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Anais do IX Seminário Nacional de

História da Matemática
Sociedade Brasileira de
História da Matemática

Descoberta ou Invenção? A Origem de uma Indagação e um


Exemplo de sua Extensão
Discovery or Invention? The Rise of an Inquiry and an Example of its
Extension
Gustavo Barbosa1

Resumo
Este trabalho tem como um de seus objetivos consolidar a importância da História e da Filosofia da Matemática na apreensão do
desenvolvimento das concepções relativas à natureza e ao estatuto ontológico dos entes matemáticos. Diante das diversas questões
concernentes ao tema e de suas respectivas possíveis explicações, opta por restringir-se a uma questão mais geral sobre a atribuição do
conhecimento matemático como uma invenção humana ou uma descoberta. Assim, chega-se a outro propósito desse trabalho, que é versar
sobre o que pode ser considerado como sendo a origem dessa discussão. Para tanto, é feita uma viagem ao passado, até a Grécia antiga, onde
tanto a matemática como a filosofia encontram as suas raízes, para identificar o momento e as circunstâncias em que emerge a questão sobre
a qual o presente trabalho se detém. A fecunda simbiose entre a matemática e a filosofia, iniciada por Tales de Mileto e refinada pela escola
pitagórica, tem um lugar especial no pensamento de Platão, que a utilizou como parte constitutiva e propedêutica ao seu âmbito das Idéias.
Mas enquanto este pensador situa o âmbito ontológico dos objetos matemáticos entre dois mundos, o sensível e o inteligível, como forma de
conciliação entre as concepções de Heráclito e Parmênides, seu discípulo Aristóteles nega o caráter supra-sensível dos objetos matemáticos e
oferece como resposta a sua filosofia empirista da matemática. Na sua concepção, ao matemático interessa estudar determinadas
propriedades que são “separadas”, “subtraídas”, “abstraídas” por hipótese, traduzindo-se como o processo que consiste em tirar fora dos
objetos que se pretende estudar as características que o definam enquanto objeto matemático. Não havendo, para Aristóteles, a necessidade
de se atribuir os entes matemáticos a uma realidade exterior, como Platão havia feito. Por fim, a disputa entre Isaac Newton e Gottfried
Leibniz pela primazia da criação do cálculo infinitesimal é revisitada sob o foco da influência que os ideais de Platão e Aristóteles exerceram
em sua matemática.
Palavras-chave: História da Matemática. Filosofia da Matemática. Platão. Aristóteles. Cálculo.

Abstract
This work has as one of its objectives to consolidate the importance of History and Philosophy of Mathematics in the grasp of development
of conception related to the nature and ontological status of mathematical entities. Up against the various issues concerning this topic and
their possible explanations, it chooses to restrict themselves to a more general question with regard to the mathematical knowledge as a
human invention or discovery. Thus, we come to another purpose of this work, which is to consider what can be considered as the origin of
this discussion. For that, we made a trip to the past, to ancient Greece, where both mathematics and philosophy trace their roots to identify
the timing and the circumstances giving rise to the question on which this work concentrates. The fruitful symbiosis between mathematics
and philosophy, initiated by Thales of Miletus and refined by the Pythagorean School has a special place in the thinking of Plato, who used it

1
Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho – UNESP, campus de Rio Claro/SP. E-Mail:
gvbarbosa@gmail.com
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as a constituent part of the workup and scope of Ideas. But while Plato puts the ontological framework of mathematical objects between two
worlds, the sensible and intelligible, as a way of reconciling the views of Heraclitus and Parmenides, his disciple Aristotle denies the
supersensible nature of mathematical objects and provides an answer to your empiricist philosophy of mathematics. In Aristotle’s point of
view, the mathematician is interested in studying certain properties that are "separated", "subtracted", "abstracted" by definition, translating
as the process of taking out the objects that we intend to study the characteristics that define this object mathematically. Not having, for
Aristotle, the need to assign mathematical entities to external reality, as Plato had done. Finally, the dispute between Isaac Newton and
Gottfried Leibniz for the primacy of the creation of calculus is revisited from the standpoint of the influence that the Plato’s and Aristotle’s
ideals have exercised on his math.
Keywords: History of Mathematics. Philosophy of Mathematics. Plato. Aristotle. Calculus.

Sob certos aspectos, a pesquisa da verdade é difícil, sob outro é fácil. Prova disso é
que é impossível a um homem apreender adequadamente a verdade e igualmente impossível
não apreendê-la de modo nenhum; de fato, se cada um pode dizer algo a respeito da realidade,
e se, tomada individualmente, essa contribuição pouco ou nada acrescenta ao conhecimento
da verdade, todavia, da união de todas as contribuições individuais decorre um resultado
considerável. (ARISTÓTELES, 2002, p. 71)
Ao longo de sua carreira profissional, matemáticos e educadores matemáticos
frequentemente defrontam-se com questões relativas à própria natureza de seu ofício. Trata-se
de questões que, se não lhe são impostas pela sua própria disposição de espírito, manifestam-
se muitas vezes por meio dos anseios de seus alunos. Neste caso, tanto o matemático quanto o
educador matemático encontram-se em situação semelhante, sujeitos ao crivo de uma sala
repleta de olhares inquisitivos e mentes ávidas por saber. Tais questões transcendem o escopo
dos parâmetros teóricos do objeto de estudo – no caso a matemática –, o que quer dizer que
não se pode respondê-las com o auxílio de teorias matemáticas. São interrogações sobre
matemática e não de matemática, as quais geralmente não têm uma resposta ou a resposta;
pronta, acabada, mas antes, encontram em outras disciplinas indicações de caminhos a serem
percorridos, direcionamentos a possíveis explicações; parciais e nem sempre convergentes.
Mas afinal, de quais questões estamos falando, qual é a sua importância e quais são os
instrumentos adequados para enfrentá-las?
Podemos incitar algumas importantes reflexões quando questionamos qual é a
natureza dos objetos de que a matemática trata; qual a objetividade de suas afirmações; a quê
decorre o seu estatuto de “rainha das ciências”; por que diferentes conteúdos exigem
diferentes níveis de rigor. Enfim, bastam alguns exemplos para nos conscientizarmos do
desafio que implica encarar tais questionamentos. Neste trabalho nos restringiremos a uma
indagação em particular que acreditamos ser comum a todos aqueles que lidam com a
matemática de forma séria: seria ela uma criação ou uma descoberta? Posto de outra forma; os
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objetos matemáticos são invenções da nossa mente ou existem independente de nós e de


nosso pensamento?
É certo que cada pessoa possui a sua própria resposta baseada em suas crenças a
respeito da constituição ontológica dos entes matemáticos, todavia, ela não é única. A busca
por um significado para os objetos de que trata a matemática tem atraído e desafiado as
mentes de grandes pensadores em todos os tempos. No decorrer dessa busca diversas teorias
têm sido criadas, portanto, devemos ter claro em mente que qualquer dissertação sobre esse
tema está atrelada a uma determinada ideologia. E para compreendermos uma ideologia
precisamos situá-la no tempo, no contexto sócio-cultural de uma época e, para isso, utilizamo-
nos da História e da Filosofia, pois:
Para compreender uma época ou uma nação, devemos compreender sua filosofia e, para que
compreendamos sua filosofia, temos de ser, até certo ponto, filósofos. Há uma relação causal
recíproca. As circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para determinar a sua
filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para determinar tais circunstâncias.
(RUSSELL, 1969, p. X)
A importância atribuída a essas duas disciplinas encontra abrigo em nossa firme
convicção de que ao cotejar a maneira como alguns dos grandes nomes da matemática ou da
filosofia se expressaram perante a questão que propusemos estaríamos ampliando os nossos
próprios horizontes conceituais. Relacionando as nossas opiniões com correntes de
pensamento longamente amadurecidas, verificando as congruências e apontando as
discrepâncias. É repensando o já pensado, compreendendo as tendências de pensamento que
se movem diversificada e (nem sempre) silenciosamente é que poderemos olhar para o
horizonte disposto hoje a nossa frente sem nos perder em meio a seus meandros, em virtude
tanto da quantidade, quanto da amplitude dos conceitos envolvidos. E se diante de concepções
às vezes díspares, desejamos ter uma visão central, e que ao mesmo tempo nos ofereça um
panorama holístico dos principais problemas que por séculos afligiram filósofos e
matemáticos, somos obrigados a retroceder no tempo. Com o desenrolar do tempo, como é
absolutamente normal em qualquer segmento do conhecimento, as diversas escolas de
pensamento surgidas apoiavam-se em suas predecessoras, quando não para juntar-se a elas –
fornecendo-lhes uma nova roupagem –, mas muitas vezes também para confrontá-las. Em
geral, quando se pretende analisar algum aspecto de nossa sociedade moderna, não importa
qual ramo histórico sigamos, seja o filosófico, o científico (no nosso caso o da História da
Matemática) ou o sociológico, em se tratando da história do pensamento ocidental,
chegaremos, por fim, à Grécia antiga. É lá que tanto a matemática quanto a filosofia – como
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as conhecemos – tiveram início, e juntamente com elas muitas das reflexões que germinaram
a região de inquérito conhecida por nós como Filosofia da Matemática.
Parece não haver discordância entre os historiadores de que foi com Tales de Mileto
(624-548 a.C. aproximadamente) que se iniciou nossa cultura filosófico-matemática ocidental,
entretanto, coube a Pitágoras (570-490 a.C.) entrelaçar a filosofia e a matemática de uma
maneira singular. Este, a exemplo de Tales, teria viajado ao Egito e à Babilônia. Do mesmo
modo, apoderou-se dos conhecimentos destes povos e conferiu-lhes uma nova concepção.
Uma fecunda simbiose entre filosofia e matemática se instalou a partir do momento em que
coube à matemática fornecer os pressupostos à concepção naturalista da filosofia. A
preocupação dos primeiros filósofos era compreender o mundo, encontrar a origem das
coisas, foi neste contexto que Tales teria afirmado que “tudo é feito de água” (RUSSELL,
1969, p. 29). Para Pitágoras “tudo é número” (BOYER, 1996, p. 34).
A relação de mútua influência entre a matemática e a filosofia tem um lugar especial
no pensamento de Platão. O encontro entre elas é mais estreito e ainda mais complexo no
pensamento desse filósofo que, em vez de reduzir a natureza aos números, utilizou o tipo de
certeza proporcionado pelas ciências matemáticas na sua busca pelo Bem.
Mas o que é o Bem?
Sócrates é categórico em sua resposta: “Para a maioria das pessoas, o bem é o prazer,
mas para os mais requintados é a inteligência” (PLATÃO, 2006 p. 254).
Não é possível definir o Bem de maneira clara e explícita, e, por isso, Sócrates faz uma
analogia comparando-o ao Sol. Este está para o mundo sensível assim como o Bem está para o
mundo inteligível. Enquanto o Sol nos permite ver os objetos deste mundo em que vivemos, e
apresentar opiniões sobre eles, a Idéia do Bem ilumina os olhos de nossa mente e nos permite
chegar ao conhecimento certo, puro e verdadeiro.
Idéias ou Formas são possíveis traduções para os termos gregos Idea e eidos. São
ambos derivados do verbo eido, cujo significado é “ver”, “observar”, “examinar”. Entretanto,
a acepção que estas palavras adquirem no pensamento de Platão difere do “conhecer por meio
do sentido da visão”. O seu significado está condicionado ao que Platão entendia por
“conhecer”. Ele interessava-se especialmente por saber “o que é essa coisa que
conhecemos?”. Destarte, falar sobre um objeto do conhecimento no contexto do platonismo
deixa implícita uma relação entre o ser cognoscente (aquele que conhece ou sua mente ou
faculdade cognitiva) e a coisa a ser conhecida. “Quem conhece, conhece algo ou não conhece
nada?” (PLATÃO, 2006, p. 216) é a pergunta que Sócrates faz na República. Assim, para
Platão, só se pode obter o conhecimento das coisas que existem, isto é, as coisas que são. E

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