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1. A humanidade do Renascimento
O que há de ponto comum no registro dessas histórias populares é uma ideia que corta
de Florença a Pádua: o humanismo como marca do Renascimento, o homem é deslocado para
o centro das reflexões e epistemologias, esses estudos humanistas se apoiam na redescoberta
dos clássicos gregos e latinos. A invenção da prensa e o nascimento dos ateliês – como de
Aldo Manuzio – permitem que as novas traduções e comentários desses textos antigos
circulem em grande número fora das bibliotecas da Igreja, disseminando essa cultura
humanista por toda Europa. Pois o renascimento também é uma época de grandes invenções.
Diante das novas armas e dos exércitos de mercenários a guerra exige novas táticas de defesa
e organização. Essa necessidade altera a arquitetura das cidades italianas, que se tornam
testemunhas dos avanços da técnica. Diante dos incrédulos e pessimistas se erguem abóbodas
que desafiam a gravidade e os traços retos e quadrados da Idade Média (VEDRINE, 1971,
p.71). Essa é reflexão em que se apoia o humanismo do Renascimento: o homem como
dotado de uma capacidade que desafia a natureza, a razão o aproxima do divino, desvelando
as estruturas escondidas do cosmo, as relações secretas entre as coisas, uma harmonia que a
Idade Média ignorava.
O resgate do Renascimento dos clássicos, dos textos filósofos gregos e dos poetas
latinos não é por si completamente original, a Idade Média já havia feito esse movimento,
desde o século III em Alexandria se preparava a fusão entre cristianismo e platonismo
(VEDRINE, 1971, p.29-31), nem se pode esquecer o trabalho dos comentários de Agostinho e
Boécio. Contudo, em Florença, se desenvolve uma nova visão referente ao resgate de Platão.
A tomada de Constantinopla pelos Turcos expulsa os sábios helenistas de lá, que se refugiam
na Europa e alarga o conhecimento do mundo antigo com a descoberta de obras inéditas dos
antigos filósofos. Leonardo Bruni começa um trabalho de traduzir Platão para o latim, mas
não se trata mais de pensar a filosofia como construções abstratas e sim como reflexões
necessárias frente a nova vida cívica que floresce em Florença.
Será Marsilio Ficino (1433-1499), entretanto, o florentino que realmente vai operar a
tradução e síntese de Platão e marcar a Europa do século XV. Se por um lado ele retoma o
antigo compromisso entre cristianismo e platonismo, situando Deus e os anjos em um plano
qualitativamente superior a matéria e o corpo, por outro é o inimigo mortal do determinismo.
O homem de Ficino se situa entre essas duas realidades, são suas escolhas, ou seja, sua
liberdade, que ora o aproxima do profano e do animalesco, ora o aproxima do divino. Essa
marca do entre planos é o que confere a imortalidade da alma, se nosso corpo está sujeito ao
movimento e degradação é a alma e sua inteligência que conferem o acesso a dignidade.
Como traz Vedrine (1971, p.43): “E nessa certeza, o pecado, a morte, têm apenas um lugar
secundário. Só conta a actividade, prova da dignidade do homem.”.
Seria um erro reduzir essa parte do pensamento desses autores, como se fosse uma
simples crença, ou algo que limita suas reflexões. Como retoma Vedrine em Philosophie et
magie à la Renaissance não se deve negar o aspecto racionalista dessas reflexões, magia para
o homem do renascimento significa a possibilidade de uma unidade, a correspondência entre
o micro e macro no universo, também significa uma hierarquia, não é uma simples crença,
mas algo que opera diretamente na compreensão desses sujeitos sobre o que é mundo e como
é possível agir sobre ele.
Essa experiência exclui um racionalismo restrito, mas não por menos deixa de ter uma
lógica rigorosa. Há uma relação paradoxal entre o visível e o invisível, de forças ocultas que
participam indiretamente das coisas mais sensíveis, é na tentativa de desvendar essa
participação e como usar isso a seu favor que o mago ou a bruxa constrói seu saber mágico.
Essa tensão é a marca do Renascimento, não há oposição entre um realismo político de
Maquiavel, a revolução heliocêntrica de Copérnico e os escritos de magia de Bruno, filosofia
e feitiçaria não se excluem.
Na sua obra De vita (1991) Ficino pode então oferecer respostas a perguntas sobre
saúde, sugerindo remédios para a insônia, a dor de cabeça e o mau-olhado. Isso é possível
pela possibilidade de obter favores do céu, pois o segredo da força do mago está no eros, que
para o grego é tanto um deus quanto uma força exterior que participa da paixão. Não é em O
Banquete (2018) de Platão que Sócrates, retomando a sacerdotisa Diotima, classifica o amor
como mediador entre o celeste e o terrestre? O amor como o que faz ligação entre esses dois
planos é o segredo da força do mago para conseguir favores dos céus, dos bons demônios e
poder vencer os maus demônios.
Vedrine pode então conectar Ficino com a tese de Lévi-Strauss sobre a cura
psicanalítica e a cura efetuada pelo xamã, situando Ficino entre eles. No caso do Xamã o
paciente alcança a cura através de reintegração do mito que ele acredita ter violado, enquanto
no caso da psicanálise, o paciente produz seu próprio mito e reintegra seu passado (p.25).
Ficino faz os dois papeis, a cura astrológica-magica consiste em recuperar um mito esquecido,
mas, que ao mesmo tempo, também se faz necessário uma reinvenção ou produção de algo
novo para alcançar a cura e saúde.
4. Ficino entre o psicanalista e xamã.
Freud atribui a invenção do método da psicanálise a sua paciente histérica, quando ele
abandona a hipnose e pede que ela fale livremente (1883), a paciente se refere assim a esse
método como talking cure (cura pela fala), nesse momento representações insuportáveis e que
haviam sido recalcadas, retiradas da consciência, podem ser reintegradas na vida da paciente,
essa cisão entre consciente e inconsciente é a origem das doenças dos pacientes de Freud, que
padeciam de doenças que a medicina não conseguia explicar, por serem manifestações
orgânicas (paralisias e cegueiras por exemplo), mas não possuírem causa orgânica, as partes
afetadas não apresentavam lesões, levando inclusive a se pensar nas conversões histéricas
como encenações da paciente. Parece ser sob esse aspecto da cura psicanalítica, o silencio do
analista, que se referem Vedrine e Leví-Strauss, se o xamã reintegra um mito esquecido ao
membro de sua tribo, o psicanalista oferece um espaço para que algo da vida pessoal do
paciente emerga e seja reintegrado, nesse caso o mito realmente é produzido pelo paciente. O
método de Ficino pode ser pensado entre esses dois por envolver ambas as ações, de um lado
o paciente pode falar sobre sua doença que o aflige, do outro o mago-astrólogo precisa
produzir um mito, uma explicação, assim como sua solução, para aquela doença usando seu
saber mágico.
5. Conclusão