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23/4/2008
Se entre adultos é complicado esclarecer contradições desse gênero, que dirá entre
crianças e adolescentes. Este público está habituado a interpretar histórias que
tenham vilões de um lado e heróis de outro. “Tem que ter uma definição: é bom
ou é mau?”, sintetiza a professora Joana Ferraz de Abreu, que leciona em escolas
particulares do Rio. Por isso, ensinar Getulio também lhe dá trabalho, assim como
episódios da História mundial. “A Alemanha é a vilã da guerra, mas a Inglaterra
também tinha campos de concentração. Claro que tudo depende de que lado do
front o país esteve e de quem saiu vitorioso. As crianças americanas, por exemplo,
dificilmente aprendem muito sobre a bomba atômica”, compara.
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No Brasil, o ato bárbaro cometido pelos Estados Unidos contra Hiroshima e
Nagasaki no fim da Segunda Guerra Mundial tem espaço na sala de aula. E
repercute até demais, pois o antiamericanismo anda em voga entre os mais
jovens. É um dos preconceitos que prejudicam uma compreensão imparcial dos
acontecimentos.
Há muitos outros. Os índios aqui eram preguiçosos (quando não “burros”), por
isso não funcionaram como escravos. Já os africanos “entendiam o capitalismo” e
assim “aceitavam melhor” sua condição e se misturaram harmonicamente aos
portugueses. Versões que não caem do céu: estão presentes nos livros didáticos e
ganham adeptos ou críticos de acordo com os ventos ideológicos de cada época.
Autores hoje consagrados já sofreram patrulha e foram relegados ao
esquecimento em momentos adversos às suas teses. Em trechos de Casa-Grande
& Senzala (1933), Gilberto Freyre descreve como os negros iam para o trabalho
cantando e fala da importância da figura da ama-de-leite, o que sugere que a
interação entre senhores e escravos não era tão excludente ou violenta. Por essas e
outras, a obra do sociólogo foi desprezada nos anos 1960 e 70, auge do marxismo
na academia, por supostamente “atenuar a luta de classes”. Relativizadas como
reflexões condizentes com seu momento histórico, as contribuições de Freyre são
hoje aceitas como valiosas para se entender a formação cultural do país. Até
porque, se por um lado descreve a excepcional (no sentido de exceção, claro)
mistura entre portugueses e negros no Brasil (diferentemente do que ocorreu, por
exemplo, nas possessões inglesas e francesas na Ásia e na África), por outro
também fala das torturas e castigos aos quais os escravos eram submetidos.
Ambigüidades tipicamente luso-brasileiras, pois não?
Tem mais. Tiradentes: um herói nacional? Não foi. Naqueles fins do século XVIII,
os insurgentes das Minas (por muito tempo tachados de inconfidentes, outra
imprecisão histórica fruto da versão oficial da época) queriam a independência
regional, nem pensavam em Brasil. E Pedro Álvares Cabral? “Por incrível que
pareça, ainda hoje é superdimensionado”, revela Roberto Argento, outro professor
de escolas particulares cariocas. A lenda do “descobrimento” acidental no
caminho para as Índias, pelo visto, ainda perdura. Político? Tudo corrupto.
Percepção que as autoridades atuais insistem em renovar, dia após dia, nos
escândalos do noticiário. “Os alunos não acreditam que algum político, em
qualquer tempo, tenha feito algo de bom. Quando aprendem sobre as práticas dos
coronéis, dizem que é tudo igual até hoje”, diz Joana Ferraz de Abreu. E a
participação do Brasil na Segunda Guerra desperta interesse, curiosidade? Que
nada: somente risos. “Eles acham piada, desvalorizam, não acreditam que tenha
sido importante. Nem quando digo que afundamos oito navios alemães e tivemos
36 afundados por eles, e que perdemos 1.040 homens”, revela a professora.
Às vezes, episódios marcantes para uma cidade ou região são vistos por seus
moradores como decisivos para a História do Brasil. Em recente viagem a Recife,
a professora Mariana Melo testemunhou, no discurso de vários guias turísticos, a
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louvação das Batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), com a conseqüente expulsão
dos holandeses, como marco inicial da identidade nacional. Talvez os
pernambucanos não gostem de ouvir isso, mas nem mesmo no momento da
Independência, quase dois séculos depois, estava bem claro o que era ser
brasileiro.
Se nem Carmen Miranda era brasileira, a que certeza podemos nos apegar? O
futebol é inglês, a banana é asiática, nossos “reis” contemporâneos são tão
díspares quanto podem ser Pelé, Roberto Carlos e Xuxa. Sem falar na cultura de
massa, que há décadas afunilou os significados de Brasil para o eixo Rio-São
Paulo, via tevê. Até a cana-de-açúcar, orgulho do momento na promessa dos
biocombustíveis contra o aquecimento global, deve ser questionada como símbolo
nacional. Não só porque também foi importada de outras possessões lusas, mas
porque o glorioso Proálcool, na virada da década de 1970 para a de 1980, foi feito
à custa de outro glorioso orgulho pátrio: a Mata Atlântica nordestina. Repetiremos
a dose, agora para cima da Amazônia?
Ufanismos sempre devem ser vistos com desconfiança. Mas é claro que parte
desses mitos merece ser encarada com bom humor. A origem saxã do nosso
esporte número 1, por exemplo, é matéria de almanaque. O futebol é brasileiro e
ninguém tasca! Assim como o samba, claro. Inicialmente também derivado de
influência européia — a binária e “marcial” polca — foi requebrado no terreiro dos
negros com tempero de maxixe até virar essa contradança inimitável pelos
gringos. Ponto para a miscigenação brasileira!
Você está convidado a pôr suas próprias crenças à prova. E nós, da Revista de
História da Biblioteca Nacional, abertos a receber, por e-mail, outras
desmitificações que por acaso você conheça. Afinal, nunca é tarde para
desaprender.
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