Você está na página 1de 4

Ideologia(s) enquanto fisiognomia(s) de uma pandemia social: Brasil (2020)

José Henrique Sousa Assai1

Quando Jaeggi apresentou sua pesquisa a respeito dos mecanismos ideológi-


cos2 ela o fez no intuito de explicitar, sob o escrutínio da pesquisa crítica3 e da filosofia
social4, uma ideia básica acerca do que seja uma ideologia e seu eventual efeito prático
no esteio social. A meu ver, esse conceito não ficou na vacuidade temática de um saber
filosófico que se ocupa pela esfera “Social”5 – entendido basicamente pela existência
das práticas sociais assim como das instituições e relações sociais enquanto instâncias
de metarreflexão – e nem tampouco se estabeleceu no varejo das boas interpretações
filosóficas acerca de um determinado ponto de pesquisa; ao contrário, tomando por
consideração uma crítica imanente6, estabelecer o estatuto ideológico de uma deter-
minada forma de pensamento e ação é constituir, por assim dizer, um estudo e uma

* Professor Adjunto da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Curso de Ciências Humanas /


área Filosofia.
Coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa Filosofia Social e Teoria Crítica (UFMA).
Doutor em Filosofia (PUCRS) com estágio sanduíche na Uni Flensburg (Alemanha) com o apoio da
CAPES. Mestre em Filosofia (UFC).
2 JAEGGI, Rahel. Was ist Ideologiekritik? In: JAEGGI, Rahel, WESCHE, Tilo (org.). Was ist Kritik?

3.ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2013. p. 266 – 295.


JAEGGI, Rahel. Repensando a ideologia, Civitas, v. 8, n. 1, p. 137-165, 2008.
3 DEMIROVIC, Alex. “Continuar, ou o que significa falar da atualidade da Teoria Crítica?” In: Remate

de Males, Campinas: n. 30, 2010, p. 9 – 24.


_______. DEMIROVIC, Alex (org.). Modelle kritischer Gesellschaftstheorie: Traditionen und Pers-
pektiven der Kritischen Theorie. Stuttgart: Springer Verlag, 2003. 394p.
JAEGGI, Rahel. Crisis, Contradiction, and the Task of a Critical Theory. In: BARGU, Banu, Bottici,
Chiara. Feminism, Capitalism and Critique: Essays in Honor of Nancy Fraser. Suíça: Springer, 2017.
p.209 – 224.
NOBRE, Marcos (org.). Curso Livre de Teoria Crítica. Campinas: Papirus, 2008. 302p.
JAEGGI, Rahel. Fortschritt und Regression. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2020. 200p.
4 JAEGGI, Rahel, CELIKATES, Robin. Sozialphilosophie: Eine Einführung. München: C.H.Beck,

2017. 128p.
FORST, Rainer et.al. Sozialphilosophie und Kritik. 1.ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2009.
743p.
DETEL, Von Wolfgang. Philosophie des Sozialen. Stuttgart: Reclam, 2007. 191p.
PINZANI, Alessandro, TONETTO, Milene C. (org.). Critical Theory and Social Justice. Florianópolis:
Nefiponline, 2012. 210p.
5 JAEGGI, CELIKATES, 2017, 128p.

FISCHBACH, Franck. Die Umtriebe des “Sozialen”. In: _______. Manifest für eine Sozialphilosophie.
Bielefeld: Transcript Verlag, 2016. p. 81 – 92.
6 STAHL, Titus. Immanente Kritik: Elemente einer Theorie sozialer Praktiken. Frankfurt am Main:

Campus Verlag, 2013. 475p.


JAEGGI, Rahel. Crisis, Contradiction, and the Task of a Critical Theory. In: BARGU, Banu, Bottici,
Chiara. Feminism, Capitalism and Critique: Essays in Honor of Nancy Fraser. Suiça: Springer, 2017.
p.209 – 224.
pesquisa de cunho sociopolítico no qual esteja comprometido com as condições mí-
nimas de existência social7.
Sob uma perspectiva sociopolítica8, o que ocorre no Brasil atualmente9, e nas
suas múltiplas formas de vida10, é que essa mesma existência acaba por se deparar
com a espada de Dâmocles sob a sua cabeça (pensamento e ação) cujo corolário tem
sido um profundo estiolamento das (nas) estruturas ontofilogenéticas11. Esse enredo
não se limita ao atual momento, mas é precedido por uma tradição na qual as estru-
turas subjacentes ideológicas (cosmovisões de mundo) teceram uma forte amalgama
com a religião12 na qual é concebida, para efeito desta pesquisa, nos termos de uma
determinada forma de vida. Daí emerge, e não de modo definitivo, a aquiescência de
parte do cristianismo brasileiro (católicos e evangélicos) às tratativas do movimento
social e político bolsonarista. A religião de caráter cristão no Brasil – e não a espiritu-
alidade – também se vê encapsulada por uma forma ideológica exógena que lhe su-
cumbe: talvez desde os idos de 1990, no século passado, não havíamos observado
tamanha vinculação entre as esferas política e religiosa no Brasil. Permanece, por-
tanto, uma forma ideológica que orienta a ambas para um determinado conteúdo
programático cujo o que parece menos importar é a própria vida em sua plenitude.
Nesse sentido, a precarização da vida no momento presêntico não é apenas em de-
corrência da covid-19, mas também pela lógica de um conjunto ideário de

7 SCANLON, T. M. Preference and Urgency. In: The Journal of Philosophy, Princeton: v.72, n. 19,
1975, pp. 655 – 669.
PINZANI, Alessandro. Justiça Social e Carências. In: PINZANI, Alessandro, TONETTO, Milene
(org.). Critical Theory and Social Justice. Florianópolis: Nefiponline, 2012. p. 134 – 159.
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O mínimo existencial e o princípio da reserva do possível. Belo Ho-
rizonte: Del Rey, 2005.
SEN, Amartya. The Idea of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 2009. 467p.
SEN, Amartya. On Economic Inequality. Oxford: Clarendon Press, 1973.
_______. Desigualdade reexaminada. Tradução Ricardo Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2001.
301p.
SEN, Amartya. Poverty and Famines: An Essay on Entitlement and Deprivation. Oxford: Clarendon
Press, 1981. 257p.
8 FIALA, Andrew. The Bloomsbury companion to political philosophy. New York: Bloomsbury Publi-

shing Ple., 2015.


HONNETH, Axel, HERZOG, Lisa (org.). Der Wert des Marktes: Ein ökonomischphilosophischer Dis-
kurs vom 18. Jahrhundert bis zur Gegenwart. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2014. 670p.
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. tradução George Sperber e
Paulo Soethe. São Paulo: Loyola, 2002. 390p.
9 NOBRE, Marcos. Ponto-Final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. 1. ed. São Paulo: Toda-

via, 2020. 80p.


10 JAEGGI, Rahel. Kritik von Lebensformen. 2.ed. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2014. 451p.
11 SAFATLE, Vladimir, JUNIOR, Nelson da Silva et.al. (org.). Patologias do Social: Arqueologias do

sofrimento psíquico. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. 267p.


12 HABERMAS, Jürgen. Auch eine Geschichte der Philosophie: Die okzidentale konstellation von Glau-

ben und Wissen. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2019. 1752 p. 2 v.


pensamento e ação de um movimento sociopolítico principado na mais alta instância
do Executivo e que se corporifica na sociedade: a sociedade brasileira realmente pa-
dece de um quadro pandêmico de cunho sociopolítico, econômico etc.13.
Certa vez Habermas intitulou de “destranscendentalização da razão”14 a perda
da áurea metafísica15 da própria razão e a sua efetiva condição de se corporificar na
sociedade16. Nesse estrito contexto, Honneth admitiu que os quatro aspectos (Men-
talitäten/mentalidades, Überlieferungen/tradições, Normen/normas, Werten/valo-
res) da racionalidade “incorporada” (Verkörperung von Vernunft) seriam fundamen-
tais no tocante ao entendimento do corolário remissivo da “kenosis” da razão cujo
desaguadouro incide nos contextos sociais. Um mecanismo ideológico se situa exata-
mente nesse ponto: uma ideologia “corporifica” uma determinada ideia na qual se
orienta teleologicamente para uma prática.
Tomando em consideração a realidade brasileira, tanto as ideias quanto as prá-
ticas “parecem” não efetivar para as condições mínimas de existência quando, por
exemplo, somos confrontados com o aparelhamento estatal em sua ação tanatopolí-
tica perante o seu povo. Toda a tratativa para a covid-19 é “apenas” uma corporifica-
ção dessa ideologia tanatopolítica ora vigente. Permanece, entretanto, um estado de
pandemia social e não só de pandemia epidemiológica.
O espírito do saber filosófico em sua constituição crítica e socionormativa
prevê o diagnóstico, a análise e a correção no intuito no processo de autoesclareci-
mento da própria justificação de uma pesquisa de cunho crítico17. Estamos nesse pro-
cesso perante o atual cenário brasileiro? Creio que esse “protocolo” articulado nessas

13 SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. Tra-
dução Mouzar Benedito. SãoPaulo: Boitempo, 2007. 126p.
SILVA, Josué Pereira da. Sociologia crítica e a crise da esquerda. São Paulo: Intermeios, 2019. 224p.
SOUZA, Jessé. A Guerra contra o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2020. 248p.
_______. A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Ja-
neiro: Estação Brasil, 2018. 247p.
SRUBAR, Ilja. De onde vem “a política”? Sobre o problema da transcendência no mundo da vida. Ci-
vitas: Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v.11, n.3, p.455 – 473. set – dez. 2011.
14 HABERMAS, Jürgen. Kommunikatives Handeln und detranszendentalisierte Vernunft. Stuttgart:

Reclam, 2001. 87p.


15 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Ja-

neiro: Tempo Brasileiro, 1990. 271p.


HABERMAS, Jürgen. Nachmetaphysisches Denken II: Aufsätze und Repliken. 1 ed. Berlin: Suhrkamp
Verlag, 2012. 334p.
16 HONNETH, Axel. Sofrimento de Indeterminação: uma reatualização da Filosofia do direito de

Hegel. Tradução Rúrion Soares Melo. São Paulo: Esfera Pública, 2007. 145p.
HONNETH, Axel. Leiden an Unbestimmtheit: Eine Reaktualisierung der Hegelschen Rechtsphiloso-
phie. Stuttgart: Reclam, 2001. 127p.
17 WESCHE, Tilo. Reflexion, Therapie, Darstellung: Formen der Kritik. In: JAEGGI, Rahel, WESCHE,

Tilo (org.). Was ist Kritik? 3.ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2013. p. 193 – 220.
três atitudes procedimentais no interior de uma teoria crítica nos envida para a tarefa
de continuar com o repto por uma vida desprovida de contornos tanatopolíticos (uma
ideologia que culmina com a morte física / necropolítica).

Você também pode gostar