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Pedagogia das emoções e cultura dos sentimentos: a saúde na ambiência das redes

digitais

Denise Cristina Ayres Gomes

Professora adjunta e membro do corpo permanente do mestrado em Comunicação da


Universidade Federal do Maranhão (campus Imperatriz); pós-doutora em “Mídia e
Cotidiano” pela Universidade Federal Fluminense (Brésil)

Résumé:

O estudo visa compreender como os sentidos produzidos no fluxo das práticas


tecnológicas em rede constituem o imaginário contemporâneo sobre saúde.
Selecionamos quatro postagens mais curtidas e os respectivos comentários da fanpage
“Melhor com saúde”, a maior sobre o tema no Brasil, com cerca de 8,5 milhões de
seguidores. Como metodologia, utilizamos a pesquisa documental, a ferramenta Netvizz
para a seleção das postagens, e a abordagem da socioantropologia do imaginário de
Maffesoli.
A internet proporciona o acesso facilitado e abundante a informações sobre
saúde. Misturam-se na rede alertas, prescrições, diagnósticos, descobertas e conselhos
diversos que figuram como panaceias para as aflições cotidianas. A sociedade
hiperconectada convoca o indivíduo a se modular continuamente, reconfigurando os
modos de ser e estar no mundo. As práticas sociais emergentes da cultura digital
estimulam ideias, crenças, valores, mitos e rituais que transcendem a esfera racional e
preenchem a necessidade humana de dar sentido ao mundo.
A Organização Mundial de Saúde definiu saúde como “[...] um estado de
completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e
enfermidades [...]. A ambiência das redes amplia a noção de saúde, tornando-a um bem
simbólico constantemente modulado através do discurso partilhado.
A saúde como signo, converte-se em valor central na contemporaneidade, objeto
de culto e injunções. A sociedade de hiperconsumo cria uma “ambiência de estimulação
dos desejos” (LIPOVETSKY, 2017, p. 35), em que o bem-estar ultrapassa a ausência de
doenças e corresponde à busca constante do aperfeiçoamento corporal, a evitação da
dor, a maximização da performance, o prolongamento da vida e a satisfação em todos os
domínios.
A perda dos valores normativos e esquemas explicativos que conferiam sentido ao
mundo evidencia a condição transitória da existência e a “coação de conservar a vida
desnuda incondicionalmente sadia”. (HAN, 2017, p.45). Ressurge a potência vitalista,
desejo ardente de fruir todas as coisas de modo intenso e imediato. A saúde deixa de ser
objeto de intervenção pontual para se modular continuamente. Ser saudável depende,
portanto, de intervenção técnica, além de vigilância, cuidado, perícia e empenho individual.
O ambiente digital estimula a circulação de sentidos que irrigam o imaginário
sobre saúde e promovem mudanças nas práticas cotidianas. A fanpage da revista
“Melhor com saúde” difunde a crença de que é possível ser saudável consumindo-se
artefatos e serviços e, principalmente, informação. Estar atualizado nos dá a sensação de
poder enfrentar os riscos e as agruras da vida disseminados constantemente.
Apresentando 8,5 milhões de seguidores, a página é sintoma da ambiência impulsionada
pela circulação de bens simbólicos.
A partir do aplicativo Netvizz do Facebook, escolhemos aleatoriamente o dia
sete de outubro de 2018 e selecionamos os 50 posts anteriores publicados. Verificamos
que as quatro postagens mais curtidas se referem à sessão “Foto” da fanpage, espaço
destinado a ilustrações com dizeres motivacionais. As publicações obtiveram 16.576
reações, 15.877 compartilhamentos e 256 comentários.
As postagens possuem os seguintes dizeres: “Não podemos escolher as pessoas
que nos rodeiam, mas podemos escolher quem permanecerá ao nosso lado”; “Ninguém
é perfeito. Todos cometemos erros; o importante é corrigi-los”; “O destino determina
quem entra na sua vida, mas você decide quem fica”; e “Começamos a amadurecer
quando rimos de algo que um dia nos fez chorar”.
As postagens
As quatro postagens da fanpage sustentam e propagam o ideário da
autorrealização, estimulando o consumo de informação. A sociedade fragmentada,
instável e competitiva, em que as instituições perderam o protagonismo, possibilita que
a internet se torne lócus privilegiado para articular e difundir o credo terapêutico e a
autorrealização.
Conforme observou Ehrenberg (2010), a sociedade contemporânea cultua a
performance e é marcada pela responsabilização. O sujeito deve ser empreendedor de si
mesmo, assumindo o dever para com a carreira, o sucesso e a existência. A difusão do
ethos terapêutico implica a “pedagogia das emoções”, em que o sujeito deve buscar o
autogerenciamento em todas as áreas da vida, inclusive a esfera emocional.
Os comentários
Os posts receberam 256 comentários e 166 deles reiteram o teor das postagens
da fanpage: 108 comentários interagem e afirmam “verdade”; 35 utilizam a expressão
“com certeza”; dez comentários afirmam “isso mesmo”; oito comentários “concordam”
e cinco deles se referem a “fato”.
Paradoxalmente ao dever-ser expresso nas postagens, a dinâmica da rede social
permite a emergência da “cultura dos sentimentos”, uma espécie de “psique coletiva”,
como afirma Maffesoli, que permite a dilatação do indivíduo no grupo reafirmando o
sentimento de pertença (MAFFESOLI, 2014). Os comentários são sintoma de que a
intimidade e a experiência pessoais passam a regular o regime de verdade pós-moderno.

Michel Foucault afirmou que a verdade é deste e não de outro mundo, portanto,
está imbricada às articulações entre poder e saber de uma determinada sociedade. Para
Foucault, “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade
que regula a produção de enunciados que emergem como verdadeiros. A sociedade,
portanto, desenvolve técnicas e procedimentos que acedem à verdade e legitima as
instituições que têm o poder de estabelecer a verdade.

A cibercultura transforma as relações entre os saberes tradicionais. O ambiente


digital desmantela a hierarquia do conhecimento, justapondo senso comum e informação
especializada, pesquisa científica e práticas caseiras, pensamento científico e transcendência
sincrética, além de aconselhamentos de toda ordem. Institui-se um novo regime de discurso
em que o conhecimento científico tende a perder o protagonismo, convivendo com outras
ordens de saberes.

O desmantelamento do regime de verdade moderno, ancorado nas instituições,


possibilitou a emergência de uma verdade regulada pela intimidade e experiência
pessoal, constantemente expostas na rede. A cibercultura possibilita a partilha da
experiência e da opinião que suscitam identificação e fomentam laços sociais.

Comentar a postagem nas redes sociais evoca uma presença participativa, um


atestado de experiência sem maiores delongas. A rede estabelece uma espiral em que o
outro é instado a se fazer presente através do comentário. A fanpage permite a
“comunhão emocional”, pessoas que se manifestam instadas pela lógica do estar-junto,
sem um propósito maior. O tom de autoajuda das postagens tende a evitar controvérsias
ou críticas à fanpage.
Nesta “cultura dos sentimentos”,

As palavras “Fato”, “verdade”, “com certeza” ou “concordo” presentes nos


comentários remetem muito mais a uma

Esta ambiência efêmera legitima uma verdade circunstancial, logo ultrapassada,


por conta do fluxo informativo e da modulação constante do cultura dos sentimentos.

Os assuntos não suscitam polêmica e poucos comentários destoam das


postagens, relativizando as afirmações como “nem sempre” ou “não concordo”. As
opiniões, portanto, estabelecem o critério de verdade, sem maiores questionamentos
sobre os conteúdos dos posts.
Para concluir, as postagens assumem o caráter pedagógico de orientar o
indivíduo a administrar as emoções e buscar respostas em si mesmo, operando a
“pedagogia das emoções”. De outro modo, a “cultura dos sentimentos” dinamiza os
comentários, isto é, o sentimento de pertença desencadeia uma espiral em que o outro é
instado a fazer-se presente através da participação, evocando sua experiência sensível
com a realidade.

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