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Material Teórico
A Figura Humana
Revisão Textual:
Profa. Esp. Vera Lídia de Sá Cicaroni
A Figura Humana
OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Abordaremos o desenho da figura humana, as proporções definidas
pelo cânon grego para o corpo e também algumas estratégias que
auxiliam na construção da face humana pelo desenho. Veremos,
através de exemplos de artistas que vão desde o período do
Renascimento, passando pelo Barroco, Neoclassicismo e até o
Modernismo, como a representação da figura humana foi sendo
alterada de acordo com os princípios técnicos, ideológicos e estéticos
de cada período em que os artistas estavam inseridos. Também serão
abordadas questões técnicas que buscam estimular sua produção
pessoal em desenho.
· O principal objetivo desta unidade é entender os aspectos relevantes
da representação do desenho da figura humana, seu desenvolvimento
ao longo da história, por meio do entendimento dos materiais
utilizados e concepções estéticas. Serão, também, introduzidos
conhecimentos de modos de fazer necessários para compreensão
dos estudos em artes e principalmente do desenho.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.
Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.
Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.
Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.
No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.
Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE A Figura Humana
Contextualização
A figura humana sempre foi e sempre será alvo de reflexão e de investigação dos
artistas. Considerada por muitos artistas e teóricos como a maior criação de todas,
o homem é fonte de estudos para o desenvolvimento das proporções da arquitetura.
Sugerimos, para início de nossos estudos acerca da figura humana, que você assista
Explor
ao documentário:
A Beleza dos Diagramas – Homem Vitruviano
https://youtu.be/gB5ylnfJITE
Nesse vídeo, encontraremos um estudo sobre o desenho feito por Leonardo da Vinci,
ressaltando as proporções do corpo humano e como, ao longo da história, esse desenho
permanece como um dos mais perfeitos já realizado.
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A Figura Humana Como Objeto
de Estudo e Pesquisa Estética
Na História da Arte, a figura humana tem permanecido como a inspiração
mais sólida e inesgotável. Nossa fascinação é consequência do fato de
que, quando observamos e desenhamos a outra pessoa, ajudamos nosso
próprio conhecimento e consciência (SIMMONS, 2001, p. 248).
Não temos por objetivo realizar um estudo histórico linear e detalhado, mas
identificar um material que nos permita conhecer as diferentes produções em
desenho para pensar a figura humana na arte e nos seus processos criativos.
Para Simblet, “os nossos corpos tornam-nos tangíveis e desenhamo-los para afir-
mar a nossa existência. Somos as únicas criaturas capazes de fazer a nossa imagem.
Vestido ou nu, o corpo humano é o tema mais comum da arte” (2011, p. 109).
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Figura 2 – Estela de Nemti-ui
Fonte: Wikimedia Commons
Figura 3 – Doríforo, Policleto – séc. 5 a.C Figura 4 – Apoxiomenos, Lisípo – séc. 3 a.C
Fonte: likovnakultura.com Fonte: artelinguagemuniversal.blogspot.com.br
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As proporções elaboradas pelos gregos têm por base um ideal de beleza, o qual
considerava o homem o ser mais superior entre todas as criaturas. Esses cânones
de proporção (regras, normas, modelos) influenciaram as produções artísticas
seguintes, como as do Renascimento, nos séculos XIV e XV, em artistas como
Leonardo da Vinci, Michelangelo Buonarotti, Sandro Botticelli e Rafael Sanzio.
Durante esse período, a exploração de novos continentes e a pesquisa científica
proclamavam a confiança no homem e, ao mesmo tempo, a Reforma Protestante
diminuía o domínio da Igreja. O resultado foi que o estudo de Deus como Ser
Supremo foi substituído pelo estudo do ser humano.
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Em outras obras, podemos ver melhor essa problemática da representação da
figura humana dentro desse contexto do Renascimento, como, por exemplo, em
Michelangelo, no desenho A Fortuna e nas esculturas do túmulo de Julian de
Médici, principalmente nas figuras femininas alegóricas. Em A Noite e A Aurora,
os corpos possuem os músculos bem marcados e os seios separados, como que se
fossem colados sobre um corpo masculino.
Você sabia que os artistas do Renascimento faziam o uso de cadáveres para desenho
de anatomia? O interesse dos artistas Michelangelo e Da Vinci estavam para além da
superfície da pele e queriam compreender o que continha dentro do corpo humano,
para chegar a uma representação tanto na pintura ou na escultura mais próxima do
real. Sobre esse aspecto curioso, Simblet ressalta: “Os artistas renascentistas que
estudavam anatomia a partir da dissecação estavam muito mais avançados do que os
médicos seus contemporâneos. Michelangelo assistiu a dissecações para aperfeiçoar a
sua compreensão da forma externa, enquanto Leonardo abria os corpos para descobrir
os mecanismos físicos. Chegou a acreditar ter localizado a alma na fossa pituitária sob
o cérebro e por detrás dos olhos, dando com isso fundamento físico à teoria de que os
olhos são as janelas da alma” (SIMBLET, 2011, p. 109).
Figura 7 – David, O Juramento dos Horácios (estudo e pintura), 1784. Observe como o desenho foi
utilizado com primor como meio de modelar o corpo humano e o movimento e volume dos tecidos.
Fonte: Wikimedia Commons
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Figura 8 – Eugène Delacroix, Cristo na Cruz, 1839 Figura 9 – Eugène Delacroix, Mulher agachando, 1827
Fonte: Wikimedia Commons Fonte: Wikimedia Commons
No entanto, foi a partir do final do século XIX que houve uma mudança significante
no estilo do desenho, com os artistas voltando-se para a sua individualidade no traço
e na expressão. Houve uma forte tendência da representação da figura humana
em poucas linhas, num processo de síntese da forma e da gestualidade do corpo
representado associada ao gesto do artista que podia oscilar entre a precisão, a
sutileza e a expressividade agressiva.
Dentre os artistas, citamos Auguste Rodin, um famoso escultor francês que
possuía a modelagem de suas esculturas bem marcante, expressiva e pessoal. Em
seus desenhos, o artista trabalhava com um traço delicado. Ele produziu centenas de
estudos rápidos de nus, com observação de modelos que faziam movimentos livres
ou pousando em conjunto em seu estúdio. Seus desenhos chocavam as pessoas
pelo fato de os temas serem eróticos; as pessoas sentiam-se ultrajadas com suas
linhas livres e com o fluir das tintas para fora dos contornos. Essas questões eram,
ainda, consideradas escandalosas, mas viriam a influenciar posteriormente uma
série de artistas (SIMBLET, 2011).
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Com esses exemplos, podemos ver as mudanças na representação e no modelado
da figura humana com o uso de carvão, grafite, giz pastel e algumas aguadas com
tinta. As linhas variam nos seus estilos, desde as mais leves e esfumaçadas, nos
desenhos de Rodin, até as mais precisas, em Modigliani, cujas formas são mais
pontiagudas e agressivas.
Figura 12 – Amedeo Modigliani, Cariátide, 1913-14 Figura 13 – Georges Seurat, Nu sentado, 1883
Fonte: Wikimedia Commons Fonte: Wikimedia Commons
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Com base nessa necessidade, a partir de agora, iremos nos dedicar ao exercício
do desenho de acordo com o que vimos até o momento. Abordaremos questões
sobre os esboços iniciais, as estruturas da figura humana, as linhas de ação e
representação do movimento até o aperfeiçoamento das luzes e sombras.
Figura 14 – Miguel Ambrizzi, Estudos da estrutura do corpo humano, 2015
Fonte: Acervo do conteudista
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Sugerimos que você comece observando fotografias de pessoas em diferentes
posições: encostadas, sentadas, correndo, apoiadas, com os braços levantados.
Observe as direções e os movimentos feitos pelo corpo e, principalmente, para se
ter como referência para o desenho, busque identificar as formas que são criadas
entre as partes do corpo, os vazios e espaços entre as pernas e os braços. Essas
formas são úteis na representação do corpo humano de forma proporcional e
anatomicamente correta.
Nos quatro exemplos abaixo, podemos ver que os dois primeiros estão mais
concentrados nas estruturas ósseas e os dois segundos privilegiaram a massa cor-
poral. Entretanto, conseguimos identificar os movimentos que estão expressando.
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Figura 19 – Miguel Ambrizzi, Estudos ligeiros de movimentos, 2002
Fonte: Acervo do conteudista
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nas proporções dessas partes, pois a figura será desenhada com as proporções de
forma automaticamente, como um saber incorporado.
Aos poucos, o desenho da figura humana pode ser trabalhado com luzes e
sombras, evidenciando os volumes do corpo, detalhes de musculatura e textura.
Com apenas algumas áreas de sombra, já é possível dar um acabamento de
modelagem do corpo humano.
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Figura 21 – Miguel Ambrizzi, Estudos de mulher sentada e apoiada, 2002
Fonte: Acervo do conteudista
Figura 22 – Miguel Ambrizzi, Mulher sentada, 2007. Miguel Ambrizzi, Mulher deitada, 2002
Fonte: Acervo do conteudista
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Figura 24 – Miguel Ambrizzi, Estudo de mão, 2007
Fonte: Acervo do conteudista
O Retrato
Em latim, existem três termos para retrato: imago, effigies e simulacrum
– que podem desencadear outros significados. Este tipo de imagem era, e
continua a ser, um termo tão largamente utilizado quanto sua significação
tem sido vaga. Os italianos dos Quinhentos e dos Seiscentos comumente
empregaram os nomes de ritrato e o verbo ritrarre para o nosso retrato
(ou o portrait, ou ainda o verbo to portrait, em inglês); ritrarre ainda
pode significar apresentar (to render) ou reproduzir (to reproduce)
(OLIVEIRA, 1997, p. 42).
1 A grafia da palavra auto-retrato, após o Novo Acordo Ortográfico (2009), foi alterada para autorretrato. No en-
tanto, quando são feitas citações de textos anteriores ao acordo, devemos respeitar a grafia utilizada no período
da publicação.
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Tomemos como exemplo a pintura de Mona Lisa, feita por Da Vinci. Sabemos a
aparência real de Mona Lisa? Mas será que isso tem realmente alguma importância?
Questionado sobre a semelhança entre os modelos e os retratos que fez da família
dos Médicis, Michelangelo respondeu: “Que importará dentro de mil anos o aspecto
que tinham esses homens? Havia criado uma obra de arte e era isso que contava”
(GOMBRICH, 1993, P. 99).
Com base nesses autores, Gombrich e
Woodford, além da frase de Michelangelo,
podemos ressaltar a postura e a intenção
do artista perante a sua criação. O retra-
to, assim como outros gêneros (paisagem,
natureza-morta, etc.), pode ser ou não se-
melhante ao seu referente. Os desenhos
podem ser de observação direta, mas com
o intuito e preferência pela interpretação e
percepção de quem o executa. Uma pes-
soa pode posar para o artista somente para
servir como “um modelo”, como um mo-
tivo ou um referencial para sua produção.
Pode também ser retratado obedecendo
às suas características físicas e expressi-
vas, buscando a maior proximidade visual
possível, dentro das habilidades técnicas
do artista. Essa diferença não é específica
de uma data ou de um período histórico,
ambas as possibilidades sempre existiram Figura 25 – Giovanni Belinni,
em maior ou menor grau, de acordo com Homem com um turbante, sem data
as convenções estilísticas da época. Fonte: Wikimedia Commons
Figura 26 – Ingres, Retrato do Violinista Paganini, 1819 Figura 27 – Amedeo Modigliani, Retrato, 1930
Fonte: Wikimedia Commons Fonte: Acervo do conteudista
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Muitas vezes quem realiza o retrato transfere muito de si no desenho, como uma forma de espelho que
funde o retratista e o retratado. Isso se dá de forma mais interna ou pelo fato da recorrência de uma
certa repetição de traços e modelos que quem está a retratar possui em sua memória visual. Busque
conhecer o trabalho do artista chinês Chen Shaofeng, que esteve presente na 26ª Bienal Internacional
de São Paulo. A curiosidade de seu trabalho intitulado Dialogue with the peasants of Tiangongsi
villages (1998-2002) está no resultado que obteve ao propor retratar pessoas em aldeias durante 4
anos. Ele pedia que os moradores fizessem um retrato seu enquanto ele os retratava. O resultado dos
desenhos feitos pelos moradores apresentavam, em sua grande maioria, o artista retratado com traços
físicos mais parecidos com os próprios aldeões do que com Chen.
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Por mais que a forma do corpo humano seja complexa, o que mais dificulta
a sua representação são os símbolos e estereótipos que carregamos conosco,
atrapalhando a nossa observação concreta do que está à nossa frente.
A memória do ato de desenhar, especificamente para quem não o executa há
um bom tempo, irá conduzir a produção em desenho atual, a qual poderá cair na
produção simbólica: comuns desenhos da figura humana como “palitinhos”, ou
a mão feita como uma espécie de luva – feita somente com o contorno, ou um
rosto com um nariz em forma da letra “L”, por exemplo. Isso não é visto como
um problema, mas uma questão a ser desenvolvida, explorada e aprimorada com
novos exercícios do desenho.
A dificuldade no desenho da figura humana está, exatamente, na falta de
atenção ao olharmos o nosso referencial, ou seja, o corpo humano. O desenho
de memória é muito positivo e interessante, porém pode apresentar problemas
para quem não possui uma boa memória visual. Para muitos de nós, torna-se
difícil desenhar uma face humana, um corpo correndo ou em uma determinada
posição, pois temos falhas exatamente na memória visual adquirida. Por isso, ao
realizarmos muitos exercícios de desenho de observação direta do modelo ou de
reproduções fotográficas, iremos desenvolvendo o nosso repertório visual e, com
isso, aprimorando nossa produção.
Não há uma forma única e correta de iniciar o aluno na prática do desenho;
não há uma ordem para começar a desenhar por observação direta do modelo,
de reproduções fotográficas ou pela livre criação e interpretação do que estamos
vendo. No entanto, exemplificaremos diferentes formas do ato de desenho da
figura humana com o intuito de estimular sua produção pessoal do retrato.
Na prática do desenho da figura humana, podemos iniciar nosso trabalho a partir
de estudos isolados dos órgãos que compõem o corpo e a face humana, como o
nariz, boca, olhos, etc. É muito importante que sejam realizados vários exercícios
de observação direta, identificando as relações de proporção entre as formas que
compõem o que está sendo observado, os tamanhos, texturas e a luminosidade. No
desenho da figura humana, conforme vimos, a luz e a sombra agem sobre a figura
da mesma maneira que agem sobre qualquer outro objeto.
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O cânon das proporções humanas estabelecido pelos gregos determinou que a
altura do homem é definida pela medida de 7,5 cabeças e, posteriormente, pela
medida de 8 cabeças. Trata-se, portanto, do que chamamos de Antropometria: o
estudo da medição de dimensões e proporções do corpo humano ou de alguma de
suas partes. A Antropometria, criada pelo cientista francês Alphonse Bertillon, em
1879, está diretamente relacionada com a arte de encaixar, construir e desenhar
a figura humana. Em princípio, prova-nos que nenhum corpo é igual a outro. Ela,
junto com a morfologia e anatomia, tem determinado as proporções de milhares
de corpos, comparando raças, sexos e idades. A antropometria estuda as medidas
usadas por pintores e escultores de todas as épocas e foi a partir dela que artistas
puderam conhecer melhor as dimensões e proporções do corpo humano.
No entanto, Leonardo da Vinci, no século XV, já iniciava os estudos de
proporção da face humana, através de observações e análises de linhas direcionais
e compositivas que estruturavam a face.
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Figura 33 – Philip Hallawell, Processo de construção da face humana, 1994. Observe que a
altura Y é a que determina o módulo a ser utilizado com base para definir a altura da face
Fonte: HALLAWELL, 1994
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Para localizarmos a boca de retratos de homens, devemos dividir em 3 partes a
medida da base do nariz até o queixo, localizando a divisão dos lábios na primeira
parte abaixo do nariz. Em retratos de mulheres, a divisão dos lábios é localizada
um pouco acima da metade desta medida. A largura da boca é definida traçando-se
dois eixos verticais a partir da íris.
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Obviamente essas instruções são apenas guias para a construção de uma face
humana sem a observação de um modelo. Essas proporções são variáveis de
acordo com a raça, etnia e particularidades de cada ser humano. No entanto, elas
nos ajudam em estudos iniciais, contribuindo para a elaboração de desenhos mais
proporcionais. Mediante esses passos, o desenho da cabeça é construído e resulta
num desenho mais “realista”.
pelo pintor espanhol Diego Velásquez. Este artista retratou quadros profanos, religiosos,
mitológicos e de época, como, por exemplo: Las Meninas, La Frágua de Vulcano, Los
Borrachos, La rendición de Breda. É possível vermos como seus trabalhos em pintura são
resultado de uma habilidade incrível. Observe como suas cabeças são exemplos de como
construir, desenhar e pintar com maestria. O artista retratou homens, mulheres, crianças e
idosos de diferentes pontos de vista, em várias inclinações e posições, dando os traços mais
característicos do modelo, traduzindo-o num quadro em que aparece como algo vivo, algo
que nos fala e que nos olha.
Embora esses quadros sejam feitos em pintura, eles revelam que, para desenhar ou pintar
um bom retrato, é necessário, antes de tudo, dominar o desenho e a construção de uma
cabeça em geral.
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partir da memória dessas proporções do cânon, das particularidades que compõem
as diferentes partes do rosto – o estudo dos olhos, nariz, boca, orelhas, cabelo, etc.
–, das generalidades sobre anatomia e expressão e das modificações produzidas
pelos fatores de sexo e idade, que iremos aprofundar a prática do retrato.
Podemos, ainda, listar duas condições básicas que devem reunir um bom retrato:
oferecer uma semelhança com o modelo e ser, em si mesmo, uma obra de arte.
No que diz respeito à semelhança, obviamente não há como ser uma semelhança
exata, no entanto, se não há uma semelhança, não há retrato. O artista é livre
para fazer sua interpretação e, portanto, a segunda condição irá complementar a
primeira, ou seja, há a necessidade de que o retrato possa ser admirado e julgado
como uma obra de arte, prescindindo inclusive da semelhança com o modelo. No
entanto, a semelhança não é o bastante para um bom retrato. Por acaso paramos
em frente a uma foto de documento (foto 3x4) e ficamos admirando-a? Ela é
parecida com o modelo, mas não nos dize nada artisticamente.
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O Autorretrato
...eu vou muito atrás na história da arte, eu vou no primeiro homem, na
pré-história: o homem da caverna que ousou botar a mão, a palma da
mão. Quem sabe se aquele não é o primeiro gesto de marcar o seu ‘eu’
[...] Flavio-Shiró (apud TINOCO, 2006, p. 5)
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Um olho humano. Visto de Perto. Muito aberto, olha para fora do quadro.
A íris é o reflexo de um céu enevoado, a pupila um buraco negro. O
que é que este olho consegue ver? O exterior ou a paisagem da alma do
indivíduo? O que vê um artista quando olha para si próprio ao espelho?
Verá também através de si próprio aqueles que estão a olhar para ele?
Será o autorretrato de um artista um meio de reflexão ou apenas um nada
negro, um “Falso espelho”, como o surrealista René Magritte intitulou o
seu quadro de 1928 representando um olho (REBEL, 2009, p.6)
Essas e outras questões mostram-nos por que os autorretratos são tão fascinantes.
Os autorretratos podem apresentar a imagem convencional da profissão ou
do estatuto do artista, podem revelar seus aspectos mais sombrios e subjetivos
e também revelar jogos de interpretação entre o ego e o alter ego dos artistas.
Através de seus autorretratos, os artistas representam a si próprios não só para
serem vistos por outros mas também buscando distinguirem-se deles.
Segundo Lúcia Helena Vianna, tanto “no auto-retrato como no texto
autobiográfico há um sujeito, o autor, que se auto-representa, se auto-define e de
certo modo se auto-inventa, construindo a imagem de si que gostaria de perpetuar.”
(VIANNA, 2003, s/p)
Frederico Morais (1984, s/p) considera o autorretrato mais do que um “flagrante
narcisista”. Olhar um autorretrato também é perceber a história da linguagem humana,
pois o artista estampa, em seu rosto, um certo tipo de preocupação social e estética.
Os autorretratos não são tão antigos como os retratos. Historicamente os
artistas, mais conhecidos como artesãos, não tinham o direito de se identificarem
nas obras nem por assinaturas.
No entanto, Kátia Canton ressalta que o autorretrato
[...] sempre acompanhou o ser humano em seu desejo de deixar uma
marca de sua própria imagem, mesmo depois da passagem de sua vida.
Essa auto-representação foi tomando formas diferentes no decorrer do
tempo [...] Já na Pré-História, homens e mulheres desenhavam suas
identidades com a marca das mãos dentro das cavernas. Colocavam as
mãos contra a parede e sopravam pó colorido, marcando suas formas
nesses locais protegidos, para que ficassem gravados para a posteridade
(CANTON, 2004, p. 5).
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Foi no Renascimento que se deu uma mudança importante no que diz respeito
à autonomia do artista, baseada em sentimentos de autodeterminação social e
moral que caracterizava o momento histórico. O autorretrato passou a ascender à
categoria de manifesto de autoconhecimento humano geral e até de autorreflexão
cultural (REBEL, 2009).
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- deixar sua imagem gravada para o futuro;
A arte barroca estava inserida num contexto de repressão imposta pelo Estado
com o aval da Igreja, a qual cerceava as ações do homem, cuja visão de si mesmo
mudou de perspectiva. Ciente de sua impotência diante dos acontecimentos da
vida, tentou voltar-se a Deus e aos aspectos existenciais. O homem desse período
em estado de crise tinha, em sua arte, a estética do conflito, cujos retratos e,
especialmente os autorretratos, tornaram-se relatos contundentes das verdades e
misérias humanas.
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Em seus desenhos, pinturas e gravuras feitos durante a juventude, tanto com
carvão, aguadas ou com calcogravura (água-forte), o artista realiza seus autorretratos
buscando experimentações acerca de expressões faciais diversas (assustado, rindo,
fazendo caretas). Porém essas explorações são deslocadas, aos poucos, para
expressões faciais mais sérias e serenas, demonstrando, por vezes, uma decadência
pessoal e financeira.
https://youtu.be/ObnK02BjEqA
Nesse vídeo, você poderá ter acesso a uma análise histórica do surgimento do autorretrato
na arte, mas principalmente na produção de Rembrandt. Você poderá ver uma análise
detalhada das obras, a forma como utilizava o espelho para realizar seus desenhos e pinturas
e o contexto em que estão inseridas.
No seu primeiro desenho feito com sépia e nanquim, a artista, na sua juventude,
autorrepresentou-se com cores mais contrastantes. Já, no segundo, realizado 2
anos antes de seu falecimento, a artista utilizou o carvão aplicado com tonalidades
bem suaves, revelando um aspecto mais etéreo e delicado.
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Observemos os dois desenhos abaixo dos brasileiros Mário Zanini e Ismael Nery.
Quais são suas semelhanças e diferenças?
Figura 49 – Mário Zanini, Auto-retrato, sem data Figura 50 – Ismael Nery, Auto-retrato, sem data
Fonte: Acervo do conteudista Fonte: Acervo do conteudista
O desenho de Zanini foi feito com lápis, com o uso de linhas soltas, com traços
leves e ligeiros, dando-nos a impressão de ter sido executado em pouco tempo e
sem muito planejamento. Canton ressalta que “é interessante perceber que, mesmo
com esse jeito de desenhar que parece um croqui, o artista conseguiu transmitir
bem uma expressão, um jeito de ser” (2007, p. 32). Com uma expressão séria e
sensível pelo movimento e expressão das sobrancelhas, seu olhar demonstra estar
cansado e revela uma preocupação.
Já, no desenho de Nery, feito com crayon preto, temos outro resultado, em que a
presença do esfumaçados modela os volumes da face. O fundo negro ressalta os pon-
tos de luz da face, que está sem detalhes nos olhos, pois estão brancos e sem expres-
são, deixando presente um ar de mistério, característica comum às obras deste artista.
Neste autorretrato, Nery revela seus traços faciais
finos e delicados, com seu queixo pequeno, nariz
alongado e pontudo, numa posição de meio-perfil,
sem detalhes do topo da cabeça, apresentando-se
quase como uma máscara teatral.
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Ao final, podemos concluir com Kátia Canton que
Dentro do universo de imagens humanas, o auto-retrato se estabelece
como um subgênero repleto de peculiaridades. Nele, o artista se retrata e
se expressa, numa tentativa de leitura e transmissão de suas características
físicas e de sua interioridade emocional. Ali também, na maneira como
utiliza cores e pinceladas, no modo como desenha suas próprias formas
e lhes atribui volumes, o artista constrói seus próprios comentários sobre
arte. O auto-retrato é o espelho do artista. (CANTON, 2001, p. 68)
Nesse sentido, podemos afirmar que o artista também se conecta com a vida de
seu tempo. Trata-se, ainda, de uma possível análise mais introspectiva em diálogo
com o mundo externo, revelando fragmentos de memórias, fantasias e veracidade.
Através do contato com obras desses e de outros artistas, entramos em contato
com os mistérios humanos e somos convidados a conhecê-los e a nos conhecermos
a nós próprios.
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UNIDADE A Figura Humana
Figura 53 – Miguel Ambrizzi, Estudos e variações do olho, 2001
Fonte: Acervo do conteudista
O Auto-Retrato
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
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às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
Auto-retrato
Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.
Para além destes dois poemas, é possível encontrar outros com a mesma
temática na poesia brasileira. No entanto, o que nos interessa, aqui, é perceber
como cada um se autorretratou com palavras que não os descrevem a partir de
seus traços físicos. Quintana afirma que, às vezes, se pinta como nuvem ou como
árvore, revelando oscilações e contrastes entre alguém com suas raízes fortes e
presas à terra e outro ser leve, breve e efêmero como as nuvens. O uso das palavras
metaforiza os aspectos mais subjetivos que definem a sua própria personalidade.
Manuel Bandeira já “brinca” com os opostos, numa tentativa de não se vangloriar,
dizendo que é um poeta ruim, provinciano e humilde.
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etc. Mas também somos o que não gostamos, aquilo em que não cremos, o que
não defendemos e o que não comemos. Portanto, se eu fosse uma comida, qual
comida eu seria? Se eu fosse um super-herói, qual eu seria? Um exercício como
esse, que mais parece uma brincadeira infantil, pode ampliar as possibilidades de
representação e autorrepresentação que se distanciam da observação e da ênfase
na semelhança, mas partem para exercícios de interpretação.
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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:
Livros
Estructura del Conocimiento Artístico
ARAÑO, J. C. (2005) Estructura del conocimiento artístico. In: MARIN, R. V.
(ed) Investigatión en educación artística, pp 19/42. Granada: Universidad de
Granada e Sevilla.
El Ojo y la Sombra: Uma Mirada al Retrato em Occidente
AZARA, P. El ojo y la sombra: Uma mirada al retrato em Occidente. Barcelona:
Gustavo Gili S.A., 2002.
Estrela da Vida Inteira
BANDEIRA, Manoel. Estrela da vida inteira — poesias reunidas. 3.ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1973.
La Construcción de la Escena
CABEZAS, L. La construcción de la escena. In: MOLINA, J. & CABEZAS, L. &
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UNIDADE A Figura Humana
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Referências
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