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QUESTÕES DE ANÁLISE

O MATERIALISMO CULTURAL NA PRÁTICA

Como era de esperar, é nas análises que se pode aferir a produtividade da posição
do materialismo cultural e sua eficácia para uma crítica de cultura empenhada e relevante.
O exame de algumas dessas análises pode ainda demonstrar as conseqüências que esta
posição implica e seu diferencial em relação às posições que desloca.
Claro que não é possível dar conta de todos os exemplos contidos na extensa obra
de Williams, mas abrangência não é fundamental para explicitar sua especificidade: trata-
se de um projeto intelectual cujo sentido estrutura cada análise. O projeto é descrever,
através da análise da produção cultural, a unidade qualitativa do processo social. A análise
é da cultura, por que é também lá que a existência está concretizada “em forma”, e é
preciso reclamar esta concretude contra os que insistem em mistificá-la.
Quando dirige a análise para o passado, uma das questões centrais é recuperá-lo
para o presente, estabelecendo conexões, diferenças e possibilidades habitualmente
escamoteadas. No presente, o impulso é de tentar esclarecer o sentido do processo, para
além das formas costumeiras da “cacofonia sistemática”1 que impedem a análise. Em todos
os casos, o empenho é claro: explicar o mundo para mudá-lo, para arrolar este trabalho
entre os “recursos para um caminho de esperança”2. Aí a unidade básica do projeto.
Nesse sentido, minha leitura de Williams diverge da forma usual de apresentá-lo
como o homem da diversidade, impossível de categorizar, cujos interesses abarcam três
campos distintos, a “crítica, a teoria, e o socialismo”3. Suas obras também obedeceriam a
esta divisão tripartida. Em um primeiro grupo, teríamos as obras mais “engajadas”, que
enfatizam a possibilidade da transformação social e da derrota do capitalismo – os livros
chave aí seriam The Long Revolution e Towards 2000, acrescidos de alguns dos ensaios
“políticos” reunidos, após sua morte, em Resources of Hope, com subtítulos, dados pelo
editor, de “Beyond Labourism”, “The Challenge of the New Social Movements” e
“Redefining Socialist Democracy”.
Um segundo grupo, o do Williams crítico, trata de literatura: a obra de “juventude”
Reading and Criticism, e depois Drama from Ibsen to Brecht, Modern Tragedy, The
English Novel from Dickens to Lawrence, The Country and the City, acrescidas de algumas
das análises publicadas em Writing in Society e dos ensaios sobre o modernismo reunidos
postumamente em The Politics of Modernism. No interesse do rigor, seria de bom alvitre
introduzir aqui duas subclasses, a da história das idéias, onde entrariam Culture and
Society, Orwell, e Cobbett, e as partes de Modern Tragedy que tratam de Tragédia e

1
Essa expressão é de Raymond Williams em Towards 2000 [1973], p. 18.
2
Título do último capítulo de Towards 2000 [1973].
3
Para um exemplo claro dessa tendência comum, ver Anthony Barnett, “Raymond Williams and Marxism: A Rejoinder to
Terry Eagleton”, New Left Review, n. 99, p. 47-64.

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Revolução; e outra subclasse, das análises do que “não é literatura”: Preface to Film,
Communications, e Television.
O terceiro grupo, o da teoria, seria composto de Keywords, Marxism and Literature,
The Sociology of Culture e por alguns dos ensaios em Problems in Materialism and
Culture. Certamente essas divisões refletem ênfases nos trabalhos que caracterizam, e são
quase inevitáveis nos moldes tradicionais do debate intelectual – mesmo esta minha leitura
segue uma divisão. Mas é importante ressaltar aqui a continuidade da perspectiva.
A expansão real que esta obra opera no campo da análise da cultura não é uma
escolha, fruto do interesse de um intelectual pouco afeito às fronteiras que isolam as
disciplinas. O que se tem na obra de Williams é conseqüência de uma posição teórica: se a
cultura é uma produção central e organiza os significados e valores de uma determinada
sociedade, ela atua nas diferentes esferas, e olhar, por exemplo, a política do ponto de vista
da linguagem em que é veiculada é forma potente de se conhecer o que determinada
formação articula ou oculta.
Do mesmo modo, as práticas específicas da cultura, as artes, são vistas em termos
de sua inter-relação com a sociedade que as informa e a que dão formas. O resultado é
iluminador e demonstra que o materialismo cultural redireciona de forma produtiva a
investigação do significado social das artes e da intermediação da “cultura” nas várias
esferas da vida contemporânea.
Dito isso, é preciso substanciar em que consiste o diferencial do materialismo
cultural. Optei por dar uma visão de caleidoscópio, esperando que o movimento das partes
dê uma noção desse aspecto geral que é objetivo deste trabalho especificar. A organização
das partes, de novo divisão, ilustra as ênfases do projeto de Williams: o primeiro foco se
dirige para a análise literária – o que o materialismo cultural tem a dizer da tradição
literária inglesa, e uma pequena comparação com outros tipos de análise; depois um
exemplo da “expansão do campo”, a forma de apresentação nas notícias de TV.
Nos termos de The Sociology of Culture, estamos tratando de “formas” e suas
relações com os “meios”. Depois, ainda no capítulo das práticas específicas da cultura, um
exemplo de análise de “formações”: o grupo de Bloomsbury. Para finalizar, uma análise
lingüística da sociedade britânica nos dois livros “propositivos” de Williams: nos termos
da análise da cultura, estamos aí na esfera das “organizações”.

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Formas I – O romance

O primeiro movimento da produção de Williams sobre o romance é deslocar as


posições vigentes. The English Novel from Dickens to Lawrence (1970) é uma resposta
materialista aos modos de ler apegados a uma concepção restrita de forma, e ao cânone
conforme definido por Leavis em The Great Tradition (1948). Esse mapeamento foi tão
definitivo que acabou pautando a discussão. Tanto neste livro de Williams como em obras
posteriores, como a de Terry Eagleton, Criticism and Ideology (1975), as obras listadas por
Leavis são o objeto.
O problema central de Williams não é substituir um autor por outros – os
romancistas enfocados no seu livro são todos “canônicos” – mas direcionar a investigação
no sentido de responder a outros tipos de pergunta: como estes autores estão lidando com a
forma herdada do século XVIII, respondendo às pressões e limites do seu tempo? Que
sentido do tempo histórico formador da Grã-Bretanha contemporânea e que tipo de
questões legam para as gerações seguintes?
Ler os romances como concretizações da experiência histórica muda também a
concepção de tradição que não é mais vista como uma ordem dada que se altera sutilmente
para acomodar um recém-chegado, um produto dos escritores anteriores que se mescla
com eles. Como apresentada por Williams, é composta de romances distintos que são
unidos por uma preocupação central explorada em cada um deles: a noção de comunidade
que é a condição de possibilidade da narrativa. O que significa viver em comunidade,
como se pode defini-la, como se dão as relações no seu interior, como as pessoas que a
integram se definem em relação à comunidade, para além, ou em contraposição a ela? As
formas que esta questão toma em resposta a mudanças objetivas que estruturam o projeto
ficcional dos autores da grande tradição é o fio que une as análises dos autores de “Dickens
a Lawrence”.
Uma das razões por que sabemos que estas questões são as fundamentais é
justamente conhecermos esses romances: são eles que nos legam essa herança que ainda
hoje é preciso deslindar, em condições diferentes mas que são reconhecivelmente de
natureza semelhante às enfrentadas por essa grande tradição. Responder a estas questões é
o problema central posto pelas modificações da urbanização e novas formas de
sociabilização da sociedade industrial, formas que deram origem e o contorno da sociedade
contemporânea. Este enfoque – que pode ser resumido na proposta do materialismo
cultural de fazer crítica a partir do exame das condições de uma prática – diferencia a obra
de Williams das maneiras usuais de se ler a tradição e de relacioná-la com pelo menos dois
tempos, o dela e o da leitura.
O momento de partida é 1848, o ano em que se afirma uma geração de grandes
romancistas – um novo tipo de consciência que tornará o romance a forma de arte verbal
preponderante nos oitenta anos seguintes. Essa geração articulou novos sentimentos, trouxe
novos ritmos, definindo, e não apenas refletindo, a sociedade:

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It was not the society or its crisis which produced the novels. The society and the novels – our
general names for those myriad and related primary activities – came from pressing and varied
experience which was not yet history, which had no significant moments, until those were made and
given by direct human actions.4

E o que estes romances efetivamente produziram não pode ser descoberto apenas
através da explicação das “words on the page”, ou mesmo da sua estrutura interna. É
preciso colocar outro tipo de pergunta: qual o projeto desses romancistas, quais os
problemas determinantes desse projeto cujas resoluções constituem a qualidade e
relevância para o presente desses escritores?
Os problemas e suas soluções de composição são de diversas ordens e Williams vai
voltar a eles em diferentes obras. Em The English Novel from Dickens to Lawrence trata-se
de enfatizar uma questão tornada secundária pelos modos de ler advindos da Practical
Criticism e recolocar a questão do conteúdo. Isso, num primeiro nível, significa recuperar
para a crítica literária a realidade recriada nos romances.
Essa forma de ver aparentemente mais simples – o que os romances narram, com
que lidam – acaba dando resultados produtivos. A leitura de Conrad pode ser usada para
explicitar uma das diferenças deste modo de ler. Existe uma longa tradição crítica de
explicar Heart of Darkness traduzindo a realidade laboriosamente recriada no romance em
linguagem metafísica, onde tudo é sempre outra coisa. Assim, o rio é relacionado ao Mal,
ao Inconsciente, qualquer outra coisa menos o que é, o rio, “o mesmo rio onde a casa de
Dombey and Son comerciava.”
Além dos caçadores de símbolo, há os defensores ferrenhos da retórica da técnica.
Falar apenas de técnica, como se esta fosse abstrata, acaba aprisionando a função do crítico
em uma questão de método, deixando de fora o que determina a técnica: a experiência
histórica a que Heart of Darkness dá forma. Nos dois casos perde-se o essencial: a
realização do autor, o que Conrad efetivamente consegue nomear, isto é, o que acontece
com Kurtz quando este último homem, no último entreposto comercial da companhia, vive
a contradição histórica entre o “trabalho civilizatório” – o fundamento ideológico do
imperialismo – e a ganância da companhia que lhe estrutura o sucesso de “nosso melhor
agente”. Esta a experiência que fratura o homem e, com ele, a forma do romance moderno,
que não pode encontrar a medida da sua comunidade.
Mas a questão do diferencial da proposta de Williams tanto em relação à critica
idealista de “direita” quanto à de “esquerda”, de inspiração marxista-estrutural, os campos
opostos com que Williams precisa polemizar no momento da escrita de The English Novel
From Dickens to Lawrence, fica melhor explicitadaa no tratamento dado a Dickens. Este
autor é um problema complicado para a crítica na medida em que concentra pressupostos
contraditórios: é um grande autor e é popular, um “gênio da raça” e um sentimental na
terra do controle emocional, um porta voz dos valores burgueses cuja obra critica a ordem

4
Raymond Williams, The English Novel from Dickens to Lawrence [1970], p. 11.

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que o inscreve, um praticante da “grande arte” que produzia com os dois olhos voltados
para o mercado.
Do ponto de vista formal, suas obras discrepam das características da grande
tradição: suas personagens são planas e enfáticas e não redondas e discretas, sua linguagem
não é a da compreensão e análise mas a do convencimento e da apresentação, concentra-se
em mostrar produtos acabados e não os detalhes de um processo. O próprio Leavis lhe
dedica apenas um apêndice no livro The Great Tradition (1948), do que se redime, anos
mais tarde ao escrever, em co-autoria com sua esposa, Charles Dickens: A Novelist (1970).
Mas, mesmo no livro posterior, a ênfase é na originalidade de um gênio que só se explica
ligando-o a outro grande original:

That he developed an art so different from anything he could have learned from Smollet or Fielding
– or Ben Jonson, in whom he was also interested, or the theatre of his own time – was of course a
manifestation of his genius; but that his genius was fostered on the side of its characteristic strength
by the potent fact of Shakespeare, not only in his own life but in the life of the English people for
whom he wrote (a fact making itself felt at the level of popular entertainment), is very much a point
to be made.5

A crítica à esquerda se ressente do sentimentalismo de Dickens, o “change of heart


man” na visão de Orwell, ou, nos acentos mais contemporâneos, o ideólogo pequeno
burguês:

Dicken’s fiction thus reveals a contradiction between the social reality mediated by childhood
innocence, and the transcendental moral values which that innocence embodies. It is a contradiction
intrinsic to petty-bourgeois consciousness, which needs to embrace conventional bourgeois ethics in
an undermining awareness of the harsh realities they suppress.6

Williams não vai se preocupar nem com a grande conversa de gênios, a tradição de
Leavis, nem com a visão “arte = expressão da ideologia”, leitura que desconsidera a
especificidade do que lê. Seguindo a pista de examinar as condições sociais formalizadas
na obra de Dickens assinala que parte da sua novidade está justamente em apresentar uma
resposta ficcional à nova realidade da vida nas grandes cidades. Esta resposta configura o
assunto dos romances e, principalmente, o método de escrevê-los: a visão possibilitada
pela cidade, em especial pela Londres metropolitana, cenário da maioria dos romances,
conforma o tipo de narrativa, a construção das personagens, a linguagem da apresentação,
a própria visão moral. Londres mostrava, mais claramente do que as cidades “clássicas” da
revolução industrial, a contradição da vida sob a nova organização: de um lado, a variação
e o aleatório, e de outro, o sistema determinante dessa variação, que a controlava de formas
muitas vezes ocultas. Mais do que proclamar a novidade – uma maneira distinta mas

5
F.R. Leavis & Q.D. Leavis, Charles Dickens: A Novelist, p. 29.
6
Terry Eagleton, Criticism and Ideology [1976], p. 128.

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aparentada com a apologia da originalidade – Williams quer estabelecer relações entre a
forma dos romances, seu legado para o presente, sua configuração de seu tempo:

[In Dickens] the individual moral qualities, still sharply seen, are heard as it were collectively, in the
“roaring streets”. This is again an advance in consciousness as it is very clearly a gain – now
absorbed – in fictional method. For we have to relate this view not simply to description – animated
description – but to the power of dramatizing a moral world in physical terms. The physical world is
never in Dickens unconnected with man. It is of his making, his manufacture, his interpretation.
That is why it matters so much what shape he has given it. Dickens’s method, in this, relates very
precisely to his historical period. It was in just this capacity to remake the world, in the process we
summarize as the Industrial Revolution, that men reached this crisis of choice; of the human shape
that should underlie the physical creation.7

Esse é um sentido em que Dickens reproduz seu momento histórico e lega essa
construção de um tempo para o presente e para a tradição do romance. Mas, do ponto de
vista do materialismo cultural, trata-se de ver também como Dickens o produz. Sua obra
marca um momento de transição de um modo de estruturar a análise moral, província do
romance. Na ficção pré-Dickens, ou anterior à situação em que escrevia Dickens, o nível
geral, o da sociedade, é visto de forma estática, como o cenário em que se desenrola o
drama das virtudes e dos vícios pessoais. A revolução industrial alterou de forma
pronunciada a relação entre os homens e as coisas e a percepção do sistema que organiza
essas relações. Em Dickens, a sociedade se deixa ver como um sistema ativo, que cria os
vícios e as virtudes – são as relações sociais e as instituições que as incorporam que
“geram, controlam, ou deixam de controlar”, o que antes era percebido como falhas da
alma humana. Assim, uma questão moral, por exemplo, o orgulho desmedido de Mr.
Dombey, é analisada em termos de um processo em que são pessoas, e não a natureza ou o
destino, que criam um meio distorcido, um inferno “social” que cabe ao escritor discernir e
criticar. O trecho escolhido por Williams elucida esse passo:

Was Mr. Dombey’s master-vice, that ruled him so inexorably, an unnatural characteristic? It might
be worth while sometimes, to inquire what Nature is, and how men work to change her, and
whether, in the enforced distortions so produced, it is not natural to be unnatural. Coop any son or
daughter to an idea, and foster it by servile worship of it on the part of the few timid or designing
people standing round, and what is nature to the willing captive who has never risen upon the wings
of a free mind – drooping and useless soon – to see her in her comprehensive truth!
Alas! Are there so few things in the world, about us, most unnatural, and yet most natural in being
so! Hear the magistrate or judge admonish the unnatural outcasts of society; unnatural in brutal
habits, unnatural in want of decency, unnatural in losing and confounding all distinctions between
good and evil; unnatural in ignorance, in vice, in recklessness, in contumacy, in mind, in looks, in

7
Raymond Williams, The English Novel from Dickens to Lawrence [1970], p. 40-1.

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everything. But follow the good clergyman, or doctor, who, with his life imperilled at every breath
he draws, goes down into their dens, lying within the echoes of our carriage-wheels and daily tread
upon the pavement stones. Look round upon the world of odious sights – millions of immortal
creatures have no other world on earth – at the lightest mention of which humanity revolts, and
dainty delicacy living in the next street, stops her ears, and lisps “I don’t believe it!” Breathe the
polluted air, foul with every impurity that is poisonous to health and life; and have every sense,
conferred upon our race for its delight and happiness, offended, sickened, and disgusted, and made a
channel by which misery and death alone can enter. Vainly attempt to think of any simple plant, or
flower, or wholesome weed, that, set in this foetid bed, could have its natural growth, or put its little
leaves forth to the sun as God designed it. And then, calling up some ghastly child, with stunted
form and wicked face, hold forth on its unnatural sinfulness, and lament its being, so early, far away
from Heaven – but think a little of its being conceived, and born and bred, in Hell! (Dombey and
Son, 1848)

Nesse parágrafo está marcada uma transição decisiva do modo de olhar do


romance: a questão individual, da moral, passa a ser vista como uma questão social, o
inferno feito pelo homem. Trata-se de uma visão da generalidade de uma situação, de uma
forma de vida escolhida pela sociedade em geral, vista em suas conseqüências humanas. A
crítica social de Dickens está posta justamente nesta perspectiva que estrutura seus
romances: o romancista deve ver além do fog, imagem recorrente, e o que vê é um sistema
geral e totalizante que impede a felicidade dos mais fracos.
Muitos críticos se ressentem do fato de Dickens não se deter nas instituições e
organizações que tentavam minimizar a injustiça: a reforma da educação, os sindicatos.
Williams vê essa falta como exigência mesmo da forma dos romances: o romancista da
visão totalizante não pode ser, na ficção, um reformista: instituições não são operantes para
mudar uma condição total: “To see a change of heart and a change of institutions as
alternatives, is already to ratify an alienated society”8.
Na percepção dada nos romances da necessidade de uma mudança radical da
organização da sociedade, Williams aproxima Dickens de seu contemporâneo, Marx. Claro
que para este a mudança necessária é a revolução. Para o romancista, é uma mudança
operada pelo amor e pela inocência e isto é, certamente, crucial. Mas também pode ser
simplista deixar de lado o tão criticado sentimentalismo de Dickens:

The exclusion of the human, which we can see operating in a describable system, is not after all
absolute, or it would make no sense to call what is alienated human; there would otherwise be
nothing to alienate. The inexplicable quality of the indestructible innocence, of the miraculously
intervening goodness, on which Dickens so much depends and which has been casually written off
as sentimentality is genuine because it is inexplicable. To believe that a human spirit exists,
ultimately more powerful than even this system, is an act of faith, but of faith in ourselves.9

8
Raymond Williams, The English Novel from Dickens to Lawrence [1970], p. 49.
9
Raymond Williams, The English Novel from Dickens to Lawrence [1970], p. 59.

126
Para Williams, o romance de Dickens permanece atuante na medida mesmo que
formaliza uma crítica social no sentido forte: não apenas uma série de opiniões ou de
atitudes, mas uma visão da “natureza do ser humano e dos meios de sua libertação num
tempo e espaço determinados”. Aí o fundamental do legado deste escritor, elevar à máxima
potência a capacidade do romance de cumprir uma função social específica: concretizar um
modo de ver o mundo que pode ser comunicado a outros, e uma “dramatização de valores
que se torna uma ação”.
Esta leitura de Dickens permite a Williams encontrar a tradição a que pertence este
grande escritor. Em The Country and the City liga-o a outros escritores de cidades: Balzac,
com sua ênfase na mobilidade constante e nas intrincadas relações sociais às quais dá
relevo; Dostoievsky, com os elementos de mistério também presentes em Dickens embora
sem a ênfase espiritual, e depois Kafka e Joyce.
Um último exemplo. É comum que a historiografia do romance inglês isole
Wuthering Heights como experimento único, explicável apenas em termos de sua
originalidade. Williams, olhando as condições a que este romance notável responde,
assinala não o de sempre, que Emily, Charlotte e Anne moravam isoladas no campo, e
viviam intensamente na imaginação. Também não lhe chama a atenção a leitura
convencional marxista, que, a fim de localizar este romance poderoso e aparentemente
desconectado da história social, vê em Heathcliff o símbolo da visibilidade crescente
nestes tempos de industrialização de uma subclasse sombria, desconhecida, à mercê dos
poderosos, em uma palavra, Heathcliff como o proletariado. Williams não pode se referir a
Heathcliff como ainda outro símbolo, o da Grande Fome irlandesa, assunto de um livro de
Eagleton de 199710. Mas de todo modo, sua observação aplica-se a todas essas versões
derivativas: a experiência social, só porque é histórica, não precisa aparecer no romance de
forma pública e geral. O que muitas vezes se dá é justamente o contrário: o romance
mostra como a experiência justamente por ser social, penetra e satura todos os tipos de
relacionamento, inclusive os intensamente pessoais, como o de Heathcliff e Cathy. Na
verdade este relacionamento é o suporte da intensidade do romance, reconhecida por todos
os leitores e pela crítica.
Williams analisa os procedimentos de composição e conclui que, de fato, grande
parte do conteúdo do romance é a modulação e o controle dessa intensidade que ocupa um
espaço muito maior na lembrança da leitura do que na composição efetiva do romance. A
paixão é narrada de múltiplos pontos de vista em uma tentativa de controlá-la. Controle é a
palavra chave: Williams lembra que, por essa época, os homens foram ensinados a não
chorar. Demonstrar emoção está fora das possibilidades abertas por esta nova organização
social, caminhando a passos largos para a rigidez de modos de vida que caracterizam a
vida burguesa vitoriana. No entanto, a intensidade negada permeia toda a narrativa como
um fantasma. Fora da relação intensa com outros seres humanos, resta a imagem, algo

10
Terry Eagleton, Heathcliff and the Great Hunger.

127
semelhante à vida, mas que tem que ser construída à força, como diz Heathcliff, “I have to
remind myself to breathe – almost remind my heart to beat”.
Williams lembra que esta experiência de perda é ordinária, não precisa de tradução
para outros termos que não os dados no romance: temos aí a articulação de uma
experiência de separação total entre existência e desejo, uma alienação, se quisermos usar
o termo, que dá o caráter “visionário” que Emily Brontë compartilha com Blake e lega a
Hardy e a partes de Lawrence. Essa cisão, separação trágica entre a intensidade humana e
qualquer acomodação social possível, marca o resto da nossa história cultural.
Penso que é possível estabelecer uma relação entre esta estrutura de sentimento
formalizada, por exemplo, em Wuthering Heights e o uso derrisório da “emoção” em
descrições e argumentos contemporâneos. Em sua obra “política”, Towards 2000,
Williams lista, entre as mudanças de pensamento necessárias para caminharmos em
direção a uma transformação efetiva da sociedade, a revalorização do emocional. Chama a
atenção para o fato de que alguns dos movimentos sociais transformadores da organização
social, como os feministas, ecológicos ou pacifistas, são desconsiderados como
emocionais, em contraste com a “inteligência” do sistema vigente. Uma estratégia
constante desses movimentos oposicionistas é demonstrar sua “inteligência e
racionalidade”, falando assim nos termos do sistema a que se opõem. Williams aponta que
seria também interessante recuperar o que ficou cindido:

For it is in what it dismisses as emotional (...) that the old consciousness most clearly shows its
bankruptcy. Emotions, it is true, do not produce commodities. Emotions do not make the accounts
add up differently. Emotions do not alter existing relations of power. But where people actually live,
what is specialized as “emotional” has an absolute and primary significance. 11

E onde as pessoas vivem é exatamente onde se estrutura o romance, e a crise do


impacto da ordem capitalista vitoriosa na década de 40 do século XIX, confiante por ter
derrotado à força o perigo da “infecção jacobina”, se manifesta também como uma crise
das emoções. Os modos como esta crise foi efetivamente vivida estão preservados nos
romances de Emily Brontë, de suas irmãs Charlotte e Anne, assim como em Elizabeth
Gaskell.
A própria história da prosa demonstra um desenvolvimento longo e conflituoso de
uma forma analítica e ponderada de escrever o mundo do controle. Com a contundência
que aflora na sua própria prosa, talvez como forma de livrar-se dessa herança de
comedimento que esconde um processo bem sucedido e desumano de exclusão, Williams
denomina, na introdução escrita em 1969 para o Pelican Book of English Prose, a
realização deste desenvolvimento de English:

11
Raymond Williams, Towards 2000 [1973], p. 266.

128
While the ways of seeing and dealing last, that is English, and schoolboys can be set to learn it: the
attitudes and the style in a single operation.”12

Esse longo ensaio ilustra uma segunda ordem dos problemas com que têm que se
haver os escritores: o que fazer com este meio de expressão que vem repleto de
contradições, conflitos e também de formas consagradas de lidar com eles, formas que
muitas vezes é preciso refazer para dar conta da nova experiência. Vale a pena resumir os
achados desta história da prosa pois complementam o tratamento dado ao romance na obra
de Williams. De quebra, serve ainda para demonstrar o disparate de se dizer que sua crítica
materialista o afasta da crítica literária, reino das formas, e o joga na sociologia, reino dos
movimentos históricos e nas modificações que estes introduzem no modo de vida de uma
sociedade – uma das maneiras usuais de descartar os desafios da crítica materialista. O
exame “formal”, do arranjo e dos ritmos da prosa demonstra justamente como sua forma
modifica e é modificada por mudanças de situação histórica. O corte temporal do ensaio de
Williams é proposital: examina a prosa de 1780 a 1950, os anos de formação da Grã-
Bretanha moderna.
O ângulo para um exame dessa extensão é decisivo: a prosa que aprendemos vale a
pena examinar é a “boa prosa de estilo”. Como não era o caso de desqualificar o esforço de
formalização e a herança de soluções da grande tradição do romance, aqui a questão não é
mudar os objetos e ver a prosa varrida para debaixo do tapete por noções de belo
preestabelecidas. Esta, como se sabe, é a motivação de muita pesquisa histórico-literária
interessante em nossos dias, em busca da recuperação dos silenciados, uma crítica que
confronta conservadorismo e elitismo críticos em seus próprios termos. Não há nenhuma
razão para não reclamar parte da herança intelectual que o pensamento hegemônico quer
apropriar exclusivamente e deixar de lado a grande tradição. A questão implícita no ensaio
de Williams vai além disso e muda o ângulo, redirecionando o debate. Estilo, ensina, não é
uma coisa, mas uma relação: as questões do método, da substância e da qualidade da prosa
não podem ser separadas das questões sociais das relações entre as pessoas, as mesmas que
modificam as instituições, os meios de transmissão dessa prosa, sua apreciação e alcance
social.
Escrever prosa é “estabelecer uma transação entre um número verificável de
escritores e leitores, organizados em determinadas relações sociais que incluem a
instrução, os hábitos de classe, a distribuição e os custos de publicação”13. Parece que
nenhuma das formas disponíveis de se investigar prosa dá conta desses aspectos. Estilo
para a crítica e sociedade conservadoras é um absoluto, algo a ser julgado em termos de
boas-maneiras, um modo compartilhado pelo bom gosto das pessoas de bem. A crítica
menos rançosa junta o estilo ao conteúdo, às idéias e sentimentos “veiculados” pela
linguagem. Essa crítica não costuma apresentar dificuldades em reconhecer o
conhecimento, a experiência, a imaginação do escritor e relacioná-las com a clareza, o

12
Raymond Williams, “Notes on English Prose: 1780-1950 [1969]. In: Writing and Society, p. 109.
13
Raymond Williams, “Notes on English Prose: 1780-1950 [1969]. In: Writing and Society, p. 79.

129
interesse, a vivacidade da escrita. A dificuldade aparece em confrontar o fato de que há
diferenças formais ao longo da história –diferenças de gramática, de vocabulário, de
estrutura e composição, das maneiras de se contar uma história ou se apresentar um
argumento. Essas mudanças dão notícia de modificações da situação real que apreendem e
formalizam. Mesmo a teoria da comunicação contemporânea, com sua equação “quem diz
o quê, como, para quem, com que efeito,” deixa de lado a questão central: “por que”?
Segundo Williams, essa relação de causalidade, sem a qual acabamos tendo uma visão
abstrata de estilo e de escrita, deve ser buscada na linguagem:

In almost all writing, the language which is at once form and content includes, though often
unconsciously, the real relationships and the tensions between these and the conscious relationship
of the writer and others.14

Williams organiza seu ensaio em torno de exemplos esclarecedores da linguagem


de ensaístas, pensadores e, especialmente, romancistas. Afinal, esta é a idade do romance,
o tempo em que se transformou na forma dominante de prosa. O primeiro grande exemplo
literário é Jane Austen. Ela tinha à sua disposição a herança dos ensaístas do século XVIII,
que haviam aperfeiçoado as possibilidades analíticas da prosa. Esta prosa comedida,
racional e precisa foi seguidamente imitada como uma espécie de modo social polido de
dizer. O fato de ser também o veículo predileto de um esnobismo afetado não deve
obscurecer suas qualidades reais: trata-se de uma realização elaborada, que pressupõe
preparação e paciência de compartilhar o argumento, exposto com detalhe e precisão.
Trata-se, no dizer de Williams, de uma forma em débito direto com um desenvolvimento
técnico:

Such prose, indeed, is a kind of climax of print, and especially of the printed book: a uniformity of
tone and address; an impersonality, assuming no immediate relation between writer and reader but
only possession, in a social way, of this language; a durability, as in the object itself, beyond any
temporary impulse or occasion.15

Apesar da impessoalidade, esta prosa, paradigma do estilo culto, pressupõe uma


comunidade lingüística e de sensibilidade precisa e altamente restrita. O fato de se ter
transformado na forma “natural” do romance realista, de Austen, Eliot, James e Forster, e
com aparições até na tradição distinta de Emily Brontë, tende a obscurecer esse aspecto.
Trata-se de uma comunidade, certamente, mas de uma comunidade exclusiva, que
pressupõe um mundo, familiar apenas a seus membros, de referência, alusão e,
principalmente, distinção, nos dois sentidos do termo. O exemplo escolhido por Williams
enfatiza tanto a precisão quanto a exclusão:

14
Raymond Williams, “Notes on English Prose: 1780-1950 [1969]. In: Writing and Society, p. 74.
15
Raymond Williams, “Notes on English Prose: 1780-1950 [1969]. In: Writing and Society, p. 80.

130
She had led her friend astray, and it would be a reproach to her for ever; but her judgment was as
strong as her feelings, and as strong as it had ever been before, in reprobating such an alliance for
him as most unequal and degrading. Her way was clear, though not quite smooth. She spoke then,
on being thus entreated. What did she say? Just what she ought, of course. A lady always does. She
said enough to show there need not be despair – and to invite him to say more himself. He had
despaired at one period; he had received such an injunction to caution and silence, as for the time
crushed every hope – she had begun by refusing to hear him. The change had been somewhat
sudden – her proposal of taking another turn, her renewing the conversation which she had just put
an end to, might be a little extraordinary. She felt the inconsistency; but Mr. Knightley was so
obliging as to put up with it, and seek no further explanation.
Seldom, very seldom, does the complete truth belong to any human disclosure; seldom can it happen
that something is not a little disguised, or a little mistaken; but where, as in this case, though the
conduct is mistaken, the feelings are not, it may not be very material. Mr Knightley could not impute
to Emma a more relenting heart than she possessed, or a heart more disposed to accept his. (Emma,
1816)

Todo um mundo social está contido na frase “She said what she ought. A lady
always does.” Uma questão correlata é a da dificuldade da fala em revelar a verdade –
“Seldom, very seldom, does the complete truth belong to any human disclosure”. Esta
valorização do mundo elaborado da escrita em detrimento do mundo expresso pela fala
comum será um problema recorrente na tradição.
Dizer no entanto “tradição” é falsear a realidade histórica. Há mais do que uma
tradição em formação no século do romance, outra linhagem que pressupõe outra relação
entre escritor e leitor e cuja prosa não guarda uma relação estreita com a prosa composta e
comedida. Não é de admirar que os críticos para quem a prosa instruída é a regra, vejam
nesta outra prosa apenas “crueza” e “vulgaridade”.
O mundo de Dickens é produto e produção de uma outra organização social: a
relação é outra, o ritmo é o da fala, a narrativa, mais do que uma composição é uma
apresentação, conduzida por uma voz convincente, direta, dominando e mesclando os
procedimentos antes separados de exposição, análise e narração. O exemplo da descrição
da nova ferrovia em Dombey and Son (1848) dá a medida desta prosa da nova experiência
urbana, estabelecendo novas formas de ver este mundo em rápida – rapidez aí é chave –
transformação:

As to the neighbourhood which had hesitated to acknowledge the railroad in its struggling days, that
had grown wise and penitent, as any Christian might in such a case, and now boasted of its powerful
and prosperous relation. There were railway patterns in its drapers’ shops, and railway journals in
the windows of its newsman. There were railway hotels, coffee-houses, lodging-houses, boarding
houses; railway maps, views, wrappers, bottles, sandwich-boxes and time-tables; railway hackney-
coach and cab stands; railway omnibuses, railway streets and buildings, railway hanger-ons and
parasites, and flatterers out of all calculation. There was even railway time observed in docks, as if

131
the sun itself had given in. Among the vanquished was the master chimney-sweeper, whilom
incredulous at Stagg’s Gardens, who now lived in a stuccoed house three stories high, and gave
himself out, with golden flourishes upon varnished board, as contractor for the cleansing of railway
chimneys by machinery.
To and from the heart of this great change, all day and night, throbbing currents rushed and returned,
incessantly like this life’s blood. Crowds of people and mountains of goods, departing and arriving
scores upon scores of times in every four-and-twenty hours, produced a fermentation in the place
that was always in action. The very houses seemed disposed to pack up and take trips. (Dombey and
Son, 1848)

Claro que julgar este estilo nos termos do outro é colocar standards acima das
realidades que deveriam ordenar. Trata-se de uma forma tão séria quanto a outra. Como diz
Williams, “seriousness, connection, intelligent demonstration are not lost, but transformed.
A new prose has come to inhabit and to organize an essentially different world”16. E esta
nova prosa mostra que há lugar para a colocação de outra ordem de problemas, que
começam a ser tratados em forma de ficção. George Eliot, representante do estilo culto,
coloca o problema com clareza, e lá Williams vai buscar elementos para rescrever em seus
próprios termos a história da prosa:

In writing the history of unfashionable families, one is apt to fall into a tone of emphasis which is
very far from being the tone of good society, where principles and beliefs are not only of an
extremely moderate kind, but are always presupposed, no subjects being eligible but such as can be
touched with a light and graceful irony. But then good society has its claret and its velvet carpets, its
dinner-engagements six weeks deep, its opera and its fairy ballrooms; rides off its ennui on
thoroughbred horses, lounges at the club, has to keep clear of crinoline vortices, gets its science
done by Faraday, and its religion by the superior clergy who are to be met at the best houses: how
should it have time or need for belief or emphasis? But good society, floated on gossamer wings of
light irony, is of very expensive production; requiring nothing less than wide and arduous national
life condensed in unfragrant, deafening factories, cramping itself in mines, sweating at furnaces,
grinding, hammering, weaving under more or less oppression of carbonic acid – or else spread over
sheep-walk, and scattered in lonely houses and huts on the clayey or chalky corn-lands, where the
rainy days look dreary. This wide national life is based entirely on emphasis – the emphasis of want.
(The Mill on the Floss, 1860)

A questão que vai preocupar os romancistas e dividi-los em classes distintas até


nossos dias não é apenas como incorporar os pobres, embora esse seja um problema
dificílimo, mas também como incorporar a expressão oral e o tipo de experiência a que ela
dá forma. O problema se aprofunda nas tentativas de se incorporar a fala dos pobres e pode
ser melhor exposto juntando os dois lados de uma questão parecida.

16
Raymond Williams, “Notes on English Prose: 1780-1950 [1969]. In: Writing and Society, p. 94.

132
Ao introduzir a fala dos pobres, necessidade de seu assunto em Mary Barton
(1848), Mrs. Gaskell assinala a dificuldade apresentando em notas de rodapé explicações
do sentido das palavras em dialeto de personagens cuja fala é alternada com a prosa culta,
escrita da narrativa. Já está sinalizada aí a divisão entre o escritor e parte de seus leitores:
os modos ordinários de apreensão são preteridos em favor do modo “analítico-culto”,
como se só fosse possível compreender a vida através da prosa comedida. Há momentos
em alguns escritores, o exemplo citado é Lawrence, em que esta divisão é solucionada, e é
possível fazer uma composição analítica com o ritmo da fala. Mas a regra – como era de se
esperar em uma história social ainda não resolvida – é valorizar uma forma pública,
racional e cultivada de prosa (e conseqüente visão de mundo) e isolar a organização
essencialmente diferente do pensamento e expressão comuns.
Essa divisão das formas da prosa está, então, baseada em um processo social
preciso de julgamento de valor e de restrição e exclusão da experiência. A prosa composta
e cultivada, sendo um paradigma, sustenta não só os valores positivos já apontados – o
esforço de esclarecer, de pesar os argumentos – como a hierarquia que coloca o cultivado
acima do comum. Isso não é dizer pouco, para quem, como Williams, sabe que “the crucial
evaluative function is the judgement of conventions themselves, from a deliberate and
declared position of interest”17. Estas convenções produzem não só arte, mas também
relações e ações, e como tais devem ser avaliadas. Uma mente treinada – por exemplo que
pode aprender a falar isso a que chamam de “English” – é produto de um processo seletivo
e exclusivista de educação. Reações e respostas à organização da vida, ainda que ganhem
com as possibilidades abertas pela elaboração, não são exclusivas dos cultivados, e sim,
nos termos do primeiro grande ensaio de Williams, ordinárias. O conflito entre os dois
estilos de prosa, ou seja, entre os dois tipos básicos de relação escritor/leitor/mundo
narrado, descreve uma linha significativa de tradições do romance.
Hardy exemplifica bem a prosa dividida de uma sociedade que obriga o escritor a
escolher o poder do conhecimento, lavrado na linguagem polida, e a solidariedade à
experiência da maioria da população a quem quer retratar com o respeito associado à
maneira forçosamente rejeitada. Falando sobre Hardy, Williams explicita os
desdobramentos históricos dessa cisão na vida e na prosa, e o conseqüente
empobrecimento dos dois lados:

...the ordinary social model, the learned language which includes these capacities [of learned
understanding of nature and behaviour], is very clearly, in a divided culture, a form which includes
an alienation – “a few unimportant scores of millions of outsiders” – and a nullity – “to be tolerated
rather than reckoned with and respected”. The tension which then follows, when the observer holds
to educated procedures but is unable to feel with the existing educated class, is severe...18

17
Raymond Williams, Politics and Letters, p. 306.
18
Raymond Williams, “Notes on English Prose: 1780-1950 [1969]. In: Writing and Society, p. 106.

133
O preço a ser pago é uma disjunção de base. Na arte, por exemplo, dá em soluções
como a “paixão cega da rejeição”19 que debilita a crítica social de Lawrence, ou na
nostalgia que assoma em romances de Hardy. Na vida, dá em uma restrição de
possibilidades que, mesmo em graus radicalmente diferentes, atinge a todos, como se
constata observando a estrutura de sentimento dominante na época em que Hardy vê seu
projeto cindido por diferentes lealdades:

What that crisis comes out as, in real terms, is the relation between intelligence and fellow-feeling,
but this relation in the nineteenth and twentieth centuries had to be worked out at a time when
education was consciously used to train members of a class to divide them from their own passions
as surely as from other men: the two processes are, inevitably, deeply connected. The writer, moving
through this history, had to explore, as if on his own, the resources of what seemed to be but was not
yet in fact a common language.20

O problema permanece tão candente hoje como era em 1848: como introduzir a
reação ordinária dos falantes no interior de uma organização analítica, ou seja, como
representar esteticamente o que é socialmente menos valorizado por questões específicas
de interesses em jogo. Por ser um problema real, tem que ser tratado por todos os escritores
comprometidos com a seriedade. Williams divide os escritores, sob este aspecto, entre os
“confiantes” e os “perturbados”:

The division between the confident and the disturbed, in the long crisis of an industrial civilization,
can hardly be overstressed. It is in effect a division between a prose with many strengths, of clarity
and fluency, and a prose often tortured, uncertain, obscure – its lucidities depending on new ways of
seeing and feeling being learned; its strengths on unexpected connections; its flow on inarticulate
and still struggling emotions. The confident prose is not just a matter of optimism, of a belief in
progress. Bagehot is very remarkable as the pioneer of a style now very common but still difficult to
describe: a complacency and a cynicism, which might appear opposite qualities, are brilliantly fused,
into a sort of brittle durability, a penetrating reassurance. It is a style admirably suited to expose
illusion as a way of maintaining them: the accent, the new poise, of a ruling class under pressure and
using a style as a control.21

Pode-se argumentar que o modernismo solucionou o problema à sua moda,


fundindo o mundo observável, o mundo da divisão, na imaginação soberana do escritor,
criando uma atitude a que eu chamaria, tomando emprestado a divisão de Wiliams, de
“confiança perturbada”. No caso de Joyce, o esforço é de mostrar a consciência em ato,
“uma confusão que é uma consciência convincente” – Ulysses – ou dissolver as duas
prosas, e o mundo, na linguagem auto-referente do Finnegan’s Wake. O exemplo da

19
Expressão cunhada por Williams em Culture and Society [1958], p. 200.
20
Raymond Williams, “Notes on English Prose: 1780-1950 [1969]. In: Writing and Society, p. 106.
21
Raymond Williams, “Notes on English Prose: 1780-1950 [1969]. In: Writing and Society, p. 109.

134
soberania da imaginação escolhido por Williams dá bem a medida de como esta soberania
depende de relações e posicionamento sociais tão precisos quanto os de uma Jane Austen.
Tudo é evocado pela imaginação, mas algumas pessoas são vistas externa e internamente
através do fluxo de consciência e outras através de metáforas e distanciamento:

If the feather had fallen, if it had tipped the scale downwards, the whole house would have plunged
to the depths to lie upon the sands of oblivion. But there was a force working; something not highly
conscious; something that leered, something that lurched; something not inspired to go about its
work with dignified ritual or solemn chanting. Mrs. McNab groaned; Mrs. Bast creaked. They were
old, they were stiff, their legs ached. They came with their brooms and pails at last; they got to
work. All of a sudden, would Mrs. McNab see that the house was ready, one of the young ladies
wrote: would she get this done; would she get that done; all in a hurry. They might be coming for
the summer; had left everything to the last; expected to find things as they had left them. Slowly and
painfully, with broom and pail, mopping, scouring, Mrs. McNab, Mrs. Bast stayed that corruption
and the rot; rescued from the pool of Time that was fast closing over them, now a basin, now a
cupboard; fetched up from oblivion all the Waverly novels and a tea-set one morning; in the
afternoon restored to sun and air a brass fender and a set of fire-irons. George, Mrs. Bast’s son,
caught the rats, cut the grass. They had the builders. Attended with the creaking of hinges and the
screeching of bolts, the slamming and banging of damp-swollen wood work, some rusty laborious
birth seemed to be taking place, as the women, stooping, rising, groaning, singing, slapped and
slammed, upstairs now, now down in the cellars. Oh, they said, the work! (To the Lighthouse, 1922)

A contrapelo de uma tendência que se tornou lugar-comum nos estudos literários,


Williams não descarta a possibilidade de se estabelecer uma nova relação escritor-leitor e
se constituir uma prosa que seja a linguagem ordinária do mundo. Este mundo
evidentemente seria o mundo transformado, sem divisão, um mundo comum. Está
completamente fora dos parâmetros de Williams sugerir que a prosa descole do mundo e o
transcenda. No pé em que as coisas estão, uma das questões para um crítico empenhado é
manter os olhos abertos e divisar, com um olhar treinado pela história da prosa, a
emergência de novos sentimentos e novas idéias, para além da “graça mordaz” e do
“oportunismo barulhento” que caracterizam muitas das tentativas mainstream
contemporâneas de lidar com os problemas da prosa no mundo.
O movimento desse ensaio – repensar as bases para descrever a história de uma
produção cultural, traçar os conflitos que a marcaram, recuperar o lado derrotado, e –
justamente porque houve derrota, o que pressupõe a possibilidade da vitória – apontar um
caminho para se perceber as possibilidades de mudança – redesenha a trajetória do
Williams crítico-teórico-socialista. A um socialista interessa demonstrar que a cultura,
assim como a estruturação da experiência em arte são comuns: é preciso derrotar o hábito
da classe dominante de tratar, no caso exposto, a prosa literária como uma colônia onde
pode fazer tudo o que quer: é preciso mostrar sempre como este procedimento falseia o que
efetivamente ocorreu na história. Para o teórico, interessa deslocar os modos habituais de

135
isolar os romances como objetos em si mesmos, como se fizessem sentido fora da
formação de que são um aspecto, e considerar as condições de produção da prosa e suas
relações com o mundo que produz. Para o crítico, interessa deslocar as avaliações e
distinções que sustentam o processo.
O modo de proceder a essas operações conectadas é estratégico: Williams não
polemiza nem com as avaliações nem com as teorias que sustentam as abstrações:
demonstra, como ilustrei aqui ao recolocar seus exemplos, os pontos que sua posição
permite ver. Estes pontos estão lá, concretamente.
Pode-se até discordar de suas avaliações mas não se pode negar a existência do que
demonstram. O debate intelectual, a menos que queira negar evidências, teria que levá-la
em consideração. O fato de não a levar – para cada materialista cultural atuando na crítica
anglo-americana contemporânea há pelo menos dez exemplares do idealismo radical, a
nova roupagem da cultura de minoria de Leavis – ilustra bem o empobrecimento acelerado,
corolário, como vimos exemplificado na história da prosa, da vida social sob o signo da
divisão.
Uma medida dos efeitos dessa perda na crítica literária pode ser dada comparando o
que se aprende com uma análise de Williams ao que se aprende com a de outros críticos.
Como a questão central é esclarecer o debate contemporâneo, onde é preciso recuperar a
crítica potente de Williams, essa comparação fica mais produtiva se deixarmos de lado a
posição leavista tout court, que, embora continue muito ativa no subsolo, já está
devidamente datada em nossos dias de obsolescência programada, e concentrarmo-nos em
uma voz reconhecidamente ativa em nossos dias.
O trabalho fica facilitado pelo fato de que uma dessas vozes, Edward Said, tenha
explicitamente apresentado uma análise alternativa sobre um dos focos de interesse de
Williams em seus estudos sobre o romance, Jane Austen, como uma “homenagem”,
publicada no livro Raymond Williams – Critical Perspectives editado por Terry Eagleton.
Said tem ainda a vantagem de ser um crítico empenhado e portanto falar a partir de uma
posição, por assim dizer, compatível com a de Williams. Comparar os dois procedimentos
de análise e seu potencial de esclarecimento pode dar uma idéia dos contornos deste debate
em um momento em que as posições de Williams já eram razoavelmente conhecidas.
Williams fala de Austen de forma mais extensiva em The English Novel from
Dickens to Lawrence e em The Country and the City, onde recoloca verbatim as análises
apresentadas no primeiro e as expande para relacionar Austen a seus contemporâneos não-
canonizados. Até onde sei, é o único crítico que trata de Jane Austen, a mais clássica entre
os clássicos, no contexto das apresentações em prosa do mundo que ela descreveu tão
minuciosamente. Um dos efeitos do capítulo “Three around Farham” é suscitar no leitor a
pergunta: dadas as condições daquela região da Inglaterra, entre os condados de Hampshire
e Surrey, nas primeiras décadas do século XIX, que tipos de representação eram possíveis?
Gilbert White, que escreveu, ao longo de nove anos, um diário anotando suas
observações da natureza, abre caminho para a relação descritiva, a “elaboração intrincada

136
de qualidades”22, campo que vai marcar a relação da poesia romântica de um Clare ou de
um Wordsworth na geração seguinte.
William Cobbett, jornalista e tribuno, olha o mesmo mundo de White e Austen.
Como a dela, sua perspectiva é social, só que o mundo social é descrito do ponto de vista
da situação da maioria das pessoas. Trata-se de um dos primeiros exemplos da observação
do mundo do ponto de vista das classes sociais, ponto de vista tornado disponível pela
clareza da nova organização social. Cobbett vê as classes e decide logo de que lado está:

The landlords and the farmers can tell their own tale. They tell their own tale in remonstrances and
prayers addressed to the House. Nobody tells the story of the labourer.23

O momento em que tanto Cobbett quanto Austen observam o mundo social é de


mudanças marcantes: trata-se do momento da fusão do capital mercantil e do agrário e da
conseqüente reorganização das relações sociais para dar conta da nova forma de
organização da produção rural. A riqueza de detalhes apresentada por Cobbett mostra o
caminho por onde passou a transição entre o poema compassivo e o romance de crítica
social, por exemplo, de um Dickens, na geração posterior.
O fato de que nesse meio o romance de Austen tenha sido escolhido como o
iniciador da grande tradição do romance inglês atesta não só a qualidade reconhecida de
sua prosa como o sentido preferido para designar o que é alta literatura, e qual é a tarefa
preferencial do romance: descrever o mundo seleto dos de cima. E isso Austen faz com
perfeição. O seu mundo é precisamente o descrito, de um outro ângulo, por Cobbett. Ele
explicita a procedência do capital mercantil e uma das conseqüências, no modo de vida,
dessa “invasão”24:

The war, the paper-system has brought in [in contrast with the resident, traditional gentry] nabobs,
negro-drivers, generals, admirals, governors, commissars, contractors, pensioners, sinecurists,
commissioners, loan-jobbers, lotery-dealers, bankers, stock-jobbers...

Como um dos resultados, agora:

The big, in order to save themselves from being swallowed up quick (...) make use of their voices to
get, through place, pension, or sinecure, something back from their taxes. Others of them fall in love
with the daughters and widows of paper-money people, big brewers, and the like; and sometimes
their daughters fall in love with the paper-money people’s sons, or the fathers of those sons; and
whether they be Jews, or not, seems to be little matter with this all-subduing passion of love. But the
small gentry have no resource.25

22
Raymond Williams, The Country and the City [1973], p. 186.
23
Raymond Williams, The Country and the City [1973], p. 136.
24
Williams discorda de Cobbett: houve invasões de pessoas alheias aos donos de terra desde pelo menos o século XVI.
25
Raymond Williams, The Country and the City [1973], p. 140.

137
O leitor de Jane Austen reconhece aí o avesso de sua tapeçaria bem tecida. Ver a
prosa de Austen nesse mundo social possibilita a Williams perceber o engano do grande
coro dos críticos que reclamam que em seus romances água-com-açúcar não há lugar para
a História. A “História tem muitas correntes” e a retratada por Austen é bastante
importante: trata-se da história das famílias dos proprietários rurais ingleses, vista por
dentro, no momento mesmo das mudanças e relativa mobilidade social retratadas com
acrimônia por Cobbett.
Se há História nos romances, ela se passa em um lugar específico, onde estão
formalizados os conflitos: as casas de campo, signos do poder que muda de mãos. No
século XVIII, esta burguesia agrária se transforma muito rapidamente em uma classe de
consumidores – Williams cita dados de pesquisa histórica que atestam que grande parte
dos empréstimos eram utilizados no melhoramento dessas casas. Uma vez que não se
compra a abstração fundante de muitos comentadores de Austen, considerar o local da ação
como um cenário neutro, a continuação de uma tradição de casas de campo idealizadas,
como se Penhurst e Saxham – assuntos dos poemas encomiásticos de Jonson e Carew –
Mansfield Park, e Poyton, onde se passa o Spoils of Poyton de Henry James – fossem todos
a mesma coisa, a pergunta que interessa responder é: qual a “substância social das
convenções formais que estruturam os romances de Jane Austen?”
Colocar essa questão é uma possibilidade aberta pelo materialismo cultural. A
resposta ilustra o que se aprende com esse tipo de análise abrangente. O assunto de Austen
é dado pelas modificações sociais observadas, o entrecruzamento dos significados e
valores de dois grupos sociais que se fundem, o dos “nababos”, da gente do papel-moeda a
que se refere Cobbett, e a gentry fundiária. Mais do que na decantada psicologia das
personagens, o interesse de Austen está nos problemas de conduta que essa interação
ocasiona: o que se julga são as formas corretas de se exteriorizarem os sentimentos e
pensamentos adequados a essa nova situação. Um dos aspectos da novidade é a mutação da
percepção do que é uma “pessoa de bem”: antes os aristocratas eram a encarnação dos
modos corretos de se comportar. Agora a questão é como deve se comportar esse novo
amálgama de classe? Qual a conduta adequada aos novos senhores que se devem constituir
como pessoas de bem e, ao mesmo tempo, descartar a moralidade herdada da aristocracia,
ou, pelo menos, fundi-la em uma nova morality of improvement?
Este é o termo usado para descrever a valorização que passa a imperar na Inglaterra
agrária a partir do século XVIII: a terra melhorada é a terra regulamentada e transformada.
Seu fundamento material é garantir a concentração da posse da terra – na época, 400
famílias eram donas de um quarto de todas as terras produtivas. Era preciso cimentar as
relações sociais entre essa classe dominante e a sociedade com interesses antagônicos,
estratificada em pequenos proprietários, arrendatários, meeiros, artesãos, camponeses. Essa
ética servia às necessidades do novo modo de organizar a produção agrícola, dirigido ao
lucro e ao mercado, um verdadeiro capitalismo agrário, e estava ancorada em uma idéia
muito parecida com a de modernização, que, como se sabe, tem servido de roldana
ideológica ao capitalismo de diferentes eras. A terra que dava lucro, assim como as pessoas

138
que os auferiam e que passavam a mostrar seus sinais externos, eram os “melhores”
também do ponto de vista moral. Neste mundo em que a posse de terra e de capital para
“melhorá-la” são questões centrais, o casamento, uma das possibilidades mais usuais de
promover essa união, passa a ser um foco de grande interesse e um ponto de convergência
das questões que preocupam esse grupo social. Aí então uma razão para se discorrer, como
faz Austen, sobre os melhoramentos auferidos com determinadas uniões.
Para Williams, uma fórmula sustenta a uniformidade de tom de Jane Austen, a
autoridade serena que emana de sua voz narrativa: “improvement is or ought to be
improvement”. Isso não é jamais posto em dúvida, nem submetido a seus “poderes
notáveis de estabelecer distinções”. Todos os esforços de aliança e avaliação cuidadosa das
posses dos pretendentes visam atingir uma qualidade de vida cujos fundamentos e custos
não são questionados. O trabalho necessário para atingir o melhoramento nunca aparece
nos romances – o campo em Jane Austen, diz Williams em outra ocasião, não é nunca um
lugar onde diferentes pessoas trabalham a terra:

It is not only the people who have disappeared, in a stylized convention as precise as Ben Jonson’s.
It is also most of the country which becomes real only as it relates to the houses which are the real
nodes; for the rest the country is weather or a place for a walk.26

Williams não faz essa ponte mas sua abordagem deixa a brecha para que se possa
concluir a ironia reveladora de se chamar a isso de “realismo”: como o faz com as
representações que escolhe chamar de literatura, o pensamento hegemônico também
coloniza o “real”. Pelos buracos da rede que esta grande romancista “realista” lança sobre a
vida, escapam todos, menos o seleto círculo de um mundo onde “estar face a face já
significa ser parte de uma determinada classe social”.
Mas isso não que dizer que Austen não faça distinções dentro desse universo
seletivo e desta fórmula sustentadora. Nem sempre o melhoramento econômico é traduzido
em boa conduta:

Some of the conscious improvers are seen as they were: greedy and calculating materialists. But
what is crucial is that the moral pretension is taken so seriously that it becomes a critique: never of
the basis of the formula, but coolly and determinedly of its results, in character and in action.27

Um dos resultados dessa atitude é que a ênfase moral torna-se tão pronunciada que
no fim pode ser destacada dessas novas “pessoas de bem” que são sua base social. Por aí,
diz Williams, passa a linha que une Austen aos moralistas vitorianos para quem a união de
classe e moralidade deixa de ser um dado. Em mãos como as de Matthew Arnold ou
George Eliot, a sobrevivência dos valores morais depende de outro tipo de independência:

26
Raymond Williams, The Country and the City [1973], p. 204.
27
Raymond Williams, The Country and the City [1973], p. 145.

139
para eles, melhoramento não era mais necessariamente um melhoramento, e com isso, a
crítica moral passa a ser crítica mais propriamente social.
Mas esse não é ainda o mundo nem a linguagem que Austen lega a seus sucessores.
Em suas mãos, o romance adquire uma forma que também é legado a ser usufruído e
transformado pelos que vêm depois. As convenções não se reduzem a seu momento
histórico específico: continuam ativas como a “forma romance” com que se têm que haver
as gerações posteriores. Mostrar sua especificidade histórica em oposição a uma visão
abstrata de convenção como regra a ser seguida, facilita o trabalho dos que virão, e ensina
a não avaliar um escritor segundo os critérios produzidos em outro momento histórico. Isso
é especialmente importante no caso de Jane Austen, paradigma do realismo.
O procedimento estruturante da composição de seus romances – a centralidade do
ponto de vista do narrador onisciente que é capaz de efetuar de forma firme e decidida,
ainda que sem prejuízo da ironia, as distinções que levam a um final feliz e ordenado é
possibilitada pela convicção na fórmula da vantagem absoluta do melhoramento. A chave
do tom unificado da voz narrativa, um elogio constante na maioria dos comentadores da
autora, é precisamente a seletividade do universo narrado. Romancista e personagem estão
unidas pela mesma linguagem “comedida e analítica”:

While the “deliberate, well-chiselled, polite” idiom is the product of a particular education and of
the leisured, dominating relationship which the education served, it is also idealized,
conventionalized; the novelist’s powers of effect and precision are given without hesitation to her
characters, because, for all the individual moral discrimination, they are felt to belong to the same
world. At points of emotional crisis and confrontation this is especially so, and it is the novelist who
articulates a personal experience, in a way for the sake of her group, to give it an idiom.28

Esse tipo de análise nos permite perceber a interação entre relações sociais
determinadas por mudanças na organização da produção econômica – uma fração de classe
que se reestrutura como dominante – a formação social e as convenções literárias que estas
relações estruturam, e a linguagem que incorpora estas relações e convenções e dá forma a
suas aspirações: o romancista não apenas reproduz os significados e valores de seu grupo
social, mas produz a linguagem através da qual esses valores e significados se constituem.
Conhecer essa linguagem é perceber como esses significados foram vivenciados,
construídos e incorporados à história dos modos disponíveis de ver o mundo. Um aspecto
mais geral dessa análise é demonstrar que esses significados e valores foram construídos
em resposta, reação, e descoberta de condições dinâmicas. Não são naturais, nem
imutáveis, assim como não o são os que vivemos no presente.
Resumida a exposição de Williams, resta compará-la com a de Said. Já no título,
“Jane Austen and Empire” ele aponta um modo de ler a cultura metropolitana, incluindo
Williams, não obstante sua condição de galês, que vai encontrar ressonância em retomadas

28
Raymond Williams, The Country and the City [1973], p. 207.

140
desta obra em produções da crítica pós-moderna. Gauri Viswanathan foi uma das que
seguiu a pista deixada por Said. Suas idéias, consideradas interessantes o suficiente para
integrar duas das coletâneas de ensaios recentes sobre o autor, ilustram o tipo de
pensamento que é preciso deslocar para se poder enxergar a contribuição analítica de
Williams:

Williams’s peculiar reticence in naming imperialism restricts him to a form of essentialism that robs
his cultural model of much of its potency. At the most basic level, Williams’s failure to incorporate
the historical reality of empire in both his theoretical analyses and his readings of literary texts
exposes a conception of society that is rendered in isomorphic terms, and cultural ideas appear as if
produced sui generis rather than by external conditions.29

Não acredito que o central seja desmentir essa avaliação mostrando, por exemplo,
que Williams se refere seguidamente ao imperialismo – em especial em suas análises em
The Country and the City, ou polemizando com essa avaliação de que Williams apresenta
uma visão da cultura que se produz a si própria – o reverso, apenas para citar um exemplo,
do que acabamos de ver na análise de Austen. O modo menos enredado pode ser
simplesmente expondo o que se ganha ao fazer o que Viswanathan acusa Williams de se
furtar a fazer. Ou, para usar sua linguagem, expondo a análise onde Said procede a um
“refilling of those spaces left empty by Williams”30.
Said aproxima-se do texto de Jane Austen “de fora” de qualquer contexto ligado a
ela. Essencialmente seu objetivo é mostrar que muito antes da idade clássica do império,
que ele localiza nos anos 70 do XIX, havia tendências nas formas culturais, “in narrative,
in political theory, or in pictorial technique that enable, encourage, and otherwise assure
the readiness of the West (...) to assume and enjoy the experience of empire”31.
Antes de abrir qualquer um dos romances, ele já sabe que vai encontrar isso. A
questão central torna-se, então, localizar as manifestações potencialmente condutoras ao
imperialismo e corrigir visões como a de Williams que, em um exame das imagens do
campo construídas no romance de Austen, deixa de enfatizar a “centralidade” do
imperialismo.
O modo como Said vai efetuar a localização dos germes do imperialismo revela um
procedimento bastante usual na crítica literária contemporânea. É preciso, nos seus termos,
afugentar o perigo da causalidade, sempre rondando um pensamento temporal, que
poderia, no exemplo revelador escolhido, propor-se a mostrar que “Wordsworth, Austen e
Hazzlit, because they wrote before 1857, actually caused the establishment of formal
British rule over India”32. Como se alguém de juízo, e portanto alguém com quem interesse
29
Gauri Viswanathan, “Raymond Williams and British Colonialism: The limits of a Metropolitan Culture”. In: Dennis
Dworkin & Leslie Roman.(eds.), Views Beyond the Border Country, , p. 217-230. Também em Christopher Prendergast
(ed.), Cultural Materialism: On Raymond Williams, p. 188-210.
30
Gauri Viswanathan, “Raymond Williams and British Colonialism: The limits of a Metropolitan Culture”. In: Dennis
Dworkin e Leslie Roman (eds.), Views Beyond the Border Country, p. 337, em nota de rodapé a seu ensaio.
31
Edward Said, “Jane Austen and Empire”. In: Terry Eagleton (ed.), Raymond Williams: Critical Perspectives, p. 150.
32
Edward Said, “Jane Austen and Empire”. In: Terry Eagleton (ed.), Raymond Williams: Critical Perspectives, p. 151.

141
polemizar, alguma vez tivesse dito isso. O uso dessa técnica retórica – a de construir um
oponente teórico que não existe – e depois construir uma oposição renhida a essa posição
imaginária é, infelizmente, prática constante no discurso crítico contemporâneo. É como se
na falta de uma afiliação refletida, que possibilite tomar partido, certa crítica tivesse que
gastar seu impulso oposicionista contra castelos de areia.
Outra característica constante é a desconfiança de qualquer idéia de determinação: a
fim de evitar “problemas da causalidade” como o que acabei de ilustrar, a solução não é
fazer distinções entre as várias ordens de determinações mas propor um modelo espacial. A
questão possibilitada por essa instância é: “How do writers (...) situate and see themselves
and their work in the larger world?”33
Para responder a esta questão, Said propõe-se a seguir Williams em The Country
and the City. Começa por, ao contrário de Viswanathan, reconhecer que ele leva em conta
o imperialismo nesse estudo das imagens do campo e da cidade na literatura inglesa, em
especial ao tratar da entrada marcante da idéia da colônia como um modo de resolver
conflitos na economia imaginária dos romances da segunda metade do século XIX. Said
acha que deveria arriscar, embora não elabore por que, o “perigo de se discordar de
Williams” e, no modelo espacial, localizar as idéias não do império propriamente dito, mas
das que conduzem ao imperialismo já em plena Jane Austen.
Começa esta parte de seu argumento concordando com Williams, embora o faça
usando uma imagem estranha:

Williams is (...) dead right: Austen’s novels all express an “attainable quality of life”, in money and
property acquired, moral discriminations made, the right choices put in place, the correct
“improvements” implemented, the finely nuanced language affirmed and classified. (...) Where
Mansfield Park is concerned, however, a good deal more needs to be said...”34

O que precisa ser dito é que o fato de Sir Thomas Bertram ser proprietário de terra
em Antigua, ou, como diz Williams em The Country and the City ser precisamente um dos
“nabobs and negro-drivers” de que fala Cobbett, um exemplar dessa classe que Goldsmith
chamaria de “um grande antilhano” – implica Mansfield Park na racionalidade que prepara
e justifica a expansão imperialista.
Feita essa “descoberta”, Said lê a geografia como parte essencial da construção
deste romance. Desse ângulo, apresenta uma leitura oposicionista uma vez que “desde
Proust e Lukács” – estranha combinação – “estamos tão acostumados a considerar o
enredo e a estrutura dos romances como constituídas de temporalidade que esquecemos o
papel do espaço, localização e geografia”. O fundamental nesse romance é o “movimento
no espaço”: Fanny Price vai da casa empobrecida de seus pais para a cada rica de seu tio,
proprietário rural e colonial. Aí, para Said, um índice da necessidade de se mudar de um

33
Edward Said, “Jane Austen and Empire”. In: Terry Eagleton (ed.), Raymond Williams: Critical Perspectives, p. 151.
34
Edward Said, “Jane Austen and Empire”. In: Terry Eagleton (ed.), Raymond Williams: Critical Perspectives, p. 151.

142
lugar pequeno – as ilhas britânicas? – para um maior a fim de se obter sucesso financeiro.
Em resumo, um movimento para o imperialismo:

“I think Austen saw what Fanny does as a domestic or small-scale movement in space that
corresponds to the longer, more openly colonial movements of Sir Thomas, her mentor, the man
whose state she inherits. The two movements depend on each other.35

Mas a incomensurabilidade do tratamento dado aos dois movimentos no romance


obriga mesmo um dedicado defensor da justa causa dos colonizados como Said a conceder
que em Mansfield Park, Antigua “requires at most a half dozen references in the novel, all
of them granting the island the merest token importance to what takes place in England”36.
Aí estaria aberta a possibilidade de discutir um pouco a afirmação inicial do ensaio,
de que mais precisa ser dito em relação a Mansfield Park e à centralidade do imperialismo
no romance. Pode ser que se trate de centralidade por ausência. Mas Said não explora esse
aspecto, uma vez que não está, como atestam as direções e ênfases de seu argumento,
interessado em discutir a relação que Austen estabelece, ou deixa de estabelecer com o
imperialismo. A questão é demonstrar o que já se sabia de antemão: a colônia nunca é
tratada como a metrópole. Antigua, e até mesmo toda a Índia são tratadas no romance de
forma “casual”, como quando Lady Bertram diz que seu filho deve ir até lá a fim de que
ela ganhe um xale. Ao final, a análise de Said “revela” que esses lugares:

...stand for something significant “out there” that frames the genuinely important action “here”, but
not for something too significant. Yet these signs of “abroad” include, even as they repress, a
complex and rich history, which has since achieved a status that the Bertrams, the Prices and Austen
herself would not, could not, recognize.37

Exatamente. Se Austen não podia reconhecer a complexidade das colônias seria


difícil esperar que escrevesse com autoridade sobre elas. Ser parte do império envolve uma
cegueira que seria interessante discutir, ao invés de denunciar que, grande surpresa, os que
se aproveitam de uma situação dificilmente a criticam. Mas a questão para Said é
estabelecer uma linhagem para as preocupações pós-coloniais. Austen estaria prefigurando
a ênfase dada às colônias em obras de Conrad e Forster, onde, aí sim, figuram como partes
importantes, assinalando, em especial em Conrad, a emergência clara de um movimento de
oposição ao colonialismo na metrópole, ou, pelo menos, se lembrarmos que Conrad era
polonês, na linguagem da metrópole. Mas mesmo nessa linhagem Said escorrega,
extrapolando o poder da literatura e da cultura:

35
Edward Said, “Jane Austen and Empire”. In: Terry Eagleton (ed.), Raymond Williams: Critical Perspectives, p. 157.
36
Edward Said, “Jane Austen and Empire”. In: Terry Eagleton (ed.), Raymond Williams: Critical Perspectives, p. 159.
37
Edward Said, “Jane Austen and Empire”. In: Terry Eagleton (ed.), Raymond Williams: Critical Perspectives, p. 161.

143
Rather, I think, the novel [Mansfield Park] points the way to Conrad, and to theorists of empire like
Froude and Seely, and in the process open up a broad expanse of imperialist culture without which
the subsequent acquisition of territory would not have been possible.38

Em momentos como este – e de novo Said oferece um exemplo de uma tendência


corrente – vê-se que o legado de Leavis continua muito mais ativo do que gostariam de
acreditar os que o consideram totalmente fora de moda. Ele certamente aprovaria essa
hipóstase da cultura baseada em uma separação de base entre cultura e vida material. Esta,
de instância determinante passa a determinada por uma de suas práticas: as práticas
culturais, nessa visão, teriam possibilitado a expansão imperialista, em um movimento
parecido com acreditar que a cultura pode salvar sozinha o mundo, ênfase, como já se viu,
de uma tradição inglesa, ou, nos termos de Said, metropolitana, do pensamento de Cultura
e Sociedade, em especial em Arnold e Leavis, figuras chave na instituição dos estudos
literários.
Embora use, ainda que com sinal trocado, seus critérios e modos de ver, Said não
quer de modo algum juntar-se a esse pensamento hegemônico. Ao contrário, sua crítica é
“oposicionista”. Mas, se tirarmos as conseqüências políticas dos pressupostos teóricos de
sua análise, a instância política sendo muito importante, no fim das contas, para uma crítica
empenhada, vemos que sua reivindicação (como já estavam seus critérios) está tão presa à
ordem estabelecida quanto a de seus opositores. A única ação aberta a este raciocínio é a
retaliação, exigir de volta o que foi roubado, ou, pelo menos, pedir a inserção dos que
foram injustamente excluídos. No âmbito da política isso pode até ser um avanço, ainda
que seja, na fórmula contundente e reveladora de uma menina negra americana,
personagem de Toni Morrison, “advancement without improvement”39. No âmbito da
teoria literária, implica reivindicar um naco no espólio da cultura. Isso fica claro –
lamentavelmente se considerarmos a justeza de se defender em todos os âmbitos as pessoas
que sofreram nas colônias os efeitos nefastos do imperialismo – no ensaio de Said:

...interpreting Jane Austen depends on who does the interpreting, when it is done, and no less
important from where it is done. If with feminists, with great Marxist critics sensitive to history and
class like Williams, with historical and stylistic critics, we have been sensitized to the issues their
interests raise, we should now proceed to regard geography – which is after all of significance to
Mansfield Park – as not a neutral fact (any more than class and gender are a neutral fact) but as a
politically charged one too, a fact beseeching the considerable attention and elucidation its massive
proportions require.40

Fica assim delineado um ponto de vista aberto para a crítica empenhada


contemporânea. Trata-se de se colocar ao lado das outras formas de interpretação como

38
Edward Said, “Jane Austen and Empire”. In: Terry Eagleton (ed.), Raymond Williams: Critical Perspectives, p. 163.
39
Trata-se da constatação da menina negra Claudia, ao aderir aos termos da sociedade hegemônica em The Bluest Eye.
40
Edward Said, “Jane Austen and Empire”. In: Terry Eagleton (ed.), Raymond Williams: Critical Perspectives, p. 161.

144
mais uma entre as opções disponíveis. Não é esta, certamente, a posição proposta pelo
materialismo cultural, que, como se viu, se coloca como incompatível com todas as outras.
Escolher entre as possibilidades críticas e seus preços é obviamente prerrogativa de cada
leitor. Em “The Uses of Cultural Theory”, Williams coloca seus padrões:

And then the challenge comes in theory as clearly as in everything else: this our content, this our
affiliation, this our intention, this our work; and now tell us, for or against – and it will run both
ways – each of these your own.41

Mas essa consciência da afiliação que informa toda e qualquer posição teórica não
leva Williams a endossar sem ressalvas certas posições da crítica literária marxista. Como
bom crítico, e bom militante, Williams sabe que a questão central não é fidelidade a
asserções mas fazer trabalhos que efetivamente iluminem seus objetos e esclareçam as
formas de dominação e as possibilidades de liberação. Penso que qualificar a posição da
crítica ideológica que vê nas obras o veículo para a ideologia da classe dominante é o alvo
polêmico – embora, como quase sempre, não nomeado – do último ensaio de Williams
sobre o romance, “Forms of English Fiction in 1848”, uma palestra em um congresso na
universidade de Essex em 1977, republicada em seu livro de ensaios de 1983, Writing in
Society.
O primeiro movimento do ensaio é demonstrar que a categoria “realismo burguês”
– a descrição preferida pela nova onda de crítica marxista no final dos anos 1970 na
Inglaterra – não dá conta do que efetivamente ocorria na literatura em prosa sendo lida, e
produzida, por exemplo, na Inglaterra em 1848. Para isso, vai examinar o ambiente
literário onde estas obras atuam. De saída, recupera a lista dos livros mais vendidos nas
novas livrarias recém-abertas nas estações de trens para verificar o que a burguesia, o
grosso do público leitor da época, lia de fato.
Encontra nesse exame uma mescla que dá notícia da complexidade das relações
entre o residual e o hegemônico: lia-se muito romanesco histórico e aventuras exóticas,
formas residuais de uma formação aristocrática em declínio de produção. Havia certamente
obras que veiculam a ideologia dominante:

It is fairly easy to find bourgeois fiction in the 1840s which quite directly corresponds to the explicit
values and interests of the bourgeoisie – stories which are transferring their interest from birth to
wealth, from inherited position to self-made position. As recently as the 1830s it had often been
doubted whether the middle class were sufficiently interesting to have novels written about them – a
doubt that has since occurred to others. But within the forties the aristocrat who had seemed the
natural figure for romance was beginning to be affected, in a certain category of fiction, by the new
bourgeois ethic of self-making and self-help. Indeed, a strong emphasis on work, as distinct from
play, carried within it, actually as one of the main incentives to this class of fiction, a clear diagnosis

41
Raymond Williams, “The Uses of Cultural Theory” [1986]. In: The Politics of Modernism: Against the New
Conformists, p. 176.

145
of poverty directly related to lack of personal effort or indeed to some positive vice. Thus those
explicit, conscious bourgeois values which were the formal social character of the class in that
period got into fiction, but not as matter of fact, into any very important fiction.42

Por isso que fórmulas como ficção burguesa e realismo burguês não funcionam de
forma automática. Se pensarmos ideologia como as idéias dominantes em um determinado
estágio de produção material e das relações sociais que a organizam, é claro que a ficção
vai articular esses valores e perspectivas, mas, nessa acepção, dizer realismo burguês está
longe de especificar a diversidade da produção cultural. Se buscamos ideologia explícita, é
nas revistas e tratados moralizantes que devemos procurar.
Além dessas formas do dominante, havia também formas de cultura a que só
podemos, neste momento histórico específico, chamar de subordinadas: a cultura sendo
produzida e a que está sendo consumida pela classe trabalhadora. O inimigo de classe
retratado nessa ficção, em geral copiada das formas burguesas, é o aristocrata. Há também
formas da cultura reprimida, conseqüência do fracasso estrutural burguês de “perceber os
fatos de sua existência” e sobretudo a sexualidade. A pornografia é forma em expansão, e
transita pelas classes. O vilão libertino é ainda o aristocrata. De qualquer modo, nessa área
de cultura subordinada ou reprimida não aparece – e Williams lembra exemplos de vozes
da classe trabalhadora tentando encontrar um modo próprio de expressão – ainda nada que
possa ser visto como emergente.
Para entender o que emerge nesse tempo de triunfo e consolidação burguesas,
Williams propõe-se a examinar a forma de sete dos grandes romances que sobreviveram
desta época, todos escritos em torno de 1848: Jane Eyre, The Tenant of Wildfell Hall,
Wuthering Heights, Vanity Fair, Shirley, Mary Barton e Dombey and Son.
O que ressalta nesse exame são as diferenças entre eles, diferenças que tornam
problemático seu agrupamento indistinto como “realismo burguês emergente”. Assim há,
de saída, diferenças grandes de perspectiva, e portanto da relação implícita entre autor e
leitor: Charlotte Brontë cria em Jane Eyre uma voz pessoal, compartilhando segredos com
o leitor, diretamente interpelado na intensidade do famoso “Reader, I married him”. In The
Tenant of Wildfell Hall, Anne escolhe um ponto de vista duplo, o masculino que escreve a
longa carta que compreende 15 capítulos; o diário da mulher; e, finalmente, a retomada da
narrativa pelo ponto de vista masculino. Em Wuthering Heights, a questão complica-se: há
narrativas inclusas em outras, o ponto de vista é multicentrado, um envolvendo o outro e
nenhum desempenhando um papel central no romance. Esses exemplos demonstram que
temos já nesses três, que nos manuais costumam ser agrupados como “romances das
paixões”, usos contrastantes e complexos do ponto de vista, não justificando que se diga,
como se costuma definir a ficção realista, que o leitor é levado a se identificar com um só
ponto de vista sobre a experiência narrada:

42
Raymond Williams, “Forms of English Fiction in 1848” [1977]. In: Writing in Society, p. 152.

146
The opportunities for very complex seeing, both within a given situation and within time through a
developing situation, are built into the forms of the novel. And this is only taking an example in
what is otherwise an easily associated trio of subjectivist novels.43

O próprio termo narrativa realista é posto em crise pelo que efetivamente se dá nas
formas produzidas. De novo é em Dickens que a discrepância fica mais evidente. Na
mobilidade de seus narradores e na diversidade de focos de interesse resta pouco da
uniformidade narrativa, uma forma que via de regra se apresenta em um modo
“indicativo”, de contar o que aconteceu ou está acontecendo. Mais do que narrativa, temos
aí uma apresentação, e o modo dessa apresentação é subjuntivo, um “e se”:

In other words he introduces a perspective which is not socially or politically available. It is a


hypothesis of a perspective, a feeling, a force, which he knows not to be in the existing balance of
forces that is there to be observed. The notion of the subjunctive within the generally realist novel is
one which I think could do with more thinking about.44

Como pensar o emergente dentro dos parâmetros de uma noção de cultura


sobredeterminada é dos problemas produtivos, para uma crítica literária marxista,
colocados pela exposição de Williams de suas divergências de outras posições marxistas.
A própria percepção do problema já é uma conseqüência de seus modos de ler, partindo da
forma da obra e não do que já se sabe da ideologia do período em que foi escrita. Penso
que esse modo e os problemas que ele nos permite ver representam um avanço, embora
concorde com Williams quando diz que “é preciso pensar mais sobre o assunto”. Em
Politics and Letters ele esclarece algumas das questões a serem consideradas:

How are we to explain the possibility of liberating responses to a system that do not seem to have
been prepared by social conditions? Certain relationships occur which are very difficult to explain
by normal canons and which give force to metaphysical or subjectivist explanations because these
remain virtually the only terms at hand for them. I am very keen to find alternative terms. But I am
also determined (...) not to go along with the way the left has ordinarily tried to solve the problem.
(...) [one] danger I have noticed is that understandably feeling the need to resist metaphysical or
subjectivist explanations people put more weight on a quite proper identification of the ideological
evasions which are always there in the work (...) than on an exploration of the issues presented
through the ideology: the real problems then remaining, often forgotten or postponed behind the
confidence of the class account. I think this is related to the general neglect within a powerful
Marxist tradition of questions of sexuality and primary relationships. The sense of the deep problem,
the deep flaw and yet at the same time the deep possibility of this level were as much part of the
social crisis of the 1840s as any other. Indeed in the late 1960s, the social crisis of our own late
capitalist society was being interpreted through at that level with much more passion than in the

43
Raymond Williams, “Forms of English Fiction in 1848” [1977]. In: Writing in Society, p. 158.
44
Raymond Williams, “Forms of English Fiction in 1848” [1977]. In: Writing in Society, p. 161.

147
more received terms, producing a great deal of confusion between political and sexual liberation, in
fact: there I was on the whole on the other side of the argument. But I would still insist that the
social crisis erupts there too. Yet while I can say that it does so, I am not sure how it works. I’ve
tried to draw attention to the problem. (...) the problem of these non-traceable, or not immediately
traceable, liberating impulses is in the most emphatic sense not only a question of literary analysis,
but a very urgent contemporary political issue.45

De novo convergem nessa questão do emergente o Williams teórico, o crítico e o


socialista. A questão teórica não é exclusiva da academia: as possibilidades de visão e
compreensão que abrem são eminentemente políticas. É nesse sentido que vale a pena
polemizar e refinar as percepções teóricas e críticas e aprender com as grandes “formas da
ficção inglesa em 1848”. Essas formas dão oportunidade de verificar a exatidão da
proposta de Lukács sobre a função do realismo: seu diagnóstico clássico do herói do
romance que se descobre limitado em seu anseio por uma vida autêntica. No momento em
que é impossibilitado de realizar seu desejo, descobre os limites objetivos que o impedem
– e a todos os outros – de ter uma vida autêntica.
Williams reconhece que este movimento é exemplar em grandes romances da
tradição francesa e russa, mas, para tratar da ficção desta geração de romancistas britânicos
que se forma ao redor de 1848, é necessário dar mais um passo: o decisivo é o exame da
questão do valor no momento da descoberta dos limites. Essa é uma das medidas que torna
certas obras emergentes enquanto outras estão mais propriamente integradas à sociedade
cujos limites apontam. O exemplo dado por Williams sai um pouco do período mas é
esclarecedor: Felix Holt, o herói do romance (1866) do mesmo nome de George Eliot,
descobre seus limites com resignação. Eliot trata esses limites como os “verdadeiros”
limites da capacidade humana de agir. Em outras palavras, que Williams não usa, são
tratados como limites metafísicos e como tais intransponíveis para a natureza humana. Já
em Jude the Obscure (1895) a descoberta dos limites que destroem a vida de Jude é um ato
de subversão desses limites que são vistos como estritamente sociais e portanto mutáveis.
Não se trata, insiste Williams, simplesmente do que é dito no final de cada romance, mas
de uma diferença estrutural, que altera toda a organização das obras.
A mesma diferença de valor pode ser vista nos romances ditos sentimentais, de uma
Charlotte Brontë. Os limites objetivos, sociais, normalmente a descoberta de que o homem
amado é casado, têm que ser ultrapassados para a felicidade da personagem narradora.
Certamente estes limites muitas vezes se apresentam como evasão ou sentimentalismo,
mas, diz Williams:

One sees those limits and, but they do not seem to be limits of the kind Lukács and others in the
Marxist tradition are talking about. For although there are undoubtedly major factors in the social
structure which are barring intense experience, which are certainly barring self-images of autonomy

45
Raymond Williams, Politics and Letters, p. 255-56.

148
of being and feeling, as distinct from the social role and the social function, although these barriers
are easily discoverable, the level of the most authentic protest seems separable from those more
local historical structures. They lie very deep within the whole cast of a civilization which is, for its
own deepest reasons and often while denying that it is doing so, repressing intensely realized
experience of any kind.46

Mais do que expressar a ideologia da burguesia ou criticar os limites objetivos


locais à realização de uma vida autêntica, essa marcante ficção britânica aponta para uma
crítica do próprio modo de organização da vida sob o capitalismo. A atenção fulminante de
Williams à forma desses romances, lhe possibilitou ver as maneiras como apontam estes
limites profundos estruturando, ainda que muitas vezes mais como um esforço de
expressão do que como realização acabada, uma crítica ao modo de vida que se estabelecia
como o modelo de desenvolvimento universal. Na grande ficção examinada nesse ensaio
está estruturada uma herança poderosa para as gerações seguintes: uma consciência dos
limites sociais que precisam ser ultrapassados para constituir uma vida autêntica.
Tanto a categorização desses romances como elementos da grande tradição quanto
a de veículos de uma ideologia de classe impedem essa visão e não fazem justiça ao que
efetivamente aparece nas obras. Uma conclusão fácil seria dizer que as categorias críticas
nunca dão conta da grande arte, que se define como grande justamente por escapar a
categorizações. Penso que no caso trata-se de outra coisa: demonstrar os avanços em
percepção que estas formulações tornam disponíveis, avanços que são um questionamento
e uma reação às pressões e limites de um sistema social que vai se tornando dominante.
Temos nessas obras mais do que expressão da ideologia deste sistema. São emergentes não
porque desafiam categorias literárias que são, afinal, termos de descrição mas não
necessariamente de substância. Tampouco são emergentes por prefigurar a liberação
humana em sua promessa de reconciliação futura. Não é que esses romances transcendam
as “pressões e limites” de seu tempo histórico. Sua relevância está precisamente em
demonstrar esses limites e pressões na própria tentativa de ultrapassá-los, apontando assim
os recursos possíveis para deslocar as pretensas inevitabilidades de um sistema que se
coloca como irresistível, como uma força da natureza. Este o diferencial fundamental que a
perspectiva da crítica ideológica não deixa ver:

Clearly at a certain level the emergent fiction must be sharply distinguished (...) from what the
middle class were producing and reading: the true reproduction of conscious bourgeois position.
And distinguished not only as a higher and more sophisticated form of the same thing. This is true
even when we see that it has crucial features in common with it, so that it would be wrong not to
consider the very large elements of simple reproduction in these new novels. But what in my view
would be as wrong and much more damaging would be to fail to recognize the significant openness
of certain of the new impulses; of the inclusion of certain realities of the class situation and of the

46
Raymond Williams, “Forms of English Fiction in 1848” [1977]. In: Writing in Society, p. 163.

149
class conflict; the pushing through to certain intensities however difficult they then were. For these,
as new content and new forms of the content are genuinely emergent elements: production,
significant production, attempting to lift (...) and at the same time, bearing the full weight of the
pressures and limits, in ways which the simple forms, the simple content, of mere ideological
reproduction never achieve.47

Este é um dos aspectos do poder cognitivo da ficção emergente: uma parte


significativa da nossa consciência desses limites e pressões, e da necessidade de tentar
ultrapassá-los aprendemos com essa formalizações complexas da experiência da vida sob
suas determinações. Certamente descrevê-la como expressão da ideologia de seu tempo é
pouco, e reduz sua relevância para o presente. Nessa grande ficção, cuja análise foi
resumida aqui, está estruturada em linguagem, e portanto está posta à disposição das
futuras gerações, não só uma reprodução dos significados e valores de uma época
formadora mas também a produção de significados com que uma crítica empenhada pode
estabelecer relações produtivas hoje.
Nesse sentido, essas grandes obras não devem ser classificadas como realismo
burguês e descartadas para um esforço de mudança da ordem social. Uma estrutura de
sentimento de resistência e questionamento aos limites profundos que essa nova ordem
coloca para a realização humana está delineada aí. Recuperar essas obras pode ajudar a
transformá-las em mais um dos recursos necessários para uma jornada de esperança, um
dos objetivos do materialismo cultural.

47
Raymond Williams, “Forms of English Fiction in 1848” [1977]. In: Writing in Society, p. 165.

150

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