Você está na página 1de 4

Um País Enganador

web.archive.org/web/20160413121519/http://rhbn.com.br/secao/capa/um-pais-enganador

A identidade nacional é feita de equívocos e desinformação. Das


salas de aula às mesas de bar, o Brasil não é o que parece ser.
Lorenzo Aldé

23/4/2008

Futebol, mulher e religião não se discute. É o que ensina a sabedoria popular.


Temas controvertidos, envoltos em paixões e idiossincrasias, melhor deixar de
lado para não estragar o bate-papo de botequim. Que tal, então, conversar sobre
os personagens e episódios de nossa História? Será que eles entram na roda sem
maiores pinimbas?

Nem sempre. Mitos, lendas e incorreções sobre a formação e a identidade


nacionais povoam o imaginário coletivo. Muitas vezes a versão se sobrepõe ao
fato, seja pela disseminação de interpretações equivocadas, seja pela dificuldade
de se definir, preto no branco, o que é a verdade neste país de memórias
“mestiças”.

Bom exemplo é a figura de Getulio Vargas. Ditador simpatizante dos ideais


fascistas ou defensor dos trabalhadores? Entre os dois extremos do mesmo
personagem, é difícil equilibrar-se numa visão isenta. “É quase uma ofensa falar
mal de Vargas”, comenta a professora Mariana Melo, baseada em sua experiência
com turmas de um curso noturno em uma escola estadual do Rio de Janeiro. Não
adianta descrever em detalhes as arbitrariedades do Estado Novo (1930-1937), a
censura, a perseguição política. “Mas, professora, ele criou as leis trabalhistas”,
retrucam os alunos. Para ela, uma postura compreensível: “Dentro da perspectiva
dessa camada social, isso é o mais importante”, pondera a professora, dizendo ser
espinhosa também a missão de mostrar aos alunos que as benesses sociais
trazidas por Vargas não foram fruto de sua generosidade pessoal, mas resultado
de um processo histórico quase inevitável.

Se entre adultos é complicado esclarecer contradições desse gênero, que dirá entre
crianças e adolescentes. Este público está habituado a interpretar histórias que
tenham vilões de um lado e heróis de outro. “Tem que ter uma definição: é bom
ou é mau?”, sintetiza a professora Joana Ferraz de Abreu, que leciona em escolas
particulares do Rio. Por isso, ensinar Getulio também lhe dá trabalho, assim como
episódios da História mundial. “A Alemanha é a vilã da guerra, mas a Inglaterra
também tinha campos de concentração. Claro que tudo depende de que lado do
front o país esteve e de quem saiu vitorioso. As crianças americanas, por exemplo,
dificilmente aprendem muito sobre a bomba atômica”, compara.
1/4
No Brasil, o ato bárbaro cometido pelos Estados Unidos contra Hiroshima e
Nagasaki no fim da Segunda Guerra Mundial tem espaço na sala de aula. E
repercute até demais, pois o antiamericanismo anda em voga entre os mais
jovens. É um dos preconceitos que prejudicam uma compreensão imparcial dos
acontecimentos.

Há muitos outros. Os índios aqui eram preguiçosos (quando não “burros”), por
isso não funcionaram como escravos. Já os africanos “entendiam o capitalismo” e
assim “aceitavam melhor” sua condição e se misturaram harmonicamente aos
portugueses. Versões que não caem do céu: estão presentes nos livros didáticos e
ganham adeptos ou críticos de acordo com os ventos ideológicos de cada época.
Autores hoje consagrados já sofreram patrulha e foram relegados ao
esquecimento em momentos adversos às suas teses. Em trechos de Casa-Grande
& Senzala (1933), Gilberto Freyre descreve como os negros iam para o trabalho
cantando e fala da importância da figura da ama-de-leite, o que sugere que a
interação entre senhores e escravos não era tão excludente ou violenta. Por essas e
outras, a obra do sociólogo foi desprezada nos anos 1960 e 70, auge do marxismo
na academia, por supostamente “atenuar a luta de classes”. Relativizadas como
reflexões condizentes com seu momento histórico, as contribuições de Freyre são
hoje aceitas como valiosas para se entender a formação cultural do país. Até
porque, se por um lado descreve a excepcional (no sentido de exceção, claro)
mistura entre portugueses e negros no Brasil (diferentemente do que ocorreu, por
exemplo, nas possessões inglesas e francesas na Ásia e na África), por outro
também fala das torturas e castigos aos quais os escravos eram submetidos.
Ambigüidades tipicamente luso-brasileiras, pois não?

Tem mais. Tiradentes: um herói nacional? Não foi. Naqueles fins do século XVIII,
os insurgentes das Minas (por muito tempo tachados de inconfidentes, outra
imprecisão histórica fruto da versão oficial da época) queriam a independência
regional, nem pensavam em Brasil. E Pedro Álvares Cabral? “Por incrível que
pareça, ainda hoje é superdimensionado”, revela Roberto Argento, outro professor
de escolas particulares cariocas. A lenda do “descobrimento” acidental no
caminho para as Índias, pelo visto, ainda perdura. Político? Tudo corrupto.
Percepção que as autoridades atuais insistem em renovar, dia após dia, nos
escândalos do noticiário. “Os alunos não acreditam que algum político, em
qualquer tempo, tenha feito algo de bom. Quando aprendem sobre as práticas dos
coronéis, dizem que é tudo igual até hoje”, diz Joana Ferraz de Abreu. E a
participação do Brasil na Segunda Guerra desperta interesse, curiosidade? Que
nada: somente risos. “Eles acham piada, desvalorizam, não acreditam que tenha
sido importante. Nem quando digo que afundamos oito navios alemães e tivemos
36 afundados por eles, e que perdemos 1.040 homens”, revela a professora.

Às vezes, episódios marcantes para uma cidade ou região são vistos por seus
moradores como decisivos para a História do Brasil. Em recente viagem a Recife,
a professora Mariana Melo testemunhou, no discurso de vários guias turísticos, a
2/4
louvação das Batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), com a conseqüente expulsão
dos holandeses, como marco inicial da identidade nacional. Talvez os
pernambucanos não gostem de ouvir isso, mas nem mesmo no momento da
Independência, quase dois séculos depois, estava bem claro o que era ser
brasileiro.

Atire a primeira pedra quem não se acha no umbigo do mundo. Ou os cariocas


realmente acreditam que a vinda da família real, em 1808, transformou
profundamente todo o país? Pois se nem país existia! O impacto na cidade do Rio
de Janeiro e seus ecos na Região Sudeste mal se fizeram sentir no Norte e no
Nordeste, por exemplo. E nem o bairrismo nos salva da desinformação. Em
recente vestibular na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), solicitados
a mencionar duas obras arquitetônicas dos tempos de D. João, a maioria dos
alunos listou entre elas o Teatro Municipal. Talvez uma confusão espacial, por se
localizar próximo ao prédio da Biblioteca Nacional, esta sim uma instituição
nascida da Corte portuguesa. O problema é que nem o prédio da BN data daquela
época. Como o Teatro Municipal, foi construído nos primeiros anos do século XX,
no governo do prefeito Pereira Passos.

Se nem Carmen Miranda era brasileira, a que certeza podemos nos apegar? O
futebol é inglês, a banana é asiática, nossos “reis” contemporâneos são tão
díspares quanto podem ser Pelé, Roberto Carlos e Xuxa. Sem falar na cultura de
massa, que há décadas afunilou os significados de Brasil para o eixo Rio-São
Paulo, via tevê. Até a cana-de-açúcar, orgulho do momento na promessa dos
biocombustíveis contra o aquecimento global, deve ser questionada como símbolo
nacional. Não só porque também foi importada de outras possessões lusas, mas
porque o glorioso Proálcool, na virada da década de 1970 para a de 1980, foi feito
à custa de outro glorioso orgulho pátrio: a Mata Atlântica nordestina. Repetiremos
a dose, agora para cima da Amazônia?

Ufanismos sempre devem ser vistos com desconfiança. Mas é claro que parte
desses mitos merece ser encarada com bom humor. A origem saxã do nosso
esporte número 1, por exemplo, é matéria de almanaque. O futebol é brasileiro e
ninguém tasca! Assim como o samba, claro. Inicialmente também derivado de
influência européia — a binária e “marcial” polca — foi requebrado no terreiro dos
negros com tempero de maxixe até virar essa contradança inimitável pelos
gringos. Ponto para a miscigenação brasileira!

Segundo o pesquisador José Miguel Wisnik, da USP, o samba é a síntese da


identidade nacional. Foi a solução, ansiosamente procurada no alvorecer da
República, para incorporar a incômoda figura do mestiço, até então “nem
rejeitado nem admitido”. “A invenção do samba é o ‘desrecalque’ dessa figura que
vem à tona para ser símbolo do Brasil”, resumiu Wisnik em encontro sobre as
identidades do samba, realizado na Bahia em 2007. Em resumo: o Brasil é mulato.
Terra das contradições, onde convivem ordem e desordem, democracia e jeitinho,
descontração e violência, natureza e devastação, diversidade e racismo.
3/4
Talvez seja esta a nossa sina. Mas antes de naturalizar a bandeira do samba como
ideal nacional, fica aqui mais uma pulga para orelhas pensantes. Segundo o
antropólogo Hermano Viana, a consolidação do ritmo, entre os anos 1920 e 1930,
também foi uma criação intelectual, que atendia aos interesses políticos da época.
“O governo precisava impor uma centralização cultural, havia uma indústria
fonográfica nascente, e o rádio despontava como o primeiro meio de comunicação
de massa”, comentou no mesmo evento.

Se o mulato que dá cara ao Brasil é “inzoneiro” como na canção, basta recorrer ao


dicionário para descobrirmos que se trata de um ser “enganador”. Quem sabe, em
se tratando de Brasil, nosso dever como historiadores, professores ou simples
cidadãos, deva ser buscar não as certezas, mas as incertezas? Elucidar não as
verdades, mas os enganos? Explicar para confundir, confundir para esclarecer...

Nesta mesma edição, uma seleção de doze versões enganadoras da História


nacional, baseadas em fatos e personagens reais. Parte delas, fruto de “tradições
inventadas”, como o historiador Eric Hobsbawm define a prática das nações de
distorcer a realidade para engrandecer seus feitos ou reforçar sua identidade. É o
caso de “símbolos nacionais” como a cachaça e a feijoada, e da lenda a respeito de
antigas civilizações que teriam passado pelo Brasil, como os vikings e fenícios.
Outras histórias resultam apenas de confusão ou desconhecimento, como o
suposto parentesco entre Oswald e Mário de Andrade e a origem do nome da
cidade de Olinda.

Você está convidado a pôr suas próprias crenças à prova. E nós, da Revista de
História da Biblioteca Nacional, abertos a receber, por e-mail, outras
desmitificações que por acaso você conheça. Afinal, nunca é tarde para
desaprender.

4/4

Você também pode gostar