana incendiada e depois ao
estacionamento.

Um telefonema rápido para Jim


permitiu a Chandler ir ao encontro
do carro mais adiante na estrada da
floresta, fora de vista.
Chandler levou Gabriel para a
esquadra e inventou a história de
que precisavam de processar a sua
libertação e, com tão poucos
agentes disponíveis, poderia
demorar um pouco. Embora Gabriel
parecesse um pouco desconfiado,
não protestou. Confiava na sua
inocência.
Mitch entrou quinze minutos
depois com um novo vigor, pronto
para confrontar Heath com a prova
da sua culpa.
— Algeme o senhor Barwell à
cadeira na sala de interrogatórios
— disse ele, entrando no gabinete.
Chandler fez sinal a Tanya e Jim
para tratarem disso antes de se
virar para Gabriel.
— Vamos tirá-lo daqui antes de
trazê-lo.
— Tudo bem, posso encará-lo —
respondeu Gabriel. — Vou ter de o
fazer em tribunal.
— Talvez, mas, como diz, ele já
tentou matá-lo uma vez, então
porquê sujeitar-se a mais stresse?
— Volto para a cela?
— É tudo o que temos, receio
bem.
Gabriel pareceu considerar
aquilo durante um segundo antes
de acenar com relutância. Então foi
em direção às celas, tão obediente
no papel de homem inocente como
fora no de prisioneiro.
— Vamos ser o mais rápidos que
pudermos — disse Chandler atrás
dele, mas teve a nítida impressão
de que o seu prisioneiro não estava
com pressa, exausto depois de tudo
aquilo por que tinha passado.
Ainda pensava naquilo quando
entrou na sala de gravação. Por
insistência de Mitch, Luka estava na
mesa de controlos e, do outro lado
do vidro, o homem em pessoa já
começara o interrogatório, agitando
diante do rosto de Heath um saco
de provas que continha o bocado
que faltava à sua camisa.
— Onde encontrou isso? —
perguntou Heath.
Chandler apercebeu-se da culpa
na sua voz.
— Numa das campas, senhor
Barwell.
— Certo — disse Heath. —
Perdi-o algures, talvez quando caí.
— Não creio que esteja a
entender, senhor Barwell. Isto foi
enrolado em torno do cabo de uma
picareta.
Heath pareceu confuso e um
pouco agitado.
— Uma picareta? Como foi lá
parar?
— Diga-nos o senhor.
— Não sei — respondeu Heath
em pânico, talvez percebendo o
rumo que o interrogatório estava a
tomar. — Não a pus lá. Não tinha
uma picareta.
— Isso explica o estado das suas
mãos, não é verdade? — perguntou
Mitch, mantendo a calma.
— O que quer dizer? — Heath
olhou para as mãos.
— As bolhas. Não é fácil cavar
uma campa, sem dúvida.
Heath levantou as mãos.
— Isto é de tentar escapar, fugir
dele — declarou, apontando para a
porta e para as celas do outro lado.
Para frisar o que dissera, Mitch
encostou o pedaço de pano ao saco
de provas maior que continha a
camisa de Heath. O bolso rasgado
combinava na perfeição.
— Como chegou ele à sua
camisa, senhor Barwell?
— Pode tê-la rasgado quando eu
estava inconsciente. Não me
lembro de quando perdi o bolso.
— E porque faria ele isso?
— Para me incriminar.
— A sério, senhor Barwell?
Parece um grande esforço por
causa de alguém que ele
tencionava matar de qualquer
maneira, não acha? — Heath foi
incapaz de responder, então Mitch
continuou: — E agora que as coisas
se compuseram, pode ter a certeza
de que iremos reunir mais provas.
Alguém há de tê-lo visto apanhar as
outras pessoas na lista.
— Não tinha visto essa lista até
ma ter mostrado — declarou Heath
num tom inflexível. — Não sei nada
sobre as campas, além de as ter
visto. E não sei nada sobre as
mortes, além de ir ser mais uma
vítima.
— Como sabe que houve mais
de uma morte? — atacou Mitch.
Estava a correr um risco com
aquele tipo de perguntas, mas
Chandler podia ver que Heath
estava encurralado.
Heath hesitou.
— O Gabriel disse que eu seria o
número cinquenta e cinco.
— Como os matou?
Heath abanou a cabeça.
— Não matei!
— Vamos lá, senhor Barwell.
— Eu sou a vítima aqui. Não sei
como eles morreram. E se é assim
tão inteligente, peça ao Gabriel
para lhe dizer!
Houve um tom algo desdenhoso
no último comentário que pareceu
apanhar Mitch de surpresa. Ficou
calado durante um momento,
andando de um lado para o outro
na sala antes de se virar para
encarar Heath, pousar as mãos na
mesa e olhar para o seu principal
suspeito.
— Precisamos da verdade,
senhor Barwell.
Heath permaneceu obstinado.
— Estou a dizer-lhe a verdade.
Não pode culpar-me. E quero um
advogado… agora! Não respondo a
mais perguntas até ter um.
— Só mais uma última pergunta
— disse Mitch, levantando-se da
mesa. — Qual foi a sensação de
estrangulá-los?
Mitch não esperou por uma
resposta, mas saiu da sala,
deixando Flo a terminar
oficialmente o interrogatório.
Chandler foi ter com ele. O ex-
colega tentou manter a aura de
calma, mas parecia alvoroçado com
o calor, o fardo de encontrar
provas.
— Vou arrancar-lhe a confissão.
— Mitch franziu o sobrolho,
alargando o nó da gravata.
— Assim que ele conseguir um
advogado, não se se podemos
arrancar-lhe mais alguma coisa.
— Vamos arranjar-lhe um
advogado — disse Mitch com um
sorriso —, mas, como sabe, pode
levar algum tempo aqui por estas
bandas. — Olhou para Chandler. —
O senhor Johnson já foi libertado?
— Não.
— Pediu um advogado?
— Ele acha que está safo.
— Okay, vamos buscá-lo.
— Tem a certeza? — perguntou
Chandler.
— Porque não? Tentamos
arrancar-lhe alguma coisa que
possamos usar contra o senhor
Barwell. Além disso, uma parte de
mim ainda acha que estão ambos a
esconder alguma coisa. Uma
amizade, um passado, o que for. —
Havia uma fúria calma nos olhos de
Mitch que Chandler temeu. Uma
expressão que sugeria que ele era
capaz de qualquer coisa.

Gabriel concordou com a


entrevista, parecendo pensar que
agora estava a ajudar a polícia. Só
quando Mitch lhe perguntou como
as vítimas tinham morrido é que a
sua atitude mudou.
— O que vem a ser isto? —
perguntou Gabriel, olhando para o
vidro espelhado.
— Apenas algumas perguntas,
senhor Johnson.
— Soam mais a acusações.
Pensei que já tinha o seu homem.
— Precisamos de reunir o
máximo possível de informações —
interrompeu Mitch.
Gabriel ficou em silêncio.
— Então? — perguntou Mitch.
— Então…
— Como morreram?
— Não sei. Pergunte ao outro
tipo. Encontrou a camisa dele lá, o
que mais quer? Se eu não tivesse
fugido, ele continuaria em
liberdade. E eu estaria numa
daquelas campas. Vocês, a polícia,
não saberiam nada. — Como com
Heath, a tentativa de acusação
tinha feito surgir uma expressão de
desafio em Gabriel, embora
misturada com uma certa
arrogância. — Quer que ele assine
uma confissão? Se vá abaixo e
conte tudo? Ele é um assassino,
inspetor, um assassino de sangue
frio. Alguém do mesmo calibre deve
ser capaz de ver que ele não vai
desistir facilmente.
Gabriel olhou para Mitch. Era
uma resposta fria, com a intenção
de magoar.
Funcionou. Mitch mordeu o isco
e dirigiu a Gabriel um sorriso
arrogante.
— Já fiz isto antes, senhor
Johnson.
— E ele também. Se não
consegue uma confissão, traga
alguém que consiga.
O sorriso de Mitch desapareceu
e ele semicerrou os olhos. Chandler
via que o seu antigo colega
começava a enfurecer-se.
Gabriel colocou as mãos sem
algemas na mesa.
— Se continuar a manter-me
aqui e a fazer-me esse tipo de
perguntas, provavelmente está na
altura de eu falar com um
advogado. Deteve-me bastante
tempo sem me acusar de nada e,
sejamos realistas, fiz tudo o que
pude para ajudá-lo. Se realmente
quisesse, acho que conseguiria
processá-lo por detenção ilegal, e a
esta esquadra também.
Chandler sabia que qualquer
ameaça ao estatuto e à carreira de
Mitch o enfureceria. As veias
latejaram nas suas têmporas, os
lábios tão azuis que brilhavam,
cinzento-escuros, com a luz. Tinha
o sangue a ferver, mas Gabriel
ainda não terminara.
— Parece que a polícia quer
forçar a minha boa vontade. E se eu
não puder processá-los, posso pelo
menos vender toda esta palhaçada
aos jornais. — Gabriel inclinou-se
para a frente e olhou para Mitch. —
Com o seu nome em cima, inspetor.
Mitch devolveu o olhar antes de
se afastar da mesa e sair da sala.
Chandler aproximou-se.
— Acredita nesta porra? —
rosnou Mitch. — A fazer-nos parecer
idiotas.
A fazer-te parecer idiota, pensou
Chandler.
— Vamos ter de chamar os
advogados.
Mitch abanou a cabeça.
— Vou tentar outra vez
argumentar com ele.
— Está a forçar a sua sorte.
Mitch resmungou qualquer coisa
em resposta quando Nick gritou do
outro lado da sala.
— Zero-zero-um, sargento!
Zero-zero-um: uma chamada de
casa. Chandler dirigiu-se ao
telefone para dizer à mãe que,
fosse o que fosse, ele trataria do
assunto mais tarde. Quando
encostou o auscultador ao ouvido, a
mãe estava a falar, como se tivesse
continuado sem se ralar se alguém
estava a ouvi-la do outro lado ou
não.
— … ele está a insistir em pintar
a casa sozinho.
Chandler interveio.
— Eu resolvo isso mais tarde,
mãe.
Ela não se deixou apaziguar
assim tão facilmente.
— Não gosto de vê-lo
empoleirado na escada.
— Não posso sair agora, mãe.
— A coisa importante ainda está
a acontecer?
— Sim, mãe. Diz ao pai para não
se pôr em cima da escada. Eu pinto
a casa esta semana. Adeus.
Chandler desligou o telefone.
Praguejou baixinho, irritado pelo
facto de a sua vida pessoal estar a
atrapalhar de novo o trabalho.
Então fechou os olhos. Estava a
fazer aquilo de novo, a pôr o
trabalho antes da família. Prometeu
corrigir isso em breve.
Voltou para a sala de gravação.
Luka ainda lá estava, mas os
monitores e o equipamento de
gravação tinham sido desligados.
— Ele já terminou a entrevista?
— perguntou Chandler, contente
por Mitch não ter continuado a
insistir.
A resposta de Luka foi olhar
para qualquer lugar, menos para
Chandler, fingindo mexer nos
comandos.
— Luka?
— O inspetor está a ter uma
conversa privada com o senhor
Johnson.
Chandler olhou para os ecrãs
negros. Uma conversa que ele não
queria que fosse gravada. Não era
propriamente legal.
Saindo da sala de gravação,
dirigiu-se à de interrogatórios.
Yohan e Roper formaram uma
barreira formidável diante da porta.
— Deixem-me entrar.
— Não podemos fazer isso —
respondeu Roper entre dentes, as
pernas abertas para se equilibrar. À
espera de problemas.
— O que vão fazer? —
perguntou Chandler.
— O que for preciso —
respondeu Yohan.
Chandler preparou-se para um
confronto. Jim apareceu ao lado
dele.
— O que se passa? — perguntou
ele.
— É o que tenciono descobrir.
Com a batalha anunciada e os
limites estabelecidos, Nick juntou-
se à festa. Três contra dois agora.
Aquilo não iria ser bonito, mas
Chandler precisava de entrar. Os
três agentes locais avançaram.
Corpos colidiram no estreito
corredor. Houve gritos amargurados
enquanto os empurrões
continuavam, Chandler a levar um
soco de lado no crânio, o corredor
demasiado acanhado para permitir
um golpe significativo. Em resposta,
Chandler ergueu a mão e encontrou
um rosto suado, forçando a cabeça
para trás, arranjando um espaço
para se enfiar e entrar da sala de
interrogatórios.
Ali foi presenteado com a visão
de Mitch ajoelhado sobre os braços
de Gabriel, prendendo-o ao chão.
Gabriel gritava de dores.
— Saia daqui, Mitch — ordenou
Chandler, puxando o seu superior,
os dedos com dificuldade em
fixarem-se no fato de seda.
— Ele atacou-me — disse Mitch,
tentando manter a sua posição em
cima de Gabriel.
— Não ataquei nada! — gritou
Gabriel, tentando libertar-se.
Chandler sabia que Gabriel não
atacara Mitch, o seu instinto dizia-
lhe que era um esforço de Mitch
para ver se maltratar o suspeito
conseguiria maiores resultados. Ou
simplesmente para se vingar pela
ameaça de o processar.
— Tire-o de cima de mim!
Chandler agarrou no colarinho
de Mitch e fê-lo levantar-se.
Enfrentaram-se enquanto Gabriel
corria para o outro lado da sala.
— Que diabo está a tentar fazer,
Mitch?
— A arranjar algumas respostas
— respondeu Mitch com os dentes
cerrados.
— Fazendo esta merda?
— Compete-me obter
resultados.
— E o que conseguiu?
O tom corado no rosto de Mitch
indicou-lhe que só conseguira ficar
a transpirar.
Chandler empurrou-o para o
fundo da sala antes de ajudar
Gabriel a voltar para a cadeira.
— Você está bem?
— Claro que está, eu não lhe
toquei — declarou Mitch, andando
de um lado para o outro ao longo
da parede como um animal
enjaulado.
— Isto é uma daquelas rotinas
do bom polícia, mau polícia? —
perguntou Gabriel. — Se for, é
muito evidente.
Chandler abanou a cabeça.
— Não, não é, e peço desculpa
pelo comportamento do inspetor.
— Não se desculpe por mim —
resmungou Mitch.
Gabriel respirou fundo algumas
vezes. Parecia ter recuperado um
pouco da sua calma.
— Acho que quero esse
advogado agora. Tenho muito a
dizer.
30

Para surpresa de Chandler,


Gabriel não pediu para ser
libertado, apenas para ter acesso a
um advogado. Se o tivesse feito,
ele pouco podia ter feito para o
impedir, dado o que Mitch fizera.
Talvez uma acusação de assédio
contra Mitch ou contra a polícia em
geral estivesse em andamento.
Acrescentando outra âncora à
investigação. Depois de enfiar
Gabriel numa cela, foi ter com Mitch
ao gabinete.
— Vai explicar-me que merda foi
aquela? Tentativa de
espancamento de um suspeito?
Ameaças? Assédio?
Mitch não se arrependia.
— Estou aqui para obter
resultados. Às vezes é preciso
aplicar força para conseguir o que é
necessário.
— Não na minha esquadra.
— Lembre-se de com quem está
a falar, sargento.
— Sei muito bem com quem
estou a falar.
O amigo que partilhara o seu
sonho adolescente de se tornar
campeão de motocross. O amigo
que o arrastara para fora de Sully’s
Gorge depois de ele ter caído e
arrancado a maior parte da pele da
perna. O amigo que namorara a
irmã meio mutante de Kelly
Freeman só para ele sair com Kelly.
— O meu amigo com o
chocolate no bolso que parecia que
tinha cagado nas calças —
acrescentou Chandler.
Mitch hesitou, semicerrando os
olhos. Não era uma história que ele
quisesse recordar. Uma história que
pairaria sempre sobre a sua cabeça.
— Sim, bem, já não sou esse
rapaz, Chandler. Sou o homem que
anda a sair com a sua ex-mulher.
Ex-mulher… O que é ele? As
palavras faziam sentido
individualmente, mas juntas não.
— Do que está a falar?
— Ando a sair com a Teri.
— O que quer dizer? —
perguntou Chandler, ainda sem
perceber.
— De que mais esclarecimentos
precisa, Chandler? A Teri e eu
somos um casal.
A Teri e o Mitch? Um casal?
— Desde quando?
— Desde que recebemos o
telefonema sobre uma tentativa de
carjacking em Port Hedland. De
uma Teri Pagonis. Fui até lá para
ver se era a mesma Teri Pagonis
que eu conhecia. — O sorriso
familiar de Mitch voltara ao seu
rosto. Estava radiante por contar
aquilo a Chandler. Provavelmente
estivera mortinho por fazê-lo desde
que chegara.
— Quantas Teri Pagonis acha
que existem? — bradou Chandler.
Mitch encolheu os ombros.
— Ela disse que vocês se tinham
separado. Ainda está uma brasa.
Andamos desde agosto passado. Há
pouco mais de um ano. Está
bastante melhor. Tem uma casa,
trabalha num escritório, tem boas
perspetivas. Mas você sabe isso
tudo. — Foi dito com um sorrisinho
que sugeria que sabia que Chandler
desconhecia tudo aquilo, e não se
enganou.
Continuou:
— Bem, decidimos encontrar-nos
para uma bebida, começámos a
conversar e descobrimos que
tínhamos mais em comum do que
pensávamos; gostamos do nosso
próprio espaço, ela gosta de ordem
e eu gosto que as coisas estejam
em ordem. Falámos muito sobre
este sítio. — Olhou para Chandler.
— Principalmente sobre as
saudades que ela tem dos filhos.
— Foi ela que nos deixou.
— Deixe-me terminar — disse
Mitch em tom de reprovação. — Ela
sente a falta das crianças, mas não
do sítio. Nem eu. — Inclinou-se e
sussurrou: — É bastante merdoso,
para ser franco.
Chandler ignorou o menosprezo
da sua terra natal.
— Então disse-lhe: tens um
ambiente estável, porque não
pedes a guarda dos miúdos?
Chandler cerrou os punhos com
força, sem palavras.
— Não é seu direito exclusivo tê-
los, pois não? — acrescentou Mitch.
— Para ser justo, ela não sabe se
conquistou o direito de os ter, mas,
por outro lado, será que você
conquistou? Pelo que vi, os seus
pais é que lhe estão a criar os
filhos.
— Que diabo sabe sobre isso?
— Esta povoação tem ouvidos.
— Quem falou consigo?
Mitch resfolegou.
— Lembre-se que tenho aqui
família, Chandler. Disseram-me que
essas crianças nunca estão longe
da casa dos seus pais.
— Eles não sabem peva —
retorquiu Chandler, a ferver.
Mitch riu-se.
Isso deixou Chandler ainda mais
enfurecido.
— Provavelmente tem razão,
Chandler, mas nós — disse Mitch,
enfatizando o «nós» — estamos a
tentar ficar com a guarda das
crianças.
— Só estão juntos há um ano,
foi o que disse?
— É sério, Chandler. Um
relacionamento sério. Vivemos
juntos. Eu quero ser pai e acho que
é melhor se as crianças já
estiverem criadas. Assim não temos
aquela fase inicial complicada.
— Vá-se foder — balbuciou
Chandler. — Você, pai?
— Pode não acreditar em mim,
Chandler, mas felizmente não
depende de si. Depende do juiz. E
eu conheço muitos.
Todas as fibras de Chandler
clamavam por desferir um soco
Mitch. Mitch até manteve o rosto
mesmo à sua frente como se o
desafiasse a fazê-lo. A fazê-lo e
receber uma reprimenda e,
provavelmente, ser expulso da
polícia. A fazê-lo e a fornecer
combustível para o caso de Teri.
Dar ao juiz outra razão para decidir
a favor dela. Se ficasse onde
estava, o mais provável seria
desferir um ou dois socos naquele
rosto.
Havia apenas uma solução.
Chandler virou-se e saiu da
esquadra.
31

O dia estava escaldante, mas


Chandler mal notou. Ignorando as
perguntas feitas pelos jornalistas
plantados junto ao portão das
traseiras, continuou a descer pela
Harper, ziguezagueando entre o sol
escaldante e a frescura sob os
toldos. Enquanto andava, um
pensamento dominava o seu
cérebro.
Ela é que se foi embora.
No entanto, percebia porquê.
Havia uma regularidade na vida ali
que, para alguém tão inquieto
como Teri, era monótona. O senhor
Peacock sentado à porta da sua loja
de ferragens, deixando os clientes
circular pelo interior antes de ir
atendê-los com toda a calma.
Ansell Parker a enxotar moscas na
sua mercearia como Sísifo. A
senhora Cotterall a regar as
floreiras apesar de ter sido
advertida sobre o uso escandaloso
da água, e a encharcar
maliciosamente quem passava por
baixo. Esses pensamentos, que por
norma eram suficientes para distraí-
lo, não impediram que a sua mente
se concentrasse no que Mitch
dissera; no que ameaçavam tirar-
lhe. Seria um juiz suficientemente
idiota para lhe tirar Sarah e Jared
depois que tudo o que Teri fizera,
ou mais propriamente, não fizera?
Mas se ela tinha realmente
mudado, como Mitch dissera, era
possível que isso acontecesse: Teri
e Mitch podiam ganhar a guarda
dos seus filhos. Mitch e Teri . Duas
pessoas que se tinham detestado
abertamente. Agora eram um casal.
Se ela ficasse com as crianças, ele
seria forçado a retomar o seu
trajeto semanal até à costa, desta
vez para ver os filhos com o casal.
Isso deixava-o arrepiado.
Um carro parou ao lado dele, o
motor elétrico da janela a zumbir
enquanto o vidro descia. Mitch
inclinou-se do banco do condutor.
— Chandler, nós íamos contar-
lhe… a sério. Eu não devia tê-lo
feito, era para ter sido a Teri, mas…
bem, aconteceu. Queríamos ver se
íamos ficar juntos primeiro antes de
o fazer. E agora que vimos, ambos
queremos que as crianças cresçam
na cidade. Pelo menos que a
experimentem antes de decidir
onde preferem estar. Com certeza
percebe que isso seria bom para
eles. Ninguém consegue sobreviver
isolado para sempre nos dias de
hoje.
Chandler parou e virou-se para a
voz. Falou com uma contenção que
não imaginara ser possível.
— Pode ficar com a Teri, Mitch.
Fique com ela, não me importo,
mas nem pense que vai pôr as
mãos nos meus filhos.
— Deixemos os tribunais decidir
isso, Chandler. No futuro. Temos
um caso para resolver. Entre no
carro e voltemos para a esquadra.
— Vou a pé — retorquiu
Chandler, não confiando em si
mesmo para ficar sozinho com
Mitch.
Chandler fez o caminho de volta
notando, como se pela primeira
vez, que a povoação era um lugar
árido e empoeirado, como a cidade
fantasma de um velho filme de
cowboys, o asfalto a queimar-lhe as
plantas dos pés e a drenar as forças
restantes. Wilbrook estava
encalhada numa era diferente, os
candeeiros de rua ornamentados,
os delicados toldos, todos
construídos para pedestres em vez
de veículos. Talvez Mitch tivesse
razão, talvez eles estivessem
desfasados. Talvez Sarah e Jasper
devessem ter a oportunidade de
decidir onde queriam viver. Talvez
ele estivesse a limitar o
desenvolvimento deles, forçando-os
a viver ali. Mas — como Mitch
dissera — isso era para o futuro.
Havia algo mais premente a
acontecer naquele momento. Um
caso de vida e morte.

Chandler regressou à esquadra e


ouviu a equipa tentar decidir o que
fazer com os suspeitos. Mitch
decidira que Heath era o único
culpado, dadas as novas provas.
Depois de defender o seu ponto de
vista, pediu opiniões. Não que as
quisesse. Como era esperado, a sua
equipa limitou-se a assentir.
Apenas Tanya tinha uma opinião
diferente, observando que nenhum
dos suspeitos mudara a história
inicial, apesar da pressão
psicológica e física.
— Temos a camisa e o machado
— disse Mitch. — E o facto de o
senhor Barwell ter sido trazido por
tentar roubar um carro.
Provavelmente para fugir da zona.
Tendo entrado discretamente, a
intervenção de Chandler foi um
choque para os outros.
— O Gabriel também fugiu.
— E também se entregou —
observou Mitch. — Duas vezes.
— Até certo ponto. Mas quer
correr esse risco… — Parou antes
que pudesse tratá-lo por «Mitch».
Se Chandler o provocasse, Mitch
poderia tornar-se teimoso. O que
ele queria era jogar com o medo de
Mitch de ter percebido alguma coisa
mal. — Inspetor? — concluiu.
Foi Mitch que semicerrou os
olhos, tendo claramente ouvido a
ligeira hesitação de Chandler antes
de usar o seu título.
— Temos os dois, podemos
acusar os dois — continuou
Chandler.
— Acusando falsamente um
deles — disse Mitch.
— Até termos a certeza de qual
é inocente, é algo com que teremos
de viver…
Chandler sentiu-se mal por dizer
aquilo, por pensar até que ia contra
tudo o que ele representava, privar
um inocente da sua liberdade, mas
não via alternativa.
— Então em que ficamos? —
perguntou Tanya.
— Acusamos os dois. De
homicídio — disse Chandler. — Não
há volta a dar. Ultrapassámos o
período em que podíamos tê-los
detidos, até contando com tempos
de espera generosos para
transferências, recolha de provas,
tratamento médico e tentativas de
fuga. Se levarmos isto mais longe,
há o risco de a coisa toda entrar em
colapso ou de os nossos suspeitos
alegarem violações dos seus
direitos.
Houve uma pausa. Todos os
olhos estavam postos em Mitch.
Este assentiu com relutância.
— Os advogados foram
informados e já vêm a caminho —
disse, sem disfarçar a sua
insatisfação. — As coisas vão ficar
turvas a partir de agora. Esperava
ter tudo resolvido antes de isso
acontecer. Mas estamos onde
estamos — continuou. — Vamos
acusar os dois. Agora mãos à obra.
Com isso, a reunião terminou.
Dois advogados nomeados pelo
tribunal vieram de Newman de
helicóptero. Ambos eram
advogados respeitáveis que ficaram
encantados por participar num caso
tão saboroso. Como tal, entraram
na esquadra da mesma maneira
que Mitch, como se tivessem vindo
assumir o comando, a exigir ver os
seus clientes, a exigir saber de que
estavam a ser acusados e
finalmente a exigir que fossem
libertados. Não obtiveram nada
além do tempo na sala de
interrogatórios para falarem com os
seus clientes e, calculou Chandler,
tomar nota das suas inúmeras
queixas.
Com os suspeitos enclausurados
com os advogados, os pensamentos
de Chandler voltaram à revelação
anterior. Ligar a Teri para discutir o
assunto não serviria de nada e não
queria voltar a abordar o assunto
com Mitch.
Procurando uma distração, saiu
para falar com a equipa forense que
se instalara na Câmara a algumas
centenas de metros. O edifício de
tijolo vermelho rachado parecia um
armazém com janelas decorativas.
Não via tanta ação desde os
recrutamentos no final da Segunda
Guerra Mundial, quando houvera
uma discussão acalorada sobre se a
povoação deveria enviar pessoas
para a guerra a um mundo de
distância. Daquela vez, acabara
com um pequeno tumulto, com
Rolling Harry Winter, o edil e dono
do pub, a usar a corrente cerimonial
como um laço improvisado para
arrastar dali os piores desordeiros.
Aquele feito chegara a todos os
jornais e garantira a Harry mais dez
anos no cargo.
Quando Chandler entrou, olhos
desconfiados seguiram-no por toda
a parte. Só depois de se identificar
é que foi encaminhado para a
responsável, Rebecca Patel, com
modos dolorosamente formais e
ultraclínicos. Perfeita para o
trabalho.
— O que tem? — perguntou
Chandler.
— Tenho? Precisa de ser mais
específico, sargento. — A doutora
Patel não gostava de perder tempo.
— Mais alguma coisa sobre os
corpos… conseguiu identificá-los?
Ela abanou a cabeça como se
ele fosse uma criança pequena que
lhe pedira para resumir o sentido
da vida em cinco palavras ou
menos.
— É muito cedo para
conseguirmos algo tão específico
como isso, sargento. Dispomos
apenas de resultados preliminares.
— Os preliminares são
suficientemente bons para mim.
Ela ergueu as sobrancelhas. A
doutora Patel era uma mulher com
pouco sentido humor, tão
descolorida como a sua bata, mas
Chandler supôs que tinha de o ser
com aquele trabalho; meticulosa na
roupa, meticulosa na abordagem.
— Identificámos as vítimas como
quatro homens e duas mulheres,
todas com idades entre os vinte e
os quarenta anos, mas esse
prognóstico inicial pode alterar-se
em pelo menos duas delas.
Estavam todas vestidas, mas não
encontrámos documentos. Estamos
a tentar recolher moldes dentários,
caso isso nos dê algo de imediato.
Os testes iniciais não revelam sinais
de interferência sexual. Muito
importante, e como deve estar
ansioso por saber, todas as vítimas
parecem ter sido estranguladas
com uma corda. Há marcas em
todos os pescoços que revelam
apenas a utilização de força bruta.
— Isso é preliminar? — Chandler
sorriu, procurando um bocadinho de
humor.
Rebecca assentiu.
— Não há mais nada que possa
ou queira divulgar agora. Vamos
preparar o relatório. E peço-lhe que
não diga nada à comunicação social
que possa ter de ser desdito mais
tarde quando tivermos os
resultados completos.
Ergueu as sobrancelhas,
insinuando que estava disponível
para qualquer outra pergunta que
ele tivesse, mas que não devia
haver nenhuma.
32

Chandler estava de regresso à


esquadra quando Mitch disse a cada
suspeito, na presença do seu
advogado, que seria acusado de
seis homicídios. Ambos ficaram
aturdidos. Ambos insistiram que a
polícia estava a cometer um grande
erro. Ambos receberam instruções
dos advogados para ficarem em
silêncio; estes reiteraram as
queixas dos clientes a Mitch com
grande veemência, alegando que os
seus clientes se tinham declarado
inocentes e deviam ser tratados
como tal, zangados com o facto de
a polícia ter demorado tanto tempo
a chamá-los. Era como assistir a um
ballet verbal, as suas reclamações
tão em sintonia como os
testemunhos dos clientes.
Apesar de ter acusado os
suspeitos, Mitch estava zangado.
— O Heath insiste em
apresentar queixa sobre o nosso
tratamento. — Abanou a cabeça, os
tendões do maxilar bastante
visíveis. — Apanhei-o e, no entanto,
ele, o assassino em série que
tornará conhecido o meu nome em
toda a Austrália, talvez até no
mundo, tem a coragem de se
queixar da forma como agimos.
— E o Gabriel?
Mitch pareceu irritado com a
mudança de assunto.
— Não abriu o bico.
— Pode estar a guardar-se para
mais tarde.
Mitch franziu a testa.
— O que quer dizer?
— Refiro-me ao seu ataque. O
Gabriel pode estar a guardar isso
para usar mais tarde como moeda
de troca.
Mitch ficou em silêncio, os
tendões de novo a contraírem-se.
Flo apareceu à porta.
— Conferência de imprensa,
inspetor.
Batendo com as mãos na mesa,
Mitch levantou-se e foi anunciar as
acusações. Chandler ouviu-o
atónito. O ar de confiança do outro
desaparecera, o seu discurso foi
menos coerente. Mostrou a sua
irritação com os jornalistas. Perdera
o controlo e voltara a ser o
adolescente balbuciante, como se
alguma doença da sua juventude
tivesse surgido do solo em que
crescera. A beligerância dos
suspeitos estava a dar cabo dos
seus planos de chegar, arrebanhar
os culpados e voltar para a costa.
Com Teri. E os filhos de Chandler.

A notícia das acusações


provocou um burburinho não
apenas na esquadra, mas também
na povoação, os moradores a
juntarem-se aos jornalistas
reunidos, ansiosos por testemunhar
o mal que invadira a cidade. Um
homicídio era coisa que não
acontecia com frequência em
Wilbrook. Homicídios em massa
eram impensáveis.
Mas a apreensão não foi
transmitida apenas a Mitch. Com as
pessoas a aparecer em peso,
Chandler foi forçado a explicar aos
seus concidadãos em pânico que
tudo estava calmo e que tinham os
suspeitos presos. Sparra Talbot até
o fez jurar que isso era verdade.
Foram elaboradas e emitidas
duas intimações, para que Gabriel
Johnson e Heath David Barwell
comparecessem perante o
magistrado na manhã seguinte.
Chandler esperara que Mitch o
mandasse ficar na esquadra,
mantendo-o longe das crianças,
mas Mitch estava ocupado a
completar os documentos da
promotoria, então Chandler foi para
casa.
Com Sarah colada ao telemóvel,
Jasper arrastou-o para a garagem e
insistiu que o pai tirasse de lá o
kart. Deixando-o no caminho de
acesso, Chandler viu que o eixo
traseiro se soltara durante o
inverno e precisava de ser
reparado, mas Jasper não estava
disposto a consertar o que era
imediatamente utilizável.
Instalando-se no assento de
plástico que tinham retirado de um
velho buggy, ele exigiu que o pai o
empurrasse pelo pátio. Aquela
atitude despreocupada com a
segurança lembrou a Chandler a
sua própria juventude com as
motocicletas. Era também a razão
pela qual Jasper tendia a cobrir-se
de arranhões, os avós demasiado
lentos para acompanhá-lo,
geralmente chegando ao local após
o incidente. De facto, os joelhos
ossudos que se projetavam dos
calções de caqui de Jasper estavam
cobertos de cortes e cicatrizes,
como se ele tivesse sido arrastado
por silvas. O tipo de ferimentos que
levaria quem quer que estivesse a
decidir sobre a guarda a pensar
duas vezes. Mas Chandler tinha a
certeza de que perceberiam que as
crianças não podiam ser vigiadas
cem por cento do tempo. As
lágrimas faziam parte do
crescimento e, com Jasper, também
nunca duravam muito, pois a sua
vida era uma aventura constante:
fortes e acrobacias, polícias e
ladrões. E agora, assassinos.
Depois de um agradável jantar
em família, Chandler levou Jasper
para a cama e leu-lhe uma história,
um conto fantástico de robôs e
naves espaciais num planeta
distante onde a água era gasosa e
a paisagem comestível, originada
numa cantiga de embalar da sua
infância que ele não conseguia
recordar. Antes de virar para a
segunda página, Jasper já estava a
dormir; os esforços da tarde tinham
deixado a sua marca.
A paragem seguinte foi no
quarto de Sarah. Estava enrolada
na cama, o telemóvel a centímetros
do rosto. Chandler sentiu-se
hesitante ao entrar, esperando
perguntas a que não queria
responder. De início, jogou pelo
seguro.
— Como foi o teu dia, querida?
Tudo o que recebeu em resposta
foi um resmungo. Não percebeu se
isso era bom ou mau sinal.
— Nada emocionante?
— Nenhuma confissão.
— Sim, desculpa lá isso. Mas
há…
— A Sophie diz que houve um
homicídio e que vocês apanharam o
assassino. Dois assassinos.
Lá se ia a cautela. Aclarou a
garganta.
— Ainda estamos a investigar.
— Pai, não sou uma criança.
Podes dizer-me.
— Mesmo que isso fosse
verdade, não poderia dizer-te.
— É verdade?
— Não tens com que te
preocupar. Temos tudo controlado.
— Então porque é que tu…
eles… suspenderam a primeira
confissão?
— Estas coisas levam tempo a
ser esclarecidas. Desconfio que isso
acontecerá em breve. Talvez daqui
a alguns dias.
— Oh. — Sarah não parecia nem
contente nem triste.
Ele resolveu mudar de assunto.
— Queres rever isso comigo?
Ela abanou a cabeça.
— Já sei como é.
— Sabes as palavras?
— Sim.
— E sabes o pecado que vais
confessar?
Ela assentiu.
— E qual é?
— Não vou dizer — disse ela de
olhos arregalados.
Chandler fingiu-se chocado.
— É assim tão mau? Tenho de
ligar ao Jim e à Tanya para ouvirem
o teu depoimento?
— Nãããão! — exclamou ela,
gritando de tanto rir.
— Então, porque não podes
dizer?
— Deve ser segredo — disse ela,
antes de olhar para ele com os seus
grandes olhos castanhos. — A
menos que me digas o que
confessaste. Na tua primeira vez.
Chandler ficou calado. Não
conseguia lembrar-se de qual fora o
seu grande pecado. Provavelmente
algo trivial que parecia ser uma
grande coisa quando ele tinha onze
anos. Se lhe pedissem para arranjar
um pecado naquele momento,
sabia o que confessaria: ter
desiludido tanta gente ao longo dos
anos. Teri… Sarah… Jasper…
Martin.
Despediu-se com um beijo terno
na testa. Ela mandou-o embora e
pediu-lhe que a deixasse dormir.
Quando voltou para a sala de
estar, viu os pais concentrados num
concurso qualquer com muitas luzes
a piscar e concorrentes
superanimados, a última predileção
da mãe. Toda a gente estava em
casa e tudo parecia normal. Até à
pancada na porta.
— Eu vou abrir — disse Chandler
antes que a mãe pudesse sair do
sofá.
Ainda bem que o fez.
Ao abrir a porta deparou-se com
Mitch, desgrenhado, o fato torto
nos ombros, a camisa engelhada,
encostado ao pilar do alpendre.
— O que faz aqui, Mitch?
— Sim, Mitch — respondeu ele,
levantando uma garrafa meio vazia
de líquido castanho, provavelmente
bourbon. Pelo fundo largo e o vidro
grosso, parecia uma garrafa cara.
— Não é «inspetor» esta noite,
hein?
— O que desejas?
— Uma bebida. Uma trégua.
A voz de Mitch era alta. Estava
quase bêbedo e mal conseguia
disfarçar.
— Uma trégua? — O que devia
ter parecido um regresso aos velhos
tempos (ele e Mitch à conversa no
alpendre) pareceu uma coisa mais
sinistra. O azedar de uma
recordação.
— Começámos com o pé
esquerdo, acho.
Chandler suspirou.
— Olha, Mitch, agradeço, mas é
tarde e estou a tentar passar tempo
com os meus filhos. A última coisa
de que preciso é de ti bêbedo no
meu alpendre.
— Não estou bêbedo — disse
Mitch, levantando a voz.
Chandler fechou a porta atrás de
si.
— Olha, tens de te ir embora.
Nós… eu… tenho de fazer as coisas
voltarem ao normal amanhã. Os
miúdos têm aulas, a Sarah tem a
primeira confissão daqui a uns dias.
Preciso de me preparar para
quando a minha ex-mulher me
tentar roubar os filhos. — Não foi
um golpe subtil, mas soube bem.
Mitch levantou as mãos.
— Ora, vá lá! Não é nada
pessoal.
— Nada pessoal?! — exclamou
Chandler, olhando por cima do
ombro para o caso de a mãe estar
à espreita. — Como… quando… é
que vocês decidiram arrastar as
crianças… os meus filhos… para
isto?
Mitch abanou a cabeça, a parte
superior do torso a segui-la um
segundo depois, num arco longo e
ébrio.
— Ela teve a ideia muito tempo
antes de nos juntarmos.
— Vai-te mas é embora, Mitch.
Estás bêbedo.
Mitch reagiu.
— Queres saber porquê? Porque
não há mais nada a fazer aqui.
Esses miúdos vão tornar-se uns
pacóvios como o pai.
Chandler olhou para Mitch.
— Chama-me o que quiseres.
Pelo menos não estou só sedento
de publicidade como uma prostituta
da comunicação social.
— Caramba, Chandler, entra
neste século. Há publicidade em
todo o lado. As relações-públicas
são fundamentais. Cotas e
comunicados à imprensa. Gráficos
sobre o desempenho. Tenho de
lutar por um orçamento e de lutar
para o receber, as coisas ou correm
bem ou pessimamente. Prefiro a
primeira hipótese. — Semicerrou os
olhos, apoiando-se ao pilar. —
Estás com ciúmes?
— Com ciúmes?
— Sim, por eu viver com a Teri.
Talvez não tenhas seguido em
frente. A escolha pode não ser
muita por estas bandas, mas com
certeza há mulheres
suficientemente desesperadas.
Mitch riu-se da piada, mas
Chandler fartara-se e aproximou-se
para confrontá-lo.
— Sai daqui Mitch, antes…
— Antes que quê? — perguntou
Mitch, afastando-se do pilar e
descobrindo que o mundo
balançava um bocado sem o apoio.
— Antes que aconteça alguma
coisa de que nos arrependamos.
Mitch desceu do alpendre para o
jardim ressequido.
— Estou arrependido por ter
vindo tratar desta merda, mas vou
tratar dela. — Virando-se
rapidamente, cambaleou pelo
relvado e desapareceu na
escuridão.
Mais uma personagem perigosa
à solta na cidade.
33

2002

Dezoito dias depois, as buscas


foram abandonadas, em grande
parte devido à previsão do
agravamento das condições
meteorológicas para as semanas
seguintes, os termómetros a subir
para mais de quarenta graus. Isso
tornava pouco seguro estar lá fora
com uma reserva limitada de água.
Assim, Bill e os iluminados de Perth
tiraram a decisão das mãos de
Chandler.
Ao ouvir a notícia, os ombros de
Sylvia curvaram-se, a sua
linguagem corporal a sugerir que
perdia a pouca esperança que lhe
restava. A determinação de Arthur,
no entanto, manteve-se firme.
Numa conferência de imprensa
organizada à pressa, declarou a sua
intenção de continuar as buscas,
informando os jornalistas que a
polícia podia ter abandonado
Martin, mas que ele e Deus não o
fariam e que ele iria continuar as
buscas, daquela vez com o seu
próprio plano de ataque.
Aquela revelação preocupou
todos os envolvidos, mas havia
pouco que a polícia ou qualquer
outra pessoa pudesse fazer para
impedi-lo, pois o terreno era público
e o homem era livre para fazer o
que quisesse. Então Bill chamou
Chandler e Mitch aparte e pediu-
lhes que ficassem, para garantir
que nada corria mal e tentar
persuadir Arthur a parar. Para evitar
que a família caísse numa mina
para salvar Martin, apenas para
sucumbir ela própria.
Mas Arthur não estaria
completamente sozinho nas suas
buscas, o pagamento de cento e
cinquenta dólares a persuadir
alguns dos «voluntários» restantes
a continuarem. Pessoas em forma,
capazes e com coragem para
continuar. Isso fez surgir algumas
aves raras, umas pela aventura,
outras pelo dinheiro, mas
definitivamente todas um pouco
loucas. Assim, Chandler e Mitch, os
dois polícias novatos, ficaram com o
fardo de vigiar um grupo de
mercenários instáveis e uma família
a implodir lentamente numa
temperatura de quarenta e cinco
graus.

À sombra de alguns eucaliptos,


Mitch repetiu as instruções ao
grupo. Havia apenas nove pessoas
agora, cinco a ser pagas pelo
privilégio, sete se contassem com
ele e Chandler. Sete mercenários,
um velho e uma criança à procura
de um rapaz perdido. As ordens,
retransmitidas por Mitch, era para
se manterem juntos e incluíam o
aviso de que ele chamaria o
helicóptero e recambiaria à força
quem desobedecesse.
A ameaça foi imediatamente
ignorada pelos homens mais
experientes, que acreditavam saber
mais do que dois polícias novatos.
Aquela era a terra deles e levariam
Arthur até ao filho pelos seus
próprios meios, por mais díspares
ou vagos que fossem. Chandler
avisou-os para não se mostrarem
tão otimistas, mas percebeu que ali
tinha realmente pouca autoridade.
Ali, nada era mais respeitado do
que a capacidade de sobreviver, e o
cumprimento da lei era um
obstáculo indesejado no meio de
nenhures. Eles tinham a farda, mas
nenhuma influência. Eram guarda-
costas com crachás brilhantes,
cuidavam da família e dos outros, e
as buscas ficavam em segundo
plano para poderem vigiar as
pessoas ao seu cuidado.
O grupo espalhou-se de
imediato, fios desfiados de um
único tecido, explorando por
instinto em vez de critério, uma
estratégia encorajada pelo líder
espiritual, Arthur. O velho
acreditava que a forma de
encontrar o filho mais velho não era
através da ordem, como tinham
feito nos últimos dezoito dias, mas
do caos. No entanto, esse caos
fazia com que o progresso no
terreno abrandasse e, em vez de
dez quilómetros por dia, mal
conseguiam chegar aos cinco, a
direção do trajeto era aleatória,
dada por um polícia que não queria
estar ali e outro que pouco se
importava com o bem-estar
emocional do grupo, querendo
antes ganhar nome.
Chandler fazia o que podia,
mantendo-se perto de Arthur e do
filho, mas a perder ambos com
regularidade, o miúdo a afastar-se
sozinho para trás de pedras, ou a
desaparecer atrás de uma crista,
fazendo com que Chandler corresse
atrás dele… apenas para o
encontrar fascinado com um inseto
preto brilhante na terra ou a puxar
a casca de uma árvore como se
estivesse no seu quintal.
Mas a criança era apenas
impetuosa. Era Arthur quem mais
preocupava Chandler. A mente do
velho estava a desintegrar-se.
Chandler tentou distraí-lo das
buscas, falando de tudo, desde a
vastidão do espaço até às últimas
classificações do futebol, fazendo o
possível para impedir que a terrível
verdade entrasse e consumisse o
cérebro do velho.
34

O dia começou com a publicação


do relatório forense preliminar.
Confirmava o que Chandler já
sabia: as seis vítimas tinham sido
estranguladas com corda. Não a
mesma corda, o que era azar para
os investigadores. Havia pouco
mais a dizer, a não ser que a
recuperação das algemas de nada
servira, pois qualquer vestígio de
ADN e de impressões digitais fora
destruído no incêndio. Ele esperara
pelo menos confirmar qual deles
estivera acorrentado. O relatório
incluía a confirmação de que o
criminoso era destro. Tanto Gabriel
como Heath eram destros, portanto
isso não acrescentou nada. Os
vestígios de sangue encontrados
em algumas das ferramentas
menos danificadas tinham ADN de
algumas das vítimas enterradas,
mas de nenhum dos suspeitos, as
pegas de plástico derretidas em
formas irreconhecíveis como as
máscaras de morte das vítimas que
estavam a tentar elaborar para
ajudar na identificação.
O que podia ser determinado,
dada a deterioração dos cadáveres,
era que a vítima mais recente —
um homem de trinta e poucos anos
de constituição leve — morrera
entre três e quatro semanas antes.
Os ossos de ambas as pernas
haviam sofrido fraturas já
cicatrizadas, ferimentos de infância
e não causados pelo assassino.
Fora isso, não havia sinais de
tortura ou mutilação, e Chandler
sentiu algum alívio pelo facto de o
assassino poder não ter sido tão
sádico como se julgava. No
entanto, suficientemente louco para
matar pelo menos seis pessoas.
Um morto era recente, os outros
não. Calculava-se que as vítimas
mais antigas tinham morrido entre
dois e três anos antes e restavam
apenas ossos e fragmentos de
roupa. Havia esperança de que se
encontrasse correspondências na
lista de pessoas desaparecidas
através dos registos dentários, mas
isso seria um processo
administrativo mais demorado. A
última linha do relatório confirmava
o que Chandler já sabia: que o
bocado da camisa encontrado em
volta do cabo do machado
pertencia à camisa de Heath.
Porque seria Heath estúpido ao
ponto de deixar uma prova tão
crucial? Claro que não imaginara
que as campas seriam descobertas,
mas como pudera acontecer? Teria
Heath decidido enterrá-lo enquanto
outra vítima — Gabriel — esperava
no barracão, como numa produção
em série? Mas o corpo na campa
estava morto há algumas semanas.
Porquê manter o cadáver tanto
tempo sem enterrá-lo? Teria
empestado rapidamente a cabana
com aquele calor. E porquê mantê-
lo e depois ir a correr enterrá-lo?
Não havia sinais de interferência
depois da morte, sexual ou outra.
Era possível ele estar a considerar
Heath demasiado inteligente, mas
parecia haver apenas uma solução
viável.
Contrariado, Chandler procurou
Mitch. Como sempre, estava
enfiado no seu gabinete, as
persianas fechadas, a olhar para
um mapa da cidade e de Hill
projetado na parede, fingindo não
estar de ressaca.
Chandler abandonou qualquer
tentativa de saudação e foi direito
ao assunto num tom de voz
suficientemente alto para fazer
Mitch encolher-se.
— Tenho uma teoria.
Mitch fechou os olhos, mas não
respondeu.
— Acerca do bocado de camisa
que encontrámos…
— Antes de continuar… quanto à
noite passada… — interrompeu
Mitch.
Chandler não queria discutir
isso. Não havia nada para discutir.
— Isto não é sobre a noite
passada.
O ar no gabinete era quente e
parado. Mitch falou primeiro.
— Muito bem, diga lá.
— Acho que o Heath está a ser
incriminado. Pelo Gabriel.
Mitch não reagiu, então
Chandler continuou.
— Para fazer parecer que o
Heath foi responsável pelos crimes.
Encontrámos o pedaço da camisa
de Heath em volta da picareta,
colocando-o na cena do crime. Mas
segundo o relatório preliminar dos
técnicos, a vítima enterrada
morrera há três ou quatro semanas.
Mitch assentiu devagar.
— Sim e…?
— Bem, o solo em volta do
corpo fora remexido muito mais
recentemente do que isso. Ainda
continha alguma humidade,
portanto, ou a vítima foi enterrada
algumas semanas após a morte… e
sabe que com este calor o fedor de
um cadáver teria tornado o ar da
cabana irrespirável, pelo que não
parece provável que o assassino
ficasse com ele… ou o solo foi
remexido mais recentemente. E
haveria apenas uma razão para
fazer isso. Colocar provas.
Chandler esperava pelo menos
um momento de deliberação, no
entanto Mitch reagiu
imediatamente.
— Mas o Gabriel foi apanhado
primeiro, não foi? Na verdade,
entregou-se. Duas vezes.
— É verdade, mas como o Heath
afirmou, não tinha como chegar
aqui mais depressa. Por isso tentou
roubar o carro.
— Mas não temos a garantia de
que, depois de roubar o carro, ele
viria para a esquadra, apenas a sua
palavra de que iria fazê-lo, e a
palavra dele não significa nada para
mim. As provas que temos,
sargento, apontam para o Heath.
Mas enquanto preparamos alguma
teoria concreta, vamos mantê-los
aqui.
— Está a ver mal — disse
Chandler. — Não é o Heath.
— E você está desesperado e a
inventar, sargento.
— Mas não faz sentido eles
trabalharem juntos.
Mitch interrompeu, sem levantar
a voz, mas enfatizando cada
palavra.
— Sargento, vamos acusar o
senhor Barwell e o senhor Johnson.
Ironicamente, dado que, em
circunstâncias normais, a primeira
confissão da filha estaria a decorrer
naquele momento, Chandler dirigiu-
se à igreja onde o tribunal se
reunira à pressa. Pessoas com
pecados mais graves que os da filha
iriam fazer as suas confissões.
Eleanor White tinha chegado de
avião para presidir à audiência.
Eleanor fora a magistrada local
durante vinte e cinco anos, mas
nem o coque apertado que lhe
puxava o cabelo grisalho podia
conter a sua excitação. Nada nos
seus longos anos de serviço
chegava perto daquilo. O caso dera
vida à povoação pela primeira vez
em anos, trazendo à tona o
mórbido fascínio pela morte que
nenhuma quantidade de parques de
diversões poderia igualar.
O envolvimento de Chandler era
puramente como espectador; Mitch
ordenara à sua equipa que
preparasse e deslocasse os
suspeitos, o nível de alerta elevado
ao extremo, passando-os com
cuidado das celas para os carros,
um suspeito no banco de trás de
cada um, flanqueado por um par de
agentes do Mitch. Até ao último
segundo. Vendo a sua
oportunidade, Chandler sentou-se
no banco de trás do carro de
Gabriel primeiro que Yohan. O
agente lançou-lhe um olhar furioso,
mas Chandler era seu superior e
não tinha o apoio do chefe, que
arrancara no carro da frente com
Heath, que tivera de ser obrigado a
entrar à força quando soube para
onde ia. Enquanto se encostava a
Gabriel, Chandler avaliou a sua
reação, mas não viu nada que
indicasse que Gabriel estava muito
preocupado, o suspeito apenas a
agitar-se como se estivesse
desconfortável nos bancos de couro
escorregadio. De resto, parecia
calmo.
A viagem decorreu sem
incidentes e, no salão da igreja,
Chandler escoltou o seu suspeito
desde o carro até ao átrio acanhado
sem nenhum problema. Com a
variedade de polícias e
funcionários, havia pouco espaço
para respirar e os ânimos estavam
elevados. Os suspeitos eram
vigiados como falcões e olhavam
um para o outro de lados opostos
do átrio à espera que os
chamassem. Chandler estava
confiante de que aquilo era apenas
uma formalidade. Ambos tinham
indicado que se declarariam
inocentes e nenhum teria direito a
caução, nem que a pudessem
pagar, dado o risco de fuga.
Heath foi primeiro. Chandler
acompanhou-o e ao advogado
nomeado pelo tribunal, um homem
de quarenta e poucos anos.
O salão tinha sido decorado
como aquando da representação de
uma das terríveis peças escolares
de Sarah, filas de cadeiras
dispostas mais ou menos alinhadas
para atender à crescente presença
da polícia e da imprensa. Mesmo
assim, não havia lugares
suficientes, os membros da
imprensa a resmungarem enquanto
entravam para o fundo e para as
laterais do salão, cadernos e lápis
prontos para registar os eventos.
Para conferir aos procedimentos um
ar de autoridade, a sólida secretária
de mogno do reverendo fora
arrastada da sala ao lado para o
palco, onde a juíza White estava
sentada com um ar muito
majestoso mas muito solitário,
tendo apenas por companhia as
pilhas de provas empilhadas. Ao dar
início à audiência, toda a sua
excitação nervosa parecia ter
desaparecido. Foi clara e deliberada
no seu discurso enquanto lia a
Heath a acusação: seis homicídios.
Heath queixou-se de que não tinha
sido ele, suficientemente alto para
a maioria das pessoas ouvir, a
imprensa a anotar avidamente a
intransigência da testemunha e a
linguagem corporal nervosa.
Quando chegou o momento, ele
declarou-se inocente. Disse-o com
firmeza, se bem que com alguma
emoção. Chandler olhou para o
homem que acreditava ser
inocente, incapaz de fazer qualquer
coisa para interromper o processo.
Só teria de trabalhar para provar a
inocência de Heath.
Depois de mais algumas
formalidades, de o advogado pedir
a atribuição de uma caução e de
esta ter sido recusada, Heath foi
levado para os bancos gastos
alinhados no vestíbulo, o peito a
subir e a descer em longas
respirações.
Gabriel iria a seguir. Estava
empoleirado, não nos bancos, mas
enroscado numa bola no peitoril da
janela, a balançar-se para a frente
e para trás, parecendo quase fetal,
a janela de vitral a banhá-lo com
uma suave luz azul. A sua
aparência calma desaparecera.
Mitch aproximou-se do ombro de
Gabriel e pousou a mão nele,
indicando-lhe que se levantasse.
Gabriel não se mexeu. Chandler
pôs-se em pé para ajudar, assim
que Gabriel finalmente se
desdobrou e ficou em pé, com a
cabeça erguida, concentrado não
em Mitch, não na larga porta dupla
do tribunal temporário a seguir,
mas em Heath.
O grupo começou a mover-se.
Quando Mitch afastou os
espectadores do caminho, a atitude
de Gabriel lembrou a Chandler a de
um condenado no corredor da
morte, a dar os seus últimos passos
antes de enfrentar o seu carrasco, o
grave silêncio quebrado apenas
pelos passos do condenado.
Chandler pôs-se em posição quando
os suspeitos passaram um pelo
outro, menos de dois metros entre
eles, o mais perto que tinham
estado desde que caíram juntos da
crista.
Num instante, Gabriel ficou livre.
Com um movimento do ombro,
soltou-se de Mitch, as algemas que
lhe manietavam os pulsos a
deslizarem para o chão enquanto se
movia na direção de Heath, que
estava sentado muito direito no
banco.
A velocidade do movimento
apanhou todos desprevenidos.
Chandler ficou atordoado como se
tivesse visto um truque de magia
ser executado diante dos seus
olhos, as mãos de Gabriel livres das
algemas, o artista da fuga a deixar
o seu público momentaneamente
estupefacto. Gabriel atirou-se ao
outro homem e empurrou Heath
para o chão, tentando enfiar o lado
serrilhado de umas chaves na sua
garganta. Os gritos de Heath
arrancaram Chandler do seu
estupor. Empurrando para o lado a
advogada de Gabriel, uma loira,
lançou-se ao cliente dela.
O encontrão foi eficaz, forçando
Gabriel a afastar-se da sua presa e
fazendo ambos rolar
descontrolados, fazendo cair os
espetadores e levando-o a soltar
Gabriel, o jovem a escapar-lhe das
mãos.
Quando Chandler se levantou,
Gabriel já estava a correr para a
porta. Roper bloqueou a saída,
estendendo a mão para a arma.
Gabriel lançou-se contra ele,
acertando-lhe na barriga,
derrubando-o e tirando-lhe a arma
num único movimento, saindo do
salão da igreja e indo para a
cidade.
Ao chegar à porta, Chandler
sacou da arma. A ladear os degraus
e o parque de estacionamento, uma
multidão de jornalistas assustados
e ansiosos, operadores de câmara e
moradores locais confrontaram-no.
Gabriel atravessava o asfalto
dividindo a multidão ao agitar a
arma roubada no ar. Levantando a
sua, Chandler fez pontaria às
pernas de Gabriel, certo de que
atingiria o alvo àquela distância.
Mas assim que Gabriel passou, a
multidão voltou a juntar-se, os
repórteres virando-se para seguir o
suspeito, os operadores de câmara
a transportar o equipamento,
tentando acompanhar os seus
pivôs.
— Saiam do caminho! — gritou
Chandler, esbarrando num dos
operadores, a câmara a balançar
para frente e para trás como uma
bola de demolição. Saindo do meio
do grupo principal, surgiu-lhe a
oportunidade de disparar. Chandler
preparou-se para o fazer, mas
Gabriel desapareceu na esquina da
esquadra.
Chandler foi atrás dele, Tanya,
Jim, Mitch e a sua equipa logo
atrás, jornalistas ávidos e alguns
locais determinados também. O
grito estridente e pouco autoritário
de Mitch, «Agarrem-no!», elevou-se
acima do som de passos e guinchos
excitados.
Antes mesmo de chegar à
esquina, Chandler foi ultrapassado
pelo par mais jovem e em forma
formado por Flo e Sun, de armas
em riste.
Enquanto a perseguição
continuava ao longo de King
Edward Avenue, os moradores
espreitaram das suas portas e
janelas para ver a comoção.
— Voltem para dentro! —
ordenou Chandler, com as pernas já
pesadas.
A sua ordem foi ignorada. Até o
primeiro tiro soar. Então os
moradores voltaram para dentro de
casa tão rapidamente como tinham
aparecido.
— Não disparem — gritou
Chandler, tentando identificar o
atirador enquanto os repórteres o
rodeavam.
Mas o desespero estava a ajudar
Gabriel a distanciar-se, indo já
algumas centenas de metros à
frente, Flo e Sun a tentar
acompanhá-lo.
De repente, Gabriel correu para
a estrada, pondo-se à frente de um
Holden amarelo. O condutor travou
a fundo. A senhora Atherton,
professora da escola primária local,
atirou-se para fora do carro quando
lhe apontaram uma arma.
Entrando, Gabriel fez inversão de
marcha e desceu a Scott,
perseguido por outro tiro não
identificado, que passou longe do
alvo.
E assim Gabriel desapareceu.
Pela segunda vez.
Flo e Sun continuaram a
perseguição, seguindo o carro até
Logan’s Way, imitados pela
comunicação social à procura da
última imagem, mas era impossível
apanhar o suspeito a pé.
Mitch parou ao lado de
Chandler. Respirava a custo.
— Por que diabo o deixou soltar-
se? — gritou Mitch.
— Não deixei. Ele devia ter as
chaves.
— E como fez ele isso? Aposto
que foram os incompetentes dos
seus homens.
Mitch não esperou pela defesa
de Chandler, agarrou no rádio e
colocou a região inteira de
sobreaviso pela segunda vez em
dois dias.
35

Dez minutos depois da fuga de


Gabriel, Mitch tinha reunido as suas
forças e dado instruções. Todos os
veículos deviam ser mandados
parar com a ressalva de que Gabriel
estava armado e era considerado
extremamente perigoso.
— E quanto ao Heath? —
perguntou Chandler quando Mitch
terminou o seu discurso. — Temos
de mantê-lo sob vigilância.
Os jornalistas gritavam-lhe
perguntas, querendo saber o que
estava a polícia a fazer acerca do
assassino agora solto na cidade.
Como se libertara? Como iriam
manter os cidadãos seguros? As
perguntas continuavam a chegar
rápidas como uma metralhadora.
Mitch fez uma pausa, revirando
os olhos como se só naquele
momento tivesse acabado de se
lembrar do outro suspeito.
— Temos de nos concentrar no
que não está detido, sargento.
— Concordo, mas o Gabriel está
determinado a matá-lo. Por
qualquer motivo. Obteve
informações sobre ele? Algo em que
não pensámos?
Yohan interrompeu-os. Um
Holden amarelo fora visto perto de
Newbury. A andar bastante
depressa. Mitch mandou-o
transmitir a informação aos agentes
que já estavam na rua. Quase
imediatamente outro relatório
chegou, confirmando o primeiro
avistamento, a polícia a espalhar-
se, Mitch em contacto constante
com a sua equipa, gritando aos
homens do outro lado da linha que
apanhassem Gabriel, depois a gritar
aos que estavam perto para manter
os malditos jornalistas à distância.
— Tenho-o na mira. — Uma voz
determinada abriu caminho através
da conversa no rádio. Era Tanya.
— Onde estás? — perguntou
Chandler. Não se importava se
Mitch não gostasse, Tanya era uma
das suas agentes.
— Na Butcher’s. Ele está a
tentar roubar…
O sinal de rádio foi interrompido.
Chandler imaginou a Butcher’s: uma
estrada de terra em direção ao sul,
às minas de ferro e ao deserto
árido.
— Não se aproxime muito —
ordenou Mitch. — Siga-o.
O sinal voltara; respiração
ofegante e movimento frenético
encheram a sala. Um microfone a
roçar em tecido. A voz novamente.
— Posso…
A ligação caiu.
— Merda! — Chandler olhou
para Mitch, que já estava no rádio,
a pedir a toda a gente que fosse
para a Butcher’s.
— Eu vou — disse Chandler.
Mitch assentiu.
— Luka, arranje-me um carro! —
ordenou ele.
Um minuto depois, uma sirene
dividiu a horda relutante, abafando
as perguntas da imprensa.
Quando estavam a entrar no
carro, uma voz saiu do rádio. Era
Steve Kirriboo, um mineiro e pai de
seis filhos que criava gado ao longo
da Butcher’s. O seu tom denotava
preocupação.
— Chand? Sargento?
— Sim, Steve — disse Chandler.
— Um dos seus rapazes…
raparigas… foi atingido.
Chandler susteve a respiração.
Atingido… tê-lo-ia confrontado?
— Chand?
Chandler conseguiu inspirar.
— Sim, Steve… ela está bem?
Não houve resposta, a voz de
Steve perdida no clamor da
comunicação por rádio.
— Luka, acelera — ordenou
Chandler.
Luka obedeceu, o carro da
polícia a percorrer ruas que, de
resto, estavam estranhamente
silenciosas, toda a gente dentro de
casa a ver os noticiários ou reunida
em volta da esquadra e do salão da
igreja.
— É melhor que ela esteja bem.
— Desde que tenha impedido a
fuga dele — disse Mitch.
Chandler fitou-o furioso, o
asfalto sob os pneus a transformar-
se em terra, a traseira do carro a
derrapar devido à súbita falta de
aderência.
Alguns quilómetros adiante,
encontraram o Holden junto à
quinta de Chucker Nelson, enfiado
na valeta como se tivesse sido
forçado a parar de repente. As luzes
traseiras estavam acesas, o motor
ainda a trabalhar. Quando Luka
parou atrás dele, Chandler saiu do
veículo antes de ele parar, com
outros carro-patrulha a formarem
fila atrás.
Logo a seguir ao Holden vazio,
Tanya encontrava-se encostada a
um poste. Estava viva, para seu
grande alívio, olhando para ele
envergonhada, um fio de sangue a
aparecer junto ao cabelo.
— Desculpa — disse ela.
— Isso não importa, estás bem?
— Sim. Algumas contusões, uma
dor de cabeça — disse ela,
apoiando-se ao poste.
— Porque te aproximaste dele?
— perguntou num tom mais brusco
do que pretendia.
— Para tentar detê-lo —
respondeu ela, subitamente
irritada.
Ele assentiu, pedindo desculpa.
— O que aconteceu?
— Ele estava parado perto do
portão, a tentar ligar a moto-quatro
do Chucker. Com o barulho da lata
velha, pensei que tinha conseguido
aproximar-me, mas calculo que me
viu no espelho. Bateu-me antes de
eu ter a oportunidade de derrubá-
lo. Pensei que ia matar-me, mas
em vez disso perguntou o meu
nome. Quando lho disse, bateu-me
com a pistola.
— O seu nome? Não disse mais
nada? Alguma coisa sobre o seu
destino? — interveio Mitch,
impaciente.
Tanya abanou a cabeça.
— Nada.
— Nem mesmo uma sugestão?
— Não — respondeu Tanya,
olhando para Chandler a implorar
que afastasse Mitch. — Na verdade,
ele pareceu não ter o mínimo
interesse em mim.
— Não é de ti que ele anda
atrás — disse Chandler.
— Ou talvez porque tem metade
da força policial atrás dele —
retorquiu Mitch. Virou-se para
Tanya. — Em que direção foi?
Tanya abanou a cabeça.
— Não vi, mas acho que para o
interior. Um sítio onde não
podemos chegar de carro.
— Temos de ir — grunhiu Mitch,
dirigindo-se a Chandler.
— Não vou deixar a Tanya.
— Ela está bem, um galo e uma
contusão. Não podemos perder
mais tempo. A minha equipa vai
chamar uma ambulância.
Chandler olhou para a sua
agente, que mal conseguia conter a
fúria.
— Vai, eu fico bem — disse
entre dentes.
Chandler pousou-lhe a mão no
ombro.
— Não até…
— Vai — repetiu ela. — Não
deixes o estupor desaparecer.
Chandler correu para o carro e
encontrou Mitch ao volante.
Contornando o Holden, Mitch lutou
com o volante na estrada de
gravilha enquanto aumentava o
ritmo da perseguição, o pé pesado
no acelerador.
— Porque acha que ele a deixou
ir? — perguntou Chandler,
pensando em voz alta.
— Não sei. Talvez não queira
matar uma mulher ou um polícia?
— Havia duas mulheres entre os
corpos que encontrámos.
— Talvez ele não seja tão
maluco como pensamos. Talvez
haja um plano por trás de tudo isto.
— Talvez — respondeu
Chandler. Esperava que fosse
verdade. Um plano era uma boa
notícia. Os planos, pela sua própria
natureza, podiam ser descobertos e
frustrados; atos aleatórios de
violência eram mais difíceis de
determinar e prevenir. Mas para
parar Gabriel, primeiro tinham de
capturá-lo.

Dez minutos depois, a estrada


tornava-se um carreiro que mal
podia ser percorrido de carro. Mais
cinco e desaparecia por completo, o
mato acessível apenas por moto-
quatro ou moto. Em desespero,
Mitch decidiu que seguiriam a pé,
mas depois de meia hora de
progresso difícil e nenhum sinal do
suspeito, a busca foi cancelada.
Mitch chamou um helicóptero e
dirigiu a polícia estadual para as
saídas na outra extremidade, para
o caso de Gabriel aparecer por lá.
O regresso à povoação foi
dominado por perguntas sobre a
fuga, as ramificações do que
Gabriel fizera e o que ele poderia
fazer em seguida. A única boa
notícia que lhe chegou foi a
confirmação de que Tanya estava
bem, o corte no couro cabeludo
uma coisa sem importância, e a
concussão passada. Recusou-se a
permanecer no hospital, insistindo
em voltar ao trabalho. Chandler
ficou contente. Precisava de todos
os bons agentes que pudesse
reunir. As ruas estavam vazias,
vendo-se apenas alguns moradores
intrometidos e a massa sempre
presente de jornalistas em volta da
estação. Enquanto atravessavam a
multidão, as mesmas perguntas
que Chandler tinha foram-lhe feitas,
perguntas para as quais não tinha
respostas; como conseguira Gabriel
libertar-se e o que estavam a fazer
para encontrá-lo? Quantas pessoas
matara Gabriel? Quantas mais
mataria? Chandler manteve a
cabeça baixa e não fez
comentários.
Quando entraram na estação,
Chandler começou o interrogatório.
— Como conseguiu livrar-se
daquelas algemas?
Os outros agentes
entreolharam-se em busca de
respostas. Não encontraram
nenhuma.
Quando chegou à porta do
gabinete, Mitch virou-se.
— Isso agora não importa.
Temos é de apanhá-lo.
— Claro que importa. —
Chandler franziu o sobrolho. — O
protocolo falhou a certa altura. E
você dá muita importância a isso.
— Dou importância a apanhar o
Gabriel — respondeu Mitch. —
Portanto, acabemos com a conversa
e voltem ao trabalho.
A ordem foi dada à sua gente —
e a Luka — e eles voltaram para as
suas mesas. Chandler e a sua
pequena equipa continuaram a
conversa.
— Ele não partiu as algemas —
observou Jim. — Eu verifiquei-as.
Estavam abertas e sem arranhões.
— Então tinha as chaves — disse
Nick da receção.
— Parece que sim, mas como as
conseguiu? — perguntou Chandler.
— Roubou-as? — sugeriu Jim.
Chandler abanou a cabeça.
— Teve sempre as mãos atadas.
E nunca ninguém chegou tão perto
dele. Apenas…
Virou-se para o gabinete. De
repente, Chandler soube. Na
véspera, quando Mitch atacara
Gabriel na sala de interrogatórios.
Gabriel devia tê-las roubado na
confusão, depois escondera-as,
esperando o momento certo para
emboscar Heath.
Seguiu Mitch até o ar abafado
do seu antigo gabinete.
— Então foi você — disse
Chandler. — Ele tirou-lhe as chaves.
Mitch foi até ao canto, a cabeça
baixa, tresandando a culpa. Se o
Gabriel tivesse parecido tão culpado
antes, esta merda toda podia ter
sido evitada, pensou Chandler.
— Ele deve ter-mas tirado —
disse Mitch, falando em voz baixa,
recusando-se a entrar em
pormenores. — Mas precisamos de
abafar isso.
— Porquê?
Mitch esfregou a barba cada vez
mais escura.
— Se se souber, teremos mais
um milhão de perguntas. De cima e
de baixo. O que importa agora é
apanhar o Gabriel antes que ele
tenha a oportunidade de matar
novamente.
Mitch parecia desesperado. Era
a primeira vez desde as buscas por
Martin que Chandler via assim o ex-
amigo. Se ao menos ele fosse
capaz de parecer vulnerável com
um pouco mais de frequência, as
pessoas poderiam tê-lo considerado
humano. Apesar desse vislumbre
inesperado de humanidade, uma
parte significativa de Chandler
pensava dar a informação à
imprensa, uma ou duas palavras
simples que se espalhariam como
um vírus e infetariam todas as
estações noticiosas com a história
do inspetor desastrado. Pior — o
inspetor negligente. Mas, embora
fosse tentador, Chandler
reconheceu a verdade subjacente
ao que Mitch dissera: o modo como
Gabriel se libertara era menos
importante do que apreendê-lo
novamente. Se a distração sobre as
chaves perdidas resultasse na
morte de alguém, Chandler nunca
seria capaz de se perdoar. Então
tomou a decisão: ocultaria a
informação por enquanto, guardá-
la-ia como moeda de troca.
— Depois de lhas ter tirado, o
Gabriel teve as chaves todo o dia.
Podia ter escapado a qualquer
momento, mas esperou até que o
Heath fosse exposto — comentou.
— Então…?
— Então, em vez de ser eu a
apanhá-lo junto à esquadra, acho
que ele se entregou
propositadamente para ficar perto
do Heath.
— Deve haver alguma ligação
entre eles.
Chandler assentiu.
— Alguma razão para arriscar a
liberdade por ter aquela
oportunidade de matar Heath.

Heath foi novamente levado


para a sala de interrogatórios, com
a advogada a reboque. Estava
furioso. Daquela vez, Mitch fez
questão de convidar Chandler a
acompanhá-lo.
— Não há ligação — insistiu
Heath. — Juro. Sou uma vítima.
— E tem a certeza de que não o
encontrou antes? — perguntou
Chandler. — Numa quinta ou em
algum emprego? Meses, até anos
atrás?
— Não.
— Poderá ter feito alguma coisa
a alguém que ele conhece… ou
ama? Não dormiu com a mulher, a
ex-mulher, a irmã dele?
— O quê? Está a perguntar se eu
provoquei isto? — perguntou Heath,
inclinando a cabeça para o lado
com ar confuso.
— Sim — disse Mitch. — O
senhor Barwell tem uma
personalidade bastante abrasiva.
— Eu tenho uma personalidade
abrasiva? E a anedota que é esta
força policial? Eu disse-vos quatros
vezes que sou a vítima, porra!
— Estamos apenas a tentar
determinar se há alguma razão
para ele estar tão decidido a matá-
lo. Não roubou alguma coisa, socou
alguém, espancou alguém?
— Socar? Espancar? — bradou
Heath com incredulidade, o rosto
lívido.
— Disse que agrediu uma
pessoa — observou Chandler.
— Aquele tipo era amigo de um
amigo — balbuciou Heath. —
Olhem… tudo o que sei é que estou
aqui acusado de um crime, acusado
d e homicídios que não cometi.
Estive perto de ser morto duas
vezes pela mesma pessoa, o
verdadeiro assassino, e contudo
continuo a ser tratado como se
fosse culpado. Quero sair daqui
agora. Quero sair desta esquadra e
afastar-me desta porra de lugar.
Encontrem-no e talvez eu volte
para depor. Ou melhor ainda, faço
isso pela internet e mantenho-me
longe deste fim de mundo.
Heath voltou-se para a
advogada.
— Há algum lugar seguro onde o
meu cliente possa passar a noite?
— perguntou a loira.
— Já se encontra nele —
respondeu Chandler.
— Para sua própria segurança,
acho que é melhor ficar aqui,
senhor Barwell, onde podemos
protegê-lo — disse Mitch.
Heath olhou para a advogada e
depois para Mitch.
— O senhor quase fez com que
me matassem.
— Isso foi um acidente.
— Sim, parece haver muitos
acidentes por estas bandas. E só
para que saiba, vou processá-lo
depois disto. A todos vocês.
Detenção ilegal, colocarem em risco
a minha vida, deterem-me sem me
acusarem. Vou fazer uma pipa de
massa — disse ele, a sua fúria a dar
lugar a um sorriso.
36

Com a chegada da noite, a caça


a Gabriel foi interrompida. Mitch
mandou alguns dos seus agentes
para a rua, a fim de parecer que
tudo estava controlado.
Chandler sentia-se incomodado
com uma lembrança. Uma conversa
que tivera com Gabriel na primeira
manhã. Dissera a Mitch que ia a
casa para ver como estava a
família. Mitch queria toda a gente
na esquadra, mas ambos sabiam
que ele não estava em posição de
recusar, uma vez que o suspeito
fugira. E embora não precisasse,
Chandler sentiu a necessidade de
contar a Mitch, contar a alguém o
que estava a incomodá-lo… apenas
por precaução.
— O Gabriel sabe onde moro.
Mitch franziu a testa.
— Como?
— Estávamos a conversar
quando o levei para o hotel depois
de interrogá-lo pela primeira vez e
mencionei a minha família.
— Isso foi estúpido.
— Não fazia ideia de que ele
estava a fingir-se de vítima. Estava
apenas a tentar pôr uma
testemunha à vontade.
Mitch hesitou.
— Certo, o que está feito está
feito. Vou pôr um carro-patrulha a
passar por lá de meia em meia
hora.
Chandler assentiu.
— Obrigado.
— Volte daqui a umas horas,
okay? Precisamos de todos.
— O que vai fazer? — perguntou
Chandler.
Mitch apontou para a porta.
— Patrulhar as ruas. Chefiar a
caçada. Verificar alguns dos
edifícios abandonados, caso ele
esteja lá escondido. Será um
regresso ao passado.
— Quer mesmo voltar lá? —
perguntou Chandler.
Mitch não respondeu.

Chandler abriu caminho pela


floresta de microfones sem fazer
comentários. O número de
carrinhas e jornalistas multiplicara-
se como bactérias.
A escuridão permeava tudo e,
ao voltar para casa, Chandler deu
por si a olhar para cada casa,
jardim e beco, perguntando a si
mesmo se Gabriel estaria à espreita
e nervoso por se sentir assustado
com a perspetiva, assustado com o
que se escondia nas sombras da
sua terra. A sua pequena e
descontraída vila era agora uma
massa pulsante, impregnada de
terror.
O medo permaneceu mesmo
quando chegou a casa e encontrou
as crianças na companhia da avó.
Mudou esses planos
imediatamente.
— Certo, meninos, façam as
malas. Vamos ficar em casa dos
avós esta noite.
— Outra vez? Porquê? —
perguntou Sarah, frustrada.
— Posso ter de sair à pressa —
respondeu Chandler.
Era difícil perceber quem estava
mais furiosa: Sarah ou a avó.
— Vai fazer a mala — ordenou
ele e foi até à janela da frente.
Examinou o jardim, a enorme
árvore-do-chá a lançar longas
sombras à luz ténue do alpendre,
largando a sua casca castanho-
alaranjada, mudando… como a vila
estava a mudar, da existência
pacífica ao terror insidioso…
Chandler sentiu-se enlouquecer;
sacudiu a cabeça, tentando aclarar
as ideias.
Inclinando-se para frente, olhou
para a casa de dois andares dos
vizinhos, os Rizzo. Viu luzes nos
dois pisos, a vegetação no jardim a
balançar levemente na brisa. Não
havia nada anormal na cena, mas
só conseguia pensar que Gabriel
ocupara a casa dos Rizzo e
esperava por ele.
— O que se passa? — perguntou
a mãe.
Chandler quase bateu com a
cabeça no vidro. Confirmou que as
crianças não conseguiam ouvir.
— É melhor eles ficarem
convosco.
— Eu posso ficar aqui com eles
se fores chamado. Mas eles
estavam desejosos de passar a
noite contigo.
— Também eu — respondeu
Chandler. Era verdade, nada teria
sido mais agradável. Uma noite
com os dois filhos, o mundo de
novo normal.
— Não parece.
— Depois compenso-os.
— Não podes continuar a tirar
dinheiro do banco. Também tens de
depositar algum.
— Eu sei.
Voltou-se para a janela. Gabriel
ainda se escondia em todas as
sombras. Chandler não tinha dúvida
de que ele voltaria como um
monstro de pesadelo. Era
engenhoso e inteligente, e movia-
se de forma furtiva. Chandler
amaldiçoou-se mais uma vez por
não ter forçado Mitch a perceber
que o prisioneiro calmo e pensativo
era infinitamente mais perigoso do
que o lamuriento. Um assassino em
série não se queixa. Nem se
apresenta, como observara Gabriel.
A mãe estava ajudar as crianças
a fazer as malas quando o toque
estridente do telefone fixo
interrompeu a sua vigilância. Uma
chamada para o telefone fixo
significava problemas. Um número
desconhecido.
Deixando o seu posto à janela,
foi atender. Acertara. Era um
problema, a voz a provocar-lhe um
nó no estômago.
Teri.
— As crianças estão aí? —
perguntou ela, um pouco agitada.
— Sim — respondeu ele. Se Teri
quisesse falar com os filhos, ele
recusaria. Alegaria que já tinham
ido para a cama.
— Vou aí buscá-los — anunciou
ela.
— Nem pensar — respondeu
Chandler, mais alto do que queria.
Como sempre, Teri encarou isso
como um desafio e levantou
também a voz.
— Vou e trago-os para a cidade,
onde estarão em segurança.
Em segurança. Chandler
percebeu o que devia ter
acontecido. Ela falara com Mitch
que a enchera de medo, talvez por
preocupação genuína, mas mais
provavelmente como munição para
a batalha judicial. A oportunidade
perfeita para provar que ela estava
pronta e capaz de cuidar dos filhos
numa altura de crise. De assumir o
papel de protetora. Chandler não
estava preparado para deixar isso
acontecer.
— Não, Teri, é muito perigoso.
— Eu sei. Eu sei o que se passa
aí.
Chandler enfiou a espada na
fenda da armadura.
— Como?
— Como o quê?
— Como é que sabes o que se
passa aqui?
— Bem…
Houve um silêncio do outro lado.
Chandler decidiu atacar novamente.
— Teri, já sei o que se passa
entre ti e o Mitch — disse ele, antes
de baixar a voz para não ser
ouvido. — E que querem ficar com a
guarda dos meus filhos.
— Isso é… — balbuciou Teri
antes de partir para o ataque. — É
dessa teimosia que quero afastar as
crianças.
Chandler decidiu ignorar o
comentário.
— Vou lutar contigo, Teri. Até ao
fim.
— Força. O Mitch conhece
muitas pessoas.
— E elas conhecem o Mitch —
retorquiu Chandler.
Ao longe, a mãe anunciou que
as crianças estavam prontas para
sair.
— Vou desligar — anunciou
Chandler.
— Deixa-me…
Ele desligou. Deixou o telefone
fora do descanso, caso ela decidisse
ligar de novo. Conduziu as crianças
e a mãe para o carro. Ignorando as
sugestões dos filhos sobre quem
devia sentar-se onde, empurrou-os
lá para dentro. Sentando Jasper em
último lugar, olhou para trás do
carro. Algo ou alguém estava
escondido a alguma distância.
Chandler tinha a certeza disso, e de
quem era. Gabriel. Olhou para os
seus familiares. Sentiu vontade de
deixá-los ali e ir atrás de Gabriel,
mas assim ficariam expostos.
Decidindo ficar quieto, Chandler
entrou e arrancou ainda antes de os
passageiros terem posto os cintos.
Pelo espelho retrovisor, viu uns
faróis surgir do nada, seguindo uns
cem metros atrás dele quando se
aproximava da Harper, mantendo
uma velocidade e distância
constantes. Alguém os seguia, e de
forma nada subtil. Não teria tempo
de despistar o condutor se fosse
diretamente para casa dos pais,
portanto em vez de descer a
Tunney’s, virou bruscamente para a
Mercado, os pneus a chiar, a mãe a
gritar-lhe que abrandasse.
Quando dobrou a esquina, os
faróis desapareceram e
reapareceram momentos depois.
Em seguida, começaram a
aproximar-se rapidamente. A
sensação de perigo aumentou.
Chandler queria acelerar, mas se
fossem mais depressa estavam
sujeitos chocar com alguma coisa.
Então decidiu desacelerar, forçar o
carro a passar e identificar quem
estava ao volante.
Parou ao lado dele em
segundos. Chandler olhou para o
lado, esperando ver Gabriel e
planeando o que faria.
Mas não era Gabriel. O condutor
era um homem na casa dos
cinquenta, cabelo castanho
penteado para trás, concentrado na
estrada à sua frente enquanto
seguia em contramão. No banco do
passageiro estava alguém que ele
reconhecia, Jill SanLuiso, repórter
do Channel Nine na região de
Pilbara, o cabelo preto com alguns
fios grisalhos, distinta e bonita
apesar da idade.
— Pode dizer-me se há
novidades, sargento? — gritou ela.
Chandler não podia acreditar.
Tinham-no seguido até casa em
busca de um furo jornalístico. A
fúria fê-lo segurar o volante com
força.
— A última novidade, senhora
SanLuiso, é que vai fora de mão
numa rua residencial, a
desrespeitar o limite de velocidade
e a assediar um agente e a sua
família.
— Sabe a que me refiro,
sargento. Há mais novidades sobre
o assassino em série?
Chandler quase guinou o carro
contra o deles, furioso; olhou para o
retrovisor e viu o ar de preocupação
dos filhos.
— Não comento — respondeu
ele, com os olhos fixos nos dela. —
E peço-lhe para não mencionar
mais nada diante da minha família.
— Apenas algumas palavras.
— Tenho algumas, mas não
poderá transmiti-las.
Virando bruscamente para a
Prince, acelerou. A senhora
SanLuiso não o seguiu.

Um minuto depois, estavam em


segurança em casa dos seus pais. O
interrogatório a Chandler tinha
começado.
— O que quis a senhora dizer
com assassino em série, papá? —
perguntou Jasper.
— O que ela quis dizer é… —
começou Sarah.
Chandler interrompeu-a.
— Quer dizer, Jasper, que um
homem fez uma coisa má e agora a
polícia anda à procura dele.
— E não sabes onde ele está,
papá?
— Ainda não, mas os amigos do
papá têm tudo controlado. Vamos
encontrá-lo e pô-lo à nossa guarda.
— Posso ajudar? — perguntou
Jasper, animado.
A sinceridade da oferta ajudou a
aliviar a tensão de Chandler.
— Podes ajudar indo para a
cama a horas e sem birras.
— Está bem.
— Lindo menino — disse
Chandler, fazendo-lhe uma festa no
cabelo.
Olhou em volta e depois para a
mãe. Ela franzia a testa.
— Vais sair? Agora? — Era uma
pergunta, e uma ordem mal
disfarçada para não pensar nisso.
— Não — respondeu Chandler.
Dado o susto que tinham apanhado
pelo caminho, Chandler não estava
prestes a sair.
— Papá? — perguntou Jasper
quando a irmã foi para a sala
tencionando reivindicar a maior
parte do sofá.
— Sim, Jasp?
— Porque vais pôr o homem
mau à tua guarda, como nós?
Chandler franziu a testa.
— O que queres dizer?
— Também nos tens à tua
guarda. Ouvi-te ao telefone.
Teríamos de ir para a prisão?
Chandler fez uma pausa. Jasper
devia tê-lo ouvido ao telefone com
Teri e ficado com a ideia errada.
Mais uma vez, a vergonha de
negligenciar a família, os filhos,
veio à superfície. Só havia uma
coisa a fazer. Levando o filho para a
sala de estar, sentou-o no sofá ao
lado da irmã para explicar aos dois.
A mãe seguiu-o, testemunha e juiz.
— É um tipo diferente de
guarda. Significa que a vossa mãe
quer que vás viver com ela.
— Só eu? — perguntou Jasper.
— Não, tu e a tua irmã — disse
Chandler, olhando para Sarah.
Ela observava-o do sofá. O seu
olhar semipermanente de tédio
desaparecera.
— E tu? — perguntou Jasper. —
Vamos todos viver com a mamã?
— Não, vocês e ela e o tio…
Mitchell. — As palavras eram como
veneno na sua língua.
— Quando aconteceu isso? —
perguntou Sarah.
— Ainda não aconteceu. É algo
que a vossa mãe quer.
— Desde quando?
— Alguns meses, um ano, não
tenho a certeza — admitiu
Chandler.
— Tudo porque de repente se
tornou adulta — acrescentou a sua
mãe. Chandler concordava com ela,
mas mandou-a calar-se com um
olhar.
— Papá?
— Sim, Jasper — disse Chandler,
concentrando-se no filho.
— Se formos para lá, como
vamos à escola? São muitos e
muitos e muitos quilómetros de
distância.
Embora a vergonha o tivesse
deixado vazio por dentro, Chandler
não conseguiu reprimir o sorriso.
— Ainda não é certo, nem
pensar, mas preciso de saber o que
sentem em relação a isso. Eles vão
perguntar-vos…
— Não quero sair daqui —
interrompeu Sarah.
— Eu também não, só se tu
vieres, papá — disse Jasper.
Lançou-se a Chandler, pôs os
braços em volta do seu pescoço e
apertou como se nunca mais o
fosse soltar.
A convicção das suas respostas
fez Chandler sentir-se um pouco
melhor e decidiu jogar Jenga com
os filhos. Durante algum tempo até
esqueceu os fantasmas de Gabriel,
Mitch e Teri.
Já estava quase na hora de
dormir quando o telefone tocou. A
mãe atendeu antes que Chandler
pudesse lá chegar. Daquela vez não
era Teri, mas alguém da esquadra.
Queriam que ele regressasse.
— Diz-lhes que estou a tomar
duche ou coisa do género — pediu
Chandler enquanto ela cobria o
bocal. Não tinha vontade de deixar
a família, não enquanto fosse de
noite e Gabriel ainda estivesse lá
fora.
Quando deitou os filhos, o
telefone tocou novamente. Daquela
vez era Tanya. Chandler fez sinal
para a mãe dar a mesma desculpa.
Ainda na casa de banho.
Tinha acabado de ler a história
da noite a Jasper quando veio o
telefonema seguinte. Daquela vez,
a ordem veio de cima. Mitch não
aceitava a desculpa esfarrapada de
Chandler.
— Ele não desliga — disse a
mãe. A carranca que agora usava
transformava o seu rosto acolhedor
e aberto num rosto abatido. — Vai.
As crianças não vão dormir com o
telefone a tocar a cada minuto.
Além disso, ele há de acabar por cá
vir e arrastar-te para a esquadra.
— Não posso ir — disse
Chandler, engolindo em seco.
— Porquê, filho? — Até a
concentração do pai fora desviada
da televisão por causa da relutância
do filho em partir.
— Ele sabe onde vivo.
— Quem? — perguntou a mãe.
— O homem que procuramos. O
assassino.
— Como? — A mãe tinha uma
expressão chocada.
Chandler respirou fundo e
explicou o seu erro. Ambos ficaram
em silêncio uns momentos antes de
a mãe falar.
— Nada indica que ele vai
voltar, filho. Porque iria fazê-lo?
— Já o fez antes. Achamos que
o fará de novo.
Houve uns segundos de pausa
antes de o pai se levantar da
poltrona com ar determinado.
Pegando na chave que tinha num
fio ao pescoço, entrou na cozinha e
abriu a vitrina fixada
horizontalmente em cima dos
armários. De lá, tirou a velha
caçadeira, a madeira lascada e
desgastada, mas, pelo que
Chandler sabia, ainda em perfeito
estado de funcionamento.
— Eu fico de guarda — anunciou
ele, abrindo o cano e colocando
dois cartuchos vermelhos lá dentro.
— Pai, não precisas disso —
comentou Chandler, embora se
sentisse um pouco mais seguro na
presença da arma.
— Ainda consegues usar isso,
Peter? — perguntou a mãe.
— Claro que consigo, Caroline.
Os meus punhos podem estar
quebradiços e a minha cabeça um
pouco esquecida, mas ainda
consigo apertar um maldito gatilho.
Agarrou a arma, curvado como
começara a ficar nos últimos anos.
Os seus dedos curtos deslizaram
pela coronha, as unhas rachadas e
lascadas como a tinta do velho Ford
Mustang que estava na parte de
trás da garagem.
— Só quero que a apontes, não
que a uses — pediu Chandler.
— Qual é a utilidade disso?
— Tira os cartuchos, pai — pediu
Chandler, com a mão estendida.
— O que queres dizer com tirar
os cartuchos? Se eu quisesse um
taco, teria comprado um taco.
— Sem cartuchos — repetiu
Chandler. O pai resmungou
baixinho, mas abriu o cano e tirou
os cartuchos. Chandler pegou-lhes e
entregou-os à mãe. Esperava que
ela não lhos entregasse.
Foi dar um beijo de boas-noites
aos filhos. Sarah deixou-o beijá-la
na testa, mas fez-lhe sinal para sair
do quarto enquanto olhava para o
ecrã do seu telemóvel. Jasper
dormia e ele estava prestes a sair
quando o menino acordou.
— Porque te vais embora, papá?
— perguntou ele, ensonado.
— Tenho de ajudar a vila.
— Por causa desse assassino em
série?
— Sim — respondeu Chandler,
esperando que Jasper não fizesse
perguntas difíceis.
— Porque magoa ele as
pessoas, papá?
— Não sei, Jasp. Algumas
pessoas são apenas más pessoas,
mas o avô e a avó vão manter-vos
em segurança enquanto o papá o
apanha. Agora está na hora de
dormires um bocadinho. Amanhã
vamos andar de kart outra vez.
Chandler deixou o filho a sorrir
com a perspetiva. Na sala, o seu
pai estava sentado junto à porta da
rua, a olhar pela janela.
— É possível que… — começou
Chandler, depois parou. Não sabia
qual a possibilidade de Gabriel ir
até ali. — Fica calmo, está bem?
— Eu estou calmo — respondeu
o pai, pousando a espingarda
descarregada sobre os joelhos.
37

De regresso à esquadra, Nick


pô-lo ao corrente dos
desenvolvimentos. A busca inicial
na cidade fora infrutífera; garagens,
jardins, barracões, cabanas, casas e
lojas na rua principal tinham sido
revistados. Isso levara algum
tempo. Havia muitos sítios para
verificar, como as pequenas lojas
abandonadas. A última estimativa
era que Gabriel ainda estava no
mato, a dormir lá, possivelmente
num esconderijo de emergência de
algum género.
Chandler juntou-se ao resto da
equipa no gabinete de Mitch.
— Os miúdos estão bem? —
perguntou Mitch com um sorriso
desanimado.
Chandler assentiu.
— Já encontrou o nosso suspeito
fugido?
Mitch desfez o sorriso.
— Quando o dia nascer, o avião
e o helicóptero levantam voo —
disse ele. — Exmouth também nos
empresta o que tem. Com
esperança, veremos algum
movimento ou sinal de
acampamento.
— Que tal enviar um grupo esta
noite? Apanhá-lo desprevenido —
sugeriu Roper, com a cabeça ligada
por ter sido derrubado por Gabriel
mais cedo.
— Não veríamos nada —
respondeu Chandler —, e a última
coisa de que precisamos é de
disparar uns contra os outros por
engano.
— Além disso, ele é demasiado
esperto para acender uma fogueira
— acrescentou Mitch.
— A menos que tente destruir
provas como da última vez —
observou Tanya, provocando alguns
murmúrios.
— Podemos ter a certeza de que
ele ainda está lá fora? — perguntou
Chandler. — Há a possibilidade de
ter voltado para trás e de estar a
passar a noite num celeiro dos
arredores.
— A nossa busca foi o mais
ampla possível — disse Mitch. — E
mesmo que tenha feito isso,
ficamos com o mesmo problema da
agulha no palheiro.
— Bem, precisamos de ser vistos
a fazer alguma coisa? Em vez de
ficar à espera que ele faça o
próximo movimento? — perguntou
Luka.
Era uma solução projetada para
cobrir as fendas, salvar o couro. A
projeção positiva para o público. Ele
estava lentamente a transformar-se
em Mitch.
— Ficar aqui ainda pode ser a
nossa melhor aposta, Luka —
respondeu Chandler. — Ele atacou
o tipo que temos nas celas quando
teve a oportunidade. Talvez volte
para terminar o trabalho.
— Qualquer que seja a decisão,
a imprensa tem de ser informada —
disse Mitch. — Desta vez, acho
melhor ser um de vocês a fazer
isso.
Embora não tenha olhado para
ele, Chandler entendeu que lhes
estavam a passar a batata quente.
— Porquê? — perguntou,
querendo alguma justificação.
— Para mostrar que tanto a
polícia local como a estadual estão
a trabalhar em harmonia para
proteger a cidade.
Como Chandler esperara: uma
razão idiota.
— Então, o que quer é que eu vá
até lá fora e lhes diga que não
temos nada, e dê a cara pela
incompetência da polícia.
Mitch abanou a cabeça, mas o
sorriso denunciou-o.
— Não, sargento, quero que vá
lá e faça o seu trabalho.
— O senhor é o agente mais
graduado aqui.
— Exato. E estou a mandá-lo
tratar da conferência de imprensa.
— Para lhes dizer o quê? Que
não temos pistas; que eles se
devem preparar, esconder e
esperar que o demónio apareça?
— Não com essas palavras. —
Mitch fez uma pausa. — Precisa de
aprender a lidar com deceções e
reveses, sargento.
— Já aprendi — respondeu
Chandler. Não conseguia conter-se
mais. Estava na hora de jogar o seu
valete. Se Mitch tentasse enterrá-
lo, ambos ficariam soterrados. —
Estamos nesta alhada porque o
Gabriel lhe roubou as chaves,
quando você o atacou na sala de
interrogatórios.
Para surpresa de Chandler, a
revelação não abalou a calma de
Mitch. Era quase como se esperasse
aquilo. Chandler é que foi apanhado
de surpresa. Mitch estivera
provavelmente a planear aquela
revelação e Chandler caíra na
armadilha.
Mitch recuou da mesa e
endireitou-se a toda a sua altura.
— Não é o melhor momento de
sair por aí a atirar as culpas,
sargento. A imprensa fará isso.
Temos de cerrar fileiras.
Permanecer unidos — disse ele,
apelando a toda a mesa.
— E não acha que isso devia vir
do chefe? — perguntou Chandler.
— Trata-se de manter uma
frente unida.
— Atrás de um líder em que
possamos confiar.
Chandler olhou em volta da
mesa. Em tempos poderia ter sido
capaz de avaliar lealdades, mas os
esforços dos últimos dias tinham-no
cegado. Não sabia dizer se Tanya,
Jim e Nick tinham fé suficiente nele
como líder para acreditar nas suas
acusações. Luka era uma causa
perdida.
— Demos um passo em falso,
está na altura de recuperar — disse
Mitch entre dentes.
— E compete-lhe a si liderar
essa recuperação — retorquiu
Chandler.
Mitch chamou Chandler à parte.
— Não queria ter de lhe lembrar,
sargento, que sou eu quem escreve
o relatório no fim disto — disse em
voz baixa. — Já deixou o Gabriel
fugir uma vez, é fácil acreditar que
o deixou fugir uma segunda vez.
Chandler respirou fundo.
— Quando é que se tornou um
estupor tão grande? — Assim que
acabou de falar, percebeu que
Mitch fora sempre um estupor. O
egoísmo estivera sempre presente,
mesmo na adolescência. O
distintivo só libertou o maluco
dentro dele. Reformulou a
pergunta: — Quando começou a
lixar toda a gente?
Mitch não ficou irritado. O
sorriso sugeria que podia até ter
considerado aquilo um elogio.
— A sua carreira não vai a lado
nenhum, Chandler, não depois
disto, não depois de se saber como
você… e a sua equipa… tiveram o
assassino preso e o deixaram
escapar duas vezes. Então sugiro
que se você… e eles… ainda
quiserem ter um emprego depois
disto, vá até lá fora e conte essa
história. O que pensaria um juiz se
a Sarah e o Jasper tivessem um pai
sem ordenado?
A vontade de dar um soco
àquele presunçoso e hipócrita era
esmagadora. Chandler olhou para o
resto de sua equipa. Não queria
que se afundassem com ele. Jim
tinha pais idosos para sustentar,
Tanya três filhos. Nick estava
apenas a começar e Luka… bom,
ele ficaria bem. Qualquer clone de
Mitch sobreviveria como uma
barata num apocalipse. Além disso,
Mitch estava certo; perder o
emprego daria vantagem a Teri.
Engolindo o orgulho, saiu pela
porta da frente. Os flashes e os
projetores cegaram-no enquanto as
perguntas dos jornalistas tentavam
furar a sua armadura. Tentando
recompor-se, levantou a mão. As
perguntas esmoreceram.
Transmitiu a situação à horda ali
reunida. Repetiu a descrição de
Gabriel e pediu às pessoas para
chamarem a polícia em vez de se
aproximarem dele, se o vissem,
antes de concluir pedindo à
população que permanecesse
dentro de casa.
Assim que a sua declaração
terminou, as perguntas voltaram a
surgir. Gabriel era muito perigoso?
Era verdade que haviam tido
Gabriel preso e o tinham deixado ir?
Poderia ele confirmar a identidade
das seis vítimas? Haveria a
possibilidade de ele matar de novo?
O segundo suspeito ainda estava
detido? Por que motivo o segundo
suspeito ainda estava detido?
Chandler respondeu a todos,
encandeado pela luz. Até explicou
exatamente como Gabriel se
libertara, a versão oficial, sendo a
culpa do sistema e não de uma
pessoa específica.
Enquanto falava, olhou para a
multidão. Apesar dos pedidos para
as pessoas dispersarem, o número
de presentes parecia ter
aumentado e ele analisou os rostos,
procurando Gabriel escondido entre
eles. Seria excecionalmente
corajoso ou estúpido da parte de
Gabriel voltar, mas ele mostrara-se
capaz e ousado. Chandler examinou
barbas e chapéus, simples disfarces
que Gabriel poderia usar. Procurou
rostos bronzeados e homens de
certa altura. Não havia ninguém
que se encaixasse na descrição de
Gabriel, então pediu aos repórteres
que se retirassem até ao
amanhecer para deixar a polícia
fazer o seu trabalho.
Voltou para dentro da esquadra
sentindo-se um criminoso. Agora
fazia parte do encobrimento.
Mentira à comunicação social.
Mas naquele momento não
podia pensar na sua desonestidade.
Concentrou-se em apanhar Gabriel
e responder à pergunta que não lhe
saía da cabeça. Por que motivo
Gabriel estaria tão decidido a matar
Heath que se entregara
voluntariamente e esperara pelo
momento (quase perfeito) para
atacar?
Talvez houvesse alguma coisa
que não se tivesse lembrado de
perguntar a Heath. Chandler foi em
direção às celas. Heath chegou à
porta.
— Não vou falar com ninguém
sem a minha advogada.
— Ouça, senhor Barwell…
Heath. Acho que não tem nada que
ver com isto — disse Chandler.
Houve uma pausa antes da
resposta irritada.
— É um pouco tarde para isso. E
se não tenho nada que ver com
isso, posso sair agora?
— Precisamos de mantê-lo em
segurança até encontrarmos o
Gabriel. Acredito que ele ainda
anda atrás de si, que fez tudo para
ser preso apenas para se aproximar
de si.
O prisioneiro abanou a cabeça.
— Mas porquê? Nem o conheço.
— Estou a tentar descobrir isso.
— Se me deixar sair daqui, eu
fico por cá. Ou pode levar-me para
fora da cidade. Num carro à prova
de bala ou o que for.
— Não posso fazer isso,
desculpe. Aqui está em segurança.
— Uma ova é que estou! Pelo
menos fora desta cela tenho a
possibilidade de fugir. Como está
tão convencido de que ele anda
atrás de mim, fez um ótimo
trabalho ao certificar-se de que ele
estava suficientemente perto para
tentar matar-me. E depois deixou-o
fugir. Por isso, desculpe se não
confio nas suas competências.
— Sei que está zangado, senhor
Barwell, mas temos o direito de
mantê-lo aqui se acreditarmos que
está em perigo.
— Que tipo de sistema lixado é
este?
— Um sistema que pode mantê-
lo vivo.
Através da portinhola, Chandler
viu a testa do suspeito franzir-se.
— Pode. Isso é reconfortante.
Chandler percebeu que as
defesas de Heath tinham baixado;
tentara ser libertado e falhara.
Tentou uma pergunta sorrateira.
— Acha que o Gabriel o escolheu
deliberadamente?
Heath suspirou e encolheu os
ombros.
— Podia ter sido qualquer
pessoa à boleia naquela estrada. Eu
estava na hora errada, no sítio
errado.
— E não houve indicações?
Nenhuma?
— De quê?
— De que ele tinha outra coisa
planeada para si.
— Não, como já disse várias
vezes, estava tudo bem. Falámos
de banalidades… — Heath fez uma
pausa, olhando para a parede
lateral antes de se virar para
Chandler. Mais uma vez, tinha a
testa franzida. — Ele pareceu
intrigado com o meu nome, acho
eu. Mais do que a maioria. A minha
mãe adorava O Monte dos
Vendavais, mas achou que chamar-
me Heathcliff teria sido cruel… No
entanto, a forma como ele repetiu o
meu nome era como se fosse
pessoal para ele. Lembro-me de lhe
ter perguntado se conhecia alguém
chamado Heath, mas ele abanou a
cabeça. Porquê? Acha que lhe
lembro alguém?
— Vamos tentar descobrir —
respondeu Chandler.
38

2002

Os dias estendiam-se, longos e


implacáveis, as buscas a
esgotarem-se. O destino final de
Martin permaneceu oficialmente
indeterminado, mas inevitável. Já
tinham passado mais de três
semanas e o Natal aproximava-se
rapidamente.
Chandler teve um lugar na
primeira fila do espetáculo, vendo
os mercenários — até o
adolescente de Murray River —
embolsar o dinheiro a cada manhã
antes de fingirem esforçar-se
durante todo o dia. Arthur fora
atraído pelas ideias fantásticas e
depois por gráficos e diagramas
desenhados por uma lista de
psíquicos e médiuns que afirmavam
saber onde Martin estava — e só
poderiam dizer-lhe se Arthur
pagasse, permitindo que os seus
talentos espirituais fossem nutridos
por dinheiro físico. Só naquela
manhã, um dos mercenários, uma
figura xamânica de Darwin
chamada Blazz, apresentou a mais
recente teoria sobre o que Martin
procurara na floresta: uma gruta
escondida cheia de ouro enterrado
por algum fora da lei no final do
século XIX.
A irritação de Chandler era tal
que foi forçado a procurar Mitch
para se acalmar.
— Ouviste aquilo?
— Ouvi — respondeu Mitch. Não
parecia aborrecido, o que magoou
Chandler ainda mais.
— Não podemos deixar isto
passar em claro.
— Estamos aqui para manter a
paz, não para verificar o que esses
malucos alegam. Esse não é o
nosso trabalho.
— Realmente já não sei qual é o
meu trabalho — admitiu Chandler.
— É manter os olhos baixos e
aguentar.
— É esse o tipo de trabalho que
queres fazer? Sentares-te e deixar
que a família se destrua?
Mitch não respondeu, e cuspiu a
pastilha para o chão.
— Bocados do tamanho de bolas
de futebol! — anunciou Blazz a
plenos pulmões; bombástico e
insistente.
— Não há aqui gruta nenhuma
com ouro — disse Chandler, incapaz
de deixar passar aquilo.
— Disse-me o vento — declarou
Blazz, a voz a transmitir a crença
das suas convicções.
— O vento? Que disparate.
— Só porque o senhor não
entende, não significa que seja
errado — retorquiu Blazz, os seus
caracóis a dançar, apesar do suor
que lhe escorria das têmporas.
Chandler aproximou-se.
— Entendo que não se importe
de roubar o dinheiro de um velho,
mas escusa de lhe impingir também
tretas.
— Não são tretas. Foi-me dito
pelo vento. Pressinto estas coisas.
— Os seus sentidos ainda não
localizaram o Martin, pois não?
— Estamos perto — sussurrou
Blazz.
Mais perto de te juntares ao
Martin, se continuares com isso,
pensou Chandler.
— Foque-se apenas na busca.
Chega das suas tretas.
Blazz começou a soltar
grunhidos e gemidos, conversando
numa língua estranha que soava
como se estivesse a ter um enfarte,
cuspindo e com ânsias de vómito.
Chandler estava desejoso de
chamar o helicóptero para levar
Blazz dali. Mas este de repente
parou e anunciou:
— Agora está amaldiçoado,
senhor agente. E lembre-se de que
estas colinas são minhas amigas e
não suas.
Chandler deu um passo à frente.
— Isso foi uma ameaça?
— Foi uma maldição.
— Isso faz…
Blazz sorriu. Chandler deu mais
um passo à frente, disposto a
extrair a verdade de Blazz à força
quando lhe agarraram o ombro. Era
Arthur.
— O que está a fazer, Chandler?
A pergunta simples desarmou-o;
o que estava ele a fazer?
— Estas pessoas estão apenas a
tentar ajudar — continuou Arthur.
Chandler olhou para ele. O velho
estava claramente iludido. Chandler
podia não entender bem qual era o
seu papel ali, mas recordava uma
das máximas: proteger a
população.
— Eles não estão a tentar
ajudar, Arthur. — Estava na altura
de o velho aprender a dura
verdade. — Estão apenas a tentar
tirar-lhe o seu dinheiro. Com todas
estas tretas de intervenção divina e
presságios pretendem
simplesmente tentar enganá-lo.
Pronto, dissera-o. Sentiu-se de
imediato mais leve, como se a terra
já não lhe sugasse a energia dos
membros.
A resposta que recebeu foi um
simples aceno de cabeça. A pressão
aumentou lentamente mais uma
vez, ancorando-o à terra.
— Eu sei. Acredito em Deus,
mas não sou estúpido, Chandler.
Chandler franziu a testa.
— Então porquê?
— Se um par de olhos, pago ou
não, puder encontrar o meu filho,
então eu daria tudo. O meu
dinheiro, a minha casa, a minha
eterna gratidão. Não importa.
Chandler não sabia o que dizer.
Enganara-se a respeito do velho.
Ele entrara voluntariamente no
carrossel na ténue esperança de
que alguém nele encontrasse
Martin, o seu filho. Chandler pensou
em Teri e na filha recém-nascida. E
se fosse ele? Nem queria pensar
nisso.

Foi um ponto de viragem para


Chandler. Deixou de querer sair do
mato e abandonar a busca,
aproximou-se de pai e filho,
experimentando e vivendo a dor
com eles, Arthur a emagrecer a
olhos vistos, como se estivesse a
dar uma parte de si à terra, à
semelhança de um sacrifício ritual
para recuperar o filho desaparecido.
A cada dia, a sua voz estridente
tornava-se mais baixa, mal ouvida
acima do barulho dos insetos, à
procura de gentileza nas pessoas,
de esperança nos outros. Falava em
voltar para casa, para a firma de
contabilidade que pretendera deixar
a Martin, mas Martin não
demonstrara nem aptidão nem
desejo de seguir as pisadas do pai.
Falava da mulher, Sylvia, com medo
de que ela nunca recuperasse o
suficiente para ser uma boa mãe
para o filho que lhes restava,
desistindo essencialmente dele
porque falhara ao primeiro. Passava
os dias trancada no hotel a
pesquisar a internet, a reunir fotos
do filho perdido. Fora uma busca
agridoce, e descobrira um
manancial de fotografias que nunca
tinha visto dele; Martin com amigos
e namoradas, podre de bêbedo ou
a dançar numa festa. Imagens do
filho a divertir-se, feliz e contente, a
fazer caminhadas, a desfrutar do ar
livre. Aquelas fotos do filho na
natureza foram as que mais lhe
custaram. Tinham passado muitas
noites a chorar até adormecerem,
perdidos na sua dor.
Como tal, Chandler tentou
aproveitar tudo para manter o
velho distraído. Naquele dia o tema
era exercício, Arthur a afirmar que
nunca tinha sequer feito uma
caminhada na vida e a desejar ter-
se mantido em forma, para poder
avançar mais depressa.
— Não se trata de avançar
depressa, mas de analisar bem o
terreno — disse Chandler,
caminhando atrás dele, os seus
passos na sombra do velho e os do
velho na do filho. — Disse que ele
adorava a natureza.
— Adorava… adora. É uma coisa
que nunca percebi. Talvez não seja
capaz de apreciá-la. A sua
enormidade. Qual seria a sensação
de viver aqui.
— Não muito agradável —
declarou Chandler. — Os únicos
vizinhos são mil cobras e um milhão
de aranhas.
Ao ouvir aquilo, o rapaz virou-se,
os olhos arregalados.
— A sério? Fiiiixe! — exclamou,
arrastando o «i» durante uns bons
cinco segundos antes que o pai o
mandasse manter os olhos no
caminho.
Arthur estendeu a mão para
mantê-lo em linha reta. Já tinha
dito a Chandler que não queria que
o seu outro filho fizesse aquilo, não
na idade dele… nem em qualquer
idade. Ele idolatrara Martin desde
que nascera e custava-lhe entender
por que motivo o irmão fora para ali
sozinho. E ali ficara. E se recusava a
ser encontrado. Arthur admitira a
Chandler que não tinha nada para
lhe dizer. O que lhe poderia dizer
que não fosse mentira ou tão duro
como a verdade? Chandler
lamentava não ter nada para dar ao
velho, nada além de palavras
balbuciadas e um alívio horrível e
culpado de não ser a sua família.
39

Dividindo a cidade em secções,


Mitch enviou equipas atrás de
Gabriel, não por esperar encontrá-
lo, mas mais para proporcionar uma
presença tranquilizadora nas ruas.
As ordens eram para parar os
carros e revistá-los com cautela.
Foram distribuídos por pares: Luka
com Johan; Tanya com Jim. Nick
ficou novamente na receção, ao
lado de uma equipa composta por
Roper, Flo, MacKenzie e Sun.
De novo sem parceiro, Chandler
saiu da esquadra com a promessa
de colocar Nick em ação em breve.
O olhar de desilusão que recebeu
fê-lo perceber que teria de cumprir
a sua promessa dentro de pouco
tempo.
A primeira paragem foi em casa
dos pais. Enquanto avançava pelo
jardim seco, mas bonito, o
telemóvel apitou. Uma mensagem
de Teri a dizer que vinha a
caminho, ignorando o aviso de
Chandler. Carregou no botão para
lhe ligar antes mesmo de perceber
o que estava a fazer. Ela atendeu
imediatamente.
— Teri, não podes vir para cá —
disse ele, embora soubesse que ela
não lhe daria ouvidos. Nunca dera.
— Não mandas em mim.
— Nunca ninguém mandou em
ti. Estou apenas a pedir…
— Já vou a caminho.
— A polícia estadual não te vai
deixar passar.
— Vais tu.
— Não quero que passes. Na
verdade, vou mandá-los prender-te.
— Hei de passar.
— Fala com o Mitch. Ele dirá a
mesma coisa.
— Talvez — respondeu ela com
a teimosia habitual. — Mas
esqueces que conheço a zona. Vou
por uma estrada secundária. Não
podem cobrir todas elas.
— Teri…
Ela deu uma gargalhada curta e
desafiadora.
— Mantém-te em segurança —
disse ele, desistindo. — E tem
cuidado.
Ela já tinha desligado.
Chandler entrou em casa.
Estavam todos a pé, incluindo as
crianças.
— Com quem estavas a discutir?
— perguntou Sarah de olhos no
chão, meio zonza, acordada e não
contente. Jasper não conseguia
falar, os bocejos incessantes a
impedirem qualquer tentativa de
comunicar por palavras.
— Com ninguém. Nada
importante — respondeu ele.
— Parecia importante — disse o
pai, posicionado junto à janela, com
a espingarda atrás do assento,
oculta das crianças.
Chandler convenceu-se de que
havia uma razão válida para não
lhes contar. Perdera a conta de
quantas vezes, ao longo dos anos,
Teri prometera vir e não aparecera
— ou pior, ao contrário, aparecendo
do nada e pondo todos em estado
de alerta máximo. Cinco anos
antes, no quinto aniversário de
Sarah, fizera uma das suas visitas
não anunciadas. As crianças tinham
ficado encantadas, julgando que ela
estava a voltar para casa. Quando
ele explicara que ela precisava de o
avisar, Teri dissera que podia fazer
o que quisesse. «Eles também são
meus filhos.» Mas naquela altura
Chandler sabia que ela realmente
não os queria. Não de forma
permanente, de qualquer maneira.
Então a festa continuara, Teri a ser
ignorada pelos adultos reunidos,
antes de se despedir e deixar
Chandler a acalmar os filhos
chorosos.
Estava a fazer-se tarde e as
crianças foram mandadas para a
cama. Jasper adormeceu assim que
se enfiou nos lençóis, mas Sarah
queria falar de novo da sua próxima
primeira confissão. Chandler ficou
mais do que contente, querendo
afastar os pensamentos do caso e
atenuar os medos da filha.
Quando Chandler se sentou na
beira da cama, Sarah folheou as
histórias escolhidas pelo padre para
estudo: Caim e Abel; os vendedores
no templo; o filho pródigo. O
normal para a primeira confissão.
— Quero livrar-me dos meus
pecados — disse ela de repente.
— Querida, não tens pecados.
— Tenho sim — retorquiu ela
com naturalidade. — Para começar,
roubo comida ao Jasper ao jantar
ou roubo uma bolacha da bandeja
quando a avó as faz. Além disso, às
vezes fico zangada por não estares
aqui e digo asneiras.
— A sério?
— Eu sei asneiras — disse ela.
Chandler abanou a cabeça.
Calculara que sim.
— Não, não isso. Ficas zangada
porque eu não estar aqui?
Sarah assentiu.
— Mas também porque a mãe
não está aqui — disse ela,
afastando a cortina de cabelo preto
do rosto.
Ele assentiu e tentou forçar a
próxima pergunta. Estava-lhe presa
na garganta. Precisava de a fazer,
embora não tivesse a certeza de
querer ouvir a resposta.
— Agora que pensaste nisso,
gostarias de viver com a mãe?
— Em Port Hedland?
— Creio que sim. — A
alternativa que ele não considerara
até ao momento deixou-o gelado.
Mitch e Teri a viver em Wilbrook e
ter de vê-los todos os dias como
pais dos seus filhos. Ficou
maldisposto.
— E vens também? — perguntou
ela.
— Não.
— Talvez se eu me livrar de
todos os meus pecados e rezar para
que também possas viver
connosco…
Chandler esboçou um sorriso
ténue.
— O facto de a tua mãe e eu
não estarmos juntos não é culpa
tua ou do Jasper. Além disso,
seriam necessárias mais do que
algumas ave-marias para nos
juntar.
— Vou rezar por isso.
— Então reza — disse Chandler,
beijando-a na testa.

Depois de verificar que o pai não


metera cartuchos na arma,
Chandler foi-se embora. Mesmo
sendo já tarde, subia do asfalto um
calor residual do dia escaldante, o
que fazia com que estar na rua e
exposto o deixasse ainda mais
pegajoso e desconfortável.
Percorreu as ruas tranquilas,
passando apenas pelos agentes de
Mitch nos seus carros
descaracterizados. Havia luzes nas
janelas das casas, mas ninguém
aparecia nelas. Era como se todos
na cidade tivessem desaparecido.
Não lhe saíam da cabeça as
histórias da filha. Histórias de
pecados cometidos. De perdão e
justiça. Caim a atacar o irmão Abel,
a matá-lo. Isso fê-lo pensar: seriam
Gabriel e Heath irmãos? Abanou a
cabeça. Com certeza não podiam
ser. Não eram nada parecidos, nem
na voz. Passava-se alguma outra
coisa…
Caim e Abel…
Os nomes voltam. Recordava-se
de tê-los visto recentemente,
escritos. No jornal? Listas de
criminosos? Uma lista de outra
coisa?
Ocorreu-lhe quando virou para
Harvey Street e quase perdeu o
controlo do carro. Vira-os numa
lista… aquela recuperada do
barracão. Tentou recordá-la,
recordar os nomes. Lembrou-se de
alguns. Havia um Adam, um Seth,
um Jared, uma Sheila. Tudo familiar
e relativamente comum, mas podia
jurar que os tinha visto agrupados
antes. Talvez fosse a falta de sono
a afetar a sua memória, mas era
capaz de haver ali alguma verdade.
Virou para a Princes. Os nomes
continuaram a incomodá-lo. A lista
na sua cabeça continuou a crescer:
Adam, Seth, Jared, Sheila. Noah
também. Caim e Abel. A sua
memória lançou outra lembrança
vívida para a zona da frente do
cérebro. Já tinha visto os nomes
antes. Num livro. Estava certo
disso. Um livro com capa vermelha
e dourada…
Carregou no travão na esquina
que conduzia à Harper. Não havia
carros por perto para lhe buzinar.
Chandler lembrava-se.
40

Os pneus roçaram a berma


quando parou diante de casa e
saiu. Gabriel declarara que a
religião fizera parte da sua
educação. Até comentara que a
única coisa que todos tinham em
comum quando nasciam era a
necessidade dos pais e de serem
consolados por alguma forma de
religião. E que ambos lhe tinham
falhado.
Dirigindo-se à parte de trás da
casa, Chandler entrou pela porta
sempre destrancada e foi direito à
estante no canto entre a cozinha e
a sala. A capa vermelha devia ter-
se destacado entre os bestsellers
que comprara em segunda mão e
nunca lera, mas não parecia estar
ali.
Em seguida, experimentou no
quarto de Sarah. Viu-o na mesa de
cabeceira rodeado por uma
parafernália de apetrechos para o
telemóvel: capas, protetores de
ecrã e cabos de auriculares. Capa
vermelha. Capa dura. Para alguns,
a última leitura.
Sem saber por onde começar,
abriu na página cinquenta e cinco.
O número surgira nos depoimentos
de Gabriel e Heath. A página falava
da separação das águas do mar
Vermelho. Os seguidores famintos
no deserto. Pão a cair do céu.
Isso significava alguma coisa?
Ser capaz de fazer o mar abrir-se?
Sugeria querer o derradeiro
controlo? Matar assim tantas
pessoas poderia criar esse tipo de
ilusão. E quanto ao pão a cair do
céu? Passar fome no deserto?
Estivera Gabriel a liderar seguidores
lá em cima? A tentar convertê-los a
uma religião ou a um culto que ele
inventara? Matara-os quando
resistiram? Ou ter passado fome lá
em cima enlouquecera-o? Não
houvera sinal de canibalismo nas
vítimas, mesmo na última, cuja
carne estava mais intacta, mas era
uma possibilidade. Ainda assim,
não passava de especulação, nada
que o aproximasse mais da
verdade.
Vendo os números dos
parágrafos na margem da página,
foi avançando à procura de
parágrafos 55.
Encontrou apenas dois. O
primeiro era um salmo. Um lamento
por estar cercado de traidores e
inimigos. Os inimigos não eram
nomeados especificamente, mas
podia ser prova uma paranoia
desenfreada. No entanto, Gabriel
nunca parecera paranoico, antes
demasiado calculista.
O outro era Isaías 55: um
convite aos sedentos. Falava da
graça e do poder de Deus e
terminava com a transformação da
vida. Havia uma transformação
básica em que Chandler conseguia
pensar: a transformação da vida em
morte. Fora isso que Gabriel quisera
dizer? Transformar, levar aquelas
pessoas do seu inferno na terra
para junto de Deus? Era possível,
mas era um grande salto e ainda
muito vago. O parágrafo terminava
com um poderoso grupo de
palavras: «Um sinal eterno que
jamais perecerá.» Seria uma
declaração? Que Gabriel duraria
para sempre? A notoriedade de um
assassino em série? Destinado a ser
discutido e estudado nos anos
vindouros? A possibilidade de viver
para sempre?
Entrando na cozinha, Chandler
examinou os apontamentos sobre o
caso em cima da mesa à procura de
inspiração. Embora não houvesse
nada que pudesse ser usado em
tribunal, continuava convencido de
que a Bíblia tinha algo que ver com
tudo aquilo. Um daqueles
parágrafos continha a chave, ambos
eram demasiado portentosos para
serem coincidência. Pensando que
lhe poderia ocorrer se mergulhasse
nos pormenores, Chandler reviu as
causas da morte; os nomes dos
suspeitos; o resumo das suas vidas;
um inventário dos objetos
encontrados na cabana e o que fora
recuperado: sangue, cabelo, roupa
e características distintivas. Reviu
os depoimentos de Gabriel e de
Heath, a lista de nomes, a nota que
declarava «Eles foram nomeados no
princípio». Continuou sem ver
qualquer explicação ou ligação.
Se Chandler estava a chegar a
algum lado, tudo isso desapareceu
quando uma sombra passou pela
janela. A maçaneta da porta da
frente rodou com cautela, parando
após alguns centímetros, a porta
trancada. Alguém tentava entrar
em sua casa.
Gabriel voltara.
Indo para a cozinha, Chandler
correu até à porta das traseiras.
Saindo, fechou-a sem barulho.
Ouviu Gabriel aproximar-se. Sem
tempo para fazer qualquer outra
coisa, lançou-se para o outro lado
do caminho e encostou-se à parede
de tijolo do barracão, o lugar
perfeito para observar… e, se
necessário, atacar.
Ouviu os passos rápidos no
caminho irregular. Gabriel
encontraria a porta aberta, mas
Chandler não o deixaria entrar.
Assim que chegasse o momento,
saltaria e forçá-lo-ia a cair.
Tirou a arma do coldre. Não
queria usá-la, mas tinha de partir
do princípio de que Gabriel estava
armado. Apenas como último
recurso, lembrou a si mesmo.
Uma sombra dirigiu-se para a
porta das traseiras. Chandler
contraiu-se, pronto a atacar.
A forma escura foi banhada pela
da luz do alpendre.
— Teri?
O choque na voz dele assustou-a
e ela saltou para a frente, fazendo
ricochete na porta de rede e quase
caindo nos seus braços.
Recuperando o equilíbrio, virou-se
para ele. Tinham passado quase
três anos, mas ela ainda possuía
aquela beleza que o forçava a
parar, a sua pele morena com um
belo tom de caramelo, os dois
sinais escuros e redondos nas faces
a acentuarem a sua beleza. O rosto
de Teri estava como ele o
recordava, uma cerejeira na
primavera. Um rosto que era
espetacular em plena floração, mas
que permanecia suscetível a
qualquer mudança repentina no
clima. Pela sua expressão, era início
da primavera, um dia nublado que
podia vir a ser soalheiro ou
chuvoso.
— O que estás a fazer na porra
dos arbustos? — perguntou. A idade
não tinha moderado a sua
linguagem.
— O que estás tu a fazer aqui?
— retorquiu ele. — Quase te dei um
tiro.
Embora ela só tivesse de um
metro e sessenta e cinco, a sua voz
encheu o quintal, insistente.
— O Camry ficou sem gasolina.
Tive de andar uns dois quilómetros.
Tentei ligar… — Fez uma pausa.
Chandler deduziu que ela tentara
entrar em contacto com Mitch e não
conseguira. — A polícia mandou-me
parar algumas vezes no caminho.
Como se eu parecesse um
assassino em série! — exclamou
com um sorriso.
Fez menção de entrar.
— Quero ver as crianças.
— Não estão aqui. Estão com os
meus pais.
— O quê? Estás a dizer que há
um assassino em série à solta e
nem estás a cuidar deles? Foi por
causa deste tipo de merdas que te
deixei. Por tentares salvar os outros
e sacrificares a tua família.
— Não preciso disso agora. As
crianças estão em segurança.
— Hão de estar.
— Deixa-os em paz, Teri.
— Não. Fiquei à margem
durante demasiado tempo. Vou
levar-te a tribunal pela Sarah e pelo
Jasper se não mos entregares.
— Eles não são reféns, Teri e
isto não é uma negociação. Não
podes forçá-los.
— Não, não é uma negociação.
É uma decisão deles. Mas isto… —
disse ela, fazendo um gesto a
abarcar o local — é deste tipo de
merda que quero afastá-los.
— Este tipo de merda não
acontece regularmente.
— Deixá-los com os teus pais?
— Teri sorriu.
— Não — disse Chandler,
abanando a cabeça —, ter um… um
suspeito de homicídio à solta na
povoação.
— Mas ainda assim ouvi dizer
que estão sempre com o Pete e a
maluca da Caroline.
Chandler ignorou o insulto.
— É melhor que não lhes tenha
acontecido alguma coisa porque me
distraíste aqui.
— Se alguma coisa acontecer
será porque tu deixaste fugir o
assassino.
Chandler olhou para ela. Aquela
informação falsa só podia ter vindo
do namorado. Era de esperar que
Mitch o traísse.
— A vantagem de um contacto
na polícia — continuou ela, exibindo
de novo o sorriso e tocando no
nariz que sempre fora demasiado
grande para o rosto.
— Ele pode ficar contigo — disse
Chandler passando por ela e
entrando em casa. Só queria
arrumar os seus papéis e levá-los
para casa dos pais.
Enquanto enfiava o caderno e
outras folhas rabiscadas numa
mochila, ela percorreu a casa.
— Isto está um bocado
desarrumado. As crianças vão
sentir-se melhor com dois pais, não
achas? Eu e o Mitch.
Chandler não respondeu. Tinha
preocupações maiores. Meteu as
coisas no porta-bagagens, e Teri foi
para o lado do passageiro. Chandler
manteve a porta trancada.
— O que estás a fazer? —
perguntou ele.
— Vou contigo.
— Isto é um assunto da polícia.
Podes ir a pé, não é longe.
Chandler sentiu um prazer
infantil ao dizer aquilo.
— Não disseste que havia um
assassino à solta? — retorquiu ela,
afastando-se da porta, parecendo
vulnerável e sozinha.
Chandler sentiu a sua fúria
aumentar. Ela apanhara-o
novamente. Não podia deixar a
mãe dos seus filhos no meio da rua
com Gabriel algures por ali.
Destrancando a porta, abriu-a.
— Entra. Mas não abras a boca.
Teri não prometeu nada e
sentou-se.
Enquanto ele rumava à casa dos
pais, ela falou: sobre o quanto
aquela terra de merda não tinha
mudado, levantando as mãos
zangada e frustrada por ter de ali
estar, um maneirismo primitivo,
instintivo para se fazer parecer
maior do que era, os olhos verdes a
brilhar, dentes à mostra.
Ele largou-a em casa dos pais,
ambos os lados afrontados com
aquela reviravolta. Como sempre,
Teri não conseguiu controlar o
volume da voz, acordando as
crianças, que correram para os seus
braços. Chandler ouviu Teri
prometer que os protegeria.
Quando Jasper perguntou de quê,
ela respondeu que do monstro de
cócegas e perseguiu-o pela cozinha.
Os pais de Chandler olharam para
ele à espera de uma explicação, o
pai não se esforçando por esconder
a arma. Chandler limitou-se a dizer
que tinha de se ir embora.
41

Apesar das numerosas ordens


para dispersar, os jornalistas
continuavam junto à esquadra, a
tentarem entrar como zombies.
Mitch regressara, dirigindo a
orquestra, analisando pistas
comunicadas pela sua equipa e
pelos habitantes locais, mais no
comando do que Chandler alguma
vez estivera. Até pusera Nick e Luka
a trabalhar de forma eficiente.
Chandler entrou no gabinete.
— Mitch?
Este fez uma careta ao ouvir o
tom informal, mas não respondeu.
— Tenho de falar consigo —
continuou Chandler.
Agarrando nuns papéis, Mitch
fingiu lê-los.
— Tenho uma teoria sobre as
vítimas — prosseguiu Chandler,
implacável. Mitch virou outra
página, desinteressado. — Os
nomes das vítimas: todos estão
ligados à Bíblia, de alguma forma.
Ele deve estar a seguir algum
ângulo religioso. Mencionou antes
ter sido deixado ficar mal em
criança… pelos pais e pela religião.
Por um momento, Mitch
continuou a fingir ler antes de
finalmente reconhecer a presença
de Chandler e agitar os papéis
diante da cara dele.
— Esqueça as suas teorias,
sargento, e leia isto primeiro.
— Tem uma equipa para isso —
retorquiu Chandler.
— Da qual você faz parte.
Chandler reprimiu uma
gargalhada.
— Eu estou no banco, na melhor
das hipóteses. Onde você me
meteu. E a propósito, a Teri já
chegou. O Camry ficou sem
combustível e foi a pé até minha
casa. Disse que estava a tentar
entrar em contacto com o
namorado.
Deixando Mitch com os seus
relatórios, Chandler foi até às celas
e sentou-se do lado de fora da de
Heath, na esperança de confirmar
algo com a vítima.
— Senhor Barwell?
Não houve resposta. Ninguém
queria falar com ele, ao que
parecia.
— O Gabriel pareceu-lhe um
homem religioso?
Ainda sem resposta.
— Recorde o tempo que esteve
preso. Ele disse alguma coisa que
lhe pareceu estranha? Muito
estranha. Rezou? Disse uma
oração? Benzeu-se? Mencionou
Deus ou coisa parecida?
— O que mais posso dizer-lhe?
— respondeu uma voz cansada.
— É isso que quero saber.
Houve uma longa pausa. Heath
soltou uma tosse seca.
— Ele disse qualquer coisa sobre
Deus. Não me lembro exatamente
o quê.
— Por favor, senhor Barwell…
Heath. Seria uma grande ajuda.
Chegou-lhe um suspiro
frustrado.
— Lembro-me de ele dizer que a
terra aqui é tão seca que Deus a
devia ter abandonado, por estar
zangado com ela de alguma forma.
Mas também disse que era linda.
Como fora no princípio, como tudo
fora.
— No princípio?
— Sim.
Lá estava novamente aquela
expressão, «no princípio». Que
princípio? O princípio da sua vaga
de homicídios? Era algo que ele
sentia que tinha de fazer? Ou
gostaria apenas do começo do
processo? Capturar e conhecer a
vítima. O homicídio era apenas algo
que tinha de ser feito e do qual ele
nem gostava.
— Ele disse mais alguma coisa
sobre o princípio?
Heath suspirou novamente.
— Como a sua infância, quer
dizer? Tendo em conta o que ele
fez, eu diria que não foi boa, não
acha?
Heath parou ali. Chandler
encontrara outro beco sem saída.
— Mas ele referiu um lugar,
disse que era o princípio.
O tom de alerta na voz de Heath
fez Chandler sobressaltar-se.
— Que lugar?
— Não sei. — A voz de Heath
desvaneceu-se, o momento de
clareza rapidamente perdido.
— Por favor, tente.
— Estou a tentar — retorquiu
Heath, parecendo confuso e
irritado.
Chandler ficou calado e nas
celas reinou o silêncio. Sentia-se
tenso; teria acabado de chegar a
outra estrada de terra para lado
nenhum?
— Singleton — disse Heath.
— Singleton?
— Sim. — A voz era trémula,
pouco clara. — Falou disso algumas
vezes no carro. Pensei que estava
apenas a referir-se a um sítio onde
estivera ou a uma quinta onde
poderia haver trabalho, mas
suponho que me pareceu um pouco
deslocado. Disse sempre a palavra
num tom apaixonado. Parecia ser a
única coisa que o deixava agitado.
— E ele disse que era o
princípio?
— Sim, acho que sim.
— E o que era esse Singleton?
— Mais uma vez, não sei. Um
lugar, uma quinta, uma pessoa… E
antes que pergunte, não sei que
princípio foi.
Chandler também não sabia.
Mas era alguma coisa.

Usando o computador de Tanya,


procurou Singleton. A busca
produziu vários resultados: um
padrão de software, um uísque,
algumas pessoas famosas com o
apelido Singleton, e outros links a
convidá-lo para redes sociais e sites
de namoro para se encontrar com
«singletons», pessoas solteiras.
Apagando todas as referências a
sites de namoro e pessoas famosas,
ficou com uma povoação na Nova
Gales do Sul, algumas outras em
Inglaterra e nos Estados Unidos,
além de um grande número de
subúrbios, edifícios e institutos
australianos.
Embora fosse do outro lado do
país, a povoação a norte de
Sydney, na margem do rio Hunter
na Nova Gales do Sul, teria de ser
investigada, mas foi o subúrbio a
sul de Perth que chamou a atenção
de Chandler. Gabriel era de Perth,
ou pelo menos era o que o seu
sotaque indicava. Pela fotografia no
ecrã, o subúrbio parecia apenas um
pequeno posto avançado cheio de
casas térreas em mau estado,
vivendas e algumas lojas, os
últimos vestígios da civilização,
uma versão mais verde de
Wilbrook. O único edifício com um
site era um orfanato. Clicou no link.
O site era profissional, as fotos
do edifício a provarem que não era
nada como Chandler imaginara. Era
pequeno e quase pitoresco,
parecendo saído de um dos
romances de Harry Potter que
Sarah gostava de ler. Ficou com a
impressão de que o layout do site e
o ângulo das fotos tinham sido
projetados para esconder as falhas.
Ligando para o departamento de
informática do comando da polícia
em Perth, foi direcionado para a
agente de serviço. Pediu-lhe que
lhe enviasse os nomes dos alunos
dos últimos trinta anos.
Dez minutos depois, recebeu um
ficheiro, mas o computador
recusou-se a abri-lo como se o
conteúdo contivesse um segredo
que não quisesse revelar. Uma
segunda tentativa foi mais bem-
sucedida e ele forçou a máquina a
procurar Gabriel Johnson entre os
nomes. Não encontrou nada.
Tentou Heath Barwell. Mais uma
vez, nada. Procurou Seth, e
encontrou alguns resultados que
não deram em nada. Sem ideias,
Chandler olhou para os milhares de
registos acompanhados de fotos.
Preparou-se para uma longa noite.
A primeira meia hora não
produziu resultados; nas fotos não
havia nenhuma que se parecesse
com Gabriel. Ao fim de uma hora a
olhar para o ecrã começou a ficar
com dores nos olhos. A sua busca
tornou-se mais superficial, e
continuou a passar as páginas
enquanto considerava o próximo
ângulo a seguir. Tinha de haver
alguma conexão com o princípio,
com a religião, com o que tornara
Gabriel assim. Chandler acreditava
piamente nisso.

Uma hora depois, enquanto


analisava possibilidades
alternativas, a foto de Gabriel
apareceu no ecrã. Na verdade,
Chandler ficou tão admirado que
analisou mais algumas imagens de
crianças órfãs antes de voltar atrás.
A imagem que tinha à sua frente
era mesmo de Gabriel, uma versão
mais jovem, com o cabelo cortado
rente a acentuar a magreza do
rosto. Parecia o sobrevivente de um
campo de concentração, e não um
órfão, mas era mesmo ele. David
Gabriel Taylor.
O coração de Chandler começou
a bater com força enquanto
analisava o ficheiro anexo. Molhara
de vez em quando a cama e tivera
alguns acessos emotivos, quase
violentos, mas nada mais do que as
lutas de um rapaz assustado.
Infelizmente, o registo terminava
de forma tão abrupta como
começara. Gabriel fora para um lar
de acolhimento ao fim de apenas
seis meses, o nome e morada dos
seus pais adotivos escrito numa
coluna ao lado. Dina e Geoffrey
Wilson de Glendon, nos arredores
de Perth.
Chandler fez o telefonema. Foi
atendido depois de alguns toques.
— Estou a falar com o senhor
Geoffrey Wilson? — perguntou.
— Sim.
Tendo esperado ser forçado a
acalmar um homem furioso por ter
sido acordado, ficou admirado ao
encontrar uma agradável voz grave.
— Sou o sargento Chandler
Jenkins da esquadra de Wilbrook.
Gostava de…
— Sargento Jenkins de onde? —
interrompeu o senhor Wilson.
— Wilbrook, no norte em
Pilbara.
— O que está a fazer aí? —
perguntou o senhor Wilson, antes
de reformular a pergunta. — Quero
dizer, porque me está a ligar? E a
esta hora?
— Tenho algumas perguntas
sobre um David Gabriel…
A voz grave interrompeu, já sem
delicadeza.
— Eu conheço o Gabriel.
— Bem, tenho algumas…
— Eu… nós não queremos nada
com ele, sargento.
O interesse de Chandler foi
despertado. Ouviu barulho do outro
lado, o som de um auscultador
prestes a ser pousado.
— Por favor, senhor Wilson, só
algumas perguntas. Não quer saber
porque estou a ligar? — Chandler
esperava que a curiosidade
mantivesse o seu interlocutor na
linha.
— Não — respondeu Geoffrey
num tom firme. — Nós… eu e a
minha mulher… tentámos ensinar-
lhe o que era certo e o que era
errado e ele atirou-nos isso à cara.
— Certo e errado? No sentido
religioso?
— Sim, no sentido religioso,
sargento. — A voz permaneceu
calma, mas insistente.
— Então os senhores são
religiosos?
— Sim. E com muito orgulho —
disse o senhor Wilson num tom
severo, como se houvesse alguma
insinuação na pergunta de
Chandler. — Tentámos criá-lo de
uma forma boa e justa,
especialmente depois do que
aconteceu à família dele.
— O que aconteceu?
— Um acidente de viação,
sargento. Uma experiência horrível
para um menino naquela tenra
idade, sem dúvida, mas
acreditámos que ele poderia
recuperar. Quisemos ensinar-lhe
que, apesar do que Deus lhe
lançara, Deus era bom e o guiaria.
Se ele se arrependesse dos seus
pecados e obedecesse à Sua
palavra.
O rumo da conversa fez eriçar os
cabelos na nuca de Chandler.
— E como fez isso?
O senhor Wilson, inicialmente
aberto e falador, fechou-se em
copas. Chandler teve de tentar
adivinhar: aulas, tarefas, palestras
ou coisas piores. Algo
suficientemente perturbador para
transformar um órfão num
assassino. Decidiu ir com cuidado.
— Quando é que o David… o
Gabriel… saiu daí?
— Aos dezoito anos. — A voz
tinha um tom brusco; queria pôr fim
àquela chamada. — E não voltou
desde então. Não queremos que ele
volte. Transformou a nossa casa
num antro de pecado, sargento, um
antro de pecado. Como algo saído
de Sodoma e Gomorra, prostitutas
a invadir a minha casa, a desfilarem
por aí tão nuas como Eva no Jardim
do Éden. Eu e a minha mulher
tivemos de esfregar o chão e a
mobília.
O auscultador roçou de novo em
qualquer coisa e Chandler pensou
ouvir soluçar. O tom grave foi
substituído pela voz de uma
mulher. Dina.
— Está a perturbar o meu
marido, sargento. Só queremos
esquecer aquele rapaz. Aquele filho
do diabo! — exclamou. E desligou.
Chandler recostou-se na cadeira
a absorver a informação. Por não
ter pistas credíveis, tinha
dificuldade em identificar o caminho
a seguir. Mas sabia que alguma
coisa acontecera naquela casa. Uns
pais adotivos a tentar incutir as
suas crenças fervorosas num
adolescente vulnerável, levando a
um evento ou série de eventos que
fizeram o jovem Gabriel passar-se
dos carretos.
42

Com uma teoria e algumas


provas, Chandler foi de novo tentar
encurralar Mitch.
E quase conseguiu, se não fosse
o telefonema. Era uma das
centenas que tinham chegado à
esquadra com informações sobre o
homem que procuravam. Mas desta
vez o interlocutor era diferente —
era o próprio Gabriel.
Nick acenou freneticamente da
receção, chamando a atenção de
Chandler.
— É ele — sussurrou, tapando o
bocal.
A esquadra ficou em silêncio.
Todos souberam a quem o jovem
polícia se referia. Mitch saiu do
gabinete para exigir que a chamada
lhe fosse passada.
Os agentes reuniram-se em
torno da mesa de reuniões naquele
que fora em tempos o gabinete de
Chandler. Empoleirado junto ao
telefone, Mitch olhou para cada um
deles.
— Todos calados. Quem fala sou
eu — disse ele, batendo com um
dedo no peito.
A luz no telefone começou a
piscar. Chegara o momento. Mitch
pôs o telefone em alta-voz.
— Senhor Johns…
Gabriel interrompeu
imediatamente.
— Estou a ligar para informar
que mudei o meu alvo.
Mitch recuperou rapidamente.
— Mudou de?
— Em vez de cinquenta e cinco,
vou matar noventa.
Houve uma breve pausa
enquanto esperavam por mais
informações sobre quem, o quê,
quando ou porquê, mas nada se
seguiu, a informação tão vaga
como os rostos em volta da mesa.
Mitch quebrou o silêncio.
— Senhor Johnson, tenho de lhe
pedir que se entregue. Ainda não é
demasiado tarde.
— Já o fiz, inspetor. Duas vezes
— lembrou. — Agora tenho de ir
trabalhar. Se me impede de matar
o Heath, há muitos outros que são
dignos. — Havia uma clareza na
sua voz que sugeria que ele
acreditava no que estava a dizer.
— Esse seu jogo tem algo que
ver com a Bíblia? — perguntou
Mitch.
Chandler ficou admirado com a
hesitação da pergunta de Mitch. Em
vez de considerar aquilo um facto,
fez a pergunta com os modos
inseguros de um aluno que tivesse
medo de ser ridicularizado.
— A Bíblia? Isso é uma teoria
muito nebulosa, inspetor.
Ao ver Mitch perder a
oportunidade de manter a
vantagem, Chandler interveio.
— Que tal alguma coisa que ver
com os seus pais? Ou os seus pais
adotivos, Dina e Geoffrey?
Mitch olhou para ele, mas não
falou. Nem o assassino do outro
lado do telefone.
— Senhor Johnson? — perguntou
Mitch. Continuava a olhar para
Chandler.
Ouviram o sinal de linha. Gabriel
desligara.
Flo quebrou o silêncio.
— O que quis ele dizer com
matar noventa e não cinquenta e
cinco?
A pergunta foi dirigida ao seu
chefe. A boca de Mitch subiu e
desceu como se ele esperasse que
algumas palavras viessem em seu
socorro, mas nada saiu.
— Quer dizer que ele matou…
o u vai matar… uma data de gente
algures? — perguntou Tanya.
— Mais trinta e cinco pessoas —
confirmou Luka.
Dito em voz alta, parecia um
número colossal. Na ausência de
orientação de Mitch, Chandler
entrou em ação.
— Nick, houve algum relato de
tiros, ou distúrbios de qualquer
tipo?
— Nada.
— Certo. Então é possível que
ele esteja escondido numa das
quintas mais isoladas, perto de
onde o vimos pela última vez —
explicou Chandler.
— Talvez — disse Tanya. — Mas
nenhum desses sítios tem mais de
trinta e cinco pessoas… duvido até
que trinta e cinco pessoas morem
tão perto umas das outras.
Ela tinha razão. Matar trinta e
cinco pessoas significaria que
Gabriel teria de viajar para vários
locais, e rapidamente.
— Será um bluff? — perguntou
Chandler.
— Com que finalidade? —
comentou Mitch, encontrando a sua
voz.
— Para nos fazer correr como
galinhas sem cabeça.
— Ele matou seis pessoas,
sargento. Isso não foi um bluff.
Portanto temos de considerar que
também não está a fazer bluff
agora.
Mais uma vez um manto de
silêncio abateu-se sobre o gabinete.
— Alguma ideia? — perguntou
Chandler.
— Os Bolton e os East moram
perto uns dos outros — gritou Nick
da receção. — São cerca de dez.
— Juntem os Carty e temos
dezasseis, se incluirmos os cães —
interveio Tanya.
— E os bares locais? O posto
médico? — sugeriu Flo.
— Que posto médico? —
resmungou Mitch.
Tanya respondeu à mesma.
— A Anne Tuttle disse-me que o
reverendo estava a pensar em
reunir alguns elementos da sua
congregação no salão da igreja
para uma oração à meia-noite.
— Quantos? — perguntou
Chandler.
Tanya encolheu os ombros.
— Não sei. Trinta ou quarenta
não seria nada de extraordinário, se
têm medo do que se está a passar.
— Vale a pena dar uma
olhadela? — perguntou Flo.
— Vale sempre a pena —
respondeu Mitch. — Não podemos
não reagir a esta ameaça.
— E se for uma distração para
se livrar de nós e poder fazer outra
tentativa de matar o Heath? —
sugeriu Chandler, pensando na
multidão lá fora, imaginando
Gabriel entre eles à espera de a
esquadra ficar vazia.
— Temos de responder a esta
ameaça, sargento.
— E temos de proteger o nosso
prisioneiro.
— E vamos proteger. Não há a
menor possibilidade de o Gabriel
entrar aqui.

Elaborou-se um plano. A
primeira paragem foi no salão da
igreja, depois nos bares locais,
depois nas quintas dos Carty, dos
East e dos Bolton. A seguir, foram
identificadas outras quintas
próximas com várias pessoas: as de
Toady Cook, Izzy Cheelie, Old Ma
Reisling, Mincey Amaranga e suas
famílias.
Chandler telefonou ao reverendo
Upton, acordando-o. Já passava
bastante das nove da noite, a sua
hora de deitar habitual. Embora
aborrecido, confirmou que tinham
abordado a ideia de uma oração à
meia-noite, mas que a opinião geral
fora ficar em segurança dentro de
casa. Nada ia acontecer no seu
salão e nada aconteceria sem a sua
aprovação.
Três equipas foram enviadas aos
bares locais e Mitch telefonou para
as quintas. Roxanne Carty atendeu
ao segundo toque, irritada por ter
de interromper o seu programa
televisivo. Izzy Cheelie rosnou pelo
telefone a dizer que não havia
ninguém na sua quinta que ele não
tivesse convidado. As outras não
atenderam. Embora o serviço
telefónico pudesse ser descrito
como esporádico, os silêncios eram
preocupantes.
Mitch enviou carros para
verificar as pessoas que não tinham
atendido o telefone, passando pelo
salão da igreja a fim de ter a
certeza absoluta. As equipas
correram para os carros, um jogo
de cadeiras que ninguém queria
perder. Chandler puxou Tanya e
Luka para um lado.
— Preciso que vocês os dois
fiquem aqui, caso ele volte pelo
Heath.
— Não quero — declarou Luka.
— Precisamos de manter… —
começou Chandler.
— Agente, porque é que ainda
não saiu? — interrompeu Mitch às
voltas no gabinete, esfregando o
polegar no indicador com
ansiedade.
— Quero que o Luka fique aqui
— respondeu Chandler. — Como
proteção.
— E eu quero-o lá fora —
declarou Mitch. — Como reforço.
— Eu quero estar lá fora —
implorou Luka, avançando em
direção à porta.
Chandler olhou para o jovem
colega ansioso, que implorava para
não ficar ali dentro como uma
criança de castigo.
— Vai lá — disse ele,
suspirando.
Luka não precisou que lhe
dissessem duas vezes e correu para
se juntar a Flo. Chandler virou-se
para Tanya.
— Eu fico — disse ela com um
aceno de cabeça.
— Não se preocupe, terá
companhia, Tanya — anunciou
Mitch. — Vou deixar o Roper
consigo — disse, apontando para o
homem grande desajeitadamente
preso atrás de uma secretária.
Embora não quisesse deixar
Tanya — e Nick, mais uma vez —
para trás, e preocupado com a
possibilidade de ser mais uma caça
aos gambozinos orquestrada por
Gabriel para deixar a esquadra
aberta a um ataque, Chandler sabia
que tinha de estar lá fora, a
comandar as buscas nas quintas
para tranquilizar alguns dos
moradores mais nervosos e garantir
que os seus concidadãos estavam
em segurança. Nunca ali alguém
fora morto e queria muito que as
coisas continuassem assim.
43

Chandler levou Sun e MacKenzie


até à quinta de Brian East, a
estrada de terra esburacada
extremamente traiçoeira no escuro.
Chegando ao portão da frente,
desligou os faróis e parou. Viu uma
única luz na casa térrea; a cozinha
ou a sala. A casa de seis
assoalhadas com quatro crianças
abaixo dos doze anos estava
ominosamente escura.
Saindo do carro, esfregou as
mãos para acalmar os nervos. Os
dois colegas saíram da escuridão
todos vestidos de preto. Pretendiam
inspirar confiança, mas ali no meio
da terra e dos celeiros enferrujados,
davam nas vistas.
— Fiquem perto de mim —
sussurrou Chandler. — E
mantenham as armas nos cintos.
Há crianças aqui.
Avançaram devagar até à casa,
atentos a valas e cercas escondidas
na escuridão, Chandler quase
caindo algumas vezes antes de
chegarem ao galinheiro e serem
recebidos pelos cacarejos
murmurados de galinhas
despertadas do seu sono.
Murmurou instruções aos dois
colegas.
— Vão dar a volta. Verifiquem as
janelas, mas não espreitem
diretamente por elas, pois podem
assustar as crianças. Se alguma
coisa parecer estranha, venham
aqui ter, okay?
A expressão de Sun permaneceu
impassível como sempre,
MacKenzie concordando em seu
nome com um aceno de cabeça
solitário antes de partirem,
separando-se enquanto
contornavam o tanque de gasolina
e desapareciam de vista.
Uma vez sozinho, Chandler
concentrou-se na janela da cozinha.
Ao aproximar-se, a luz residual da
sala iluminou-a o suficiente para ele
ver que estava vazia, e tipicamente
desarrumada, pratos no lava-louça,
migalhas na mesa. Nada fora do
comum.
Deslizando ao longo da
estrutura de madeira dilapidada,
chegou à janela da sala. Por
momentos não se atreveu a olhar
mas, enchendo-se de coragem,
espreitou lá para dentro, esperando
encontrar uma família descontraída
diante da televisão. Não ficou
desapontado. Brian East estava lá,
esparramado na poltrona, a lutar
por espaço para os pés no chez-
lounge com a mulher e os dois
filhos mais velhos, pés descalços a
bater em pés descalços, a televisão
a banhá-los numa luz azul.
Chandler soltou um suspiro de
alívio. Os East estavam bem.
Encontrá-los vivos e inteiros
confirmava a sua teoria de que
Gabriel os mandara numa busca
infrutífera. Chandler decidiu não os
incomodar.
De repente, Diane East olhou
para o marido, que se sentou
rapidamente, tombando a lata de
cerveja no tapete. Tinham ouvido
alguma coisa. Chandler sabia o quê.
Chegou às traseiras a tempo de ver
Brian atacar uma figura misteriosa
de preto no alpendre.
— Brian, Brian, sou eu! — gritou
Chandler.
Brian fez recuar o punho e olhou
para a escuridão.
— Eu quem? — rosnou com voz
arrastada.
— O sargento Jenkins —
respondeu Chandler, mantendo-se
longe de qualquer soco que o ex-
pugilista amador Brian East
pudesse desferir. Agora, de perto,
via que Sun e MacKenzie tinham
apontado as suas armas a Brian.
— Que porra está a fazer aqui?
— perguntou Brian.
Embora tenso, Chandler sentiu-
se um pouco aliviado. Vinda de
Brian East, aquela era uma reação
educada, quase reservada. Fez sinal
aos homens de Mitch para baixarem
as armas. Nenhum deles reagiu.
— Guardem isso — insistiu
Chandler, esperando até que ambos
obedecessem com relutância.
A mulher de Brian, Diane,
espreitava pela porta, contendo os
quatro filhos.
— Quem é? — perguntou.
— Voltem para dentro —
ordenou Brian.
A família não se mexeu.
Brian virou-se para Chandler,
uma sobrancelha espessa erguida,
perguntando em silêncio por que
motivo Chandler ali estava.
— Estávamos apenas a verificar
uma coisa — respondeu ele.
— A verificar o quê?
— Se estava aqui mais alguém.
— E? — perguntou Brian,
olhando para a escuridão em volta
deles.
— Nada. Podem voltar para
dentro e aproveitar a vossa noite.
A carranca de Brian indicava que
não estava satisfeito. Os seus olhos
semicerraram-se como se
suspeitasse que a polícia estava a
tramar alguma coisa.
— Não andem por aí a
bisbilhotar nas minhas coisas —
disse ele.
— O que encontraríamos? — Sun
falou finalmente, a sua voz lírica e
inesperada.
— Nada — respondeu Brian, sem
rodeios.
— Não vamos bisbilhotar —
prometeu Chandler.
Havia pouco para bisbilhotar,
agora que tinham confirmado que
Gabriel não estava ali.
— Brian, anda para dentro —
ordenou Diane.
Mas Brian ficara curioso.
— Quem são estes dois? —
perguntou, indicando com a cabeça
Sun e MacKenzie.
— Estão a ajudar-nos —
respondeu Chandler, sem mais
explicações.
— Bem, foi uma sorte não terem
ficado com as cabeças amolgadas
— rosnou Brian enquanto recuava
para a porta.
Chandler viu-o entrar antes de
se virar para os agentes de Mitch.
— Porque sacaram das armas?
— Ele deu um soco — respondeu
Sun, indiferente à repreensão.
— Invadiram o jardim do
homem na calada da noite. É uma
sorte ele não ter uma arma.
— Se assim é, então ele
também teve sorte — retorquiu Sun
com frieza.

Foi muito mais fácil na quinta de


Mincey; encontraram o homem no
alpendre, a desfrutar de um cigarro
de enrolar. Convidou-os para uma
cerveja, apesar de ser abstémio
desde que a primeira mulher o
deixara. Respondeu às perguntas
de Chandler com bom humor. Não
tinha visto nada fora do comum
naquela noite além do filho mais
novo, Wayne, a tentar sair pela
janela da cozinha porque o tinham
desafiado. Não houvera carros nem
motos, de facto, nenhum
movimento até Chandler e
companhia chegarem.
Pondo fim à incursão noturna,
Chandler recebeu uma atualização
de Nick sobre as outras buscas.
Reinava a mesma calma em todo o
lado, nas quintas, nos bares, no
salão da igreja e até na própria
igreja. Gabriel não estava em lado
nenhum.
As equipas regressaram à
esquadra.
Mitch estava de um lado para o
outro, nervoso.
— Quero todas as outras quintas
verificadas no caso de alguém ser
refém ou lhe ter dado guarida.
— Vamos levar pelo menos até
ser de manhã — avisou Chandler.
— Eu sei.
— Como quer que isso seja
feito, inspetor? — perguntou Luka.
Chandler ficou irritado com a
vontade de agradar do outro. Ao
fim de dois dias, Mitch amansara o
cavalo selvagem.
— Como tudo — respondeu
Mitch. — Comecem do princípio.
Comecem do princípio. Ali
estava outra vez. Outro lembrete
da nota na cabana: «Eles foram
nomeados no princípio.»
Quando Mitch se lançou num
discurso motivacional sobre
redobrarem os esforços, Chandler
reviu o que Gabriel dissera ao
telefone: a declaração de que ia
matar noventa. Eram palavras
chocantes, possivelmente para
fazê-los entrar em pânico,
abandonar a esquadra e deixar
Heath exposto, mas o tom com que
ele dissera aquilo fez Chandler
pensar que Gabriel tinha um plano
exato de como proceder. Mas matar
trinta e cinco pessoas não podia ser
uma ciência exata, então, talvez,
ao proferir o número noventa, ele
quisesse dizer exatamente isso.
Pretendia matar noventa; não um
total de mortes, mas o número.
— O Gabriel disse que ia matar
noventa.
Chandler disse aquilo em voz
alta, interrompendo Mitch que
estava lançado.
— Sabemos isso, sargento.
Estamos a tentar impedi-lo — disse
Mitch, mais exasperado do que
irritado.
— Não. Ele disse que ia matar
noventa. O número. O Heath
mencionou no seu depoimento que
o assassino disse que ele seria o
número cinquenta e cinco. Temos
considerado isso como se o Heath
fosse a quinquagésima quinta
vítima, mas e se ele fosse o número
cinquenta e cinco?
Mitch estava a ficar visivelmente
frustrado.
— O que quer dizer?
— Bem, se ele matou cinquenta
e quatro pessoas, por que razão há
apenas seis campas e oito nomes
na lista que conseguimos ler? E se
for o nome que ele procura, como
se o nome de Heath estivesse
numa lista?
— Que lista? — insistiu Mitch,
impaciente. — A da cabana?
— Sim. Ou uma lista noutro
lado.
— Isso não é muito útil,
sargento. Volte quando tiver…
Chandler continuou à mesma.
— Ele referiu que o Gabriel
disse: «Eles foram nomeados no
princípio.» Mas o princípio de quê?
— Sei de que fim se aproxima,
sargento — bradou Mitch. — O da
sua carreira.
Chandler ignorou-o e olhou para
os outros.
— Teria de ser o princípio de um
livro — sugeriu Tanya.
— Que livro?
Mais olhares confusos. Alguns
dos agentes conversavam entre si,
duvidando da teoria de Chandler ou
da sua sanidade.
Então a resposta ocorreu a
Chandler.
— O Génesis. O princípio da
Bíblia. Uma lista de nomes.
Virou-se para Tanya, mas ela já
retirara a Bíblia preta de capa dura
da gaveta da secretária, uma cópia
bem manuseada mas ainda inteira.
Abriu no princípio, no Génesis. As
primeiras páginas revelaram uma
lista de nomes.
— O que é o cinquenta e cinco?
— perguntou ele.
Ela contou. Os oficiais
começaram a andar de um lado
para o outro, agora com a atenção
em Chandler, em vez de Mitch, que
tentava fazê-los concentrarem-se
nas suas ordens.
— O que é? — perguntou
Chandler, impaciente.
— Dá-me um… — pediu Tanya.
Assentiu com a cabeça enquanto
contava os últimos. Olhou para ele.
— É Het.
Chandler olhou para Mitch. Ao
pronunciar o nome, viu a
compreensão espalhar-se pelo rosto
do inspetor, com os lábios de novo
a ficarem azuis. Disse os outros
nomes da lista encontrada na
cabine.
— Adam, Seth, Eve.
Tanya analisou as páginas.
Outra longa espera.
— Está tudo aí. De alguma
forma.
— Jared, Sheila, Noah.
Ela assentiu novamente.
— E o número noventa? —
perguntou Chandler.
— Espera — pediu Tanya
enquanto contava em voz alta.
Finalmente teve a resposta. — É
Sarai — disse ela.
— Temos alguma na vila? —
gritou Mitch, dirigindo isso a
Chandler e à sua equipa. Viu
abanares de cabeça de Tanya e
Luka. — Não há bebés com nomes
esquisitos? — acrescentou
esperançoso.
Chandler não respondeu,
pegando na Bíblia de Tanya.
— Há… — começou, lembrando-
se de algo que lhe fora ensinado na
catequese muitos anos antes.
Folheando as páginas, encontrou o
que procurava. Sentiu um arrepio
na espinha e teve de fazer um
esforço para falar. — Sarai foi
rebatizada Sarah na anunciação do
nascimento de Isaac.
44

Sem uma palavra, Chandler saiu


a correr da esquadra, mal ouvindo
Mitch gritar que queria uma lista de
todas as Sarais, Saras e Sarahs da
vila e zona circundante.
Abriu caminho pelos jornalistas,
enfiou-se no carro e arrancou a
grande velocidade. Virando a
esquina para a Beaumont, ligou
para o telemóvel da mãe.
Provavelmente não havia
necessidade de se preocupar, disse
a si mesmo. Mais outra busca
infrutífera. O estupor fazia-os
descrever círculos com Chandler
como vítima daquela vez. O
telemóvel continuava a chamar,
cada toque sem resposta a
aumentar a sua sensação de
pânico.
Ainda estava a tocar quando
virou para a Princes, o eixo
dianteiro a tentar enterrar-se no
asfalto quente. Onde diabo estava
ela?
Atenderam ao décimo toque.
— Mãe? — perguntou ele,
aliviado. — Estás…?
— Tente de novo — respondeu
Gabriel, a sua voz suave
perpassada de alegria.
Chandler quase colidiu com um
poste, lutando por recuperar o
controlo.
— Gabriel?
— Correto.
— O que fez?
— Nada — respondeu
inocentemente.
— É melhor não os magoar —
avisou Chandler a acelerar a fundo,
as árvores, os carros… a sua vida…
a passarem a grande velocidade.
— Eles estão em segurança.
— Não faça nada — avisou
Chandler.
— Você também não. E não
pense em informar o Mitchell ou
qualquer um dos outros.
— Não os magoe — implorou
Chandler, entrando na Mellon’s. Mal
conseguia ver a estrada; imaginava
a casa dos pais e o que poderia
estar ali a acontecer. Pestanejou
com força para tentar bloquear as
imagens.
— Pode chegar demasiado tarde
— disse Gabriel.
A ameaça de violência encheu o
carro a ponto de explodir.
— Deixe-me falar com eles —
pediu Chandler, pois a casa dos
pais não aparecia suficientemente
depressa, mas as ruas estavam
muito escuras e eram demasiado
angulosas para ir mais depressa.
— Vai falar com eles
novamente… se fizer o que eu digo.
— Não se… — começou
Chandler, mal contendo a fúria. Os
pneus chiaram quando virou para a
Greensand. — O que quer?
— Uma troca.
— O que quer dizer com troca?
— Uma troca, sargento —
respondeu Gabriel. — O Heath pela
sua filha. Pela Sarah.
Chandler tentou assimilar a
exigência com o seu cérebro
sobrecarregado. O que queria ele
dizer com Heath por Sarah? O
homem na cela da prisão em troca
da sua filha? Não podia ser.
— Por norma, não sou grande
adepto de matar crianças, a menos
que seja absolutamente necessário
— continuou Gabriel. — Claro,
também é verdade que, sendo
católica, ela nasceu pecadora, mas
não posso culpá-la por isso antes
de ela ter a oportunidade de se
redimir.
Chandler não conseguiu
encontrar palavras para responder
àquilo, o choque remetendo-o ao
silêncio. Ficou de tal forma alheado
que só voltou à realidade depois de
galgar o passeio e tombar um
cartaz de «Vende-se», a madeira a
estilhaçar-se.
— Ainda aí está, sargento? —
disse Gabriel, divertido.
— Eu…
— Com certeza que é uma
decisão simples, certo? As pessoas
enterradas na colina, ou um
desconhecido fala-barato como o
Heath, não significam nada para si.
Quero dizer, é um homem de
família; um polícia, não um
psicólogo, certo?
Através da sua confusão,
Chandler percebeu que tinha de
manter Gabriel ao telefone. Mais
alguns minutos seriam suficientes.
— Despache-se, sargento. Tome
a sua decisão.
— Preciso de tempo.
— Para quê? — A voz suave e
zombeteira ficou tensa. — Trata-se
de uma escolha fácil. Os seus
filhos… a carne da sua carne… em
troca de um homem que não
conhece. Um homem de quem nem
sequer gosta, tenho a certeza.
Gabriel acertara. Mesmo tendo-
se provado que ele era a vítima
inocente, não havia nada em Heath
com que Chandler tivesse
simpatizado, nada que o
assinalasse como boa pessoa, uma
pessoa que valia a pena ser salva.
Mas, por outro lado, quem era ele
para julgar? Chandler empatou um
pouco mais.
— Vou precisar de tempo.
— Para decidir algo tão simples
como isto? Não admira que não
consiga apanhar-me.
— Não. Vou precisar de tempo
para tirá-lo de lá.
Chandler estava em Howe
Street. Sessenta segundos mais e
teria Gabriel cercado. Com um tiro
na cabeça se necessário.
— Tem uma hora.
— Não, espere…
— E se eu vir algum polícia,
estadual, militar ou aquele seu ex-
parceiro, mato-os a todos com a
mesma facilidade. Sabe, Chandler,
nem Deus, nem a polícia nem os
inocentes podem impedir o trabalho
do Diabo.
— Quero ver se ela está bem.
— E pode ver. Assim que me
trouxer o que pedi. E lembre-se:
vem sozinho. Depois digo-lhe onde.
Sei que conhece bem a floresta.
Chandler estava em Crowe
Street, a rumar à luz do alpendre
que o guiava como um farol.
— O que quer dizer?
Mas Gabriel desligara.
45

Saltou para o passeio com tanta


velocidade que quase chocou com o
vidro da porta. Ao sair do carro e
sacando a arma, recordou as
palavras de Gabriel. A ameaça e os
comentários, palavras e frases ditas
como piadas que Gabriel parecia
supor que Chandler apanharia.
Como se ele conhecesse Gabriel ou
Gabriel o conhecesse. Observações
maliciosas sobre Chandler não se
importar com as vítimas e
prosseguir com a sua vida depois
de os casos terminarem.
«É um homem de família, um
polícia… não um psicólogo, certo?»
Além disso, sabia que Mitch fora
parceiro de Chandler. Como? Teria
ouvido alguma coisa na esquadra?
Ou era assim tão óbvio? Ou apenas
sabia? Não podia ser alguém que
tinham prendido. Chandler sabia
isso pela data de nascimento nos
registos do orfanato. Gabriel era
demasiado jovem para ter sido um
deles, quando ele e Mitch
trabalharam juntos. Talvez Gabriel
tivesse mentido sobre a sua idade
para ser igual à de Heath, para
ajudar a sua história a encaixar-se
na de Heath. Também existia a
possibilidade de Gabriel ser alguém
que Mitch tivesse ofendido em
Perth — mas então porquê levar o
caso para ali e envolver Chandler e
a família, se o alvo do seu rancor
era unicamente Mitch?
Chegando à janela da frente,
olhou para dentro. A luz estava
acesa, mas o pai não se encontrava
de guarda. A sala estava vazia, o
televisor desligado, o piano no
canto abandonado. Tudo parecia
normal. Sentiu crescer a esperança
de que Gabriel não tivesse ali
estado e de que o telefonema,
tudo, nada mais era do que uma
piada doentia de um estupor,
enganando-os — especialmente a
ele — para se divertir. A esperança,
no entanto, era uma emoção
facilmente extinta e o medo
envolveu Chandler quando ele abriu
a porta e entrou.
A sala de estar estava
realmente vazia, os seus passos
pesados a ecoarem no chão de
madeira. O desespero de ver os
filhos, de vê-los vivos, dominou-o,
mas resistiu a chamá-los e a indicar
a Gabriel a sua presença.
Com a arma apontada para o
chão, Chandler aproximou-se da
cozinha. Pensamentos do pior
começaram a preencher a sua
imaginação, visões de sangue e
agonia, de terror. Ainda assim, não
via sinais de luta, nenhum vestígio
de sangue ou de salpicos, nenhum
gemido terrível de alguém
mortalmente ferido. Outro
pensamento forçou o seu caminho.
E se ninguém estivesse ali? Poderia
encarar isso como um bom sinal ou
não?
Inspirando profundamente,
dobrou a esquina. O cano da sua
arma ficou apontado para uma
forma no meio do chão, presa às
pegas dos armários da cozinha e
lutando para se libertar. Era Teri,
amordaçada, as pernas a bater nos
ladrilhos escorregadios sem
conseguir firmar-se. Os seus olhos
estavam cheios de medo e ele
tentou perceber se o que via neles
era perigo, um aviso. Ela girou os
olhos desesperadamente para a
direita. Chandler seguiu o seu olhar.
No canto mais distante da cozinha
havia mais duas figuras caídas no
chão, os pais, amarrados um ao
outro, o pai a sangrar de uma ferida
na cabeça. Correu para eles.
— Vocês estão bem? —
perguntou a ambos.
A mãe assentiu, o pai gemeu de
dor.
— Ele ainda aqui está? —
perguntou, olhando rapidamente
por cima do ombro.
A mãe abanou a cabeça.
Chandler desamarrou-os e ela
própria tirou a mordaça.
— Ele levou-os — disse
ofegante.
Estar preparado para aquilo não
suavizou o golpe. De repente, as
suas extremidades ficaram
dormentes como se todo o sangue
as tivesse abandonado.
— Ambos? Para onde?
— Não sei — soluçou a mãe.
— Há quanto tempo?
— Meia hora. Levou o meu
telemóvel com ele. O teu pai tentou
impedi-los…
Chandler tirou a mordaça ao pai.
— Desculpa, filho — disse ele,
os olhos a fecharem-se devido à
dor.
— Ele magoou…
Não conseguiu terminar a frase.
— Não, apenas os levou. Avisou-
nos… avisou-te… para não contares
à polícia.
De trás veio um resmungo
perturbado.
Chandler voltou para junto de
Teri e desamarrou-a. A sua
expressão espelhava a dele: o
mesmo poço sem fundo de
preocupação. Esperava uma
torrente de insultos, mas em vez
disso ela envolveu-o com os braços
e apertou-o com força, a primeira
vez em anos que estavam assim
tão próximos, unidos pelo medo.
Levou todos para casa de um
dos amigos mais próximos, o pai a
deixar com relutância a espingarda
para trás para não levantar
suspeitas, e a mãe e Teri a terem
de ser persuadidas a não
patrulharem as ruas à procura de
Sarah e Jasper. Daquela vez, os
jornalistas recuaram quando ele
entrou disparado na esquadra.
Esperava encontrar uma grande
agitação, mas a esquadra estava
praticamente vazia. Preso à receção
e ignorando o telefone, Nick
animou-se quando o viu.
— Sargento!
Chandler assentiu e levou o
dedo aos lábios.
— Onde estão todos?
Nick clicou no rato.
— Na casa do Pete Stenzl. O
Tom DeVrai ligou a dizer que viu
luzes acesas no barracão do Velho
Pete e ouviu gritos. Acham que ele
está a esconder alguma coisa.
— Provavelmente está — disse
Chandler —, mas não é o Gabriel.
Nick pareceu confuso.
— Como é que sabe?
Chandler hesitou. Não havia
necessidade de revelar o que sabia.
— É só um palpite. O Pete tem
lá provavelmente um ou dois carros
roubados. O grito pode ser o
moinho a funcionar.
Nick anuiu.
— Ele perguntou para onde
tinha ido.
— O Mitch?
— Sim.
— O que lhe disseste?
— Que foi ver como estava a
sua família.
Chandler tamborilou com os
dedos na mesa, indicando que tinha
sido a resposta correta.
— Se não voltasse, ele ia
mandar um carro para ver como o
sargento e a Sarah estavam —
continuou Nick.
A respiração ficou presa nos
pulmões de Chandler. Não
precisava de agentes a bisbilhotar e
a estranharem a casa estar vazia.
— Estão todos bem. Não há
necessidade de incomodar as
crianças. Já dormem.
Chandler esperava ter vendido
bem a mentira. Mudou de assunto.
— Quem temos a cuidar do
nosso prisioneiro?
— Eles — respondeu Nick,
apontando para Roper e Flo a
martelarem nos respetivos
teclados.
Conseguia lidar com dois,
pensou Chandler.
— E o prisioneiro está bem? —
perguntou, levantando a voz para
ser ouvido.
Roper respondeu, mas não tirou
os olhos do ecrã.
— A queixar-se, como de
costume.
— Acha que devíamos ter mais
gente a protegê-lo — acrescentou
Flo, concentrada no computador.
— Considera-se um VIP — disse
Nick. — Diz que temos de protegê-
lo a todo o custo.
— É por isso que temos de tirá-
lo daqui — declarou Chandler.
Flo levantou os olhos do ecrã, e
franziu a testa.
— Não fomos informados disso,
sargento — disse ela. A sua
expressão e o seu tom eram de
desconfiança.
— Ordens do seu chefe —
respondeu Chandler encarando os
dois, tentando aparentar um ar de
autoridade.
— E levá-lo para onde? —
perguntou Roper, levantando-se. O
seu tamanho era impressionante,
mas o ligeiro tremor na sua postura
indicava que não recuperara
totalmente do ataque de Gabriel.
Se chegasse a haver um confronto
físico, Chandler teria uma
possibilidade de pelo menos
cinquenta por cento.
— Ele não está seguro aqui,
sargento? — interveio Nick num
tom cauteloso. Se alguém pudesse
reconhecer que Chandler não agia
de forma normal, seria o seu jovem
agente.
— Acreditamos que o Heath já
não é um alvo — respondeu
Chandler, indo ao armário buscar as
chaves da cela —, mas não nos
agrada que o Gabriel saiba onde ele
está. Pode mudar de ideias. O
nome do Heath ainda está na lista.
Flo assentiu devagar.
— Só preciso de ligar ao inspetor
para confirmar isso.
Chandler hesitou à procura de
uma desculpa. Nada lhe ocorreu.
— Força — disse. Restava-lhe
esperar que Mitch estivesse sem
contacto rádio na quinta de Stenzl.
Decidiu seguir com o plano,
enchendo-se de confiança. Agarrou
nas chaves e foi até às celas. Até
ao momento, detinha o poder.
Ainda era a sua esquadra. Pelo
menos até fazer o que planeava.
Heath andava de um lado para o
outro na cela, com o rosto vermelho
e inchado de alguma forma ainda
mais suado, coberto por uma
camada grossa e impenetrável de
gordura.
Tentando acalmar os nervos e
antecipar as perguntas que Heath
poderia fazer, Chandler abriu a
cela.
— Apanhou-o? — perguntou
Heath, esperançoso.
Chandler abanou a cabeça.
Heath praguejou e olhou em volta,
talvez à procura de uma coisa
macia a que pudesse dar um
pontapé.
— Mas não há problema — disse
Chandler.
— Não há problema?! —
exclamou Heath, já sem acreditar
nas garantias da polícia. — Não me
vai deixar sair até o apanhar. Ou
ele me apanhar.
Chandler rangeu os dentes. Para
fazer aquilo, precisava de Heath
calmo.
— Ele arranjou outro alvo —
declarou num tom tão inexpressivo
como o de Flo.
Heath parou de andar, de
repente interessado.
— Ai sim?
— Sim.
— Está a dizer-me a verdade?
Chandler assentiu.
— Ainda bem, porra! — bradou
com um sorriso que Chandler não
retribuiu. Se ainda não estava
totalmente convencido do que
tencionava fazer com Heath, o
comentário seguinte do homem
convenceu-o.
— Outro pobre coitado que
sofra.
Foram necessários alguns
segundos para que a sua fúria
diminuísse.
— Então posso ir? — perguntou
Heath.
— Não.
— Não como?!
— Não queremos correr o risco
de ele nos enganar como antes.
Podemos escondê-lo num sítio mais
confortável. Num hotel, com todas
as despesas pagas. — Aquela era a
sua moeda de troca: conforto e
comida depois de duas noites numa
cela estéril.
A oferta pareceu deixar Heath
vacilante; não era liberdade
absoluta, mas… Chegou a uma
conclusão.
— Qualquer lugar é melhor do
que esta merda.
Tirando Heath da cela, Chandler
levou-o para o gabinete. Roper e
Flo estavam ao telefone, a tentar
contactar o chefe.
— Conseguiram falar com ele?
— perguntou Chandler, lutando
contra os nervos.
— Não, mas… — começou Flo.
— Eu vou consigo —
interrompeu Roper, dirigindo-se a
eles com um leve coxear.
Chandler abanou a cabeça.
— Não. Ninguém além de mim e
do vosso chefe saberá onde ele vai
estar. — Acenou a Heath para o
reconfortar, mas só queria era sair
dali. Cada segundo que ficavam
aumentava a possibilidade de Flo
contactar Mitch.
— Segurança adicional — disse
Roper.
— Não creio que o Mitch iria
querer dispensar um valioso
membro de sua equipa para fazer
de ama seca.
— Ei! — exclamou Heath.
— Sabe o que quero dizer —
retorquiu Chandler.
— Não devia transportá-lo
sozinho — observou Roper. —
Fazemos isso sempre com duas
pessoas.
— Normalmente concordaria,
mas, como disse, isto tem de ser
mantido em segredo. É
fundamental. — Olhou para Flo.
Continuava a tentar contactar o
chefe.
— O homem tem razão — disse
Heath, apontando para Roper. —
Não quero ir lá para fora sozinho.
Chandler ponderou as suas
opções. A situação estava a
descontrolar-se.
— Muito bem — disse,
apontando para Roper. — Você vem
comigo até ao local.
Roper olhou para Flo e avançou
na direção de Chandler. Chandler
firmou os pés no chão e rezou para
que a determinação do grandalhão
tivesse sido enfraquecida pelo
ataque anterior. Esperando até
Roper passar por ele, Chandler tirou
as algemas do cinto e enfiou uma
no pulso de Roper. Na fração de
segundo que o esbirro de Mitch
levou a reagir, Chandler prendou a
outra metade ao pulso de Heath.
Heath e Roper estavam agora
juntos.
— Que diabo? — perguntou
Heath. A sua confusão era igual à
de Roper, embora isso terminasse
abruptamente quando Chandler
sacou a arma e bateu de lado na
cabeça do agente, já dorida. Roper
caiu, arrastando Heath com ele.
Chandler virou-se para Flo. Ela
olhava para ele e para o colega no
chão e pressionava os
auscultadores contra os ouvidos.
Teria Mitch atendido? Quando
Chandler se aproximou, ela sacou
da arma. Com um piparote, ele fez
a arma cair e deslizar pelo chão.
Levantando Flo, prendeu-a pelo
pescoço debaixo do braço e
arrastou-a para as celas. Em poucos
segundos, e apesar da vigorosa
resistência de Flo, pusera-a na
velha cela de Heath. A porta
fechou-se quando ela deslizou pelo
chão, amaldiçoando-o.
Quando voltou, Nick saíra da sua
secretária e estava junto de Heath,
aterrorizado, e de Roper, ainda
desmaiado.
— Sargento? O que está a fazer?
— perguntou o seu jovem agente,
olhando para ele com as mãos ao
lado do corpo. Parecia confuso,
atordoado. Nenhum treino o
preparara para aquilo.
— Ele enlouqueceu, pelo amor
de Deus! — exclamou Heath,
tentando mover-se, mas incapaz de
ir longe com o peso morto de Roper
preso ao seu pulso. — Pare-o! Dê-
lhe um tiro! Apanhou a doença do
outro filho da puta.
— Sargento — implorou a Nick.
— Não faça isso.
Chandler deu um passo à frente.
— Nick, não posso explicar, mas
tenho de o fazer. — Fechou os
punhos. Não queria magoar o seu
jovem colega. Não queria magoar
ninguém.
— Pode explicar — implorou
Nick. — O que quer que seja.
— Sim, explique-se, porra —
acrescentou Heath, ainda a tentar
soltar o pulso.
Chandler sentou-se na cadeira
mais próxima e respirou fundo. Pelo
canto do olho, viu Nick aproximar-
se.
— Seja o que for, podemos
resolver — disse Nick, soando tão
assustado como Chandler. —
Vamos buscar o inspetor e os
outros e encontrar esse tipo. Não
tem culpa de ele ter fugido. Todos
fizemos o nosso melhor.
Nick chegara junto dele.
Chandler esperou: a mão pousou ao
de leve no seu ombro, tentando
consolá-lo.
Erguendo-se de um pulo,
Chandler agarrou-lhe a mão e
girou-lha para trás das costas,
forçando a cara de Nick a descer
para a mesa de plástico rígido
enquanto ele gritava de dor.
— Sinto muito, Nick.
Dobrando-o e usando o braço
como leme, conduziu o jovem
colega até às celas, deixando-o na
do meio. Duas celas ocupadas,
faltava uma.
— Sargento… Chandler… não
faça isto — implorou Nick.
— Vão despedi-lo se não nos
soltar. Metem-no numa prisão como
esta — gritou Flo da sua cela.
Chandler ignorou as súplicas,
voltando para junto de Heath, que
gritava por ajuda enquanto se
arrastava para a porta, levando o
inconsciente Roper com ele.
Quando Chandler se aproximou,
parou de rastejar e assumiu uma
postura defensiva.
— O que é que quer? Está a
trabalhar com ele?
A acusação irritou Chandler.
Sentia-se frustrado por não poder
explicar que não enlouquecera, que
havia um plano.
— Não, não estou a trabalhar
com ele.
— Então que porra é esta?
Chandler abriu a algema do
pulso inerte de Roper e fechou-a
em volta de um cano na parede,
prendendo Heath.
— Queria sair da cela, não
queria?
— Não assim. Queria ser
libertado, não ser feito refém por
outro psicopata.
Agarrando Roper pelos braços,
Chandler arrastou o agente
inconsciente pelo chão e meteu-o
na última cela. Saiu dali ao som de
outra súplica de Nick para não fazer
nada estúpido.
Demasiado tarde.
Quando se aproximou do
homem assustado que sacudia as
algemas em vão, ocorreu-lhe algo.
Gabriel soubera dele e de Mitch e,
pelo que insinuara ao telefone, da
busca deles em Hill todos aqueles
anos antes. Mas como poderia
saber esses pormenores? Quem
diabo lhe podia ter dito? Um dos
colegas da altura? Um dos
mercenários loucos que tinham
irritado? A família?
A família. O substantivo coletivo,
impessoal.
Chandler tentou recordar os
seus nomes. Não foi capaz, o que o
encheu de vergonha.
Concentrou-se e, aos poucos,
tudo voltou. Ali estavam eles:
Arthur, o velho contabilista
corpulento que se obrigara a
percorrer o mato durante semanas.
A mãe, Sylvia. A mulher orgulhosa e
endinheirada que acabara por se ir
abaixo com a pressão. E o filho
mais novo, de cabelo comprido e
desgrenhado, cujo nome estava tão
perdido na mente de Chandler
como o filho mais velho estivera no
mato. Chandler sempre pensara
nele como o rapaz. Estavam todos
ali, imagens profundamente
implantadas na sua memória,
apesar de ter tentado apagá-las.
Todo o episódio ali à espera que as
memórias voltassem novamente à
superfície.
Podia lembrar-se mal do que
tinha acontecido, mas nunca o
esqueceria.
46

2002

A comunicação de rádio matinal


do comando incitou Chandler e
Mitch a redobrarem os esforços
para persuadir a família a
interromper as buscas. Tinham-se
passado vinte e cinco dias sem
nenhuma descoberta. A opinião dos
chefes era que Martin desaparecera
e, provavelmente, estava morto,
embora nunca pudessem dizer
aquilo assim à família.
Mitch concordava com essa
decisão, o rosto e os braços
queimados do sol, os pés cheios de
bolhas e os tornozelos magoados
devido a numerosas colisões com
troncos rentes ao chão e pedras.
Aproveitou a oportunidade para se
queixar pela enésima vez que
estava ali a chamuscar-se à procura
de uma pessoa que não conhecia e
com que já não se importava. Se é
que alguma vez se importara.
Depois disso veio o ritual da
manhã: uma oração em grupo, na
qual Chandler participava por causa
do velhote, depois o pagamento, os
mercenários desgrenhados reunidos
em torno de Arthur, o velho
pagador, quase a babarem-se
quando o dinheiro saiu do seu
bolso.
Mitch deu uma cotovelada a
Chandler enquanto enfiava as botas
nos pés cheios de bolhas.
— Vais deixar que ele continue a
ser roubado quando não há
esperança de encontrar o tipo?
Mitch estava a provocá-lo.
Chandler sabia, mas respondeu à
mesma.
— Não percebes, Mitch; eles têm
esperança. Terão sempre
esperança.
A resposta do colega foi brusca.
— Esperança… mas sem
possibilidade.
— Não desistirias se fosse a tua
família.
— Ninguém da minha família é
suficientemente estúpido ou suicida
para se perder aqui.
— Pode ter sido um acidente —
observou Chandler, embora não
acreditasse nisso.
Mitch ergueu uma sobrancelha.
— Sabes que não foi um
acidente. Ninguém se afastaria
tanto por acidente. — Apontou para
ambos os lados do caminho que
percorriam no terreno acidentado.
— Ele pode estar em qualquer lado.
Morto a dois metros de nós e nunca
saberíamos. E mesmo que por
algum milagre ainda esteja vivo,
quanto mais tempo passarmos sem
descobrir nada, o mais provável é
nunca o encontrarmos. Talvez ele
já tenha ido para casa e esteja à
nossa espera.
Chandler tinha resposta para
aquilo.
— Nesse caso, entraria em
contacto com alguém.
— Ou talvez esteja a gostar da
atenção, até a tirar algum prazer
doentio dela. Os seus quinze
minutos de fama. Tanto quanto
sabemos, ele não suporta a família.
Talvez esta seja a sua vingança,
magoá-los como eles o magoaram.
— As tuas teorias estão a ficar
tão malucas como as deles — disse
Chandler, indicando o adolescente
de Murray River que estava a
guardar o dinheiro nas meias por
uma questão de segurança.
— Os mercenários saberão
desistir quando o poço estiver seco.
Talvez esteja na altura de dizeres o
mesmo à família.
Interrompendo a conversa, Mitch
mandou toda a gente começar a
andar, deixando Chandler a sopesar
as opções. Sabia que Arthur lhe
daria ouvidos se deixasse claro que
o seu filho partira. Mas poderia
fazer isso? Seria capaz de extinguir
os seus últimos vestígios de
esperança? E o que fariam depois
de a busca ser cancelada? Como
retomaria a família a sua vida?

No fim, Linda Keeler e a falta de


dinheiro fizeram isso. No vigésimo
sétimo dia após o desaparecimento
de Martin, Linda fez os cabeçalhos,
uma jovem dona de casa que saiu
porta fora e avançou para as
montanhas Azuis apenas com o
vestido de noiva e um par de ténis.
O marido deixara-a por uma colega
de trabalho, e a mente de Linda
decidiu que estava na altura de
partir também. As buscas pela dona
de casa bonita começaram com
todo o vigor e, como a sua família
era dona da segunda maior
empresa de camiões da Nova Gales
do Sul, os mercenários restantes
abandonaram as buscas por Martin
e aventuraram-se em pastos mais
verdes. Sem pedidos de desculpa,
sem nenhum adeus, limitaram-se a
partir. Todos menos o adolescente
de Murray River, que se afastou
com um adeus quase tímido a
Chandler. Mas este não lamentou
vê-lo ir também. Ao longo da busca,
o adolescente revelara-se cada vez
mais idiota.
Assim, apesar das temperaturas
que chegavam aos quarenta graus
durante o dia e da exaustão física e
mental, o grupo saiu novamente,
agora reduzido a quatro: Chandler,
Mitch, Arthur e o filho.
Percebendo que o tempo
escasseava, Arthur avançava pelo
terreno como uma pedra a cair de
uma ravina. Às vezes, Chandler
tinha de agarrar o colarinho
encharcado da camisa do homem,
amarelado do suor, grânulos de sal
a cobrir um pescoço que agora era
elegante, embora não inteiramente
saudável.
— Arthur.
— O que foi? — perguntou o
velho, tentando libertar-se como
uma criança castigada.
— Não se afaste de nós.
Arthur repeliu as mãos de
Chandler e avançou. Chandler
observou-o por alguns segundos, a
bola vermelha do seu rosto
queimado pelo sol a avançar pelo
mato rasteiro, antes de perceber
que o rapaz não tinha ido atrás do
pai, mas que o estudava ao seu
lado. Entreolharam-se, o rapaz
aparentemente hesitante sobre o
que fazer, rugas de preocupação
em torno dos olhos que nenhuma
criança daquela idade deveria ter.
Chandler perguntou-se se naquele
momento estariam a pensar a
mesma coisa: se o pai se tornara
um perigo para si mesmo e para
todos à sua volta.
— Porque te ralas? — perguntou
Mitch do outro lado. — Se ele tiver
um acidente, talvez pare com esta
merda.
Mitch já expressara a sua
opinião sobre o assunto. Não havia
glória em encontrar umas ossadas.
Não haveria aclamação individual
por tal descoberta, apenas uma
declaração no jornal a anunciar
que, após quase quatro semanas de
buscas, a polícia — em termos
genéricos — tinha descoberto os
restos mortais. Como de costume,
Mitch pensava apenas em si
mesmo.
Enquanto o rapaz corria atrás do
pai, Mitch continuou:
— Tens de lhes explicar que não
adianta. O tempo, o esforço, o
dinheiro que estão a desperdiçar.
— Eles precisam de chegar a
essa conclusão sozinhos —
respondeu Chandler. Não sabia se
tinha a capacidade de lhes pedir
que parassem, por muito que
quisesse voltar para Teri.
— E se nunca pararem?
Chandler acreditava que o
fariam. A determinada altura.
— Eles estão fodidos — disse
Mitch. — Têm a cabeça fodida.
Temos de parar isto. Tens de parar
isto. Se acontecer alguma coisa, a
culpa será tua. Se alguma coisa
acontecer ao outro miúdo…
— Então diz-lhes tu — retorquiu
Chandler.
Se Mitch queria tanto
interromper as buscas, podia dar a
notícia.
— Já tentei, mas tu és mais
chegado a eles.
O tom parecia insinuar que
Chandler fizera algo incorreto ao
criar um vínculo com a família.
— Porque haviam de nos dar
ouvidos? — perguntou Chandler.
Reformulou: — Não estão a dar-nos
ouvidos.
— Obriga-os — resmungou
Mitch. — Cada passo aqui dá-me
cabo dos nervos.
Mitch abrandou e deixou que
Chandler fosse primeiro atrás de
Arthur.
Chandler pediu uma pausa.
Precisavam de algum tempo para
respirar, de beber um pouco de
água e de ingerir qualquer alimento
que conseguissem engolir.
Arthur continuou a andar. E a
andar. Chandler pensou em ir atrás
dele. De repente, o velho virou-se.
Parecia exausto, mal conseguindo
aguentar-se de pé.
Chandler levou-lhe um pouco de
água.
— Sente-se bem?
Arthur assentiu, mas não falou,
bebendo a água. O filho sentou-se
ao lado dele e fez o mesmo.
— Acho que vi alguma coisa lá
em baixo — balbuciou Arthur entre
goles, olhando fixamente para os
pés, mas apontando para a
distância.
Chandler seguiu o dedo. Só
conseguia ver árvores e terra.
— Uma coisa?
— Parece um bocado de tecido.
Pode indicar… — Virou-se para o
filho. — Vai lá ver.
O rapaz levantou-se e estava
prestes a partir na direção em que
o pai apontara.
— Não. Fica aqui — ordenou
Chandler.
Arthur olhou para Chandler com
uma expressão magoada e
cansada.
— Estava lá… a agitar-se com o
vento.
— Já estamos todos a agitar-nos
com o vento — disse Mitch num
tom cheio de desprezo.
— Mostra algum respeito —
admoestou Chandler.
— E tu mostra alguma decência
e diz-lhes a verdade.
— Que verdade? — quis saber
Arthur, mas Chandler tinha-se
virado para o parceiro.
— A verdade? A verdade é que
és um estupor egocêntrico, Mitch, e
é melhor rezares para que isto
nunca te aconteça.
— Não vai acontecer. Não vou
ficar encalhado nesta parvónia para
sempre. Vou para Perth resolver
crimes reais, não andar atrás de
idiotas demasiado estúpidos para
encontrar o caminho de volta
depois de uma caminhada. Se é
que queriam ser encontrados. Como
tu mesmo disseste: somos polícias,
não psicólogos.
Chandler olhou para Arthur.
Tinha a cabeça baixa, demasiado
cansado ou intimidado para erguê-
la, o punho a fechar-se e a abrir-se
enquanto olhava para a terra
vermelha. Chandler sentiu vontade
de fazer o trabalho por ele: dar um
soco em Mitch. No entanto, o que
Mitch dissera era verdade; ele
pronunciara essas palavras. Mas
isso fora antes. Queria explicar-se a
Arthur, mas não lhe surgiram
palavras.
Mitch virou-se e voltou para o
acampamento sozinho, contra todas
as regras e bom senso.
— Vou arrumar a tralha e
regressar — disse ele sem se virar.
— Podes continuar a tomar conta
da porra dos Taylor se quiseres.
47

Taylor. Arthur Taylor. Um


apelido que devia ter sido difícil de
esquecer, dadas as circunstâncias,
mas Chandler perdera-o entre os
nomes estranhos da altura.
Mercenários chamados Chaz, Blazz,
Bagboy e Yippy, deliberadamente
obtusos. Mas Taylor… dizia-lhe
alguma coisa.
De repente, lembrou-se do
motivo. Tinha-o visto
recentemente.
Parou junto às secretárias,
ignorando os gritos de Heath. Até o
coro vindo das celas ficou reduzido
a um simples barulho de fundo
enquanto ele se debatia para
compreender o significado daquela
informação. Ainda estava a pensar
ao abrir o ficheiro do orfanato que o
comando em Perth enviara. Agora,
de repente, fazia sentido. Por que
motivo Gabriel sabia tanto sobre as
buscas por Martin, porque sabia
tanto sobre o passado dele e de
Mitch. E Hill.
Ele estivera lá.
David Gabriel Wilson já fora
conhecido como David Gabriel
Taylor, o irmão mais novo de Martin
Taylor, o seu novo nome
enterrando o passado para abrir
caminho para o futuro.
As recordações voltaram. O
rapaz — Davie, como Arthur o
tratara — tinha onze ou doze anos
na altura do desaparecimento de
Martin. E onze anos depois, voltara,
com apenas vinte e dois ou vinte e
três anos, embora parecesse mais
velho, com a pele marcada, o corpo
musculado, muito diferente do
rapaz inocente de cabelo comprido
que fora na altura.
Com a verdade à sua frente,
Chandler perguntou-se porque não
o reconhecera. Gabriel certamente
reconhecera Chandler; não devia
ter mudado muito ao longo dos
anos. Ainda era polícia em
Wilbrook, apenas com alguns quilos
a mais, e dois filhos. Mas Gabriel —
Davie — parecia uma pessoa
completamente diferente.
Porque voltara Gabriel? Para se
vingar? Se sim, de quê? E porque
matara seis pessoas antes de se
apresentar? O suor escorria pela
testa de Chandler e pingava na
mesa. O seu corpo parecia uma
panela de pressão sem pipo,
prestes a explodir a qualquer
segundo. Toda a sua vida prestes a
explodir. Tentou concentrar-se. A
razão do regresso de Gabriel era
importante, mas não era a questão
mais urgente — os seus filhos
estavam em perigo. Ocorreram-lhe
outros possíveis motivos. Será que
Gabriel — David — sentia que eles
tinham desistido das buscas
demasiado cedo? Ou que não
tinham feito o suficiente para
ajudar? Mas se Gabriel realmente
queria vingar o irmão, porque não o
fizera mais cedo, assim que
soubera que Chandler ainda ali
vivia? E se ele queria vingança e
apenas matar a família de
Chandler, porque estava a oferecer
uma troca? Para lhe tirar os filhos e
a testemunha? Para os matar a
todos?
Naquele momento, só queria
falar com Gabriel, falar com ele e
com os filhos.
Um grito vindo das celas
interrompeu-o; Nick a implorar que
Chandler se entregasse. Que não
fizesse o que planeava fazer.
— Eu sei quem ele é… quem é o
Gabriel — disse Chandler,
respondendo. — Sei como ele
conhece esta cidade e porque me
conhece. Porque conhece o Mitch.
Tudo. Vou encontrar-me com ele.
— Mas não me leva — declarou
Heath, sacudindo as algemas em
vão, desesperado.
— Deixe-nos sair, sargento
Jenkins — gritou Flo da outra cela.
— Só está a piorar as coisas para si.
— Não sei se isto pode ficar pior.
— Se vai ter com ele, precisará
de reforços — gritou Nick. — Eu
posso ajudar, sargento.
Com a oferta de Nick para
ajudar, um plano formou-se na
mente de Chandler. Um plano que
não poderia realizar sozinho.
Precisava de uma terceira pessoa.
Nick podia ser controlado, esperava
ele.
— Já deste um tiro em alguém,
Nick? — perguntou Chandler.
A falta de uma resposta disse-
lhe tudo o que precisava de saber.

— Não sei quem é mais maluco.


Tendo desistido de tentar
libertar-se, Heath ouvira com
incredulidade crescente Chandler
explicar o que se passava.
— Tenho de recuperá-los —
disse Chandler, tentando conseguir
o apoio do seu refém.
Não resultou.
— Desistindo de mim? Como a
porra de uma peça descartável.
— É uma armadilha. Tenho tudo
previsto. — Chandler não revelou
que, apesar de ter descoberto o
básico, ainda lhe faltava saber
muita coisa. — Preciso da sua
ajuda.
Heath abanou a cabeça.
— Não vai tê-la.
— O Nick vai cobrir-nos a
retaguarda.
Nick estava junto à parede
oposta, as mãos diante do corpo
com as algemas que Chandler
insistira em colocar-lhe antes de o
deixar sair da cela; ainda estava a
tentar determinar se Nick iria
ajudar ou resistir.
— Bem, isso enche-me de
esperança — observou Heath com
sarcasmo. De repente, o seu rosto
iluminou-se. — Ah! Bem, não vai
tirar-me daqui sem eu falar com os
jornalistas lá fora. Vou contar-lhes o
que se passa, que você
enlouqueceu e…
O toque do telefone
interrompeu-o. Todos ficaram a
olhar para ele. Se fosse Mitch ou
um dos outros e ninguém
atendesse, ficariam desconfiados.
— Sargento, não pode levá-lo —
disse Nick. — O senhor é polícia e
ele um membro da população que
tem de proteger.
Chandler fechou os olhos com
força. Não precisava que Nick lhe
lembrasse o seu juramento, mas as
imagens de Sarah e Jasper
impressas atrás dos seus globos
oculares substituíram todas as
outras considerações.
— Tenho dois outros membros
da população para proteger, Nick.
— E o que os torna melhores do
que eu? — perguntou Heath furioso.
Um milhão de coisas. Tudo.
Chandler fechou os olhos e respirou
fundo antes de falar.
— Às vezes é necessário correr
riscos — disse ele.
— Não com a minha vida.
— Não tenho escolha.
— Há sempre uma escolha,
sargento — murmurou Nick.
Chandler abanou a cabeça.
— Não desta vez.
Por mais desejoso que Chandler
estivesse de entregar Heath e
recuperar os filhos, continuava com
um grande problema: como tirar
um refém não complacente e um
possivelmente não complacente
Nick da esquadra sem serem vistos.
O telefone continuou a tocar,
parando durante alguns segundos,
e voltando a tocar.
Uma ideia formou-se na sua
cabeça. Era um tiro no escuro, mas
com um princípio central que ele
sabia que se manteria firme: a
curiosidade da imprensa.
Deixando Nick e Heath,
Chandler saiu pela porta da frente
para se dirigir à multidão reunida.
Gritando acima das perguntas
disparadas, informou os jornalistas
de que Gabriel fora encontrado e
cercado. Tentou manter-se calmo e
seguro enquanto «acidentalmente»
deixava escapar onde o cerco
decorria, dando o nome da quinta
abandonada de Potter a sul da
cidade, longe de Wilbrook, longe de
qualquer cobertura de rede
telefónica.
Seguiram-se mais algumas
perguntas, mas foram truncadas
quando o equipamento foi
rapidamente metido nas carrinhas,
indicações procuradas no Google e
retransmitidas, cada equipa
desesperada para ser a primeira a
chegar ao local, a primeira a relatar
a história do verão.
Chandler viu-os partir; a
imprensa e os locais a voltarem
para suas casas a fim de
acompanhar os desenvolvimentos
da melhor maneira possível pela
televisão.
Em pouco tempo, o parque de
estacionamento estava vazio. Olhou
em volta à procura da figura
demoníaca de Gabriel, mas não viu
nada.
Voltando para dentro, olhou
para Heath e Nick enquanto tirava
algo da caixa de roupa para a
caridade.
— Está na hora de ir.
— O que foi que fez? —
perguntou Nick.
— Dei-lhes uma história melhor
— respondeu Chandler. Inclinou-se
para Heath, que se encolheu contra
a parede. — Agora, senhor
Barwell… Heath… vou soltá-lo do
cano. Vai ficar calmo? — Chandler
olhou para ele, tentando intimidá-
lo.
Não houve resposta. Os olhos de
Heath estavam vidrados.
Chandler rodou a chave, tirando
a algema do cano.
— A sua outra mão, por favor.
Não vai magoar-se.
— Não precisa de fazer isso —
balbuciou Heath.
— Preciso sim. Esta é a única
maneira de detê-lo. O senhor será
um herói.
— Não quero ser um herói. Os
heróis morrem.
— Não desta vez.
— Posso pelo menos levar uma
arma?
— Não precisa. Eu tenho uma e
o Nick também.
Pondo a algema em volta do
outro punho de Heath, Chandler
fechou-a e ajudou o seu relutante
prisioneiro a levantar-se. Levou os
dois lá para fora.
Ao dar o primeiro passo para o
ar da noite, Heath gritou por ajuda,
a sua voz a atravessar o asfalto
vazio e a ser abafada pelos edifícios
de betão. Foi uma resposta
dececionante, mas esperada.
Chandler saltou para a frente e
enfiou a velha t-shirt que tirara da
caixa para esse fim na boca aberta
de Heath, sufocando os gritos.
Enquanto Heath continuava a
gritar para a mordaça, Nick
mostrou-se prestável.
— Onde está toda a gente? —
perguntou.
— Foram assistir à prisão do
Gabriel — respondeu Chandler,
empurrando Heath para a traseira
do carro-patrulha. Antes que ele
pudesse fazer o mesmo com Nick, o
seu jovem colega estendeu as
mãos.
— Disse que precisava de mim
para o plano, sargento. Então pode
tirar isto.
— Ainda não.
Não precisava de mais
surpresas. Precisava de tempo.
48

Chandler dirigiu-se ao parque de


estacionamento de terra onde se
tinham reunido mais cedo para
seguir Gabriel até ao seu covil.
Aquele era o ponto de encontro
designado e fazia todo o sentido. O
local trazia lembranças tão cruéis a
Gabriel como a ele.
No princípio.
Enquanto o carro serpenteava
pela estrada de terra, Chandler
explicou a situação completa aos
seus passageiros, que Gabriel
tomara Sarah e Jasper como reféns
e que queria Heath em troca deles.
Então explicou o plano enquanto
Heath, apesar da mordaça, deixava
bastante clara a sua opinião sobre
o que pensava acerca de fazer de
isco, os seus pontapés teimosos
contra as costas do banco do
condutor tão expressivos como as
suas palavras. Mas o papel de
Heath era meramente estar
presente na troca. Era da ajuda de
Nick que Chandler precisava.
Esperava que, ao compreender
perfeitamente a situação, o jovem
faria o seu trabalho. Se tudo
corresse bem, Nick seria o
verdadeiro herói.
Se tudo corresse conforme
planeado. A falta de certeza quase
fez Chandler vomitar.
Não querendo parar
completamente, para o caso de
Gabriel estar a seguir o movimento
dos faróis quando se aproximaram,
abrandou antes que o
estacionamento aparecesse,
esticando o braço para abrir as
algemas de Nick. Houve um
segundo tenso quando Chandler
esperou pela sua reação. Se ele
decidisse resistir…
Mas o seu jovem agente não fez
qualquer movimento para atacar,
abrindo a porta do carro e saindo
do veículo que se movia devagar,
desaparecendo rapidamente na
escuridão, os calcanhares a
aparecerem apenas por breves
momento iluminados pelas luzes
dos travões.
Chandler continuou o seu lento
progresso para permitir que Nick se
colocasse em posição. Estava
apavorado. Aquela era a primeira
vez que deixava Nick sair da
esquadra para participar numa
operação, e a sua vida, a vida de
Heath e a vida dos seus filhos
estavam todas em perigo.
Travou à entrada do
estacionamento e procurou
qualquer sinal de atividade. Nada
se movia, apenas a propagação
gradual da condensação no interior
das janelas do carro. Estendendo o
braço, tirou a t-shirt da boca de
Heath. O prisioneiro engoliu uma
golfada de ar.
— Onde estamos? — perguntou
ele.
— Perto de onde tudo começou.
— Como vai garantir a minha
segurança? Eles podem ser seus
filhos, e sinto muito por isso, mas
não quero dar a minha vida por
eles.
— Confia em mim? — perguntou
Chandler. Aquela era a parte que
precisava de decorrer sem
sobressaltos, a parte fora do seu
controlo.
— Confiar em si? Você raptou-
me!
Ignorando o desabafo de Heath,
Chandler continuou:
— O que vai acontecer é que o
vou levar e pedir que a troca
aconteça ao mesmo tempo. Você
pelos meus filhos. Quando vocês
passarem no meio, o Nick dispara.
Dito em voz alta, o plano
parecia imprudente e muito
arriscado, cada palavra podre e
doente a envenenar as suas
entranhas.
— E ele é bom? — perguntou
Heath, compreensivelmente em
busca de alguma esperança a que
se agarrar.
— Passou no treino com armas.
— Treino? Quer dizer que
disparou sobre uns recortes de
cartão! Dê-me uma arma… —
implorou Heath. — Pelo menos eu
já matei alguns cangurus. Tiros de
longe. Posso aproximar-me e matá-
lo.
— Ou matar-me — disse
Chandler.
— Tem de confiar em mim —
respondeu Heath com um sorriso de
escárnio.
Chandler olhou para ele. Embora
não parecesse ter grandes virtudes,
era um ser humano, e inocente.
Chandler não podia forçá-lo a pôr a
sua vida em risco.
Saiu do carro.
— Onde é que vai? — gritou
Heath, o seu grito abafado pelas
janelas reforçadas.
Chandler inclinou-se para
dentro.
— Para o encontro.
— Sem mim?
— Sem si.
— E vai deixar-me aqui? E se ele
o matar e depois vier buscar-me?
— Se ele me matar, o Nick dá-
lhe um tiro.
Com isso, Chandler deixou o
carro-patrulha para trás e subiu em
direção ao estacionamento.
Esperava estar a fazer o correto e
ter dado a Nick tempo suficiente
para se colocar em posição. E que o
rapaz fosse capaz de disparar.
A gravilha movia-se sob os seus
pés a cada passo pesado. Parecia
que não estava a chegar a lado
nenhum, como se caminhasse de
novo pela floresta à procura do
irmão de Gabriel.
49

2002

Com Mitch fora dali, Chandler


juntou-se a pai e filho debaixo do
tronco de uma árvore cheia de
folhas. As preocupações do pai
estavam agora espelhadas no rosto
do rapaz, envelhecendo-o
prematuramente.
— Talvez ele tenha razão —
disse Arthur, falando enquanto
exalava, as palavras a cair na terra
seca. Olhou para o filho e depois
para Chandler.
— Ele só tem razão se o senhor
achar que ele tem razão —
retorquiu Chandler.
— Não posso avaliar como me
sinto — disse Arthur. — Não sei
como me sinto. Não sei se alguma
vez saberei.
O velho esperava que Chandler
tomasse a decisão de se irem
embora dali. E embora Chandler
não soubesse de onde elas vieram,
as palavras começaram a sair. E
assim que começou, ele não
conseguiu parar.
— Cancele isto, Arthur. O Martin
está perdido e não há necessidade
de perdê-lo e ao Davie também. Ele
não teria desejado isso. — Parando
para inspirar um pouco de ar seco e
quente, continuou: — Nem tudo
aqui, talvez em lado nenhum, pode
chegar a um fim. Haverá sempre
um elemento de mistério, mas cabe
a si… a nós… manter o Martin vivo
nos nossos corações. Ele agora faz
parte da terra, parte desta floresta.
E fará sempre.
Olhou para eles. Tendo dito a
verdade, sentia-se aliviado. Mas
não pai e filho. Arthur tinha a
cabeça entre as pernas, mas Davie
olhava para Chandler com uma
expressão chocada, como se
tentasse aceitar o que a voz da
autoridade lhe dizia. Com a
facilidade de uma criança, levantou-
se e afastou-se. Chandler procurou
palavras para pará-lo, mas não
encontrou nenhuma.
A voz de Arthur flutuou no
silêncio entre eles.
— Não quero que o espírito do
Martin vagueie por aqui.
— Tem de cuidar da sua mulher
e do Davie. Fez o seu melhor —
disse Chandler.
O velho começou a soluçar, a
realidade a tornar-se evidente para
ele em toda a sua glória nauseante.
Mas Chandler não conseguia pensar
na tristeza do velho. Era necessário
considerar o que fazer a seguir.
Primeiro: uma chamada para o
comando, a pedir um helicóptero
que os viesse buscar. Em seguida,
declarações à imprensa a confirmar
o fim das buscas e agradecendo a
todos os que tinham participado
nela.
Foi um pensamento sóbrio e
cansativo. E depois? A página seria
virada com o tempo, o conteúdo do
último capítulo lentamente
esquecido.
Chandler olhou para cima. Davie
desaparecera. O irmão mais novo
evaporara-se como o mais velho.
— Davie? — gritou Chandler na
direção que o rapaz seguira.
Ajudando Arthur a levantar-se,
preparou-se para ir à procura do
rapaz. As lágrimas tinham
desaparecido dos olhos do velho,
substituídas pelo medo.
Abandonando todas as precauções
que se haviam tornado instintivas,
partiram atrás dele, tropeçando em
arbustos, gritando por uma
resposta e não obtendo nenhuma.
O pânico de Chandler cresceu. Mitch
tivera razão. Devia ter posto fim
àquilo antes. Quando a família
sobrevivente ainda estava segura.
Chocou com o dossel baixo das
árvores e com um ramo podre.
Artur seguiu-o rapidamente, apenas
os seus gritos a ultrapassarem
Chandler enquanto olhavam em
volta à procura da camisola azul-
clara a contrastar com a terra
vermelha. Os pés de Chandler
rasparam a terra, arrancando
rebentos do solo duro. O seu cabelo
emaranhado prendeu-se em ramos
que o arrastaram para trás como se
não quisessem que ele visse
alguma coisa. Com certeza o rapaz
não poderia ter chegado longe? A
menos que tivesse começado a
correr.
O clarão do azul sintético feriu-
lhe os olhos, artificial, mas belo à
mesma.
— Davie!
O rapaz não se virou, a olhar
imóvel para algo nos arbustos à sua
frente. Ao fim de todo aquele
tempo, de todos os quilómetros
percorridos e quando estavam
prestes a finalmente desistir,
tinham encontrado Martin. Nas
profundezas absolutas do
desespero, tinham sido bem-
sucedidos.
Tão certo daquilo como de
qualquer outra coisa na sua vida,
Chandler avançou a correr. O que
esperava ver — Martin vivo —
colidia com o que calculava ir ver.
Ao aproximar-se, descobriu que
não era nem uma coisa nem outra,
mas também por que motivo o
rapaz parecia hipnotizado.
O casco saía dos arbustos, preso
ao corpo de um camelo
recentemente morto; um monte
enorme de pele e carne, as
entranhas arrancadas e
parcialmente comidas, vermes a
cobrirem as vísceras pútridas e
rosadas. O fedor que se elevava no
ar era natural e nojento, repelente
e sedutor, o remanescente de uma
vida que existira e agora
desaparecera.
50

Chandler visualizou o animal a


apodrecer nos arbustos e o rapaz
hipnotizado por ele. Davie então,
Gabriel agora.
Via claramente o rapaz na sua
mente. Forçado a enfrentar a fria
brutalidade da vida e da morte em
tão tenra idade, a descoberta da
carcaça animal a servir como
confirmação de que nada podia
sobreviver ali fora e nada seria
encontrado do seu irmão.
— Pare aí!
A voz retumbou da escuridão,
nada suave no seu tom. Chandler
tentou distinguir uma figura
flanqueada por duas formas
menores, mas os seus olhos não
detetaram nada na escuridão.
Acendeu-se uma lanterna,
cegando Chandler, mas
proporcionando um alvo para Nick
fazer pontaria. Tentou proteger os
olhos do clarão, mas as suas retinas
tinham sido inundadas de luz que
não podiam fazer desaparecer.
— Está sozinho — disse a voz,
um pouco mais suave agora, mas
desiludida.
— Sim, mas…
— Mas o quê? Não está a
cumprir a sua parte do acordo,
sargento.
— Primeiro quero falar consigo.
Tenho uma confissão a fazer.
Houve uma ligeira pausa, a luz
da lanterna a tremer.
— Parece estar no sangue —
disse Gabriel com frieza. — A sua
filha, a Sarah… — quase cuspiu o
nome — também falou em
confissão. A tentar acalmar o irmão.
Tem-me deixado muito zangado.
Chandler soltou o fôlego que
estiver a conter. Tem-me deixado .
Sugeria que ainda estavam vivos.
Gabriel continuou:
— Diga-me, Chandler, por que
motivo quer ela juntar-se a uma
religião que, em última análise,
deseja controlá-la? E por que
motivo você o permite? Talvez eu
estivesse a fazer um favor à
rapariga… acabando com a vida
dela antes de você a destruir.
A ameaça rasgou a pele de
Chandler, perfurando os seus
pulmões. Desejava ter trazido
Heath e tê-lo entregado. Poderia
ter lidado com a culpa mais tarde,
confessado ao lado da filha e
expurgado a alma.
— Por favor, não — disse
Chandler. — Diga-me só onde eles
estão.
— Estão em segurança. Por
agora.
Por agora. Chandler sentia a
mão a aproximar-se da arma.
Gabriel também reparou.
— Não quer fazer isso, Chandler.
Assim não poderá salvar os seus
filhos. Deus só salva almas, não os
corpos a que pertencem.
— Por favor, eu vou…
— Vai o quê? Voltar a buscar o
que lhe pedi?
Chandler considerou o pedido.
Que importava a vida de Heath
comparada com a dos seus filhos?
Dois por um era uma troca justa.
Os seus olhos ajustaram-se à luz
fraca na ponta do feixe, permitindo-
lhe identificar a figura escura,
quase recortada à sua frente, uma
forma solitária. O desejo de matar
Gabriel ali mesmo quase o
dominou.
Mais uma vez, o outro pareceu
adivinhar as suas intenções.
— Sargento, os seus filhos
estarão em apuros se eu não voltar.
— Onde os meteu?
— Ah, isso não posso dizer.
Ainda não. Agora, tire a sua arma,
lentamente, e pouse-a no chão.
— Eu sei quem você é — disse
Chandler.
Gabriel não respondeu.
— David Taylor. Davie Taylor.
A silhueta sorriu, os dentes a
refletir a luz fraca, um sorriso
verdadeiro, talvez a primeira
emoção genuína que ele via em
Gabriel.
— Levou bastante tempo, não
foi? — Havia um certo alívio na voz
de Gabriel. — Pensei sinceramente
que me teria reconhecido mais
cedo. Essa era a minha única
preocupação… mas depois de o ver
na esquadra, de conversarmos e de
viajar de carro consigo até ao hotel,
percebi que não fazia a mínima
ideia. Esqueceu-se de mim como se
esqueceu da minha família.
— O que quer dizer? —
perguntou Chandler.
— O que quero dizer? Há onze
anos saímos daqui e pronto. O livro
fechado, ninguém disponível para
nós depois. Tarefa concluída.
Tarefa fracassada. Passar à
próxima. Abandonados, outro
fracasso da polícia varrido para
baixo do tapete. Dos outros, como
o seu parceiro Mitchell, eu esperava
isso. Mas você, Chandler, lembro-
me de que era chegado ao meu pai.
Sempre junto de nós, a confortar-
nos, a guiar-nos, a rezar connosco.
Conduzindo-nos a lado nenhum.
— Eu… tentei ser um amigo —
disse Chandler. Não sabia mais o
que dizer.
— Se era assim tão amigo,
porque não manteve o contacto
connosco depois? Nem sequer um
telefonema. Um simples telefonema
a perguntar como estávamos. Isso
podia ter sido o suficiente para
impedir tudo.
Chandler procurou uma desculpa
e não encontrou nenhum. Podia ter
pedido o número de telefone, devia
ter pedido o número de telefone.
Não tinha desculpa, mas tentou de
qualquer maneira.
— A minha namorada na
altura… a minha mulher. A minha
ex-mulher…
— A que conheci em casa dos
seus pais? — interrompeu Gabriel.
Chandler cerrou os dentes,
lembrando-se do pai ferido.
— Sim. Ela estava grávida de
nove meses na altura. Prestes a dar
à luz. Bem, depois da busca deu à
luz a Sarah, e surgiram outras
coisas. Tentávamos viver.
— Tentar viver também tomou
conta da minha família — rosnou
Gabriel. — Só que não
conseguiram.
— O que quer dizer?
— O que quero dizer, Chandler…
desculpe, sargento, é que eles
morreram num acidente de viação
três meses depois de voltarmos
para casa.
— Lamento muito. — Chandler
falava a sério.
— Tenho a certeza de que
lamenta agora.
— Foi um acidente? —
perguntou Chandler.
— Não encontraram nada de
errado no carro — respondeu
Gabriel, com naturalidade.
— Você estava…?
A sombra assentiu.
— Sim, mas levava o cinto de
segurança. Eles não. Morreram
instantaneamente — disse Gabriel,
um pequeno tremor na voz.
— Então o Geoffrey e a Dina
acolheram-no?
— Diga-me, Chandler, aqueles
seus filhos… já os castigou? — A
voz suave tornou-se novamente
sinistra, a luz da lanterna a tremer.
As emoções de Gabriel começavam
a dominá-lo. Chandler não sabia se
isso era bom ou não. Queria um
homem calmo e racional que
pudesse ter bom senso ou um
Gabriel irado que pudesse cometer
um erro? Um erro fatal?
— Claro — respondeu Chandler,
hesitante.
— Não, quero dizer puni-los a
sério.
— Uma palmada no traseiro se
faziam alguma coisa muito má
quando eram mais pequenos, mas
isso não era frequente.
— Puni-los-ia mesmo que se
portassem bem?
— Não.
— Por exemplo, puniria a Sarah
por não acertar nas falas da
primeira confissão?
Com a conversa a ir para os
filhos, Chandler tentou manter
Gabriel a falar, para aumentar a
possibilidade de ele divulgar a sua
localização. Mas sabia que tinha de
ser cauteloso, dado o assunto e o
tremor percetível no feixe de luz
apontado a ele.
— Claro que não. Ninguém é
perfeito.
— Exato — disse Gabriel,
alguma da suavidade a regressar,
obviamente satisfeito com a
resposta. — Nada e ninguém é
perfeito. As pessoas não são
perfeitas. Quer que o seu filho
aprenda com porrada? A ser
espancado por falhar?
— Foi isso que lhe aconteceu?
Houve uma pausa enquanto a
luz era reajustada.
— Porque quando lhes
perguntei… — continuou Chandler.
— Falou com eles?! —
interrompeu Gabriel furioso.
— Estava a tentar…
— Porque falou com eles?
— Para descobrir o que se
passava dentro… — Já falara de
mais.
— Dentro da minha cabeça? —
concluiu Gabriel. — A minha cabeça
está clara. As minhas ações são
claras. A minha mente e o meu
corpo são sólidos. Já aqueles
zelotas da merda…
Chandler interveio, tentando cair
nas boas graças de Gabriel.
— Eles recusaram-se a falar
comigo sobre si.
— Por culpa. Já ouvi tudo o que
quero deles; encostado à parede e
a ser chicoteado enquanto me liam
o princípio do livro.
— O Génesis.
Gabriel hesitou.
— Sim. O Génesis. Chicoteado e
a ouvir que éramos todos
pecadores. Todos pecadores, mas
só eu é que fui castigado, como se
fosse o canal deles para a salvação:
poupa o chicote, bate na criança.
Eles deram-me isto. — Virou a
lanterna para a orelha, revelando
uma cicatriz de dez centímetros
normalmente coberta pelo seu
cabelo desgrenhado.
Ao virar a luz para a orelha,
Gabriel revelou a sua cabeça como
um alvo. Mas Nick não dispararia,
não até à troca. Chandler rezou
para que ele não o fizesse.
— Uma vez bateram-me aqui —
disse ele, acariciando a cicatriz —,
abrindo a carne. Não parava de
sangrar, então levaram-me ao
médico. O médico também era da
igreja. Não fez perguntas. Coseu-
me e disse-me que Deus só iria
curá-la com silêncio.
— O mal deles não significa que
tenha de magoar outros.
Gabriel resfolegou.
— Eles tiraram-me o último elo
que eu tinha com os meus pais. O
amor de Deus. Ensinaram-me que
sou mau e que o mal faz o que
quer. Se eu sou o Diabo como eles
dizem, então devo fazer o trabalho
do Diabo, o arcanjo Gabriel enviado
para punir aqueles que foram
nomeados. Eu sou as mãos do
Diabo.
— E todos os nomes que falhou?
O raio oscilou quando Gabriel
encolheu os ombros.
— Mato-os à medida que me
deparo com eles. Não escolho a
ordem, mas faço o que está escrito.
Imagine, Chandler, imagine recitar
aqueles nomes uma e outra vez, as
tareias a durar o tempo que eu
levava a lê-los. E se me enganava?
Depois de uma chicotada perdida
atingir um osso? Então tinha de
repetir a lista. Até ao Capítulo
Treze.
— Porquê o Capítulo Treze?
Porque dá azar?
— Não, porque menciona
Sodoma e Gomorra. Palavras que
os nossos queridos Geoff e Dina
não queriam pronunciadas em casa.
Como se a depravação ainda não
tivesse penetrado naquelas
paredes. Às vezes até me esqueço
dos nomes do meu irmão e dos
meus pais… ainda que por uma
fração de segundo… mas aqueles
nomes estão enraizados no meu
crânio.
— Mas todas as pessoas que
matou são inocentes.
— Como sabe? Ninguém
mencionado naquele livro é
verdadeiramente inocente. Todos
estão amaldiçoados com o pecado
da associação.
Embora a sua voz permanecesse
firme, Chandler percebeu que
Gabriel começava a ir-se abaixo.
Chandler precisava de ganhar
tempo, então continuou a sondá-lo.
— Porquê matá-los aqui? Este
lugar só traz más recordações. Pelo
menos a mim.
— E eu a pensar que se tinha
esquecido.
— Nunca — declarou Chandler,
abruptamente… talvez demasiado.
Soava como uma admissão de
culpa.
— Quando me libertei dos
zelotas e da sua ideia de paraíso,
tentei afastar-me o mais possível.
Tive acesso ao dinheiro de um
fundo fiduciário que o meu pai tinha
criado anos antes e viajei durante
uns dois anos. Nova Zelândia,
Tailândia, Malásia. Então, não sei
como, encontrei-me de novo na
Austrália Ocidental. Decidi procurar
este sítio novamente. Achei que
nada havia mudado: a paisagem, o
cheiro, as sensações eram todas
iguais. Como se o tempo tivesse
parado. Como se as mortes da
minha mãe, do meu pai e do meu
irmão não tivessem significado
nada no grande esquema das
coisas. Como se eles tivessem sido
esquecidos. Comecei a andar.
Talvez quisesse fazer o que o
Martin fez. Depois de alguns dias a
caminhar e a dormir no carro,
encontrei a cabana e comecei a
considerá-la um lar. Mudei-me para
lá. É incrível o que descobrimos
sobre nós próprios aqui sozinhos à
noite.
Gabriel fez uma pausa para
respirar. Chandler considerou fazer
outro apelo sincero pelo bem-estar
dos filhos, mas o instinto disse-lhe
que Gabriel não queria distrações.
— Há muita dor nesta floresta,
Chandler, dor que me atingiu. As
pessoas não me trouxeram nada
além de dor, a religião não me
trouxe nada além de dor, portanto
é correto que eu me vingue dessas
coisas, aqui onde começou, que
ofereça algo à alma do meu irmão,
às almas dos meus pais. Eles não
morreram aqui, mas foi onde se
perderam. Merecem ter companhia.
De repente, Gabriel soltou uma
gargalhada sem humor.
— A primeira vítima chamava-se
Adam — continuou, olhando para
Chandler. — Irónico, suponho… mas
não planeado.
— Quando? — perguntou
Chandler, o polícia nele a assumir o
controlo.
— Há quase três anos. Catorze
de janeiro, de 2013. Ele andava à
boleia para encontrar trabalho
como o Heath. Esses são os fáceis,
os desesperados. Era um rapaz
falador, um pouco mais velho do
que eu, ansioso por ganhar algum
dinheiro para as férias. Estava
obcecado consigo próprio; o Adam
fez isto, o Adam fez aquilo, repetiu
o seu nome várias vezes. Ouvi-lo
assim repetido… bem, de repente,
fui dominado pelo desejo de matá-
l o . Precisava de matá-lo. Mas não
tinha ideia de como o fazer. Então,
no meio do nada, saí da estrada
para um caminho de terra. Disse-
lhe que precisava de mijar, tirei a
corda da bagageira, sentei-me no
banco de trás e estrangulei-o.
Gabriel olhou para ele.
— Foi difícil, mais difícil do que
eu imaginara, mas senti-me cheio
de energia, como se me tivesse
vingado um bocadinho.
Chandler perguntou a si mesmo
se a intenção de Gabriel era matá-
lo também. Afinal, ele fora atraído
para o meio do mato a meio da
noite. Não achava que o seu nome
estivesse no Génesis, mas tudo era
possível, o seu nome poderia ser
transformado em algo da Bíblia; até
Canaã podia ser suficientemente
próximo para que Gabriel
acreditasse que Chandler devia ser
punido.
Mas percebeu outra coisa. Não
havia outro sítio onde preferisse
estar. Iria até às profundezas do
inferno para recuperar os filhos.
— Raptei o casal seguinte na
esperança de que pudessem ajudar
a procurar os restos mortais do
Martin, mas manter um refém
durante mais de um dia revelou-se
difícil — continuou Gabriel. —
Estavam sempre a lamuriar-se. —
Havia incredulidade no seu tom.
Pelos vistos, estava admirado com
o facto de as pessoas não gostarem
de ser prisioneiras. — Também não
é muito fácil conseguir
mantimentos aqui e acabei por
gastar mais tempo a cuidar deles
do que à procura. Tentei explicar-
lhes, ao Seth e à Eva, porque
tinham sido raptados. Eles
chamaram-me maluco e pior, mas
não sou maluco.
Chandler quase mordeu a
língua.
— De qualquer forma, depois de
matar o Adam, o Seth e a Eva,
percebi que me sentia um pouco
melhor. Como se oferecer um
sacrifício a este sítio me trouxesse
paz. Pensei que se fizesse mais
sacrifícios poderia recuperar alguma
coisa. Que o corpo do meu irmão
me seria revelado por algum
milagre. E que sacrifício melhor do
que aqueles que são nomeados na
Bíblia?
Chandler percebia que Gabriel
se convencera mesmo de que,
assassinando outros, o irmão lhe
seria de alguma forma devolvido.
— Mas posso deixar a Sarah ir.
Em troca do Heath. Posso ser aquilo
que você e toda a gente
consideram mau, mas não sou um
monstro. Você tentou consolar o
meu pai, embora lhe tenha dito
para desistir.
— Era o melhor para a sua
família.
— Como pode dizer isso quando
todos estão mortos?
— Não podia saber…
— E não soube.
Houve um breve silêncio, a arma
roubada a cintilar na mão de
Gabriel.
— Traga-me o Heath e terei
todo o gosto em entregar-lhos.
— Mais ninguém precisa de
morrer. O seu pai não iria…
Gabriel interrompeu-o.
— As pessoas morrem,
Chandler.
— O Heath, a Sarah, o Jasper…
eles não merecem morrer. Não
fizeram nada de mal.
— Nem o meu irmão, a minha
mãe e o meu pai. Mas Deus achou
por bem levá-los.
— Está zangado e tem todo o
direito, mas não pode fazer isto…
David.
— Isto é o que tenho de fazer.
Não tenho escolha, mas você tem,
Chandler, e é simples: ele ou eles.
— Diga-me onde estão.
— Ora, Chandler… — O sorriso
de Gabriel brilhou na escuridão.
— Se tinha isso tão controlado,
como é que o Heath escapou?
Viu as sobrancelhas de Gabriel
juntarem-se.
— Isso é uma manobra para
ganhar tempo até os reforços
chegarem?
Chandler abanou a cabeça,
bloqueando a luz com a mão.
— Não há reforços. Acha que me
deixariam raptar o Heath e
entregá-lo?
O sorriso de Gabriel surgiu de
novo.
— É esse tipo de dedicação que
respeito.
— Então como escapou ele?
— Como dissemos: conseguiu
cortar as algemas — respondeu
Gabriel com uma gargalhada. — De
certa forma admiro-o; deve ter sido
necessária muita força de vontade.
Saiu da cabana e começou a correr,
apanhei-o e caímos naquela crista.
Quando acordei, só tinha um
bocado da camisa dele. Sabia que
ele desceria a colina em direção à
estrada, mas também sabia que era
um longo trajeto a pé, então fui
buscar o meu carro. Tencionava
fugir, sair do estado e esconder-me.
Nesses breves momentos, esqueci-
me da tarefa de que fora
incumbido, como se estivesse a ser
posto à prova. Então decidi segui-lo
e dirigi-me à cidade. Talvez
também estivesse um pouco
curioso se Deus permitiria que eu
escapasse deitando as culpas numa
pessoa inocente. Com certeza o
Todo-Poderoso não permitiria que
fossem punidos. Era como ser
Deus: ter o controlo da vida de
alguém… mas de uma maneira
diferente de matá-lo. Era intrigante.
Novo. Se eu fosse realmente mau e
Deus tivesse realmente o poder
supremo, então eu não conseguiria
escapar. Portanto, deixei tudo nas
mãos do destino. Se Deus assim o
desejasse, permitiria que o Heath
escapasse à minha justiça. Caso
contrário, eu agiria como a mão do
destino.
— O destino não precisa de um
carrasco. O destino acontece. É
inevitável — disse Chandler.
— Na sua opinião. Eu também
costumava ser um passageiro do
destino, até que percebi que tanto
a minha mão como a dele são
igualmente instáveis ao volante.
Porque deveria guiar-me quando eu
mesmo posso guiar-me? Já me
permitira escapar do acidente de
viação. — Gabriel olhou para
Chandler. — O Martin acreditou
sempre no destino.
Chandler não tinha resposta
para aquilo.
— E pense no seguinte, a
felicidade nunca é celebrada
enquanto a tristeza dura, não é? É
porque antecipamos a tristeza ao
virar da esquina? Bem, eu testei
isso…
— Testou o quê? — perguntou
Chandler. Estava a ficar farto da
filosofia da treta de Gabriel, a
alegada justificação das suas ações.
Queria os filhos de volta e, quando
a arma balançou na mão de Gabriel
e ele continuou a falar, Chandler
começou a recear que Nick ficasse
impaciente ou nervoso e disparasse
antes que ele obtivesse as
informações de que precisava.
— Suportar o destino. Um dia,
estava em cima de uma rocha com
vista para um vale à procura do
Martin quando escorreguei e caí. Foi
uma longa queda. Cheguei lá
abaixo ainda consciente, mas com
um tornozelo torcido que me
impedia de sair dali. Então fiquei
deitado, o céu e as árvores à minha
volta impávidos em relação ao meu
sofrimento. Perguntei-me se fora
isso que acontecera ao meu irmão
todos aqueles anos antes, se ficara
à espera de morrer, perdido e
sozinho. Pensei que devia sentir-me
em paz, mas ainda me sentia
insatisfeito, como se houvesse algo
que tivesse de alcançar antes do
fim. Então, depois de mais ou
menos uma hora, encontrei um
ramo robusto e subi o declive até à
cabana. Passei o longo e frio mês
seguinte ali preso, sem
mantimentos durante duas
semanas, tremendo até adormecer
à noite e cheio de fome durante o
dia. Perguntei-me se o meu destino
era morrer ali, mas a paz que
pensei que chegaria não chegou.
Então escolhi um dia para viver ou
morrer. Consegui meter-me no
carro e conduzi até Port Hedland.
Ao hospital.
— Então sobreviveu — disse
Chandler. — O destino não o levou.
Não devia estar contente? Não
devia querer ajudar as pessoas, não
magoá-las?
— Porquê? Ninguém me ajudou.
Testei o meu destino, os outros
podem testar o deles.
— Não duas crianças.
— E não precisam. Você fará o
teste por eles.
— Mas então estou a decidir o
destino do Heath.
— Não — respondeu Gabriel. —
Está apenas a entregá-lo. O seu
destino é decidido depois.
Chandler abanou a cabeça
devagar.
— Porque voltou depois de fugir
do hotel?
Gabriel sorriu.
— Para ver se você me
reconhecia. Ou talvez, lá no fundo,
eu quisesse ser apanhado. Também
prefiro terminar o que começo. É
purificante. Mas o que sabe a
respeito de terminar o que começa?
Chandler não tinha resposta. O
silêncio esmagador durou alguns
segundos antes de Gabriel
continuar.
— Estou preparado para lhe dar
uma última oportunidade. Traga-
me o Heath ou então não tenho
escolha.
Gabriel levantou a arma e
apontou-a à cabeça de Chandler.
— Já matei uma Sarah. Uma
rapariga simpática, bastante
sedutora, se bem me lembro.
Vamos ver se o destino ainda está
do lado do Heath ou da sua filha.
— Não — disse Chandler, com a
voz embargada e abafada. Tinha já
uma boa ideia de quem Gabriel era
e do que suportara. Perdera a
família no que podia ter sido um
pacto de suicídio, ficara órfão e
depois tivera uns pais adotivos
terríveis. Suportara muita dor, mas
Chandler não podia permitir que os
filhos passassem pelo mesmo.
Tinha de entregar Heath. Estava
prestes a tornar-se as mãos do
Diabo.
Um tiro ecoou, o eco preso nas
árvores e repetido uma e outra vez.
Diante dele, a luz da lanterna
caiu.
Chandler correu para a frente
quando o feixe atingiu o chão e
rodou, iluminando o corpo de
Gabriel. A luz amarela suave
destacou a mancha escura que se
espalhava rapidamente no seu
peito. Os lábios estreitos estavam
abertos, mas nada saía deles,
nenhum pedido de socorro, nenhum
grito de dor. Silenciado para
sempre.
— Onde estão eles? —
perguntou Chandler ajoelhado ao
lado do corpo sem vida. — Onde
estão os meus filhos?
Agarrou Gabriel pelo colarinho e
puxou-o para cima. A cabeça dele
tombou para trás.
— Onde estão eles? — gritou,
suficientemente alto para acordar
os mortos.
Mas não Gabriel.
Por que diabo disparara Nick? O
plano não era esse. Chandler
reconheceu que o plano era mau
desde o começo. Ele devia ter…
devia ter o quê? Pedido reforços?
Precisara de um cúmplice e Nick
fora o único em quem pudera
confiar. Gabriel apontara-lhe uma
arma, então Nick decidira…
— Está morto?
A voz não era de Nick. Nem de
Heath. Enquanto Chandler se
virava, a figura esguia avançou
para eles, de arma na mão. Mitch.
— Está morto? — repetiu Mitch.
— Que porra é que fez?! —
gritou Chandler.
Mitch estava ao lado dele, a
olhar para o corpo de Gabriel.
Parecia satisfeito consigo próprio.
— Eu precisava dele vivo —
disse Chandler.
— Ele estava a apontar-lhe uma
arma.
— Não ia matar-me, queria o
Heath.
— Sim, o inocente que trouxe
para a troca.
— Ele tem a Sarah e o Jasper.
— Eu sei, Chandler, mas isso
não lhe dá o direito de escolher a
vida de uma pessoa em detrimento
de outra.
— Eu não ia entregá-lo — disse
Chandler, convencendo-se de que
era verdade. — Precisava de ganhar
tempo para que ele me dissesse
onde os tinha.
— E?
— Você matou-o.
Mitch parecia impávido.
Chandler apontou para o corpo.
— Já percebeu quem ele era?
Mitch encolheu os ombros e
enfiou a arma no coldre, sabendo
que o assassino não voltaria a
levantar-se.
— Era o David Taylor. Davie.
O rosto de Mitch contraiu-se e
nos seus olhos surgiu um brilho de
reconhecimento.
— O Davie? Não… O miúdo cujo
irmão não conseguimos encontrar?
Ele?
— Sim.
— Eu não teria… não o
reconheci. Então isto… toda esta
merda foi por vingança?
— Não exatamente, mas não
tenho tempo para explicar.
— Tem e vai explicar. Na
esquadra. Por que motivo usou um
suspeito como isco.
Chandler não estava disposto a
obedecer.
— Preciso de saber onde estão
os meus filhos, Mitch. Ele disse que
estariam em apuros se não
voltasse.
— Provavelmente era mentira.
— Ele raptou-os da casa dos
meus pais. Da Teri. Bateu no meu
pai. Isso não era mentira — disse
Chandler. — Temos de pôs aviões
no ar. Procure um sítio por aqui
onde ele possa tê-los escondido.
— Eu é que dou as ordens,
Chandler.
— Então dê a porra das ordens.
51

Heath estava já sem algemas no


carro de Chandler. Reagiu à notícia
da morte de Gabriel com um
discurso que incluiu ameaças de
processar Chandler, o estado e a
polícia.
Chandler tentou ignorá-lo
enquanto ele e Mitch, cada um no
seu rádio, organizavam uma busca
no solo imediata e outra aérea
assim que o dia nascesse.
Chandler retirou agentes dos
bloqueios de estrada para a nova
busca e Heath continuou a reclamar
que ia processá-los todos. Chandler
enfiou um dedo na orelha para
ouvir a resposta da polícia estadual,
prestes a perder a paciência.
Nesse momento, Mitch desligou
o rádio e virou-se para Heath.
— Porque não se vai embora
daqui, senhor Barwell?
— Ah, agora quer que eu me vá
embora! — Heath soltou uma
gargalhada trocista.
— Vá, depois volte com um
advogado e logo conversamos —
respondeu Mitch, calmo e seguro.
— Até lá, deixe-nos trabalhar.
Temos de encontrar duas crianças.
— Não vou esquecer isto.
— Não estou a pedir-lhe que
esqueça, estou a pedir-lhe que se
ponha na alheta.
No espaço de uma hora, vinte e
quatro pessoas foram recrutadas
para as buscas: a equipa de Mitch,
incluindo os ainda irritados Roper e
Flo, Nick, Tanya, Jim e Luka,
organizados em pares e partindo
para o mato numa luta
desesperada para encontrar os
filhos de Chandler.
Chandler também foi, afastando-
se rapidamente de Nick, que fora
designado como seu parceiro,
atravessando a vegetação rasteira,
gritando a cada poucos passos
pelos filhos. Apontou a lanterna
para o chão mas era inútil, as
longas sombras a criar uma falsa
impressão do terreno, cheio de
escuridão e pouca luz, os arbustos a
projetar sombras que na sua mente
eram Sarah e Jasper.
Em breve ficou rouco; percebeu
que os filhos podiam estar ali ou na
povoação, onde uma equipa mais
pequena, reforçada com a ajuda de
moradores, vasculhava cada
recanto à procura de sinal das
crianças.
Continuou a avançar pelo mato,
perseguindo o eco dos seus gritos,
mas nunca o alcançando. Avançou
porque estava em pânico e avançou
ainda mais por causa das lágrimas
que lhe corriam pela cara. Não
queria que ninguém visse a sua dor
e escondeu-se nas árvores, no pó e
no desespero, Nick apenas a alguns
passos atrás, seu protetor. No
pouco tempo que Gabriel tivera não
podia ter levado as crianças para
longe. Essa era a esperança a que
se agarrava. Eles tinham de estar
perto. Com esforço e pessoas
suficientes, deviam ser capazes de
encontrá-las.
Pensou em Gabriel como ele era
e em Davie como fora naquela
época. O rapaz que se transformara
num assassino em série, impelido
pela vingança e pelo ódio devido ao
que lhe acontecera. Tudo isso
remontava à busca naquela colina
havia todos aqueles anos.
Perguntou a si mesmo se aquele
fora realmente o plano dele, a sua
derradeira vingança: fazer Chandler
percorrer a floresta numa tentativa
desesperada de encontrar os filhos;
Chandler transformado em Arthur.
Ninguém, nem mesmo o Diabo,
poderia ser tão cruel. Colocá-lo,
onze anos depois, do outro lado das
buscas.
Mas daquela vez ele não
desistiria, nem que levasse o resto
da vida.

Chandler ficou fora a noite toda,


avançando pelo meio das árvores,
indo na direção da cabana
queimada, não porque achasse que
os filhos estariam lá, apenas que
era uma direção tão boa como
qualquer outra. Só quando Nick o
lembrou de que deviam verificar se
alguém descobrira alguma coisa é
que ele se virou, regressando ao
parque de estacionamento por
outro caminho que se mostrou tão
infrutífero como o primeiro.
Nada foi encontrado naquela
primeira noite, as buscas agora
concentradas unicamente na colina
depois de as da povoação não
terem produzido nada.
Durante os dois dias seguintes,
as buscas aumentaram em escala,
superando rapidamente as de
Martin, o que pareceu a Chandler
uma amarga ironia enquanto
percorria o mato a partir do local
onde Gabriel fora alvejado.
O s drones zumbiam logo acima
do nível das árvores, controlados
remotamente a partir do parque de
estacionamento. Até ao momento,
tinham apenas transmitido imagens
de um tapete verde-pálido,
pontilhado de vermelho, mas nada
de Sarah nem Jasper.

Após sessenta horas, o corpo de


Chandler não aguentou mais; foi
forçado a duas horas de sono
agitado antes de continuar, contra
todos os conselhos, noite adentro.
As pessoas tentavam comunicar-lhe
a sua pena, mas ele ignorou-as.
Estava-se nas tintas para a porra da
pena delas. Não precisava nem
queria nada, os abraços, as
palavras, as tentativas de consolo,
comida, ar; precisava de andar até
encontrá-los.
A sua bolha de medo só tinha
espaço para um; ver Mitch confortar
Teri não significou nada para ele. O
mundo inteiro poderia engoli-lo
desde que encontrasse os filhos.
À medida que os dias
começavam a fundir-se num só, os
fugazes e muitas vezes
improvisados ataques de sonolência
não passavam de sonos inquietos
que o faziam sentir-se mal devido à
vergonha, antes de começar mais
um turno difícil. Os dias eram
caracterizados por longos turnos e
falsas esperanças, avistamentos
que não eram mais do que um
tronco caído ou uma fogueira há
muito apagada. E com cada uma
dessas descobertas ele percebia.
Pela primeira vez percebia
realmente aquilo por que os Taylor
tinham passado, os altos e baixos,
toda a sua existência resumindo-se
a caminhar, a procurar e a tentar
manter a esperança. A gritar os
seus nomes na esperança de ouvir
algo em resposta. Os voluntários
também gritavam os seus nomes.
Queria mandar todos calarem-se e
deixar os filhos respirarem.
Bateu com o punho numa
árvore. Esta tremeu, mas
permaneceu firme. A dor subiu
pelos nós dos dedos e pelo braço,
mas não conseguiu afastar os
pensamentos assustadores.
52

As buscas iam no quarto dia e


Chandler estava zangado. Ele, mais
do que qualquer outro, reconhecia
os sinais de quando as pessoas
começavam a perder a esperança.
Tinham passado apenas quatro
dias. Seriam necessários mais dez
até as crianças correrem sérios
riscos de inanição. A desidratação
era, claro, um problema diferente.
Ele criticara Luka na véspera por
olhar para o telemóvel enquanto
caminhava pela floresta. Naquele
dia gritara com um pobre agente
arrastado de Newman que ousara
perguntar se as crianças já
estariam mortas. Nick e Mitch
tiveram praticamente de arrastar
Chandler, virando-o numa direção
que ele ainda não seguira e
deixando-o mitigar a fúria a
caminhar como um brinquedo de
corda.
Recordava o passado. Como
tinham desistido de Martin, como o
adolescente poderia ter estado
algures por ali e vivo, se pelo
menos o tivessem encontrado. No
entanto, a natureza acabava por
enterrar tudo, incluindo os pecados
do passado.
Mas os filhos não estavam
mortos. Chandler sabia isso.
Perseguiu esses pensamentos
através das partes mais profundas
e mais escuras do seu cérebro,
reprimiu-os até eles deixarem de
existir. Sarah e Jasper estavam
vivos. Não havia mais nada.
Estavam vivos. Mas estariam
juntos? Algum deles conseguira
fugir e fora procurar ajuda? Sem
uma bússola ou alguma forma de
orientação, teria sido difícil. Sem
água, a mesma coisa. Uma mão
invisível retorceu-lhe o estômago.
Por que motivo nunca os ensinara a
orientarem-se pelo Sol ou lhes
explicara como sobreviver no meio
do mato? Mas quem precisava de
saber isso hoje em dia? Se Sarah
tivesse o telemóvel e alguma
aplicação com uma bússola, poderia
orientar-se até chegar à cidade. Era
uma possibilidade. Mais uma vez,
ele lutara contra os pensamentos
sombrios para manter a esperança,
que começava a diminuir.
Não, os filhos não se tinham
soltado. Se tivessem, teriam ido na
direção do sopé da colina. Pelo
menos isso sabiam. Tinham de
estar presos algures. Os medos
regressaram rapidamente, a sua
imaginação à solta. Estavam
trancados, acorrentados, num
barracão algures por ali. Recusava-
se a acreditar que estavam a céu
aberto, onde morreriam gelados
muito antes de morrerem de sede.
A lista de assassinos no mato era
longa e brutal. Mitch só matara um
deles.
Olhou para trás. O passado
continuava a assombrá-lo, daquela
vez na forma de Mitch. Nesse dia,
ele nomeara-se guardião de
Chandler, e o seu rosto abatido
revelava uma preocupação genuína.
O mesmo estupor que matara
Gabriel. Se os seus filhos
morressem, e isso não iria
acontecer, lembrou a si mesmo,
seria culpa dele. E Chandler nem
conseguiu dizer o que faria.
53

Uma semana passou num abrir e


fechar de olhos. Como um dos seus
sonos intermitentes.
As buscas continuaram, a polícia
a não desistir facilmente de um dos
seus, todos os recursos sob o
comando de Mitch. Especialistas da
Austrália Ocidental e de outras
zonas entraram em contacto via
telefone por satélite para dar
conselhos e táticas.
Chandler continuou com a sua
dura rotina de caminhar vinte horas
por dia, com algumas pausas
breves que não faziam nada; a
água só lhe lembrava que os filhos
estavam com sede, as sanduíches
arranhavam-lhe a garganta como
se fossem as unhas de Sarah e
Jasper.
O acampamento foi deslocado
para junto da cabana queimada
para maximizar o tempo no terreno.
No seu saco-cama, Chandler olhou
para as estrelas, o sono tão longe
dele como elas da Terra,
perguntando a si mesmo se os
filhos estariam a observar o mesmo
céu, desejando mais uma vez ter-
lhes ensinado algumas das
constelações para fins de
navegação. Como um bom pai, em
vez de um pai ausente. A vergonha
afastou ainda mais o sono, os
rostos dos filhos agora a surgirem
entre as mesmas constelações.
Levantou-se, o ar da noite a
atacar as suas roupas encharcadas
de suor. Os tremores começaram,
alastrando-se rapidamente ao corpo
todo. Não conseguia controlar os
espasmos musculares e as
contrações involuntárias. Não
conseguia nem queria. Olhou em
volta para o resto da equipa.
Estavam a dormir, e o sono
profundo deles irritou-o ainda mais.
Compreendia o cansaço deles, mas
não como podiam dormir quando os
seus filhos ainda estavam algures
por ali. Tentou lembrar-se que dia
da semana era. Não foi capaz.
Sabia apenas que era o nono dia —
9 dC. Nove dias depois do colapso
do seu mundo.
54

2002

Viu Arthur ceder, as pernas sem


forças, a olhar para o camelo em
decomposição enquanto Chandler
afastava Davie dali. A imagem e o
odor do cadáver putrefacto
proclamavam a verdade mais
sucintamente do que Chandler
poderia ter feito; nada sobrevivia
ali durante muito tempo.
— Acabou — disse ele a Arthur
tão baixo que de início duvidou até
de que falara. Levou o rapaz para
longe.
— Acabou — repetiu Arthur,
tendo perdido toda a esperança.
O enorme alívio que Chandler
sentia era vergonhoso; sentia-se
nauseado por tê-los forçado a
desistir.
Chandler olhou para o rapaz.
Também ele estava perdido,
olhando para Chandler a pedir uma
explicação. Chandler não tinha
nenhuma para dar. Ele devia ter
entendido que acabara, mas
Chandler não sabia se entendera
que nunca mais veria o irmão. Dada
a finalidade da última palavra de
Arthur, nada precisava de ser dito,
o dia a prosseguir, a vida a
continuar, o vento a deslizar por
entre as árvores como um
assassino silencioso, o Sol a
atravessar o céu no mesmo silêncio
pensativo.
Chandler olhou em volta pela
última vez. Martin estava ali
algures, a desfrutar do mesmo
silêncio, morto agora, os olhos
devorados, a língua também, as
partes carnudas macias as
primeiras a desaparecer. Depois de
toda a carne ter sido devorada, ele
acabaria por se transformar num
aglomerado de ossos a amarelecer
lentamente sob o sol implacável.
55

A imagem formou-se enquanto


ele estava ali parado a tremer.
Sarah e Jasper, os seus corpos a
apodrecer lentamente, largados na
terra.
Tirando a faca do cinto,
Chandler passou-a pelo antebraço,
cortando suficientemente fundo
para apagar tudo da sua mente
além da dor. Dor furiosa e amarga.
Embainhou a faca quando o sangue
escorreu dos seus dedos para o
chão. Era cedo, mas iria recomeçar
a andar. Não valia a pena esperar.
Enfiando na mochila aquilo que
precisava com o mínimo de barulho
possível, preparou-se para sair.
Um sussurro flutuou pelo
acampamento. Mitch.
— Onde vais?
— Não posso… tenho de ir. —
Chandler virou-se e viu o ex-amigo
olhá-lo do seu saco-cama com o
cabelo espetado. Parecia de novo
um adolescente tímido numa das
suas noites passadas ao relento.
— Vais perder-te se fores
sozinho.
Chandler continuou a encher a
mochila. Mitch podia ter razão, mas
ele não se importava.
— O que aconteceu ao teu
braço?
Chandler olhou para o sangue
que escorria do corte e pôs a
mochila sobre os ombros.
— Concentração — respondeu
ele e preparou-se para arrancar.
— Vou contigo — disse Mitch,
deslizando para fora do saco-cama.
Como uma cobra, pensou Chandler.
— Aqui não se trata de teres o
teu nome nos jornais, Mitch.
Reconheceu que a dor estava a
encontrar voz e a tentar ferir
aqueles que procuravam ajudar.
Como a família lhes fizera havia
todos aqueles anos.
— Eu sei. Também quero
encontrá-los — disse Mitch.
Chandler olhou fixamente para
ele.
— Vou-me embora.
— Dois minutos.
Chandler não esperou, mas
começou devagar. Queria ver se
Mitch o deixaria ir. Se ainda
continuava a ser um tretas.
Faltava quase uma hora para o
amanhecer e era difícil orientar-se
na escuridão, mas o silêncio da
madrugada permitiu a Chandler
ouvir os passos a aproximarem-se,
as passadas longas e uniformes
primeiro atrás, depois ao seu lado.
Chandler olhou para Mitch.
Contrariado, sentiu-se consolado
com a sua presença.
Subiram uma leve inclinação, as
lanternas a perfurarem o azul-
escuro do solo noturno.
— Lamento muito — disse Mitch.
— O quê?
— Ter morto o Gabriel… o
Davie… quem ele pensava ser
agora. Vir para cá e assumir o
comando. Não te contar sobre a
Teri. Não ter mantido o contacto.
Por a Teri querer a…
Chandler interrompeu o pedido
de desculpas, o tom contrito de
Mitch a soar estranho.
— Não me importo com nada
disso, Mitch. Isso é o passado.
Continuaram em silêncio,
andando até a luz do dia surgir
lentamente entre as árvores. Então
uma visão incomum interrompeu a
paisagem característica de árvores,
pedras e terra, uma cor pouco
natural ali no meio do mato. O
cinzento enferrujado de um grupo
de barracões velhos emergiu
gradualmente com a luz. Eram…
podiam ser…
Chandler estugou o passo. Ao
aproximar-se, esforçando-se para
manter o equilíbrio, viu que eram
barracões de silvicultura, talvez até
barracões militares ali deixados
após manobras feitas muitos anos
antes, em preparação para uma
guerra que era real ou imaginária.
Quatro barracões no total. A
esperança contraiu-lhe o estômago.
Viu a mesma esperança no rosto de
Mitch.
— Eu fico com os dois da
esquerda — balbuciou Chandler
com a boca subitamente tão seca
como o ar que respirava. Começou
a correr.
— Okay, mas cuidado — disse
Mitch. — Estão aqui há muito
tempo. Quem sabe o que têm
dentro?
Chandler correu para o primeiro
dos barracões, o ferro corrugado
desgastado e curvado devido ao
calor. Tocou na porta esperando ser
queimado por ela, mas sentiu uma
frieza gelada. Correndo o ferrolho,
Chandler reparou que estava a
suster a respiração. A porta abriu-
se com um rangido presciente, as
dobradiças enferrujadas e secas,
sem uso há muito tempo. Puxando
com mais força, abriu-a, o feixe da
lanterna a encher o pequeno
espaço. Deparou-se com
equipamento eletrónico e máquinas
dos anos setenta que se tinham
quase transformado em pó, uma
miríade de minúsculos insetos a
deslizar pelo chão e pelos tampos
das mesas a fugir do predador que
lhes invadira a casa.
Nada de Sarah e Jasper. A
esperança derramou-se do seu
coração e escorreu pelas plantas
dos pés para o chão de terra.
Mas havia outros três barracões.
— Chandler…
A voz de Mitch era insegura e
tinha um tom de urgência que
parecia raiar o perturbado.
Chandler correu até ele; Mitch
estava ao lado da porta de um
barracão, o metal igualmente
desgastado e enferrujado,
abandonado durante anos. O velho
colega tremia e soluçava, a boca a
abrir-se, mas sem palavras a sair.
Ocorrera algo além do alcance das
palavras.
A luz da lanterna que fora
direcionada para o interior do
barracão incidiu sobre o rosto de
Chandler, cegando-o.
Chandler avançou para a luz.

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