Você está na página 1de 5

Razão e Magia no Renascimento: Ficino entre o psicanalista e o xamã.

1. A humanidade do Renascimento

Pensar a humanidade do Renascimento, suas pessoas e seu sujeito é ter de abandonar o


que se entende por homem da Idade Média (GARIN, 1988). São outras as coordenadas
espirituais e temporais que marcam esse breve período de dois séculos. Em certas cidades da
Itália as relações entre religião e os crentes não são as da Idade Média, assim como as
relações entre arte, política e guerra. A reflexão, as meditações e as biografias nos mostram
essas diferenças, pois não são mais somente os santos e nobres que têm suas histórias escritas,
mas agora se fala das prostitutas, dos arquitetos, dos artistas, dos banqueiros, dos filósofos e
dos magos.

O que há de ponto comum no registro dessas histórias populares é uma ideia que corta
de Florença a Pádua: o humanismo como marca do Renascimento, o homem é deslocado para
o centro das reflexões e epistemologias, esses estudos humanistas se apoiam na redescoberta
dos clássicos gregos e latinos. A invenção da prensa e o nascimento dos ateliês – como de
Aldo Manuzio – permitem que as novas traduções e comentários desses textos antigos
circulem em grande número fora das bibliotecas da Igreja, disseminando essa cultura
humanista por toda Europa. Pois o renascimento também é uma época de grandes invenções.
Diante das novas armas e dos exércitos de mercenários a guerra exige novas táticas de defesa
e organização. Essa necessidade altera a arquitetura das cidades italianas, que se tornam
testemunhas dos avanços da técnica. Diante dos incrédulos e pessimistas se erguem abóbodas
que desafiam a gravidade e os traços retos e quadrados da Idade Média (VEDRINE, 1971,
p.71). Essa é reflexão em que se apoia o humanismo do Renascimento: o homem como
dotado de uma capacidade que desafia a natureza, a razão o aproxima do divino, desvelando
as estruturas escondidas do cosmo, as relações secretas entre as coisas, uma harmonia que a
Idade Média ignorava.

Essa noção de “renascer”, a descontinuidade entre o morrer e o nascer de novo, é o


desafio de pensar o Renascimento. A mesma época que vê explodir a criatividade humana, a
difusão de textos clássicos e um pensamento humanista também é a época da inquisição, de
batalhas violentas e das fogueiras. O humanismo como ponto comum entre os filósofos desse
período não impede de discordarem muitas vezes, seja sobre a natureza do homem e da razão,
qual seria a organização dos cosmos e das cidades, ou qual é o papel da religião. Por isso,
Vedrine (1971), explica que não se pode falar sobre Renascimento, mas Renascimentos.
2. Ficino e o neoplatonismo

O resgate do Renascimento dos clássicos, dos textos filósofos gregos e dos poetas
latinos não é por si completamente original, a Idade Média já havia feito esse movimento,
desde o século III em Alexandria se preparava a fusão entre cristianismo e platonismo
(VEDRINE, 1971, p.29-31), nem se pode esquecer o trabalho dos comentários de Agostinho e
Boécio. Contudo, em Florença, se desenvolve uma nova visão referente ao resgate de Platão.
A tomada de Constantinopla pelos Turcos expulsa os sábios helenistas de lá, que se refugiam
na Europa e alarga o conhecimento do mundo antigo com a descoberta de obras inéditas dos
antigos filósofos. Leonardo Bruni começa um trabalho de traduzir Platão para o latim, mas
não se trata mais de pensar a filosofia como construções abstratas e sim como reflexões
necessárias frente a nova vida cívica que floresce em Florença.

Será Marsilio Ficino (1433-1499), entretanto, o florentino que realmente vai operar a
tradução e síntese de Platão e marcar a Europa do século XV. Se por um lado ele retoma o
antigo compromisso entre cristianismo e platonismo, situando Deus e os anjos em um plano
qualitativamente superior a matéria e o corpo, por outro é o inimigo mortal do determinismo.
O homem de Ficino se situa entre essas duas realidades, são suas escolhas, ou seja, sua
liberdade, que ora o aproxima do profano e do animalesco, ora o aproxima do divino. Essa
marca do entre planos é o que confere a imortalidade da alma, se nosso corpo está sujeito ao
movimento e degradação é a alma e sua inteligência que conferem o acesso a dignidade.
Como traz Vedrine (1971, p.43): “E nessa certeza, o pecado, a morte, têm apenas um lugar
secundário. Só conta a actividade, prova da dignidade do homem.”.

Essa marca da condição do humano de mediador, entre o animal e o divino, permite a


Ficino pensar como médico, mago e astrônomo, tudo ao mesmo tempo: os desejos de uma
mulher grávida são imprimidos no embrião, amuletos e horóscopos não determinam, mas,
sem dúvidas, influenciam na vida das pessoas. Isso é possível pela correspondência do micro
e do macro no universo, assim como em Platão as ideias participam da vida material.

O acesso a novos textos, os avanços da técnica e as novas reflexões que colocam o


homem no centro do universo – apesar de não a terra – reascendem a chama do antigo sonho
de uma transparência perfeita entre o micro e macro e seria a magia que operaria nessa
equivalência, ultrapassando a física e a matemática, esse conhecimento permite operar sobre a
natureza como nenhum outro, atinge seus inimigos a distância, faz mudar as condições do
tempo e até fazer previsões sobre o futuro. Não só Ficino, mas uma geração inteira, pensa
assim.

3. Razão, magia e eros.

Seria um erro reduzir essa parte do pensamento desses autores, como se fosse uma
simples crença, ou algo que limita suas reflexões. Como retoma Vedrine em Philosophie et
magie à la Renaissance não se deve negar o aspecto racionalista dessas reflexões, magia para
o homem do renascimento significa a possibilidade de uma unidade, a correspondência entre
o micro e macro no universo, também significa uma hierarquia, não é uma simples crença,
mas algo que opera diretamente na compreensão desses sujeitos sobre o que é mundo e como
é possível agir sobre ele.

Essa experiência exclui um racionalismo restrito, mas não por menos deixa de ter uma
lógica rigorosa. Há uma relação paradoxal entre o visível e o invisível, de forças ocultas que
participam indiretamente das coisas mais sensíveis, é na tentativa de desvendar essa
participação e como usar isso a seu favor que o mago ou a bruxa constrói seu saber mágico.
Essa tensão é a marca do Renascimento, não há oposição entre um realismo político de
Maquiavel, a revolução heliocêntrica de Copérnico e os escritos de magia de Bruno, filosofia
e feitiçaria não se excluem.

Na sua obra De vita (1991) Ficino pode então oferecer respostas a perguntas sobre
saúde, sugerindo remédios para a insônia, a dor de cabeça e o mau-olhado. Isso é possível
pela possibilidade de obter favores do céu, pois o segredo da força do mago está no eros, que
para o grego é tanto um deus quanto uma força exterior que participa da paixão. Não é em O
Banquete (2018) de Platão que Sócrates, retomando a sacerdotisa Diotima, classifica o amor
como mediador entre o celeste e o terrestre? O amor como o que faz ligação entre esses dois
planos é o segredo da força do mago para conseguir favores dos céus, dos bons demônios e
poder vencer os maus demônios.

Vedrine pode então conectar Ficino com a tese de Lévi-Strauss sobre a cura
psicanalítica e a cura efetuada pelo xamã, situando Ficino entre eles. No caso do Xamã o
paciente alcança a cura através de reintegração do mito que ele acredita ter violado, enquanto
no caso da psicanálise, o paciente produz seu próprio mito e reintegra seu passado (p.25).
Ficino faz os dois papeis, a cura astrológica-magica consiste em recuperar um mito esquecido,
mas, que ao mesmo tempo, também se faz necessário uma reinvenção ou produção de algo
novo para alcançar a cura e saúde.
4. Ficino entre o psicanalista e xamã.

Freud atribui a invenção do método da psicanálise a sua paciente histérica, quando ele
abandona a hipnose e pede que ela fale livremente (1883), a paciente se refere assim a esse
método como talking cure (cura pela fala), nesse momento representações insuportáveis e que
haviam sido recalcadas, retiradas da consciência, podem ser reintegradas na vida da paciente,
essa cisão entre consciente e inconsciente é a origem das doenças dos pacientes de Freud, que
padeciam de doenças que a medicina não conseguia explicar, por serem manifestações
orgânicas (paralisias e cegueiras por exemplo), mas não possuírem causa orgânica, as partes
afetadas não apresentavam lesões, levando inclusive a se pensar nas conversões histéricas
como encenações da paciente. Parece ser sob esse aspecto da cura psicanalítica, o silencio do
analista, que se referem Vedrine e Leví-Strauss, se o xamã reintegra um mito esquecido ao
membro de sua tribo, o psicanalista oferece um espaço para que algo da vida pessoal do
paciente emerga e seja reintegrado, nesse caso o mito realmente é produzido pelo paciente. O
método de Ficino pode ser pensado entre esses dois por envolver ambas as ações, de um lado
o paciente pode falar sobre sua doença que o aflige, do outro o mago-astrólogo precisa
produzir um mito, uma explicação, assim como sua solução, para aquela doença usando seu
saber mágico.

5. Conclusão

O que conecta as profissões de psicanalista, xamã e médico bruxo-astrólogo não


parece tanto ser uma questão de método, os três parecem agir de forma bem diferente, mas há
uma semelhança entre o material que eles lidam. Os três lidam com uma realidade marcada
pela equivalência e hierarquia, abandonam um racionalismo restritivo por uma nova leitura,
não menos rigorosa e racional, do mundo e seus problemas. Mas, que abre espaço para novas
possibilidades de agir sobre esse mundo. Como traz Vedrine (1971) o nascimento da ciência e
da medida implica recortar a realidade e com isso o parricídio das ontologias cósmicas, esse
será o fim do Renascimento, mas, a incapacidade da ciência e da medida em explicar o mundo
e esgota-lo com explicações, parece indicar que esse antigo sonho da magia nunca morreu de
fato. A psicanálise parece ser herdeira desse pensamento mágico, de pensar a ética e a
liberdade nesse universo dividido – consciente e inconsciente – mas, também equivalente.
REFERENCIAS:

FICINO, Marsilio. De Vitta, 1991.

FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria, 1883.

GARIN, Eugenio. L’homme de la Renaissance, 1988.

PLATÃO. O Banquete. 20018.

VEDRINE, HELENE. Magie et Philosophe.

VEDRINE, HELENE. As filosofias do Renascimento, 1971.

Você também pode gostar