Você está na página 1de 146

Antropologia

Material Teórico
O Desenvolvimento da Antropologia e das Ciências Sociais
no Ocidente

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Ms. Edson Alencar Silva

Revisão Textual:
Prof. Ms. Claudio Brites
O Desenvolvimento da Antropologia e
das Ciências Sociais no Ocidente

• O Desenvolvimento das Ciências Humanas e Sociais


• A Antropologia como Ciência Social e seus Campos de Atuação
• O Homem como Objeto de Estudo na Antropologia
• Ciências Afins
• A Origem e o Tratamento dos Dados em Antropologia
• O Conceito de Evolução Aplicado à Antropologia
• A Antropologia Rácica e seu Fracasso Explicativo
• Relativismo Cultural

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· O objetivo desta unidade é apresentar os elementos-chave que
nos permitem entender o desenvolvimento da Antropologia e das
Ciências Sociais no Ocidente, tendo como foco a Antropologia. Para
tanto, faremos um resgate do contexto sócio histórico e também
das principais preocupações que fundamentaram as pesquisas
antropológicas. Assim, a ideia é introduzir você educando ao universo
de estudo científico dos grupos humanos e suas peculiaridades.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo.

No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE O Desenvolvimento da Antropologia e das Ciências
Sociais no ocidente

O Desenvolvimento das Ciências Humanas


e Sociais
As Ciências Humanas e Sociais distinguem-se das ciências formais e das ciências
da natureza por elegerem o Homem como objeto central de suas investigações. Ou
seja, não é o indivíduo o objeto de estudo primordial das Ciências Naturais ou da
Natureza, torna-se necessário utilizar estudos mais abrangentes sobre o homem,
remetendo-se às Ciências Humanas e Sociais.

Verificam-se três formas básicas de realizar essas investigações, para três


períodos distintos, que são assim designados:

Designação Período Características


Período de transição entre a Idade Média e o Renascimento. Valorização do
ser humano. O indivíduo começou a ser o centro de tudo, diferenciando-se
Humanismo Séc. XV
por ser racional e livre. Deus não mais controlava essa “liberdade” de criação e
investigação.
O progresso humano era tributado ao progresso das ciências. O mesmo grau de
empirismo que gozava as ciências formais e da natureza poderia ser empreendido
para o estudo do Homem e das sociedades como fato. Sendo assim, passam a
ser objetos de investigação científica: família, trabalho, religião, Estado, etc.
O positivismo foi uma corrente filosófica, sociológica e política que surgiu na
Positivismo Séc. XIX
França no começo do século XIX. Representantes dessa corrente, como Auguste
Comte e Jonh Stuart, desmistificaram superstições, religiões e ensinos teológicos.
Agora, de fato, o empirismo que antes era exclusivo das Ciências Naturais começa
a permear estudos científicos sobre família, trabalho, religião, ou seja, sobre o
Homem como ser Social.
No fim do século XIX, o filósofo alemão Wilhelm Dilthey, estabeleceu diferenças
entre o homem e a natureza e entre as ciências naturais e as ciências humanas.
Final do séc. XIX e Observou que o estudo do progresso humano só seria possível com a criação
Historicismo
início do XX de um método que compreendesse o sentido dos fatos humanos, levando em
conta que esses fatos são históricos e temporais, ou seja, conceituados como
causalidade histórica.

Verificamos no quadro que as áreas de conhecimento, no início do século XIX,


que tiveram como foco de suas investigações o Homem tenderam ao cientificismo
que impregnava a perspectiva positivista. Decorre daí a segmentação ou a
compartimentação das ciências em áreas que se preocupavam com uma dimensão
restrita do Homem. Essa segmentação ordenou a organização de distintas áreas
de saber científico e, por conseguinte, de diferentes disciplinas que passaram a
compor o repertório das Ciências Sociais:

8
Estudo das relações interindivíduos conformando grupos sociais e instituições, bem como as
relações entre grupos e instituições entre si. Estudo da divisão da sociedade em segmentos: da
mobilidade social, dos processos de cooperação, competição e conflito, etc. É uma ciência que
pertence ao grupo das ciências sociais e humanas. Surgida no século XVIII como disciplina de
estudo sobre as consequências de dois grandes eventos, a revolução Industrial e a Revolução
Sociologia Francesa, tem por objeto de estudo a análise de fenômenos de interação dos indivíduos, as
formas internas de estrutura (as camadas sociais, a mobilidade social, os valores, as normas,
leis), conflitos e as formas de cooperação geradas através das relações sociais. O termo sociologia
só foi utilizado primeiramente com o filósofo francês Auguste Comte no seu Curso de Filosofia
Positiva, em 1838.

Economia é uma palavra que tem origem no grego oikonomos, onde oikos = casa e monos =
lei, regra, costume. Etimologicamente a palavra é associada à administração do lar ou da casa.
Atualmente, é uma ciência que estuda as relações interindivíduais, conformando grupos sociais
Economia e instituições, bem como as relações entre grupos e instituições entre si, divindo, para tanto, a
sociedade em segmentos, como:
mobilidade social, processos de cooperação, competição e conflito, além de muitos outros.

Estudo do Homem e suas obras, sendo assim, suas manifestações materiais e imateriais de
cultura. Estudo dos tipos de organização familiar, religiões, matrimônio e o que quer que se
refira a práticas culturais. É um termo de origem grega, formado por antropos (homem, ser
Antropologia humano) e logos (conhecimento). É uma ciência que se dedica ao estudo aprofundado do ser
humano. Somente no século XVII é que ela se desenvolveu como Ciência Social, graças ao
movimento iluminista.

O termo tem origem no grego politiká, uma derivação da polis que designa aquilo que é público.
Política E é justamente a coisa pública que permite essa ligação e interação do homem, estudo dessa
relação.

A Antropologia como Ciência Social e seus


Campos de Atuação
Vários autores concordam que a Antropologia teria
nascido no séc. V a.C., no berço da civilização grega,
quando Heródoto (considerado também o “pai da
História”) passou a descrever as culturas dos povos
circundantes à Grécia, tornando-se então, também, o
“pai da Antropologia”.

Houve, posteriormente, contribuições consubstan-


ciais de cronistas, viajantes, soldados e mercadores
que, com seus relatos sobre outras culturas, co-
operaram com o estudo do Homem e de sua cultura.

Se faz pertinente explicar que a idade de um fóssil


Figura 1 – Heródoto possuí duas formas de datação: relativa e absoluta. A
Fonte: Wikimedia/Commons relativa ocorre desde o século XVII – observando ainda
que, para fins de integração do estudo do homem no
campo das ciências social e humana, vale datar meados do século XVII.

9
9
UNIDADE O Desenvolvimento da Antropologia e das Ciências
Sociais no ocidente

Interessante esclarecer que o estudo dos fósseis é da Paleontologia, ciência


natural que estuda a vida do passado da Terra e o seu desenvolvimento ao longo do
tempo geológico, isto é, a formação dos fósseis antropológicos, culminando na sua
sistematização como ciência após a apresentação da teoria evolucionista de Charles
Darwin, no livro A origem das espécies, publicado em 1859.

Apesar de ter alcançado status de ciência há apro-


ximadamente um século, a Antropologia, até muito
pouco tempo, estava limitada ao estudo somente dos
aspectos evolutivos do Homem, como mensuração e
estudo de fósseis, por exemplo, passando a abranger
mais recentemente outros aspectos, como seu com-
portamento coletivo e estrutura social.

Com base na própria origem etimológica da palavra


antropologia (em que antropo significa Homem
e logos significa conhecimento), podemos defini-
la como a área de estudo do Homem, procurando
investigá-lo desde sua dimensão física e biológica até
Figura 2 – Charles Darwin o seu papel como membro de grupos organizados,
Fonte: Istock/Getty Images
como se situa e interage no convívio social.

Assim, a Antropologia tem a finalidade de entender cientificamente o ser


humano a partir das seguintes abordagens:
·· Ciência social:
·· compreende o Homem como ser social, vivendo em grupos;
·· Ciência humana:
·· aborda os aspectos gerais do Homem, como sua história, hábitos e
demais aspectos;
·· Ciência natural:
·· dirigi seus estudos para os aspectos evolutivos do Ser Humano.

A disciplina tem como objeto o Homem e suas obras e como objetivo


compreender toda a humanidade. Ela se torna uma ciência extremamente ampla
e abrangente e, em razão disso, além de estudar aspectos evolutivos e anatômicos
do Homem, vê-se obrigada naturalmente a estudar suas diferentes organizações
sociais, bem como o seu papel dentro dessas organizações.

O objeto de estudo da Antropologia pode ser definido então como o Homem e


suas obras. Dessa forma, sua atuação não está limitada no tempo, pode ir desde
as organizações sociais primitivas e ágrafas até as mais complexas e recentes.
Há um notável interesse de antropólogos por grupos sociais mais simples e suas
dinâmicas de preservação cultural, como as comunidades rurais que não tenham
sofrido efeitos de culturas dominantes a ponto de descaracterizar sua constituição
cultural; porém, os estudos antropológicos não se limitam a apenas um tipo de
organização social.

10
O antropólogo se lança à pesquisa de campo no intuito de estudar o indivíduo e
seus diferentes grupos e organizações sociais, estando aí as principais colaborações
de antropólogos no estudo do Homem através do tempo. Aliás, nunca nenhuma
outra ciência teve um objetivo tão abrangente: compreender a humanidade como
um todo. Ou seja, toda a história do Homem, sua cultura, estrutura social e obras
são de interesse do antropólogo.

Tratando-se de uma ciência com um campo vasto de estudo no tempo e no


espaço. A antropologia possui divisões e subdivisões em seus diferentes campos de
interesse. Pode-se definir esse campo como sendo: de aspecto biológico – como
Antropologia Física ou Biológica –, de aspecto sociocultural – como a Antropologia
Social e Cultural – e de aspecto filosófico – como a Antropologia Filosófica.

Dentro da Antropologia, segundo seus dois principais campos de atuação,


encontramos duas distinções fundamentais:
· Antropologia Física ou Biológica:

Preocupa-se em estudar o Ser humano a partir de seus aspectos físicos e


evolutivos, buscando entender suas diferenças raciais, aspectos fisiológicos e
estrutura anatômica. Desenvolveram-se dentro desse campo de interesse dife-
rentes subáreas:
· Paleontologia humana: estudo da origem e da evolução humana
através da análise de fósseis intermediários entre os primatas e o Ser
Humano moderno;
· Somatologia: trata da diferença de aspectos físicos e sexuais do
Homem (metabolismo, adaptação, etc.);
· Estudos comparativos do crescimento: ramo mais abrangente
da Somatologia que estuda as diferenças físicas em razão de
fatores externos, como: alimentação, exercícios físicos, maturidade
sexual, etc.;
· Raciologia: estuda as diferentes raças dos seres humanos e suas
miscigenações, características físicas, classificando-as.
· Antropometria: procede com a mensuração de medidas do corpo
humano e seus diferentes estágios evolutivos.
· Antropologia Social e Cultural:

É o campo mais abrangente da Antropologia e estuda as diferentes manifestações


culturais do Homem sob distintos aspectos, cultura essa adquirida por processos de
aprendizagem que constituem também objeto de estudo desse campo. Seu objetivo
foca na relação problemática entre o comportamento instintivo (hereditário e que
se opõe ao conceito de cultura) e o adquirido (por aprendizagem). Subdivide-se em:
· Arqueologia: Preocupa-se primordialmente com o estudo de
sociedades antigas que não deixaram registro na forma escrita,
mas que podem ser recuperadas por meio de artefatos. Trata-se da

11
11
UNIDADE O Desenvolvimento da Antropologia e das Ciências
Sociais no ocidente

reconstituição de culturas por meio da recuperação de artefatos que


tenham resistido à ação do tempo. Cabe ao arqueólogo proceder
e desenvolver métodos de escavação para a recuperação desses
artefatos. Por sua vez, a Arqueologia se divide em:
·· Arqueologia Clássica: trabalha na reconstituição de civilizações
letradas;
·· Antropologia arqueológica: estuda civilizações extintas, dos
primórdios da cultura;
·· Etnografia – foca seus estudos nas comunidades primitivas ou ágrafas,
de organização simples, procurando distanciar-se de estudos sobre
grupos complexos e tecnologicamente desenvolvidos; podendo, porém,
ainda nos dias de hoje, estudar sociedades e grupos rurais, de certa forma
isolados e que ainda não sofreram mudanças que viessem a adequá-los a
essas sociedades complexas;
·· Etnologia – estuda as diferenças culturais e os processos de funcionamento
e de mudança dessas culturas. Enfatiza a relação do Homem com o meio-
ambiente, essa como fator determinante de certos tipos de cultura;
·· Linguística – é o ramo da Antropologia mais independente dos demais.
Trata-se do estudo das línguas e seu acompanhamento com uma grande
variedade de culturas;
·· Folclore – estuda a cultura material e espiritual espontânea e de dimensão
temporal e espacial limitada, ou seja, restrita ao seio de determinada
organização cultural. É de aparecimento espontâneo e se verifica tanto em
sociedades rurais quanto em urbanizadas, tanto em sociedades simples
quanto em complexas;
·· Antropologia Social – estuda as diferentes formas de organização social
e de grupos sociais, preocupando-se, entre outros aspectos, em identificar
os fatores que as regem na vida social (família, economia, política, religião,
jurídico, etc.);
·· Cultura e personalidade - estuda as relações entre cultura e a persona-
lidade dos indivíduos. Toma como ponto de partida que o Homem não
seria somente receptor e produtor de cultura; mas elemento determinante
de mudança dessa mesma cultura.

12
O Homem como Objeto de Estudo
na Antropologia
O Homem é não só um ser vivo mas também um ser social; isto é, existe
não tão somente no ambiente físico, mas fundamentalmente no ambiente social,
cercado por outros indivíduos que, assim como ele, detêm não apenas necessidades
biológicas, mas necessidades sociais.

A vida humana, como acontece em grupos, está eivada de relações sociais,


produto da interação interindivíduos, competindo ou colaborando pelos mesmos
bens em natureza ou em sociedade. Dessas relações, derivam práticas e estruturas:
econômicas, políticas, religiosas, educacionais, familiares, etc.

Relações Sociais:

- Econômicas
Ser vivo - Políticas
- Religiosas
- Educacionais
Sociedade - Familiares
Homem

Ser Social
Figura 3
Fonte: Adaptado de Istock/Getty Images

O Homem é tomado, portanto, na sua dimensão de vida coletiva, em socie-


dade. Por sua vez, essas sociedades se dividem entre simples (povos indígenas,
sociedades tribais, etc.) e complexas (tecnologicamente avançadas, politicamente
estruturadas etc.).

13
13
UNIDADE O Desenvolvimento da Antropologia e das Ciências
Sociais no ocidente

Tipo de sociedade Características


·· Numericamente pequenas;
·· Economia natural (coleta, pesca, caça);
Simples ·· Sistema de parentesco (família);
·· Tecnologia simples (força física: humana ou animais domésticos);
·· Religião complexa ou simples.
·· Industrializadas;
·· Predominantemente urbanas;
Complexas ·· Politicamente centralizadas e complexas;
·· Regidas pelo direito positivo;
·· Economia de mercado.

Ciências Afins
Como vimos, o objeto de estudo da Antropologia assume a dimensão do Sujeito
em sua vida coletiva. Essa, por sua vez, subdivide-se em várias dimensões, isso
porque a vida social cotidiana é tanto política quanto econômica, religiosa, familiar
e educacional.

Atividade Atividade
Política Econômica

Família Educação

Atividade
Religiosa

Figura 4

Essa variedade e diversidade de aspectos faz com que a Antropologia necessite


da colaboração de outras áreas de saber e de outras ciências que possam
corroborar com seus estudos. Sendo assim, não é possível à Antropologia, sozinha,
compreender fenômenos que são, por natureza, pertencentes a outras áreas de
conhecimento, como:
·· Ciências Sociais:
Sociologia, História, Psicologia, Geografia, Economia, Ciência Política, etc;
·· Ciências Biológicas ou Naturais:
Biologia, Genética, Anatomia, Fisiologia, Embriologia, Medicina, etc.;

14
· Demais Ciências que contribuem à Antropologia:
Geologia, Zoologia, Botânica, Química, Física, Economia Política,
Geografia Humana e Direito.

Passemos, então, a tratar das principais interações que a Antropologia mantém


com ciências afins, para que não se confundam e que estejam nítidas suas
especificidades no tratamento, por vezes, do mesmo objeto. Primeiramente com
a Psicologia.

Ambas as ciências têm um objeto comum: o comportamento humano; porém,


a Antropologia estuda o comportamento grupal, enquanto que a Psicologia estuda
primordialmente o comportamento do indivíduo. Ambas colaboram entre si na
identificação dos fatores variantes do comportamento.

Em relação às interações mantidas com a Economia Política, é fundamental levar


em consideração que todo grupo social, do mais simples ao mais complexo, tem sua
própria estrutura econômica e política, sendo, portanto, essencial a colaboração
entre essas ciências para o completo entendimento de diferentes estruturas sociais.

Também a História auxilia, permitindo a reconstituição de culturas já extintas,


servindo de base para estudos antropológicos. Ainda anotamos a Geografia Humana
que estuda a mudança do meio ambiente por influência direta do Homem e de suas
inovações culturais – além do estudo do meio físico tribal. E temos a Biologia, que
contribui sobremaneira com a Antropologia Física, ajudando a compreender os
aspectos evolutivos sob o prisma genético e anatômico, entre outros.

A Origem e o Tratamento dos Dados


em Antropologia
O conhecimento científico depende essencialmente de dados e informações
para que seja analisado com rigor metodológico e constitua conhecimento
empírico. Como dados e informações precisam ter precisão e serem dotados de
confiabilidade, todas as ciências elaboram procedimentos complexos e rigorosos
com a finalidade de obter informações interpretando-as e analisando-as de forma
organizada, sistemática e sempre tornando possível a comprovação das afirmações
feitas a respeito de qualquer assunto.

As possibilidades de bases informativas que contenham dados consubstanciais


para as análises em Antropologia são variadas: desde suportes tridimensionais,
objetos, documentos escritos, oralidade, até rituais, danças e costumes estão
no universo de possibilidades de análise do antropólogo. Fazem parte ainda do
seu cotidiano de pesquisa duas etapas primordiais do método de análise de suas
bases informativas:

15
15
UNIDADE O Desenvolvimento da Antropologia e das Ciências
Sociais no ocidente

·· Observar: definir as características do fenômeno pesquisado;


·· Classificar: situar no tempo e no espaço e determinar os aspectos essenciais
do fenômeno.

Na qualidade de Ciência Social e Humana, a Antropologia, em seus dois


campos de estudo – físico e social –, lança mão de métodos e técnicas de trabalho
para o tratamento e a análise dos dados coletados, muitas vezes utilizados
concomitantemente. Dentre esses métodos, destacamos os mais recorrentes:
·· Método histórico
Consiste na investigação de eventos do passado para compreender o
modo de vida do presente;
·· Método estatístico
Consiste, a partir dos dados coletados, em sua transposição para termos
quantitativos, exibidos em gráficos, tabelas e quadros explicativos.
Pode ser utilizado tanto no campo físico quanto social;
·· Método etnográfico
Consiste no levantamento de dados descritivos de comunidades ágrafas
ou rurais e de pequena escala; refere-se, primordialmente, a aspectos
culturais de formações sociais de tipo simples;
·· Método comparativo ou etnográfico
É amplamente utilizado tanto pela Antropologia Física como Cultural e
consiste na comparação de dados para a situação temporal e espacial
de determinado dado físico ou cultural;
·· Método monográfico ou estudo de caso
É um método de estudo aprofundado de determinado caso ou grupo
social sob todos os aspectos. Permite o estudo de instituições, processos
culturais e de todos os setores da cultura;
·· Método genealógico
Consiste no estudo da estrutura social por meio do sistema de
parentescos, de estrutura familiar e matrimonial, a partir da reconstituição
genealógica de determinado indivíduo ou grupo, situando-o dentro de
uma estrutura social;
·· Método funcionalista
Procura agrupar um aspecto funcional de determinada cultura estudada.

No aspecto físico, as técnicas de pesquisa da Antropologia são: mensuração


e datação. Já na Antropologia Cultural, o antropólogo desenvolve técnicas de
observação de campo: observação direta, entrevista e formulários.

Na técnica de observação direta, o pesquisador, valendo-se de todos os seus


sentidos, pode empreendê-la de forma:

16
· Sistemática: observada sistematicamente em determinado espaço de
tempo. Divide-se em:
· Direta – pessoalmente no local de investigação;
· Indireta – por meio de outras pessoas.
· Participante: o antropólogo deve permanecer no local de investigação o
tempo necessário para a compreensão total da cultura sob estudo. Deve
utilizar um diário de campo e valer-se de todos os meios de registro das
informações coletadas (fotografias, vídeos, etc.);

Na técnica de entrevista, há o contato direto entre o pesquisador e o entrevistado,


portador das informações que deverão ser coletadas para depois serem investigadas.

A entrevista pode ser:


· Dirigida: segue um roteiro pré-estabelecido;
· Não dirigida ou livre: não há um roteiro pré-estabelecido e o entrevistado
é levado a manifestar suas ideias espontaneamente.

O formulário é uma técnica de coleta de dados em que o pesquisado preenche


de próprio punho as informações pretendidas pelo pesquisador. Trata-se de um
instrumento muito mais dinâmico e que privilegia informações quantitativas, ou
cuja qualidade possa ser expressa ou assinalada de forma rápida, facilitando a
quantificação dos resultados.

O Conceito de Evolução Aplicado à


Antropologia
Em ciência, nada é definitivo. Aquilo que se pensa verdade hoje pode ser
desconstruído por uma teoria científica futura que imponha outra verdade, de
igual forma passível de desconstrução. Não que a ciência não produza saberes
exatos sobre os seus objetos de investigação, a questão é que nenhum desses
conhecimentos é absoluto.

O conceito de evolução, que já foi tomado como verdade absoluta até extremos
inimagináveis, também se insere nessa categoria. É largamente aplicado à
Antropologia e é produto do impacto da publicação das teses de Charles Darwin, em
especial, a da perpetuação dos mais aptos – amplamente difundida no séc. XIX e que
teve imensa influência nas ciências sociais durante todo o séc. XIX e início do XX.

A concepção darwinista de evolução nunca apregoou que o Homem fosse


descendente dos macacos (como é dito no senso comum); mas que os primatas
mamíferos (chipanzé, gorila, orangotango e o Homem) possuem o mesmo
descendente comum. Sendo assim, o Homem seria também um primata; mas
dentre os mencionados, o único que teria sofrido um processo de humanização.

17
17
UNIDADE O Desenvolvimento da Antropologia e das Ciências
Sociais no ocidente

Figura 5 – A Evolução do Homem


Fonte: Istock/Getty Images

Esse processo teria assistido às seguintes etapas evolutivas:

PITECANTROPOS ERECTO
(homem-macaco em pé) 6 milhões de anos
NEANDERTAL
CRO-MAGNON
HOMO SAPIENS SAPIENS
40 mil anos

Essas datações foram obtidas por meio de restos esqueletais localizados em sítios
arqueológicos e submetidos às técnicas de datação de fósseis por C14 (carbono
quatorze), cujo grau de confiabilidade oscila entre 5700 anos, e o processo de
datação com Argônio-Potássio, com precisão de até milhões de anos.

A Antropologia Rácica e seu Fracasso explicativo


A Antropologia possui uma dimensão teórica e uma dimensão prática, sendo
a teórica o estudo puro de todo o conhecimento passível à compreensão da
humanidade. No campo prático, é necessário para o antropólogo o conhecimento
das posições teóricas que fundamentam e orientam sua atuação na compreensão
de problemas.

Ocorre que, desde o século XIX, quando a Antropologia foi sistematizada como
ciência; até hoje, diferentes nortes teóricos deram a essa ciência formas distintas
de ver o Homem e de fazer a própria Antropologia.

O séc. XIX, com a difusão da teoria darwinista de perpetuação dos mais aptos
na evolução das espécies, emprestou da Biologia à Antropologia, do darwinismo
biológico para o darwinismo social, a falsa convicção de que o Homem estaria
dividido em raças, o que permitiria dizer que, qualificando-as, seria possível dizer
de raças superiores e inferiores e, pior, dotar a medicina de meios seletivos para ou
aniquilar aqueles entendidos como inferiores ou inviabilizar sua reprodução.

18
A Antropologia rácica está no contexto também do chamado darwinismo
social, que emprestou para regimes de terror como o nazismo, na primeira metade
do séc. XX, argumentos pseudocientíficos para os assassinatos em massa que
empreenderam de 1933 a 1945.

Estudiosos da questão, como a historiadora Anita Novinsky, identificam que


não há fronteiras rácicas entre os homens, senão geográficas e culturais; e que
valores, comportamentos e morais são socialmente construídos, não dados
hereditariamente. Há, portanto, uma só raça entre os homens: a raça humana.

Figura 6 – Anita Novinsky


Fonte: Jornal da USP (2015), Ano XXI nº 747, http://www.usp.br
Mas o ponto de inflexão dessa Antropologia rácica,
que nascia no contexto de validação científica da própria
Antropologia, foi a publicação da obra de Franz-Boas
e a difusão de sua nova teoria: a do relativismo; em
dois de seus textos fundamentais: A Mente do Homem
Primitivo, publicado em 1938, e Raça, Linguagem e
Cultura, de 1940.

Boas critica duramente a percepção da Antropologia


rácica de que diferenças culturais seriam determinadas
biologicamente e que seria possível escalonar culturas
entre mais evoluídas e menos evoluídas; entre melhores Figura 7 – Franz-Boas
Fonte: Wikimedia/Commons
e piores; entre belo e feio. Demonstrou que se trata
de sistemas culturais construídos socialmente, sem obedecer a critérios como
hereditariedade. Isso para dizer que irmãos gêmeos, separados quando bebês e
criados em culturas completamente distintas, incorporariam os valores, morais,
hábitos e costumes relativos aos grupos nos quais estivessem inseridos, jamais
adotariam um sistema cultural diverso por haver alguma programação biológica
para isso.

Mais do que isso, de Franz-Boas a Antropologia incorporou a ideia de relativis-


mo cultural.

19
19
UNIDADE O Desenvolvimento da Antropologia e das Ciências
Sociais no ocidente

Relativismo Cultural
A relatividade cultural ensina que o Ser Humano e sua cultura devem ser
estudados sob o aspecto de sua própria cultura; ou seja, que os padrões de bem e
de mal, moral e imoral, belo e feio, certo e errado, justo e injusto não devem ser
estudados sob o ponto de vista da cultura do antropólogo ou de qualquer outra
cultura dominante, mas sim do prisma daquela cultura que está sendo estudada.

Desses pressupostos resultam outros três:


·· Direito à autonomia tribal
Os seres humanos têm o direito de manter sua cultura preservada e
desenvolvê-la, sem influência nenhuma externa; mesmo se tratando de
sociedades tribais, rurais, isoladas ou ágrafas;
·· Valores culturais
Os valores de determinados grupos não devem ser julgados e modificados
por outra sociedade dominante sob a pena de agredir desmedidamente
a cultura dominada; devendo-se analisar os valores de determinada
cultura sob o ponto de vista dos integrantes dessa cultura;
·· Etnocentrismo
Segundo a Antropologia, não existem grupos ou culturas inferiores
ou superiores a outras, mesmo que algumas detenham mais recursos
tecnológicos e outras sejam consideradas primitivas, elas são
simplesmente diferentes. Seria um erro adotar uma postura etnocêntrica
e julgar uma cultura como superior ou inferior à outra.

20
Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Vídeos
Vídeo: História: História e Antropologia – Lilia Schwarcz
Trata-se de uma entrevista com a professora do Departamento de Antropologia da
USP Lilia Schwarcz, em que a autora expõe algumas ideias interessantes sobre as
fronteiras entre História e a Antropologia, apresentando ainda considerações sobre
Antropologia no Brasil:
https://youtu.be/r1HVy9XHxw0

Leitura
Resgate histórico das ideias que fomentaram os estudos de comunidade no País
OLIVEIRA, Nemuel da Silva; MAIO, Marcos Chor. Estudos de Comunidade e ciências
sociais no Brasil. Soc. estado., Brasília , v. 26, n. 3, p. 521-550, dez. 2011.
https://goo.gl/71c3XJ
Ótima resenha sobre o livro Antropologia Cultural, de autoria de Franz Boas
REIS, Nicole Isabel dos. Antropologia cultural. Horiz. antropol., Porto Alegre , v. 10,
n. 22, p. 355-357, dez. 2004.
https://goo.gl/ZYpg8f
O artigo trata de como as ideias rácicas ganharam repercussão no contexto da educação no Brasil
BOLSANELLO, Maria Augusta. Darwinismo social, eugenia e racismo “científico”:
sua repercussão na sociedade e na educação brasileira. Educ. rev., Curitiba, n. 12, p.
153-165, dez. 1996.
https://goo.gl/xrKLsN

21
21
UNIDADE O Desenvolvimento da Antropologia e das Ciências
Sociais no ocidente

Referências
BOAS, Franz. Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

BOLSANELLO, Maria Augusta. Darwinismo social, eugenia e racismo “científico”:


sua repercussão na sociedade e na educação brasileira. Educ. rev., Curitiba , n.
12, p. 153-165, dez. 1996. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0104-40601996000100014&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 06 Jan. 2017.

DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. São


Paulo: Perspectiva, 1981.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. 14. ed. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

22
Antropologia
Material Teórico
Questões de Antropologia Clássica

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Ms. Rodrigo Medina Zagni

Revisão Técnica:
Prof. Ms. Edson Alencar Silva

Revisão Textual:
Prof. Ms. Claudio Brites
Questões de Antropologia Clássica

• Introdução
• Retomando Conceitos
• Os primórdios da Antropologia Clássica
• Raça e Cultura ao Longo da História
• Os Precursores da Antropologia Moderna
• A Estruturação de uma Antropologia Moderna

OBJETIVO DE APRENDIZADO
··Tratar do tema “Questões de Antropologia Clássica”. Do desenvolvi-
mento de uma área de estudos debruçada sobre as dimensões física
e cultural da existência humana; seus primeiros preceitos teóricos
matizados sob as perspectivas evolucionistas de Charles Darwin, até
o rompimento com essas explicações de cunho rácico e etapista por
meio do relativismo, da pesquisa participante e do estruturalismo,
estudaremos as mais significativas transformações nos paradigmas
dessa nascente área de conhecimento científico.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo.

No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Introdução
É comum, ainda hoje, nos mais variados âmbitos de nossa vida social, nos
depararmos com situações em que um indivíduo se julgue portador de uma cultura
superior à de outro. Pode ser o caso de europeus em relação a latino-americanos,
de brasileiros em relação a outros povos da América Latina, de paulistas, cariocas
ou sulistas, em relação a migrantes de outros estados.

É comum ainda ouvir de quem domine um repertório cultural erudito, por


exemplo, o musical, que apenas a música erudita (popularmente chamada de
“música clássica”) é “música de verdade”, os demais estilos “não são música”, por
entendê-los como inferiores.

O mesmo pode se verificar nas artes: “Cinema norte-americano é que é bom!”;


enquanto nem se procura conhecer o cinema latino-americano, iraniano ou indiano,
por exemplo.

Até mesmo a História está suscetível a essa lógica, quando ouvimos, por
exemplo, que “O passado dos povos europeus é que é glorioso! Já o nosso, está
repleto de índios atrasados!”.

Todas essas situações, perceptíveis no nosso cotidiano, provêm do mesmo


fenômeno: o da convicção de superioridade de uma cultura, ou de um sistema cultural,
sobre outra cultura ou sobre outros sistemas. Ocorre que já sabemos que não existe
indivíduo sem cultura, tampouco culturas superiores ou inferiores, segundo nos
ensina a Antropologia, área de conhecimento cujo objeto primordial de estudo é o
Homem e suas obras, mais especificamente, sua subárea, a Antropologia Cultural.

Sendo assim, sistemas culturais são distintos uns dos outros, mas não deve-
mos hierarquizá-los.

Como a Antropologia lidou com a questão da cultura? Como compreendeu, em


termos teóricos, as diferenças culturais? Como propôs métodos de estudo sobre
processos culturais? Que lições podemos tirar da Antropologia para compreender
e lidar com as diferenças culturais? É exatamente o que pretendemos investigar
nesta unidade, por meio dos temas centrais da Antropologia Clássica e das teorias
do relativismo, da pesquisa participante e do estruturalismo.

Estamos tratando ainda dos primórdios da Antropologia e das Ciências


Sociais, mas já enveredando por seus temas centrais, o que nos permitirá melhor
compreender as dinâmicas culturais a que pertencemos e partilhamos, bem como
aquelas que nos cercam.

Em busca das respostas às perguntas aqui elaboradas, embrenhe-se pelo


conteúdo teórico, apresentação narrada e demais materiais dessa unidade, a fim de
entendermos mais sobre a dimensão cultural da condição humana.

8
Retomando Conceitos
Como vimos na primeira unidade, a Antropologia possui um objeto extrema-
mente complexo e denso, e que pode ser estudado desde os mais distintos pontos
de vista: o Ser Humano e suas obras; sendo assim, como ciência, pode-se dizer que
seus limites sejam pouco definidos.

Ocorre que dizer que a Antropologia é a “ciência do homem” não basta. Se assim
fosse, confundiríamos facilmente a Antropologia com a Medicina, a Psicologia, a
Biologia, a Sociologia, a Economia e tantas outras áreas de conhecimento que
focam o Homem a partir de um determinado âmbito de sua existência, individual
ou coletiva. Portanto, dizer que se trata da ciência cujo objeto é o indivíduo não
ajuda a definir esse campo de estudos.

Se recorrermos ao histórico de conformação dessa área, verificaremos que com a


especialização progressiva das ciências humanas, datada do séc. XIX, a Antropologia
se apropriava de questões que essas acabavam, não sendo consideradas por
essas disciplinas.

Dentre esses aspectos relegados pelas demais áreas de conhecimento, destacam-


se aqueles que levariam à cisão entre uma Antropologia Física e uma Antropologia
Cultural (ambas definidas na unidade anterior), respectivamente:
·· o estudo das raças humanas e suas características biológicas;
·· o estudo do homem do ponto de vista social e cultural.

Figura 1 – Tribo Karo, Etiópia, África


Fonte: iStock/Getty Images

Sobre essa segunda dimensão da Antropologia, na qual se insere a dimensão


social do existir humano, ou seja, sua organização em grupos e as dinâmicas de
convívio social que desenvolvem, poder-se-ia dizer que, aqui, esse objeto de interesse
se confunde gravemente com o da Sociologia, ciência cujo objeto são as interações
interindivíduos, conformando grupos sociais e como esses grupos interagem entre
si. Ocorre que a Sociologia se ocupa do estudo de sociedades que possamos chamar
de modernas, isso porque nelas se verificam um alto grau de alfabetização, são
densas demograficamente (podendo nelas se verificar o fenômeno do anonimato)

9
9
UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

e geograficamente extensas. Já a Antropologia estuda sociedades mais simples,


ágrafas e conformadas por poucos membros, estabelecendo laços sociais muito
mais estreitos. Contudo, essa regra se aplica exatamente àquilo que podemos
caracterizar como Antropologia Clássica, ou seja, sua configuração conforme seu
período formativo; isso porque, hoje, subáreas como a Antropologia Urbana, a
Antropologia do Cotidiano e a Etnografia Urbana se ocupam exatamente de tipos
de sociedade complexas, agravando a distinção (por conta de sua abordagem e
métodos) com relação aos enfoques dados pela Sociologia.

Os primórdios da Antropologia Clássica


Como vimos, durante o séc. XIX, houve um relevante desenvolvimento científico,
produto da elaboração dos métodos de investigação dos séculos XVI ao XVIII.

Figura 2
Fonte: iStock/Getty Images

Decorreu daí o desenvolvimento, nas ciências da natureza (como a Química,


primordialmente), de métodos para datação de materiais orgânicos – dentre eles,
restos esqueletais –, o que possibilitava determinar a antiguidade do próprio ser
humano. O desenvolvimento desses métodos e técnicas para datação resultou em
um enorme esforço para determinar a antiguidade dos inúmeros restos humanos
que se encontravam guardados em museus, universidades e centros de pesquisa,
produto de descobertas arqueológicas por vezes muito anteriores a esse século
XIX. Esse esforço resultou no desenvolvimento de uma nova ciência, dedicada
exatamente a esses estudos e que passava a assumir como objetivo a determinação
não só da antiguidade do Homem, mas dos processos de evolução biológica e
social de nossos antepassados: a Antropologia.

A primeira cisão entre estudos de ordem física e de ordem cultural, dentro da


Antropologia, se deu exatamente nesse momento. Isso porque antropólogos já se
definiam como aqueles que estudavam sociedades distintas das europeias – como
grupamentos humanos autóctones ou sociedades primitivas, por exemplo – e um
novo grupo de cientistas surgia, autodenominando-se também como antropólogos,
mas voltados à investigação sobre aspectos rácicos, biológicos e evolutivos
do Homem.

10
É importante salientar que, se não houve acordo quanto ao emprego do termo
antropólogo, tampouco houve em relação ao termo Antropologia. Apesar de nossa
conceituação ser bem clara, as distinções entre Antropologia Física e Antropologia
Social e Cultural, filiados a uma interpretação vigente nos Estados Unidos e na
Inglaterra, não ocorrem na escola francesa, que utiliza o termo Antropologia para
se referir ao que conhecemos como Antropologia Física, enquanto não utiliza o
termo Antropologia Social e Cultural, substituindo-o por etnologia – ao contrário
do que fazem os autores anglo-saxões.

Essa notável imprecisão terminológica se explica pelo fato de a Antropologia


ter progredido em círculos científicos e países muito distintos, resultando em um
relativo grau de autonomia entre as correntes que desde distintos pontos de vista
enveredaram por esse complexo campo de estudos.

Raça e Cultura ao Longo da História


Nas grandes religiões que atravessaram a História se verifica um princípio
comum: o de que os homens são iguais; contudo, se explorarmos as dinâmicas
sociais das mais distintas civilizações, encontramos a prática da discriminação racial,
o que pressupõe convicções de superioridade e atribuição ao outro à condição
de inferioridade.

Figura 3
Fonte: iStock/Getty Images

As civilizações clássicas – Grécia e Roma – praticaram o escravismo com base


fundamentalmente nesse princípio. Ainda que tenha se iniciado com a prática da
escravidão por dívida, quando se tornou o eixo central da economia antiga, o
escravo já era, invariavelmente, aquele que de fora dos limites dos domínios dessas
civilizações havia sido apresado; mais do que isso, por não pertencer à civilização
greco-romana, não seria merecedor da categoria de humano.

11
11
UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Figura 4 – Bárbaros invadindo Paris


Fonte: Wikimedia/Commons

No contexto da civilização romana, da qual herdamos uma série de caracteres,


isso valia para todos que estavam de fora de suas fronteiras, caracterizados como
bárbaros. Evidentemente, a barbárie se define pela contraposição ao conceito de
civilização; sendo assim, o termo é claramente pejorativo e expressa juízos de valor
assentados na convicção de superioridade cultural, traço característico dos povos
da antiguidade clássica.

Não estamos tratando, contudo, de condutas racistas; uma vez que a civilização
romana se constituiu de um mosaico de povos distintos, aprofundando-se as
dinâmicas de miscigenação já assistidas por séculos. Trata-se, em essência, de
uma distinção cultural, que permitia, por exemplo, submeter e dominar o outro,
entendido como bárbaro, em nome de uma cultura superior, signo de civilização.

Mesmo com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, a mesma lógica


atravessou os quase mil anos de Idade Média na Europa, sob domínio da cristandade.
Isso para dizer que as convicções religiosas medievais, sob o cristianismo, também
assumiram um caráter opressor não só sobre outros credos religiosos (como o
judaísmo e o islamismo, por exemplo), mas fundamentalmente compunham um
repertório cultural que se autorreferia como superior, frente a outras culturas que,
não mais nominadas bárbaras, eram referidas como pagãs (não-cristãs), sendo
assim inferiores, o que legitimava sua submissão ou conversão pela força.

12
Figura 5 – A Primeira Missa no Brasil, por Victor Meireles (1861)
Fonte: Wikimedia/Commons

Na Era Moderna, inaugurada com a queda do Império Romano do Oriente


(quando Constantinopla cai sob domínio turco), em 1453, assistiu-se à mesma
lógica, obviamente readequada para um novo contexto histórico. A partir do
Renascimento, a expansão europeia para a Ásia e África, bem como a conquista e
dominação do Novo Mundo, estava carregada desse sentimento de superioridade
civilizacional, dessa vez associada ao Homem europeu, ou seja, ao Homem branco.
É aí, nesse momento, que a questão da superioridade cultural, ou civilizacional,
passa a ser associada à cor da pele.

Isso dado exatamente no contexto da expansão europeia por meio das


navegações, se explica também pelo fato de o contato com povos até então
desconhecidos possibilitar saber da existência de distintas etnias, hábitos culturais,
religiões e constituições biotípicas. Não se trata apenas do contato com o outro:
a Europa passava a dominar esses novos e antigos territórios, bem como seus
habitantes passavam a ser submetidos ao Homem europeu.

O contato, portanto, não despertou no europeu a vontade de incorporar o


outro, aquele que aos seus olhos parecia estranho, senão tornou o estranhamento
o princípio maior da violência da conquista, aliado às ambições econômicas e
políticas inerentes aos processos colonizadores.

13
13
UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Figura 6 – Peregrinos partindo da Europa


Fonte: iStock/Getty Images

Povos inteiros pereceram sob as convicções de superioridade europeia. Estima-


se que 70 milhões de índios na América tenham morrido, direta ou indiretamente,
pelo contato com os colonizadores espanhóis e portugueses. Africanos foram
apresados em seu próprio continente e trazidos como escravos para a América,
relegando-se toda a sua constituição cultural.

A questão é que não se tratava de uma opção


por não compreender a cultura de índios, negros
e orientais, senão a convicção de que se tratava de
povos não portadores de cultura, ou portadores de
culturas inferiores.

Ainda que o cristianismo, praticado nos


principais países colonizadores do período, ter
defendido em termos teológicos a igualdade entre
os homens; o histórico de violências da Igreja
em relação a povos não-cristãos, bem como as
necessidades de manutenção dos alicerces de
uma sociedade construída sobre bases escravistas,
reafirmava a bestialização dos povos não-europeus,
afirmando o princípio das raças.
Figura 07 – Escravidão
Fonte: iStock/Getty Images

14
Os Precursores da Antropologia Moderna
Com o movimento chamado “Humanismo”,
no contexto do Renascimento, esse caráter
civilizador europeu passou a ser alvo de críticas
na própria Europa. Autores como Thomas
More, La Boètie, Montaigne e Erasmo de
Rotterdam, entre outros, fizeram pesados
ataques à moral europeia e suas convicções de
superioridade em relação aos povos dominados
pelo Homem branco.
Sua crítica expressa nas duas gerações do
humanismo do Renascimento, dos séculos
XVI e XVII, serviu de fundamento para o
desenvolvimento posterior do movimento Figura 8 – Michel de Montaigne
iluminista, que caracterizou o chamado Século Fonte: Wikimedia/Commons
das Luzes: o séc. XVIII.
Pensadores europeus, primordialmente franceses, subverteram a interpretação
valorativa dada aos “selvagens” como povos não-portadores de cultura, exaltando
o exótico, que seguia incompreendido, uma vez que foi criado para eles o mito do
“bom selvagem”.
A questão é que, do séc. XVI ao XVIII, a crítica à cultura europeia se deu por
meio de sua relativização com as culturas dominadas –ainda que as exaltando –,
marcou-se um relevante esforço primeiro para o reconhecimento de que se tratava
de povos portadores de cultura, seguindo para o fato de que não se tratava de
culturas inferiores.
Ainda assim, tratava-se de uma visão “de fora” e que acabava, na prática,
reafirmando a cultura europeia, uma vez que sua pretensão não era compreender
o outro, senão reformar a civilização ocidental.

O darwinismo
Vimos na unidade anterior que, na segunda metade do
século XIX, as teses de Charles Darwin sobre a evolução das
espécies influenciaram enormemente as ciências biológicas.

Esse século posterior às luzes, o século do cientificismo,


foi marcado então pela visão evolucionista. Se pensarmos
nas duas antropologias que estavam em prática nesse
contexto (física e cultural), o evolucionismo lançava novas
luzes a ambas. Isso porque restos arqueológicos, fossem
restos humanos ou artefatos desenvolvidos e utilizados
Figura 9 – Charles Darwin por humanos, além de datados, poderiam ser classificados
Fonte: iStock/Getty Images
segundo seu percurso evolutivo.

15
15
UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Com relação à Antropologia Física, muitos dos restos esqueletais não


correspondiam em alguns detalhes morfológicos às características do homem
atual. Darwin era o primeiro a dar uma explicação consistente, a partir da tese
da perpetuação dos mais aptos, a esse estranho fenômeno – ou seja, as diversas
configurações anatômicas diferentes do ser humano atual, verificadas em ossadas
humanas, validavam a tese de que também o Ser humano evoluía.

Era possível, então, ordenar logicamente as etapas que constituíam a linearidade evo-
lutiva humana, bem como criar tipologias para os artefatos arqueológicos escavados.

Figura 10 – Representação da Evolução Humana


Fonte: iStock/Getty Images

A Estruturação de uma Antropologia Moderna


Temos, então, a figura do antropólogo atrelada às pesquisas sobre a antiguidade
e o percurso evolutivo do Homem; sendo assim, o antropólogo em questão é,
essencialmente, um pesquisador de gabinete, ou seja, trabalha com os dados e
elementos coletados por outros pesquisadores em suas atividades de campo.

Até mesmo os antropólogos que se dedicavam aos estudos culturais se


caracterizavam também como intelectuais de gabinete, uma vez que lidavam
com dados obtidos por cronistas viajantes, navegantes, missionários religiosos
e exploradores mercenários. Sendo assim, o despreparo teórico daqueles que
descreviam a cultura até então desconhecida, era marcada por posturas eurocêntricas
e tendiam a sublinhar os caracteres culturais mais exóticos, ou seja, aqueles que
maiores estranhamentos causavam sobre o europeu, ainda portador de convicções
de superioridade cultural.

O resultado disso foi uma primeira Antropologia caracterizada pela excessiva


teorização e distante demais da realidade.
No que tange aos aspectos culturais, sob a influência do darwinismo que
impregnava sua dimensão física, a Antropologia do século XIX entendia as sociedades
primitivas como se estivessem em uma etapa infantil, em relação às sociedades
adultas: os povos civilizados europeus. Essa convicção alocava as sociedades
europeias como o fim máximo de um processo civilizador e cujo resultado seria
inexorável: todas as sociedades evoluiriam segundo o modelo europeu de cultura.

16
Esse tipo de convicção, profundamente ideológica e preconceituosa, só mudaria
com o advento do trabalho antropológico de campo, instituído como prática no
final do século XIX.

Esse novo antropólogo não deveria restringir-se ao gabinete, isso porque não
deveria trabalhar com materiais e dados coletados ou descritos por amadores,
sob pena de comprometer gravemente a própria pesquisa. O antropólogo seria
convertido no pesquisador que se deslocaria fisicamente até a sociedade a ser
investigada. Trata-se das pesquisas de campo, nas quais o próprio antropólogo
observa e coleta os dados que deverá analisar.

É no final desse século que o antropólogo se torna o investigador cuja tarefa


é se deslocar aos lugares mais distantes do mundo, aprendendo a conviver com
pequenas comunidades, observando-as e coletando informações com o rigor
metodológico que também vai se estabelecendo em torno dessas novas tarefas.

As mudanças, para a Antropologia, foram extremamente significativas. O


contato mais íntimo com povos que até então eram compreendidos como simples
e inferiores, revelou práticas sociais e dinâmicas de organização extremamente
complexas e impôs uma possibilidade interpretativa: não se tratariam de povos
inferiores, mas sim distintos.

Essa primeira e mais importante barreira ideológica só foi rompida, sobretudo,


pela observação antropológica empírica.

Essas mudanças não se operaram imediatamente, tampouco em ambiente


harmonioso. Nesse final de século, o contato dos antropólogos ocidentais
com outros povos foi marcado por atitudes de superioridade – tanto é que na
literatura antropológica do período são comuns termos como “povos primitivos” e
“selvagens”, para referi-los.

Os Fundamentos Teóricos de Franz-Boas


Como foi citado na Unidade anterior, o trabalho pioneiro do antropólogo teuto-
americano Franz Boas e seus discípulos consiste no mais importante ponto de
inflexão nos estudos antropológicos, no que tange ao declínio da Antropologia
Rácica (tratada na unidade anterior e nesta), uma vez que sua proposta relativista
desmontava a ideia de proximidade entre evolução biológica e cultural.

No livro As Limitações do Método Comparativo em Antropologia, de


1896, Boas demonstrou como os primeiros antropólogos estavam preocupados
com questões puramente históricas e, enveredando por análises comparativas e
valorativas, identificavam semelhanças e afinidades dos povos como indicadores de
uma origem comum.

Seu pioneirismo consiste na construção teórica que assentou métodos


radicalmente distintos daqueles engendrados nos modos de conceber e estudar as
culturas humanas, propondo relativizá-las, ao invés de escaloná-las hierarquicamente.

17
17
UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Não que estudos comparativos não pudessem ser feitos entre distintas culturas,
ou mesmo que não se pudesse identificar uma origem comum para ambas; na
verdade, o que Boas propunha era um processo indutivo que identificasse as
relações que possibilitariam a comparação, para o então estabelecimento das
conexões históricas pertinentes.

Para Boas, o mesmo fenômeno tem sentidos variados em cada cultura – sendo
assim, o fato de ocorrências semelhantes serem identificadas em distintas culturas
não constitui prova de uma origem comum.

Consequentemente, não havendo uma única origem cultural, não se pode falar
em cultura, senão em culturas. Ou seja, cada cultura tem sua própria história, não
uma cultura humana universal e originária (como pressupunham os evolucionistas).

Sendo então autônomas, todas as culturas seriam também dinâmicas em suas


transformações ao longo do tempo.

Nesse contexto, suas críticas pesavam mais gravemente sobre os determinismos


biológicos e geográficos, bem como no transporte de categorias explicativas
evolucionistas para o tratamento das relações culturais, o que havia levado ao
fenômeno do evolucionismo cultural.

Contrário a essa explicação evolucionista para a diferenciação das culturas, Boas


demonstrou que cada sistema cultural constituía uma unidade integrada, resultado
de um desenvolvimento histórico específico.

Com isso, determinou a independência dos fenômenos culturais em relação


aos condicionantes geográficos e biológicos – vigentes como explicação desde o
período formativo da Antropologia. As dinâmicas culturais estariam desatreladas
desses elementos, obedecendo apenas à lógica da interação entre os indivíduos, o
meio e a sociedade.

A concepção evolucionista aplicada à cultura – responsável pelo assentamento


de uma visão de etapas linear, na forma de estágios evolutivos e obrigatórios pelos
quais, obrigatoriamente, todas as sociedades passariam – assistia ao surgimento de
sua mais severa e consistente crítica.

Essa nova postura teórica deslocou completamente os sentidos gerais da


Antropologia, desde seus objetos, objetivos, até o ofício do antropólogo, que
passava a ser o estudo de sistemas culturais particulares, não da identificação de
uma cultura universal.

Com relação ao método, o princípio fundamental é o da relativização, ou seja,


culturas são relativas e não mantêm relação hierárquica alguma no âmbito dos
valores que possam ser-lhes atribuídas. O papel do antropólogo seria, portanto, o
de não emitir juízos de valor, mas o de relativizar suas posturas.

18
Os Fundamentos Teóricos de Bronisław Malinowski
O antropólogo polaco Bronisław Kasper Malinowski,
criador da chamada escola funcionalista, é considerado
um dos fundadores da própria Antropologia Social.

Sua maior contribuição se deu sobre a questão dos


métodos utilizados na coleta de material etnográfico e
constam do capítulo de abertura dos Argonautas do
pacífico ocidental, livro originalmente publicado em
1922. Até ali, os métodos existentes levavam a maior
parte dos antropólogos a concluir pela incoerência da
vida primitiva, comparada à ideia de civilização.

Figura 11 – Bronisław Para Malinowski, essa interpretação nada mais era


Kasper Malinowski do que um produto distorcido da falha de observação do
Fonte: Wikimedia/Commons antropólogo, que deslocava seus sentidos e significados
para ações que não correspondiam ao seu sistema cultural. Assim sendo, a tarefa
primordial consistiria em reconstruir o universo específico de significações da
cultura estudada.

Mas como os antropólogos, via de regra, europeus e portadores de um sistema


cultural completamente distinto, fariam para compreender esses significados?

As pesquisas de Malinowski nas Ilhas Trobiands, onde estudou uma população


de 1200 melanésios da costa nordeste da Nova Guiné, durante a década de 1910,
levaram ao desenvolvimento de um método inovador na forma de coletar dados
de campo, no qual o pesquisador passava a participar diretamente do cotidiano
social do grupo observado. Tratava-se da observação etnográfica, na qual a coleta
de dados seria realizada por aquele que passaria a vivenciar as práticas e partilhar
dos significados a elas atribuídos, permitindo correlacioná-los e compreendê-los
em profundidade.

Dessa forma, não importaria ao antropólogo apenas a ação engendrada pelo


povo estudado, mas essencialmente a representação da ação, para que se pudesse
tratar dos significados que constituiriam os fenômenos culturais sob enfoque.

Obviamente, o desafio do antropólogo seria muito maior do que meramente


descritivo e valorativo, tendo em vista que ações são, no mais das vezes,
multirrepresentacionais, ou seja, podem estar repletas de significados materiais,
sociais e simbólicos, englobando os mais variados aspectos, como: econômicos,
jurídicos, mágico-religiosos, etc.

Contudo, trata-se de um autor ainda preso à ideia de universalidade cultural,


apesar de reconhecer as particularidades das culturas, uma vez que a todo tempo
buscava as relações entre o particular e o universal, perdendo com isso a possibilidade
de explicar questões como a da diversidade cultural.

19
19
UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Ocorre que seus pressupostos teórico-metodológicos tiveram lugar paradigmá-


tico na Antropologia, deslocando irreversivelmente tanto os referenciais teóricos
quanto os objetivos gerais da disciplina, sendo hoje uma referência obrigatória
sobre o modo padrão da pesquisa etnográfica.

O trabalho de campo, depois de Malinowski, passou a se constituir mediante


a observação participante, em grupos sociais de dimensões reduzidas e distintos
daquele ao qual pertenceria o investigador. Esses pressupostos passaram a constituir,
desde então, com os pilares da nascente Antropologia Social e Cultural, marcando
a dimensão da importância do autor para as Ciências Humanas e Sociais; isso
porque o trabalho de campo, segundo definido por Malinowski, passou a constituir
o método privilegiado da Antropologia, influindo determinantemente na sua
constituição como disciplina científica autônoma.

Os Fundamentos Teóricos de Claude Levi-Strauss


O pensador francês Claude Levi-Strauss é o fundador da chamada Antropologia
Estrutural, corrente que se conformou a partir de seus estudos sobre povos indígenas
do Brasil, no período em que aqui permaneceu integrando à missão francesa
que teve como objetivo estruturar a área de Ciências Humanas da recém-criada
Universidade de São Paulo, no período que se estendeu de 1935 a 1939. Durante
esses quatro anos, estudando aspectos sobre a língua, costumes e lendas de povos
indígenas, coletou os dados que permitiriam criar uma nova teoria antropológica,
elaborada e apresentada entre o final da década de 1940 e início de 1950.

Figura 12 – Claude Levi-Strauss


Fonte: Wikimedia/Commons

O percurso que desenvolveu no curto período em que esteve no Brasil revela as


profundas mudanças que vinha sofrendo a própria Antropologia. Desde que chegou,
em 1935, passou a dar aulas de Sociologia na USP até 1938, já empreendendo
suas primeiras incursões de campo em território indígena. Contudo, a necessidade
de empreender pesquisas de campo mais demoradas levou-o a abandonar o
magistério, o que o possibilitou a passar mais tempo nas comunidades indígenas que
estudava: os Kaingang, no Norte do Paraná (na região do rio Tibagi); os Kadiweu,
na divisa com o Paraguai; e os Bororo, do Mato Grosso. Em 1938, retornou da
França, onde havia prestado exames para o magistério, e pôs-se a estudar os
índios Nambiqwara, do Mato Grosso, bem como os Tupi-Kaguahib, na região do
rio Machado, que se pensavam desaparecidos.

20
Os pressupostos da nova corrente teórica foram publicados em duas de suas
principais obras: As Estruturas Elementares do Parentesco, de 1949, e Tristes
Trópicos, de 1955, que o notabilizam mundialmente.

Lévi-Strauss fez uso da chamada teoria estruturalista francesa, a qual pressupu-


nha que “estruturas universais” estariam por trás de todas as ações humanas, dando
forma às culturas em suas mais variadas manifestações: linguagem, mitos, religiões,
etc. Ele foi responsável por uma “revolução intelectual considerável” e que consis-
tia na aplicação do método estruturalista ao conjunto dos fatos humanos de natu-
reza simbólica. Isso possibilitou ao antropólogo estudar o “pensamento selvagem”,
e não o “pensamento do selvagem”. Não se trata de uma mudança insignificante,
senão na subversão completa do enfoque das pesquisas antropológicas realizadas
até ali. Ou seja, Lévi-Strauss deixou de fazer a distinção do funcionamento mental
entre os povos primitivos e os povos europeus, para afirmar que o “pensamento
selvagem” poderia ser encontrado em cada um de nós.

Distinguiu-se gravemente dos demais antropólogos que buscavam revelar as


diferenças entre povos e culturas, na maioria das vezes valorativas; enquanto
buscava as estruturas universais, também chamadas de “estruturas profundas”.

Sem se preocupar com as diferenças, os estudos de Lévi-Strauss colaboraram


com a relativização entre povos e culturas, estreitando seus laços pela via da
aceitação do diverso, exatamente porque, para ele, as diferenças entre os povos
não constituíam o objeto central de interesse antropológico.

Para o antropólogo, a maior parte dos antropólogos estava preocupado com o


que nominou de “aparência”. Obviamente, utilizou-se de um dos fundamentos do
Estruturalismo para fazer essa afirmação, exatamente a oposição entre essência
e aparência. Suas pesquisas estavam dirigidas aos sentidos profundos das ações
humanas e de seus produtos, na busca pela essência, encontrando-se com a
psicologia, a lógica e a filosofia das sociedades estudadas – a mera descrição das
práticas rituais de uma determinada sociedade, a aparência, não lhe interessava.

Essa nova e revolucionária abordagem encontrou contornos teóricos acabados


na obra O Pensamento Selvagem, de 1962. Sobre o impacto que representou,
para além da Antropologia, implicava em como tratar o até então denominado
“homem primitivo”. Seu método estruturalista permitia compreender que socieda-
des tribais revelavam sistemas lógicos notáveis, de qualidades mentais racionais tão
sofisticadas quanto às de sociedades até então tidas como superiores.

Sua teoria desmontava as convicções comumente aceitas de que as sociedades


primitivas seriam intelectualmente deficitárias e temperamentalmente irracionais, e
que suas ações e obras, que constituíam seus pobres repertórios culturais, tinham
por finalidade a satisfação de necessidades imediatas – como as de alimento,
vestimenta e abrigo.

Sob esses novos pressupostos teóricos, a visão pejorativa sobre as tribos


primitivas estava fadada a desaparecer.

21
21
UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Sites
Site da Associação Brasileira de Antropologia
http://www.abant.org.br/
Site da Revista de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo
https://goo.gl/IbqThi
Site da Revista Campos – Revista de Antropologia Social da Universidade Federal
do Paraná
https://goo.gl/nmBo6A

Filmes
10.000 a.C.
10.000 a.C.; dir.: Roland Emmerich, EUA, drama, colorido, 2008.
A Guerra do Fogo
A Guerra do Fogo; dir.: Jean-Jacques Annaud, EUA / França / Canadá, drama,
colorido, 1981.
2001: Odisseia no Espaço
2001: Odisseia no Espaço; dir.: Stanley Kubrick, EUA, ficção científica, colorido,
1968.

Leitura
Por uma semântica profunda: arte, cultura e história no pensamento de Franz Boas
ALMEIDA, K.M. P. Por uma semântica profunda: arte, cultura e história no pensamento
de Franz Boas. Mana, vol. 4, n. 2, Rio de Janeiro, out. 1998
https://goo.gl/qHexdk
Imigração, raça e cultura: o ensinamento de Franz Boas
PALTRINIERI, A. C. Imigração, raça e cultura: o ensinamento de Franz Boas. Revista
Outros Tempos, UFMA, São Luís, v. 6, n. 7, jul. 2009.
https://goo.gl/sRsMqK
Para além do “trabalho de campo”: reflexões supostamente malinowskianas
GIUMBELLI, E. Para além do “trabalho de campo”: reflexões supostamente
malinowskianas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 48,
fev. 2002.
https://goo.gl/eqPhPr
Claude Levi-Strauss e a experiência sensível da Antropologia
WERNECK, M. M. F. Claude Levi-Strauss e a experiência sensível da Antropologia.
Cronos, UFRN, Natal, v. 9, n. 2, dez. 2008
https://goo.gl/PXU0o0

22
Referências
BENEDICT, Ruth. 1934. Padrões de cultura. Lisboa: Livros do Brasil, s.d.

BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

CHILDE, V. Gordon. A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1966.

ELIOT, T.S. Notas para a definição de Cultura. Lisboa: Século XXI, 1996.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. Coleção Os


Pensadores. São Paulo: Abril, 1977.

MARGARIDA MARIA MOURA. Nascimento da Antropologia Cultural: A Obra


de Franz Boas. São Paulo: Hucitec, 2004.

MELLO, L. G. Antropologia Cultural: Iniciação, Teoria e Temas. Petrópolis:


Vozes, 2004.

23
23
Antropologia
Material Teórico
Natureza e Dinâmica das Culturas

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Rodrigo Medina Zagni

Revisão Textual:
Prof. Ms. Claudio Brites

Revisão Técnica:
Prof. Ms. Edson Alencar Silva
Natureza e Dinâmica das Culturas

• Introdução
• A cultura como Ação Transformadora do Meio e do Homem
• O Problema da Cultura
• O Conceito Antropológico de Cultura
• Etnocentrismo e suas Consequências: Apatia
• As Mudanças Culturais
• Endoculturação
• Contracultura e Subcultura
• Aculturação
• Sincretismo

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Nesta unidade, trataremos do tema “natureza e dinâmica das
culturas”. Para conhecer o conteúdo desta unidade, leia atentamente
o conteúdo teórico, qualquer dúvida entre em contato com seu
professor tutor.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo.

No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

Introdução
Quando, em alguma situação do nosso cotidiano, dizemos que determinado
indivíduo “não tem cultura”, por não dominar um determinado conhecimento ou
não demonstrar aquilo que entendemos como “boas maneiras”, estamos fazendo
uma afirmação correta ou equivocada?

Existe indivíduo sem cultura? Culturas podem ser superiores ou inferiores?

Ocorre que todo Ser Humano é portador de cultura, ainda que repertórios
culturais sejam completamente distintos uns dos outros.

Mas só o Ser Humano é portador e produtor de cultura, os animais não.

Nesta unidade, conheceremos a natureza da cultura, seus processos formadores


e reprodutores, bem como questões como relativismo e diversidade cultural, o que
nos servirá de base para compreender diferenças culturais que estão em nosso
cotidiano e nos vários grupos e instituições sociais com os quais interagimos.

Em busca das respostas às perguntas aqui elaboradas, embrenhe-se pelo


conteúdo teórico, apresentação narrada e demais materiais desta unidade, a fim de
entender mais sobre a dimensão cultural da condição humana.

A cultura como Ação Transformadora do


Meio e do Homem
Uma forma de se compreender a constituição cultural
das sociedades é a partir da sua função transformadora
do meio ambiente, do meio social e do próprio Homem.

Já nos dissera o historiador e filósofo alemão Oswald


Arnold Gottfried Spengler (1880-1936), que o Homem
não é tal qual aquele das pinturas chinesas, ou seja,
solto no espaço, como se estivesse caindo no nada: o
Homem existe no meio geográfico. Mais do que isso,
ele retira desse meio o necessário à sua sobrevivência.
Pensemos então a dimensão cultural humana a partir
das relações entre indivíduo e meio-ambiente.
Figura 1 – Oswald Spengler
Fonte: Wikimedia/Commons O Homem, que é dotado de necessidades materiais,
literalmente obedecendo a programações biológicas (comer, evacuar, beber, dormir,
procriar, etc.), realiza-as essencialmente no meio-ambiente.

8
Pensemos no Ser Humano que atende às suas necessidades de sobrevivência no
meio-ambiente, mas sem interferir nele. A caça e a coleta, por exemplo, foram as
atividades econômicas da maior parte do tempo de vida humana sobre a Terra, e
nela o Homem apenas retirava do meio aquilo que necessitava, sem interferir nele
– ao menos gravemente.

Ocorre que o economista britânico Thomas Malthus


(1766-1834) identificou que haveria um descompasso
nessa relação. As necessidades humanas seriam
maiores, em relação àquilo que o meio ambiente pode
ofertar naturalmente. Malthus demonstrou que as
necessidades humanas seriam então maiores do que
aquilo que o meio ambiente poderia prover, sem que o
Homem interferisse nele.

Desse descompasso resultaria um grave problema


à sobrevivência humana, que depende vitalmente de
alimento e água. Já dissera o filósofo grego Platão, no Figura 2 – Thomas Malthus
séc. IV a.C., que “a necessidade é a mãe de todas as Fonte: Wikimedia/Commons
invenções” e, portanto, para esse problema de sobrevivência a solução encontrada
pelo Homem foi interferir no meio-ambiente.

Figura 3 – Platão de Atenas


Fonte: iStock/Getty Images

A primeira forma encontrada pelo Homem para empreender essa ação


transformadora do meio foi a agricultura. Aliando um bastão de madeira, extraído
da natureza, conjugando-o a uma lasca de pedra polida com o uso de uma amarra
feita com tripas secas de um animal abatido, o Homem desenvolveu a enxada. Com
o uso adequado desse instrumento, o Homem passou a arar a terra e prepará-la
para o plantio de sementes que, por meio da observação, percebeu que poderia
germinar e dar frutos. Irrigando periodicamente o terreno plantado, foi possível
obter mais alimentos e solucionar o problema do descompasso identificado por
Malthus, possibilitando a sobrevivência.

9
9
UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

Ocorre que, para que isso ocorresse, foi preciso o de-


senvolvimento de materiais e técnicas: o desenvolvimen-
to dos materiais necessários à atividade do plantio, bem
como das técnicas adequadas para sua utilização. Os ma-
teriais constituem, segundo o filósofo alemão Karl Marx
(1818-1883), os “meios de produção da vida social”, jun-
to do mais importante meio: a terra; as formas ou as técni-
cas para utilizá-los consistem na tecnologia desenvolvida,
ambos, para o trabalho. Segundo a definição marxista, o
Figura 4 – Karl Marx trabalho é a ação transformadora do meio ambiente, que
Fonte: Wikimedia/Commons tem a finalidade de garantir a sobrevivência humana.

Contudo, todas essas relações acabam determinando um outro aspecto da vida


social: a cultura. O desenvolvimento da agricultura, que aqui mencionamos, implica
num desenvolvimento cultural, nesse caso, da “cultura da enxada”. Não é por acaso
que o termo “cultura” foi utilizado pela primeira vez para se referir a atividades
econômicas na lavoura, isso porque, ainda segundo Marx, por meio do trabalho, o
Homem altera não só o meio ambiente, mas a si mesmo.

E como isso ocorre?

Não dissemos, citando Spengler, que o Homem não existe solto no espaço,
que ele existe no meio geográfico? Sendo assim, sua identidade social se constrói
na interação do indivíduo com o seu entorno, com o meio físico, e como
esse entorno foi modificado pelo próprio Homem. Nesse sentido, o Homem
alterou a si mesmo; por conseguinte, alterou suas necessidades; e, sendo novas
necessidades, a mesma forma de trabalho não pode mais dar conta delas, são
necessárias novas ações transformadoras para atender a esse novo Homem e
suas novas necessidades. Por sua vez, o meio é mais uma vez alterado, criando
um novo Homem, portador de novas necessidades, novas formas de trabalho e,
essencialmente, novos sistemas culturais.

É por isso que não existem sociedades estacionadas, todas estão fadadas à
transformação.

Mas, isso dito, parece que estamos então contradizendo Malthus, citado no início
da análise do quadro em questão. Isso porque, tendo alterado o meio ambiente, o
Homem teria resolvido o descompasso entre suas necessidades e aquilo que o meio
ambiente poderia lhe oferecer, isso porque suas necessidades não mais seriam
maiores em relação ao que o meio poderia, transformado, fornecer. Sendo assim,
por que então as sociedades mudam, se o problema do descompasso teria deixado
de existir?

Mudam e mudarão constantemente, isso porque esse autor demonstrou que


o descompasso mencionado nunca deixaria de existir. Para defender a essa
tese, Malthus apresenta que os homens crescem em progressão geométrica
(multiplicando-se entre si), enquanto os meios de subsistência cresceriam em
progressão aritmética (por somatória, não por multiplicação).

10
Sendo assim, um novo meio (alterado pela ação humana), traria novos problemas
à existência humana, que demandariam sempre novos tipos de soluções, novas
ações transformadoras, e novos sistemas culturais, que vão se formando daí.
Por que sistemas culturais teriam então, segundo a visão marxista, uma
determinação decorrente das relações de produção?
Ora, para Marx, a infraestrutura econômica das sociedades, ou seja, sua base
econômica, determinaria a superestrutura política e ideológica, sendo a cultura a
somatória dessas relações, pois se inscreve no modus vivendi das sociedades.

Figura 5
Fonte: iStock/Getty Images

A infraestrutura seria o modo de produção da vida social, ou como aquela


sociedade produz o suficiente à sua existência material, produzindo os sentidos,
significados, valores, morais e identidade que mencionamos no início deste texto.
O modo de produção da vida social seria determinado pelo modo de produção de
bens de consumo, composto por sua vez pelos meios de produção (instrumentos,
terra – incluindo seu regime de propriedade –, etc.), força de trabalho (se é
assalariada, escrava, servil, voluntária, etc.), tecnologia (forma com que a força
de trabalho opera os meios de produção), determinando os aspectos políticos,
ideológicos e culturais dessa sociedade.
Nessa perspectiva, o trabalho é a ação transformadora humana do meio
ambiente, geradora de cultura (que também pode ser definida como trabalho),
ato exclusivamente humano por ser consciente de sua finalidade, no que é,
portanto, intencional.
É preciso estar claro que por meio do trabalho o Homem transforma o mundo
e a si mesmo, porque, ao alterar o meio, o Homem altera o próprio Homem.
É preciso que fique claro que, transformando o meio e a si mesmo, o Homem
redefine suas dinâmicas culturais, redefinindo valores, sentidos, significados
e identidades.
A ação transformadora humana na natureza passa a ser mediada pelos símbolos
criados pelo Homem, que dão sentido às suas ações. Dessa forma, a Cultura

11
11
UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

pode também ser definida como o conjunto desses símbolos, relativos no tempo e
espaço, com múltiplas manifestações.

Com isso, o Homem, colocando em movimento o meio, a cultura e dessa forma


a si mesmo, é o único ser histórico consciente de sua condição e, portanto, produtor
de sua própria história.

O Problema da Cultura
O mais importante questionamento já feito pelo Homem em torno dos
fenômenos da cultura foi, indubitavelmente, aquele que se referia às diferenças
culturais. Isso porque, desde os primeiros contatos que grupamentos humanos
tiveram com outros grupos provenientes de outras regiões ou, ainda, dadas as
distintas visões de mundo que as gerações mais velhas manifestavam frente às
gerações jovens, com maior ou menor intensidade, a existência humana pressupõe
o contato com o diverso.

Sendo assim, desde o período mais remoto da existência humana, o Homem foi
impelido pelo questionamento sobre as origens da diversidade não apenas biotípica
(cor da pele, dos olhos, tipo e cor dos cabelos, estatura, compleição física, etc.),
senão também de diferenças culturais (tipos de organização social, de habitação,
de utensílios e técnicas para a sobrevivência, forma de organização econômica,
religiosa, familiar, etc.).

Obviamente, esse questionamento se torna mais grave nos períodos em que o


contato entre distintos grupos humanos se intensifica. Podemos então inferir que,
com o advento das primeiras cidades que se desenvolveram, contemporaneamente,
na região do Oriente Próximo (Egito e Mesopotâmia), Índia e China – provenientes
dos primeiros grandes aglomerados humanos em torno de atividades que requeriam
o trabalho organizado (primordialmente as obras hidráulicas, dado que se tratam,
os três casos, de regiões cortadas por importantes rios que permitem as práticas
agrícolas), as atividades comerciais, os deslocamentos populacionais e até mesmo
as guerras colocaram em contato não apenas povos distintos, senão culturalmente
diferentes, movendo a reflexão humana a questionar as origens das desigualdades.

Desde a Antiguidade, o Homem desenvolveu explicações míticas ou filosóficas


que respondiam a essa questão por meio da hereditariedade e da origem geográfica.

Vimos na unidade anterior, dedicada às “teorias da cultura” que no séc. XIX


desenvolve-se a Antropologia como ciência humana e social, gozando de rigor
metodológico e primeiros referenciais teóricos. O darwinismo social tendia a
fornecer explicações científicas (pautadas na teoria da evolução das espécies) para
uma compreensão então já muito antiga: a da determinação biológica e geográfica.
Sabemos também que o debate teórico em torno dessas questões desmontou,
paulatinamente, as convicções rácicas que determinavam as diferenças culturais,
impondo não apenas outra ordem de compreensão, mas modificando de forma

12
irreversível os objetos, objetivos, métodos e a natureza dessa nascente ciência.
Contudo, ainda que liberta das amarras explicativas do evolucionismo, a cultura não
carecia apenas de explicações sobre a questão das diferenças, mas primordialmente
sobre sua natureza, origens e dinâmicas de transformação.

Figura 6
Fonte: iStock/Getty Images

Essas questões ganharam também, com o advento dessas percepções pós-


evolucionistas, outro âmbito de ocorrência, uma vez que diferenças culturais
se verificavam não somente externamente aos grupos sociais, mas também
internamente. Se as explicações evolucionistas não davam conta de esclarecer as
diferenças entre povos distintos, também falharam em atribuir as diferenças entre
homens e mulheres por meio da hereditariedade. Obviamente, homens e mulheres
mantêm relevantes diferenças biológicas; contudo, o papel que desempenham em
distintas sociedades, segundo essas novas percepções, foram sendo definidos por
essas mesmas sociedades, ou seja, os papeis de gênero, e também geracionais,
religiosos, laborais etc., são construídos socialmente, não determinados.

Junto do meio geográfico, o clima também deixou a condição de fator


determinantemente explicativo de diferenças culturais primordialmente utilizados
para escalonar povos mais aptos para o trabalho em climas frios, e menos aptos em
climas quentes. Isso porque uma série de povos, postos sob análise e comparação,
desenvolveram dinâmicas diametralmente opostas em regiões cujas condições
climáticas eram praticamente idênticas. A questão seria então a de que a cultura
que adjetiva outra como menos apta ao trabalho utiliza as suas próprias referências
sobre o que seria a forma e o ritmo ideal de trabalho, ou seja, trata-se de uma
postura etnocêntrica.

Obviamente o clima, assim como a configuração geográfica, incide sobre as


práticas econômicas (agricultura, pastoreio, indústria, comércio, etc.) e, assim sendo,
sobre a própria totalidade da vida social (estruturas políticas, práticas culturais);
contudo, não se trata de fatores únicos e, tampouco, unicamente determinantes.

O que explicaria então as diferenças no próprio perfil desses grupos? Por que
alguns estariam mais inclinados às hostilidades? Por que outros estariam mais
inclinados para a paz?

13
13
UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

O Conceito Antropológico de Cultura

Figura 7–Escravos em plantação de algodão (Ilustração)


Fonte: iStock/Getty Images

Foi preciso praticamente um século para que fosse definida conceitualmente a


“cultura”. Inicialmente, o termo apareceu em documentos escritos que se referiam ao
âmbito da agricultura e, de sua designação como tipo de prática agrícola (cultura da
cana-de-açúcar, cultura do café, etc.), passou a ser utilizado para se referir ao modo
de vida dos camponeses. Com o passar do tempo, do modo de vida de sociedades
simples, o termo passou a ser utilizado para designar a área de estudo que tentava
compreender esses modos de vida. Mas é a perspectiva antropológica que define
mais precisamente a cultura, a partir de 5 de suas características principais:
1. a cultura se refere à transmissão de caracteres extrassomáticos, ou seja, não se
transmitem geneticamente;
2. a cultura é particular ao Homem – os animais possuem, no máximo, sociedades;
3. adaptação: os animais se adaptam ao meio de modo genético e o Homem,
culturalmente, a despeito das adaptações genéticas ao meio ambiente.
Ao inserir elementos de cultura material no processo adaptativo, o Homem
acelera sua adaptação; contudo, retarda sua resposta genética ao meio ambiente;
4. a cultura é padronizada: língua, religião, economia, etc. são convenções simbóli-
cas que existem, ao alcance dos olhos, nas sociedades, constituindo culturas do-
minantes. Nesse caso, os itens de cultura se converteriam em vetores de relações
sociais, cujas referências para a compreensão dessas convenções e símbolos são
partilhadas no contexto dessa sociedade culturalmente padronizada;
5. a sociedade é o veículo da cultura, que só existe sob essa condição. A cultura
dá a tônica da interação entre núcleos, como o educacional e o econômico,
por exemplo.

14
Sendo assim, em termos antropológicos, pode-se entender a cultura como o
sistema humano de hábitos ou costumes adquiridos por processos extrassomáticos,
difundidos na sociedade por símbolos ou convenções criadas nas dinâmicas de
adaptação do indivíduo ao meio ambiente.

Essa definição ganha corpo teórico na década de 1930, a partir da obra de


dois autores: Franz Boas (1858-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-1942), que
rompem com o evolucionismo linear assumido pela Antropologia por meio das
teses de Spencer, representante máximo do darwinismo social e que postulava que
o Homem evoluiria do estágiow de barbárie ao estágio de civilização.

Malinowski, rompendo com o evolucionismo, dando ênfase ao relativismo e à


pluralidade da cultura, acrescentou que, em um determinado contexto, a cultura
funcionaria como uma unidade com engrenagens relacionadas.

A resposta dessa Antropologia para a questão da diversidade cultural é o


aprendizado, que se dá por sua vez por meio de relações culturais muito especificas.
Por meio da educação o indivíduo é introduzido ao mundo ou, se quisermos ser
mais profundos, é humanizado; por meio da educação, transmitem-se saberes que
explicam (cada qual a sua forma) o mundo e o Homem, bem como o papel do
Homem no mundo. Diferentes povos desenvolvem diferentes formas de transmitir
seus saberes ou diferentes formas de educar, processo no qual são transmitidos
repertórios culturais inteiros.

Sendo assim, não é nem a genética e nem o meio geográfico que determinariam
o comportamento dos povos e suas diferenças, mas a cultura, por sua vez
distinguida por conta da diversidade de experiências de aprendizado verificáveis
em diferentes povos.

Figura 8
Fonte: iStock/Getty Images

Não se trata de um processo de ensino meramente teórico, a criança que


recebe os primeiros ensinamentos de seus pais, da família, do grupo social ao qual
pertence, da educação formal ou da religião, aprende não só a como interpretar o
mundo, mas como agir sobre ele.

15
15
UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

Chamou a atenção de inúmeros estudiosos, fundamentalmente, o fato de que o


Homem, graças à cultura, teria superado suas limitações biológicas. Se pensarmos
nas possibilidades de sobrevivência do Homem frente à hostilidade da natureza
– desde a diversidade do meio, as intempéries do clima, o assédio de animais
predadores e a fragilidade frente aos desastres naturais –, ele não teria sobrevivido
sem o advento da cultura.

Ou seja, ainda que portador de capacidades biológicas simples, se compararmos


o Homem em força, por exemplo, em relação a um leão, o Homem está muito
mais apto a sobreviver do que o leão, primordialmente porque o Homem é, antes
de um ser biológico, um ser cultural.

Isso para dizer que o Homem é capaz, por ser produtor, portador e difusor de
cultura, de adaptar-se ao meio natural ou mesmo de adaptar o próprio meio natural
às suas necessidades; coisa que os leões não podem fazer, apesar da sua imensa
força física e destreza na caça.

A diferença consiste no poder que guarda a cultura, o que faz com que o Ser
Humano não limite a sua existência e suas possibilidades de sobrevivência única e
exclusivamente ao seu potencial biológico, mas também aos instrumentos que cria
para facilitar sua sobrevivência.

Figura 9
Fonte: iStock/Getty Images

Por exemplo, ainda que o Homem seja mais frágil do que um urso em relação
a regiões de clima frio, ele é capaz de desenvolver instrumentos e técnicas que lhe
permitam caçar o urso, extrair sua pele, secá-la e usá-la como vestimenta, para
escapar ao frio e viabilizar com isso sua existência.

Outra questão primordial e que coloca o conhecimento humano à frente do


das demais espécies da natureza, é seu caráter cumulativo. Ou seja, por meio da
educação, são transmitidos saberes culturais já erigidos, permitindo ao Homem
que os recebe pensar para além dessas culturas, propondo e realizando inovações
que, por sua vez, por meio do aprendizado, serão transmitidas às gerações
futuras. Ao longo das gerações, portanto, as culturas se transformam apontando
invariavelmente para horizontes até então inexplorados pelo humano.

16
Etnocentrismo e suas Consequências: Apatia
Uma forma extremamente eficiente para entendermos questões de estranha-
mento cultural é imaginar que as pessoas veem o mundo a partir da sua cultura.
Sendo assim, não se trata do mesmo mundo, mas de como ele é lido e interpretado
de diferentes formas por diferentes pessoas, isso porque são portadoras de diferen-
tes sistemas culturais.
O etnocentrismo consiste no fenômeno de o indivíduo, ou um grupo de
indivíduos, considerar a sua forma de interpretar o mundo como a única possível ou
a melhor dentre as demais. Com isso, outros sistemas culturais passariam a ser alvo
de discriminação por serem considerados “tortos”, “distorcidos” ou “equivocados”.
O etnocentrismo é, portanto, valorativo, ou seja, a cultura diversa é sempre
objeto de juízos de valor, entendida como inferior, exótica ou absurda.
Contudo, o comportamento etnocêntrico, nocivo como é, verifica-se como
fenômeno cultural universal; isso porque toda cultura tende a posicionar-se como
central no mundo que interpreta, sendo todas as demais culturas periféricas.
O etnocentrismo, absorvido pela cultura que é dada como inferior, absurda
ou desviada, leva ao fenômeno oposto: o da apatia. Consiste na absorção dos
valores de uma cultura etnocêntrica por parte daquela valorada negativamente,
resultando na depreciação dos indivíduos pertencentes àquela cultura por seu
próprio sistema cultural.

As Mudanças Culturais
A existência humana não consiste apenas em uma existência biológica, trata-se,
primordialmente, de uma existência cultural. Isso porque tudo aquilo que o Homem
cria, ensina, aprende e volta a criar constitui-se como cultura. Ao aprender sobre
aquilo que seus antepassados criaram, o Homem recria a cultura, a natureza e a si
mesmo e, quando passa seu conhecimento às demais gerações, já se trata de uma
cultura recriada.

Figura 10
Fonte: iStock/Getty Images

17
17
UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

Mesmo que um indivíduo esteja imerso em um sistema cultural, ele nunca


terá domínio pleno de todos os elementos que constituem aquela cultura, dada a
riqueza e diversidade que preenchem os sistemas culturais. Contudo, ele é forçado
a dominar um número mínimo de caracteres culturais para que seja reconhecido
pelo grupo como alguém pertencente à mesma cultura. Mas a questão é que,
ainda que os indivíduos de um grupo se conectem por meio do mesmo sistema
cultural, ele não é lido nem praticado de forma idêntica por todos. São exatamente
essas nuances e pequenas distinções que desvelam uma importante dimensão dos
fenômenos de mudança cultural.

Culturas mudam constantemente, mesmo porque a natureza, sua base material,


também muda por conta da interferência humana, primordialmente cultural.
Isso para dizer que, ao alterar a natureza (que provêm o Homem da base material,
em estado bruto, de sua existência) para atender às suas necessidades, o Homem,
por meio do trabalho (que envolve o desenvolvimento de meios, ferramentas
e técnicas), altera não só a natureza, mas a si mesmo. Isso quer dizer que, ao
alterar o meio, altera suas formas de interação social. Sendo assim, ainda que
suas necessidades biológicas sigam sendo as mesmas, suas necessidades sociais,
ou culturais, mudam; mudando junto com o meio, novas formas de interferência
à natureza que, como dissemos, não é mais a mesma, tende a produzir sempre
um novo Homem, junto de novas formas de trabalho, organização social e,
primordialmente, sistemas culturais fadados à perene transformação.

Com isso, já podemos dizer que as culturas são distintas não tão somente no
espaço, mas também no tempo, já que nunca permanecem inalteradas, pois, ainda
que lentamente, sempre se verificam transformações sendo operadas.

As mudanças culturais podem ser:


·· Internas ao próprio sistema cultural, transformando-se lentamente e
obedecendo a manifestações internas de mudança;
·· Externas ao sistema cultural, como produto do contato com outro sistema –
caso no qual, em relação à forma interna, é muito mais rápida e dinâmica.

Endoculturação
Antes de tratarmos das categorias fundamentais da Antropologia para a definição
dos mecanismos de mudança cultural, é importante tratarmos daquela que se refere
à sua transmissão que, de alguma forma, também implica em transformação.

Trata-se do conceito de “endoculturação”, conforme empregou o linguista e


antropólogo norte-americano Roger Martin Keesing (1935–1993) para se referir
ao permanente processo de aprendizagem de uma cultura que se inicia já desde
o nascimento do indivíduo, quando passam a ser-lhe ensinados os valores e as
experiências que constituem, paulatinamente, seu repertório cultural. Trata-se de
um processo contínuo, cujo término só se dá com a morte do indivíduo.

18
Tanto Felix Keesing como E. Adamson Hoebel (1906-1993), também
antropólogo norte-americano, e Frost Herskovits, referem-se à função da
endoculturação em constituir o suporte de transmissão dos códigos de conduta
sociais, por meio dos padrões de comportamento social que difundem, o que
tem um papel importantíssimo para a estabilidade do corpo social e do próprio
sistema cultural.

Obviamente, apesar de padrões culturais serem difundidos e assimilados


pelo indivíduo, o espaço do livre-arbítrio opera criando gradações distintas de
comportamento; contudo, é notável a assimilação de comportamentos, verificáveis
inclusive em condutas de desobediência.

Uma contrapartida a essa possibilidade é o caráter de controle exercido pela


sociedade, para condutas desviadas do padrão socialmente construído, bem como
as formas de coerção exercidas para constranger o indivíduo à assimilação dos
valores culturais dominantes.

Sendo assim, a ideia de liberdade deve ser relativizada ao padrão cultural por
meio do qual o indivíduo age, uma vez que suas referências comportamentais,
inclusive para as condutas de obediência e desobediência, são resultado do meio
em que foi socializado.

Contracultura e Subcultura

Figura 11
Fonte: iStock/Getty Images

Ocorre que não podemos incorrer no erro de imaginar que, por haver uma
cultura dominante em sociedade, todos passem a incorporá-la plenamente. Como
dito, há comportamentos de desobediência. Por sua vez, esses comportamentos
desviantes da norma geram outros sistemas culturais, chamados de subculturas,
para o caso de sistemas à margem da cultura dominante, ou contraculturas, para o
caso de sistemas que se defrontam com a cultura dominante.

A contracultura se caracteriza pelo espírito crítico, questionador e desobediente


em relação a tudo aquilo que é visto como vigente em um determinado contexto
sócio-histórico.

19
19
UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

A contracultura, por sua vez, oferece alternativas para interpretar o mundo e,


mais, para defender o mundo que acredita possível. Essas visões alternativas são
expressas nas artes visuais, na literatura e nas ideias, tendo fomentado uma série
de movimentos de contestação em nossa história recente, como: os Hippies, os
Beats, os Punks e o Anarquismo.

Por vezes, movimentos de contestação, na forma da contracultura, conseguiram


vitórias significativas na mobilização das massas para provocar as mudanças que
defendiam. É o caso de John Lennon e Yoko Ono, que deitados na cama de sua casa
ofereceram uma das mais graves resistências à Guerra do Vietnã – defendendo que
se fizesse amor, não a guerra. A opinião pública teve, nesse caso, uma importância
fundamental no conjunto de pressões que culminou na derrota política dos EUA
nesse desigual enfrentamento.

Figura 12 – John Lennon e Yoko Ono em protesto pela paz


Fonte: Wikimedia/Commons

Aculturação
Dentre os processos externos de transformação cultural, o mais significativo é
o da aculturação, decorrente do contato entre duas culturas distintas que, fundidas,
dão origem a uma terceira cultura. Refere-se também a relações assimétricas em
que uma cultura passa a exercer sobre outra um papel de dominação, culminando
na absorção da cultura dominada. Uma questão a se pensar é se, no processo, ainda
que assimétrico, a cultura dominante não assumiria traços da cultura dominada.
Em verdade, as correntes mais recentes da Antropologia e das Ciências Humanas
e Sociais (como no caso da corrente crítica pós-colonial), verificam que contatos
culturais, ainda que assimétricos e vetorizados por relações de força e poder, não
se restringem a meras relações de assédio e resistência, mas resultam em trocas,
negociações e mútuas transformações.

20
Sincretismo
O fenômeno do sincretismo se refere a uma fusão de doutrinas de diversas
origens, tanto religiosas como filosóficas.

O termo é utilizado com maior fluência para se referir ao fenômeno da absorção


de traços de uma religião por outra, culminando então numa forma sincrética.
Sendo assim, o conceito é dotado de significados conciliadores entre distintos
repertórios culturais, que passam a complementar-se e a serem compreendidos
por meio de correspondências simbólicas.

21
21
UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Sites
O que é cultura?
JOBIM, Sonia. Site Orixás, disponível no link:
https://goo.gl/zj6t8D

Livros
O que é cultura?
SANTOS, José Luis. Site Shvoong, disponível no link:
https://goo.gl/CyMy2B

Filmes
Dersu Uzala
Dersu Uzala; dir.: Akira Kurosawa, Japão / URSS, drama, colorido, 1975.
A Missão
A Missão; dir.: Roland Joffé, Inglaterra, drama, colorido, 1986.
Koyaanisqatsi
Koyaanisqatsi; dir.: Godfrey Reggio; EUA, documentário, 1983.
Baraka: Um Mundo Além das Palavras
Baraka: Um Mundo Além das Palavras; dir.: Ron Fricke; 24 países, documentário,
1992.
Crianças invisíveis
Crianças invisíveis; dir.: Mehdi Charef, Kátia Lund, John Woo, Emir Kusturica, Spike
Lee, Jordan Scott, Ridley Scott e Stefano Veneruso; Itália, documentário, 2005.

22
Referências
BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura. Lisboa: Livros do Brasil, s.d.

BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

CHILDE, V. Gordon. A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1966.

KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru, Edusc, 2002.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. Coleção Os


Pensadores. São Paulo: Abril, 1977.

MALTHUS, Thomas Robert. Princípios de economia política: e considerações


sobre sua aplicação prática; Ensaio sobre a população. São Paulo: Abril Cultur-
al, 1983.

MARGARIDA MARIA MOURA. Nascimento da Antropologia Cultural: A Obra


de Franz Boas. São Paulo: Hucitec, 2004.

MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1997.

MEIRA PENNA, J. O. de. Malthus e o princípio de população. Digesto Econômico,


nov./dez. 1994.

MELLO, L. G. Antropologia Cultural: Iniciação, Teoria e Temas. Petrópolis:


Vozes, 2004.

PALTRINIERI, Anna Casella. Imigração, raça e cultura: o ensinamento de Franz


Boas. Revista Outros Tempos, UFMA, São Luís, v. 6, n. 7, jul. 2009. Disponível
em:http://www.outrostempos.uema.br/vol.6.7.pdf/Anna%20Casella%20
Paltrinieri.pdf.

PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. São Paulo: Nova


Cultural / Brasiliense, 1986.

PEREIRA, José Carlos. Sincretismo religioso & ritos sacrificiais: influências das
religiões afro no catolicismo popular brasileiro. São Paulo: Zouk, 2004.

PLATÃO. A República. São Paulo: Atena, 1962

ROCHA, Everaldo. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1988.


(Coleção Primeiros Passos)

ROSZAK, Theodore. A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e


a oposição juvenil. Petrópolis: Vozes, 1972.

23
23
Antropologia
Material Teórico
As Teorias Antropológicas da Cultura

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Rodrigo Medina Zagni

Revisão Técnica:
Prof. Ms. Edson Alencar Silva

Revisão Textual:
Prof. Ms. Claudio Brites
As Teorias Antropológicas da Cultura

• As Teorias da Cultura
• Sistemas Adaptativos e Teorias Idealistas
• Difusionismo
• Funcionalismo
• Os Problemas do Relativismo
• Estruturalismo
• Antropologia Interpretativa
• Antropologia Crítica ou Pós-Moderna

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Nesta unidade, nos debruçaremos sobre as principais teorias que
permitem compreender a dimensão cultural da vida humana;
· Compreender como se formam e se transformam distintas cultura;
· Compreender as práticas culturais que nos cercam em nosso cotidiano;
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo.

No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE As Teorias Antropológicas da Cultura

As Teorias da Cultura
As teorias antropológicas servem de ferramentas para a aplicação do estudo em
Antropologia, ciência social cujo objetivo é o estudo do Homem e de suas obras.
Nesse contexto, as teorias antropológicas servem diretamente à compreensão das
diversas formas de manifestação cultural em distintas organizações sociais humanas.

Os diferentes tipos de organização social, desde os considerados primitivos até os


mais complexos, estão intimamente relacionados às características culturais ali predo-
minantes, para as quais as teorias da cultura servem de instrumento compreensivo.

A partir da segunda metade do sé-


culo XIX, período de consolidação
de importantes conquistas anteriores
– como o advento do Renascimento
Cultural na Europa (séc. XV e XVII),
das grandes navegações (séc. XV), da
conquista do Novo Mundo1 (séc. XV),
o desenvolvimento do método científi-
co, que nada mais é do que um con-
junto de normas para a comprovação
de um determinado objeto de estudo
Figura 1 – Mapa Mundi arcaico (do séc. XV ao XVIII), as luzes da razão
Fonte: iStock/Getty Images
iluminista (séc. XVIII) e a consolidação
do cientificismo e da corrente de pensamento positivista (séc. XIX) –, o espírito
humano passou de uma fase subjetiva de conhecimento, na qual as fundamen-
tações se davam em termos abstratos, hipotéticos e especulativos, para uma de
conhecimento mais objetivo, visando à constituição de saberes científicos calca-
dos na experimentação empírica, na identificação de leis explicativas para seus
determinantes causais e de sua generalização (transformação das leis científicas
em leis gerais que explicam a totalidade das possibilidades de ocorrência do fe-
nômeno estudado).

Essa mudança de postura, da qual provêm praticamente todas as teorias da


cultura, foi responsável pelo novo status de ciência conferido à Antropologia,
cujo objeto passou a ser tratado como algo observável, mensurável, passível de
ser decodificado estatisticamente, quantificado, teorizado, experimentado e
comprovado, tratando-se o produto desse sistema de “conhecimento científico”.

Tiveram fundamental importância dentre as teorias culturais, para que a Antro-


pologia fosse reconhecida como ciência, primeiramente o “Evolucionismo”, que
tratava seu objeto de forma mais ampla, abraçando o estudo de civilizações intei-
ras enquanto que outras teorias focavam em organizações sociais quantitativamente
menores, lidando com a cultura por meio de aspectos entendidos como evolutivos.

1. Novo mundo é um dos nomes dados ao hemisfério ocidental, mais especificamente ao continente americano. O
termo tem suas origens no final do século XV, em razão da descoberta da América por Cristóvão Colombo.

8
Igual importância teve o “Difusio-
nismo”, que buscava a explicação do
desenvolvimento cultural a partir do
processo de difusão de elementos cul-
turais de um sistema para outro. Essa
corrente teórica se dividiu em duas: a
corrente britânica e a alemã. Na britâ-
nica, acreditava-se que haveria apenas
um centro cultural, que seria o Egito. Já
a corrente alemã propunha que existi-
riam mais círculos difusores de cultura.

Já o “Funcionalismo”, que inovou


o campo de interpretação antropoló-
gica, focava não mais nas origens his-
tóricas do estudo da cultura, mas sim
seu contexto em dado momento, com
a lógica do sistema focalizado. O fun-
Figura 2 – Raças Humanas cionalismo busca explicar elementos de
Fonte: historywallcharts.eu um dado grupo humano como peças
de uma mesma engrenagem. Isso quer dizer que os funcionalistas buscavam com-
preender a função que cada instituição exerceria dentro de uma dada sociedade.
Percebendo assim que o mau funcionamento de alguma delas poderia representar
a desregulação da própria sociedade.

Por fim, o “Estruturalismo”, a mais recente escola em orientação teórica em


Antropologia, que adotou posições próprias de natureza predominantemente
subjetivas. Essa corrente foi inspirada pelo modelo da linguística, e propõe que
existem estruturas que baseiam o pensamento humano universalmente.

São as ferramentas utilizadas pelos antropólogos estudiosos do “Homem e suas


obras”, de seu produto direto: a cultura humana; nobilíssimo trabalho ao qual se
agregam conhecimentos de outras tantas ciências afins, com a mesma finalidade:
reconstituir o passado cultural humano, entender a condição presente e projetar
reflexões a respeito dos horizontes do Homem.

9
9
UNIDADE As Teorias Antropológicas da Cultura

Sistemas Adaptativos e Teorias Idealistas


Como vimos na unidade dedicada à natureza da cultura, o conceito de cultura
é extremamente amplo e elástico, motivo pelo qual a própria Antropologia falha
em conceituar, unanimemente, a cultura. Contudo, como vimos naquela unidade,
tratam-se primordialmente dos resultados da ação humana, materiais ou imateriais.

O antropólogo e linguista Roger Martin Keesing (1935-1993), professor da


McGill University em Mont, no artigo mais célebre e influente de sua carreira,
Theories of Culture, de 1974, identificou duas correntes teóricas distintas dentre
as possibilidades de definição da cultura: aquelas que consideram a cultura como
sistemas adaptativos e as teorias idealistas da cultura.

Como um sistema adaptativo, as culturas funcionariam como instrumentos


de padronização de comportamentos que permitiriam, uma vez transmitidos
socialmente, adaptar o homem a um determinado modo de vida, o que envolveria os
mais variados âmbitos da vida social, desde o econômico, até o político-ideológico,
o mágico-religioso etc.

As teorias idealistas, por sua vez, se subdividiriam em três categorias, segundo o


que consideram como cultura:
·· como sistema cognitivo, a cultura seria equivalente a um sistema de
conhecimentos cuja função seria adaptar o indivíduo ao convívio de
determinada sociedade;
·· como sistemas estruturais, a cultura seria equivalente a um sistema simbólico
criado pela mente humana para atribuir sentidos e significados às ações
humanas e seus resultados;
·· como sistemas simbólicos, a cultura também, como sistema de símbolos, compre-
enderia a dimensão normativa das relações sociais, moldando comportamentos.

Evolucionismo Cultural
Com o incremento das navegações no séc. XVIII, resultado do avanço do
comércio ultramarino, o transporte de produtos agrícolas e riquezas minerais entre
territórios coloniais na América, África e Ásia e a Europa, a civilização europeia
pode ter maior contato com povos que até então desconhecia, conhecendo assim
práticas religiosas, hábitos cotidianos e comportamentos sociais completamente
diversos dos seus.

10
Figura 3 – Exploradores europeus
Fonte: iStock/Getty Images

O contato com o diverso possibilitou ao europeu pensar o indivíduo em termos


evolutivos, ou seja, comparar o Homem europeu com os novos povos que iam
sendo dominados. Permitiu interpretá-los como se estivessem em distintos estágios
de um mesmo processo: a evolução.

De forma etnocentrista e eurocêntrica, essas diferenças culturais moveram


explicações de caráter monogenista e poligenista.

A interpretação monogeísta pressu-


punha um caminho linear e finalista para
o processo evolutivo, partindo sempre
de um estágio menos evoluído – o está-
gio primitivo – para o mais evoluído – a
civilização. Essa interpretação encontra-
va respaldo nas teses do filósofo suíço
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e
sua defesa da perfectibilidade humana,
como um estágio possível de ser alcan-
çado na esperança que depositava no
Homem natural, essencialmente bom.

As diferenças culturais, portanto,


constituiriam indicadores de que se en-
contrariam em etapas distintas do mes-
mo processo evolutivo; e nisso consistiu
o referencial teórico dos primeiros et-
Figura 4 – Jean-Jacques Rousseau nólogos que estudavam os homens do
Fonte: Wikimedia Commons passado como “homens primitivos”.

11
11
UNIDADE As Teorias Antropológicas da Cultura

Já a poligenia, que não descartava a concepção da evolução, defendia que


as diferenças provinham essencialmente da existência de diferentes centros de
criação. Os Homens teriam tido, portanto, distintas origens, o que explicaria não
só diferenças físicas, mas também prometia explicar as diferenças morais entre os
homens. Em suas convicções, reside ainda a defesa de que, mesmo pertencentes
a uma mesma origem, as diferenças que se desenvolveriam no processo evolutivo
levariam à degeneração da espécie, no caso de indivíduos pertencentes a distintas
etapas evolutivas que se entrecruzassem.

Sob vários aspectos, o impacto da publicação da obra de Charles Darwin (1809-


1882), A origem das espécies, em 1859, fez com que a perspectiva evolucionista
penetrasse em várias áreas de conhecimento, para além da Biologia.

Sua repercussão nas nascentes ciências humanas desdobrou-se no fenômeno


do darwinismo social. A dominação colonial ganhava uma justificativa biológica:
tratava-se do avanço civilizador do Homem branco sobre a barbárie, que deveria
ser civilizada.

As sociedades também poderiam ser escalonadas segundo diferentes graus


evolutivos demonstrados em termos econômicos, tecnológicos, políticos e culturais.

Foi o filósofo inglês Herbert Spencer


(1820-1903), profundo admirador da
obra de Charles Darwin e criador da ex-
pressão “sobrevivência do mais apto”,
quem criou o “darwinismo social”, em
sua busca por aplicar as leis da evolução
a todos os níveis da atividade humana.
Nesse esforço, a partir do darwinismo
social, Spencer erigiu uma teoria sobre
as raças estendendo critérios de compa-
ração e diferenciação, utilizados para o
estudo de animais, para compreender as
diferenças entre os homens. Estabelecen-
do que, tal qual os animais, os homens se
subdividiriam em raças e, mais, que apli-
cando as teses darwinistas elas poderiam
ser qualificadas como mais ou menos
aptas ou, ainda, primitivas ou civilizadas,
fazendo com que ficasse anulado o po-
der de livre arbítrio do Homem, uma vez
que suas escolhas estariam determinadas
pelas características étnico-culturais que
Figura 5 – Herbert Spencer
teriam herdado de seus antepassados. Fonte: Wikimedia Commons

12
Utilizando esses critérios, o cruzamento inter-racial, a miscigenação, levaria à
degeneração das espécies, enquanto sua perpetuação seria garantida pela valoriza-
ção das raças2 “puras”, ou seja, intocadas pela miscigenação.

A dominação de um grupo sobre outro ganhava não só uma explicação sistê-


mica, pseudocientífica, mas fundamentalmente ganhava uma legitimação, pois em
nome da defesa da civilização seria preciso dominar e/ou civilizar a barbárie.

A Antropologia se desenvolve, em seu período embrionário, orientada exata-


mente por esses pressupostos teóricos: evolucionistas.

Sendo assim, a tarefa do antropólogo, nesse contexto, não consistiria apenas


em determinar a antiguidade do Homem, utilizando as recentes descobertas da
Química, senão identificar em que estágio estaria no processo evolutivo. A criação
das etapas, dos estágios culturais segundo as características dos grupos estudados,
também constituiu a tarefa primordial para esses primeiros antropólogos. O próprio
tempo cronológico dava lugar a uma outra percepção de tempo: o da evolução,
que permitiria a criação de uma escala para a sua determinação.

Nesse esforço investigativo, de identificar as etapas evolutivas de distintas


sociedades, destaca-se o trabalho do antropólogo e etnólogo norte-americano Lewis
Henry Morgan (1818-1881), considerado um dos fundadores da antropologia
moderna, tendo sido um dos primeiros teóricos da cultura e da sociedade no
pensamento antropológico.
“Cultura é o todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral,
leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo
homem enquanto membro de uma sociedade.” (TYLOR , Edward. 1871)

Na obra Ancient Society (1877), defendeu a existência de três estágios evolutivos


para as sociedades humanas, que permitiriam agrupá-las e estudá-las de acordo
com critérios rigorosos de análise e qualificação de seus caracteres: selvageria,
barbárie e civilização.

Outra contribuição notável, no contexto do evolucionismo na Antropologia, foi


dada pelo antropólogo inglês Edward Burnett Tylor (1832-1917), considerado o
pai do conceito moderno de cultura. Condensou em sua obra principal, Primitive
Culture, de 1871, ideias que possuiam um longo histórico de fluência no Ocidente,
remontando aos primórdios da filosofia iluminista, que já faziam a defesa do papel da
educação na transmissão cultural: fenômeno caracterizado como endoculturação.

Ocorre que, na prática, os “selvagens”, ou seja, o “homem primitivo”, não eram


estudados in loco – ou seja, se contemporâneos ao estudioso, não eram estudados
pelo antropólogo onde viviam –, mas por meio de documentos escritos: relatos de
cronistas viajantes, missionários religiosos, mercenários etc. Para povos do passado,
o desafio era ainda maior, uma vez que apenas seus artefatos poderiam ser estudados
e seu estágio evolutivo determinado comparativamente àqueles mais evoluídos.

2. Vale ressaltar que na atualidade a palavra raça caiu em desuso na comunidade científica quando correspondente aos
diferentes grupos humanos. A ideia de etnia é um conceito diferente da noção social de raça, usada até a metade do
século XX, e abrange mais aspectos culturais.

13
13
UNIDADE As Teorias Antropológicas da Cultura

Obviamente, a questão do “mais evoluído” ou da “civilização” tinha como modelo


o Homem europeu. Portanto, trata-se de uma visão etnocentrista e eurocêntrica, que
comprometia a ideia de progresso, que perpassa ideologicamente esse arcabouço
teórico, como o caminho que levaria à selvageria o modelo de civilização europeu.

Difusionismo
O difusionismo se desenvolveu, na An-
tropologia, como uma violenta resposta aos
pressupostos teóricos do evolucionismo.

Data do início do séc. XX a comuni-


cação das posturas mais radicais dessa
corrente. O primeiro teórico a engajar-
-se na resistência contra o evolucionis-
mo foi o médico, psicólogo e antro-
pólogo britânico William Halse Rivers
Rivers (1864-1922), e cujos discípulos
– William James Perry (1887–1949) e
Figura 6 – William Halse Rivers Rivers Grafton Elliot Smith (1871-1937) – de-
Fonte: Wikimedia Commons ram continuidade à sua obra.

Os difusionistas britânicos – Rivers, Perry e Smith – contrapunham-se às


explicações evolucionistas para as diferenças e semelhanças culturais, recorrendo a
fenômenos ignorados por essa corrente, como correntes migratórias, deslocamentos
populacionais e contatos interculturais.

Particularmente Elliot Smith, egiptólogo além de antropólogo, defendeu a tese


de que a civilização egípcia seria portadora de indícios que revelariam ter sido a
África o berço da origem da humanidade, e a partir dali teria se difundido.

O movimento de difusão teria se desencadeado naquele ponto – o Egito –,


culminando na sua difusão por todo o mundo, em ondas de deslocamento que
teriam passado a se diferenciar umas das outras.

Ainda que tenha sido desmontada, em termos teóricos, a tese de que a


diversidade cultural seria resultado da difusão de características provenientes de um
único centro, o difusionismo cumpriu um relevante papel ao oferecer, no início do
século XX, uma alternativa explicativa para a questão da diversidade cultural, tendo
sido a primeira a se defrontar com o vigente evolucionismo.

14
O conceito de áreas culturais, uni-
dades geográficas identificadas como
polos difusores de elementos culturais,
é produto da influência que a escola
britânica exerceu sobre o pensamento
antropológico nos Estados Unidos.

Essa tese foi desenvolvida a partir


de características próprias aos estudos
etnográficos norte-americanos, em es-
pecial da necessidade de elaborar taxio-
logias do Museu Americano de Histó-
ria Natural e do Museu de Chicago, ou
seja, formas de organizar os artefatos
coletados de grupos tribais distintos no
território estadunidense. O critério utili-
zado foi o do estabelecimento de áreas
culturais que representassem cartogra-
ficamente esses povos, cujos traços se
Figura 7 – American Museum of Natural History dissolviam em suas particularidades e
Fonte: Wikimedia Commons passavam a conectar-se com outras tri-
bos, constituindo áreas culturais.

O conceito de “círculos culturais”, utilizado por antropólogos europeus, também


provém das teses difusionistas e se refere a complexos culturais dispersos e que
teriam se deslocado de suas unidades geográficas originais.

O antropólogo teuto-americano Franz Boas (1858-1942), defensor da corrente


denominada Histórica, pode-se dizer, esteve entre o difusionismo e o funcionalismo
(que veremos a seguir).

Seu trabalho pioneiro, junto de seus


discípulos, consiste no mais importan-
te ponto de inflexão nos estudos an-
tropológicos, no que tange ao declínio
da Antropologia Rácica Evolucionista,
uma vez que sua proposta relativista
desmontava a ideia de proximidade en-
tre evolução biológica e cultural.

Seu pioneirismo consiste na cons-


trução teórica que assentou métodos
radicalmente distintos daqueles engen-
drados nos modos de conceber e es-
tudar as culturas humanas, propondo
Figura 8 – Franz Boaz relativizá-las, ao invés de escaloná-las
Fonte: Wikimedia Commons hierarquicamente.

15
15
UNIDADE As Teorias Antropológicas da Cultura

Não que estudos comparativos não pudessem ser feitos entre distintas cultu-
ras, ou mesmo que não se pudesse identificar uma origem comum para ambas.
O que Boas propunha era um processo indutivo que identificasse as relações
que possibilitariam a comparação, para o então estabelecimento das conexões
históricas pertinentes.

Para Boas, o mesmo fenômeno tem sentidos variados em cada cultura. Sendo
assim, o fato de ocorrências semelhantes serem identificadas em distintas culturas
não constitui prova de uma origem comum.

Consequentemente, não havendo uma única origem cultural, não se pode falar
em cultura, senão em culturas. Ou seja, cada cultura teria sua própria história; não
uma cultura humana universal e originária, como pressupunham os evolucionistas
e até mesmo parte dos difusionistas.

Sendo então autônomas, todas as culturas seriam também dinâmicas em suas


transformações ao longo do tempo.

Nesse contexto, suas críticas pesavam mais gravemente sobre os determinismos


biológicos e geográficos, bem como no transporte de categorias explicativas
evolucionistas para o tratamento das relações culturais, o que havia levado ao
fenômeno do evolucionismo cultural.

Contrário a essa explicação evolucionista para a diferenciaç ão das culturas,


Boas demonstrou que cada sistema cultural constituiria uma unidade integrada,
resultado de um desenvolvimento histórico específico.

Com isso, determinou a independência dos fenômenos culturais em relação aos


condicionantes geográficos e biológicos, vigentes como explicação desde o período
formativo da Antropologia. As dinâmicas culturais estariam desatreladas desses
elementos, obedecendo apenas à lógica da interação entre os indivíduos, o meio e
a sociedade.

A concepção evolucionista aplicada à cultura, responsável pelo assentamento


de uma visão linear, na forma de estágios evolutivos e obrigatórios pelos quais,
obrigatoriamente, todas as sociedades passariam, assistia ao surgimento de sua
mais severa e consistente crítica.

Essa nova postura teórica deslocou completamente os sentidos gerais da


Antropologia, desde seus objetos, objetivos até o ofício do antropólogo, que
passava a ser o estudo de sistemas culturais particulares, não da identificação de
uma cultura universal.

16
Figura 9 – Múmia do período Inca
Fonte: iStock/Getty Images

Funcionalismo
Uma das mudanças mais significativas para a determinação do fracasso
explicativo do evolucionismo foi o abandono dos relatos de cronistas viajantes e
congêneres como base informativa para estudos antropológicos e a adoção de
métodos de pesquisa de campo.

A excessiva utilização de valores euro-


peus na análise valorativa de povos não-
-europeus, para demarcar sua posição
numa espécie de “corrida” linear e com
etapas rumo à civilização, tendo como
força motriz o progresso, também mar-
cou o abandono do evolucionismo como
ferramenta explicativa de diferenças não
só biológicas ou culturais, mas também
psicológicas e intelectuais.
Nesse contexto, o evolucionismo de
Spencer passou a dar lugar gradativa-
mente ao determinismo de uma corrente
teórica ascendente: o funcionalismo na
Antropologia, cujo precursor foi o antro-
pólogo polaco Bronisław Kasper Malino-
wski (1884-1942), considerado um dos Figura 10 – Bronislaw Malinowski
fundadores da Antropologia Social. Fonte: Wikimedia Commons

17
17
UNIDADE As Teorias Antropológicas da Cultura

Apesar de tomar o avanço colonizador como dado, bem como de justificar


a necessidade de estudo dos “povos primitivos” pelo avanço do imperialismo
europeu, o funcionalismo de Malinowski, ainda que comparando as sociedades
estudadas com aquela a qual pertencia o estudioso, abandonava a mecanicidade da
escala evolutiva, focalizando as culturas diversas em situação, ou seja, a partir de
sua própria contextualização.

O próprio etnocentrismo e o eurocentrismo passaram a dar lugar, na


Antropologia, a uma outra atitude. Malinowski sistematizou o método que passou
a tomar a cultura do “homem primitivo” não a partir do olhar valorativo europeu,
ou seja, do antropólogo; o desafio consistiria em determinar o ponto de visto do
“homem primitivo”, para então empreender a análise de sua cultura.

Sua proposta metodológica consistia ainda na compreensão do todo complexo


de uma sociedade, incluindo sua constituição cultural, identificando suas partes
componentes significativas. As partes seriam estudadas isoladamente, parte por
parte, para em seguida serem articuladas, construindo-se a partir daí a compreensão
sobro o todo.

O todo seria as instituições, o objeto da análise; as partes, designou-as como


isolats, as unidades primordiais de estudo. Trata-se, em essência, de dividir o
complexo em unidades simples, estudá-las e articulá-las de forma a comporem a
estrutura complexa, que passaria então a ser compreendida como o produto das
compreensões construídas sobre a totalidade das unidades simples. Articuladas,
a compreensão do mais simples possibilitaria a do mais complexo. A articulação
entre os isolats que compõem a instituição determinou como estatuto. Com
isso, teríamos as três dimensões constitutivas das sociedades passíveis de serem
estudadas em termos antropológicos.

Seguindo o exemplo do que fez com as sociedades, dividiu também a existência


social a partir da identificação da natureza das necessidades humanas. Para
Malinowski, haveria dois tipos primordiais de necessidades:
·· primárias, que seriam as necessidades biológicas;
·· secundárias, as necessidades culturais.

Ocorre que as necessidades primárias é que determinariam as secundárias,


ou seja, a cultura estaria ligada à satisfação das necessidades biológicas, até que
se desenvolveriam dinâmicas tão complexas que passariam a constituir, por si
só, necessidades. Por exemplo, utilizando Malinowski para compreender nosso
próprio modelo de sociedade, pode-se dizer que vestir-se adequadamente para uma
entrevista de emprego seja uma necessidade cultural determinada pela necessidade
biológica de se alimentar, uma vez que o alimento é adquirido, nas sociedades de
consumo de massa, por meio do consumo, possível com o dinheiro ganho por
meio do trabalho. Ocorre que “vestir-se bem” constitui uma necessidade cultural
por si só, na medida em que se torna um valor estético partilhado no contexto
dessa sociedade.

18
Para empreender esses estudos, o antropólogo necessitaria de um rigoroso
procedimento metodológico. Dada a complexidade dos objetos da antropologia,
a importação pura e simples dos métodos das ciências da natureza e das ciências
formais não resolveria, seria necessário criar novos métodos para as nascentes
Ciências Humanas.

O método proposto por Malinowski consiste em três etapas/tarefas:


1. observar todos os costumes dos nativos;
2. apreender suas narrativas orais;
3. utilizar métodos estatísticos.

A observação do comportamento social dos povos estudados possibilitaria ao


antropólogo identificar as referências dos nativos, exatamente o que permitiria ao
antropólogo estudar uma cultura com o uso de suas próprias referências, não as do
antropólogo. Essas referências captadas receberam o nome de “imponderáveis da
vida real”, o cerne de toda a pesquisa.

Isso possibilitaria abandonar as pré-concepções que caracterizavam as aborda-


gens evolucionistas e as atitudes que possibilitavam valorar negativamente os nati-
vos, comparando-os com os europeus. As comparações seguiriam sendo possíveis,
mas a extensão dos valores europeus aos valores nativos não seria mais viável.

O afastamento das ideias preconcebidas, os preconceitos, possibilitaria à


Antropologia galgar, por meio de maior rigor metodológico, maior grau empírico.

O cientista social britânico Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955), tido


como um dos maiores expoentes da Antropologia por ter desenvolvido a teoria do
funcionalismo estrutural, imbuído da defesa de Malinowski à pesquisa de campo,
propunha combiná-la também com o trabalho de gabinete.

Isso possibilitaria abrir novos horizontes à ciência antropológica, uma vez


que o risco era o de a Antropologia, estudando culturas isoladamente, tornar-se
exaustivamente descritiva. Os novos horizontes constituiriam as possibilidades de
se estudar comparativamente as culturas descritas.

A tarefa seria articular os métodos histórico e comparativo, nos estudos


antropológicos. Apesar de reconhecer que o método histórico seria mais voltado
aos estudos etnológicos e o método comparativo mais caro à Antropologia Social,
Radcliffe-Brown defendia que seu uso conjunto deveria perpassar todos os estudos
antropológicos.

O estudo comparado possibilitaria, por sua vez, a identificação de regularidades


e a proposição de leis gerais para fenômenos recorrentes ou similares.

Dentre as possibilidades então de identificação de fenômenos gerais, uma lei


geral identificada por Radcliffe-Brown consistiria da natureza e funcionamento das
relações e estruturas sociais baseadas em “oposição”. Enfatizando seus aspectos
funcionais, fenômenos recorrentes como os de hostilidade intergrupal, violência,

19
19
UNIDADE As Teorias Antropológicas da Cultura

estupro, entre outros, demonstrariam que, por oposição, as sociedades estariam


divididas em metades exogâmicas3 , sendo assim, opostas.

Sobre o uso do conceito de cultura, destoava de Malinowski por não utilizá-lo


em sua análise, considerando-o demasiadamente abstrato, o que comprometeria
o rigor empírico que almejava. Cultura deveria ser substituída, conceitualmente,
por realidade empírica verificada nas estruturas sociais estudadas. O objeto da
Antropologia Social não seria, portanto, a cultura, mas as realidades empíricas de
estruturas sociais, onde seria possível determinar os papéis sociais desempenhados
pelos indivíduos (substituindo-se também, nesse caso, o conceito, para ele abstrato,
de comportamento). Uma vez identificados esses conjuntos de relações, para
Radcliffe-Brown o antropólogo teria determinada a forma estrutural, ou seja, o
padrão regular das relações que ocorrem na estrutura do grupo.

Os Problemas do Relativismo
Comparativamente ao evolucionismo, o funcionalismo permitiu a adoção de
uma postura diversa daquela de superioridade entre o estudioso e a cultura estudada.

O desdobramento dessa postura consiste no relativismo, que por sua vez distancia
o investigador dos questionamentos valorativos sobre os nativos, que passam a ser
meros comunicadores de suas práticas culturais.

Normas e valores, para os relativistas, não devem ser objeto de nenhuma ordem
de questionamento e a postura do antropólogo em campo, portanto, é a de mero
coletor e analista de informações.

O relativismo é radicalmente contrário à tendência universalista do evolucionismo,


ou seja, contra seu ímpeto de estender um mesmo repertório cultural (o europeu,
entendido como civilizado) à totalidade das sociedades, entendidas como inferiores
(bárbaras).

Nada a universalizar, tudo a relativizar!

Ocorre que, sendo assim, ao tratar de costumes como o do apedrejamento de


mulheres adúlteras no Irã, o estupro aceito e legalizado no âmbito do matrimônio
no Afeganistão, a condenação de homossexuais à morte em Uganda, a prática da
excisão (a mutilação do clitóris e dos pequenos lábios do órgão sexual feminino) em
Djibuti, Etiópia, Somália, Sudão, Egito e Quênia, o racismo desvelado no sul dos
Estados Unidos, o machismo na sociedade brasileira, a pena de morte praticada em
diversos países hoje no mundo, entre outros assuntos, não poderiam ser criticados
por cientistas humanos, porque valores como a liberdade, a igualdade, o direito à
vida e à inviolabilidade do corpo não poderiam ser universalizados.

3. Casamento entre indivíduos pertencentes a grupos étnicos – raciais distintos. Ex.: quando um índio se casa com um
português, isso é um exemplo de casamento exogâmico. Essa alusão até melhora o entendimento de atos mais duros,
como o estupro, por exemplo. Identificando e não justificando.

20
Figura 11 – Representação de apedrejamento por adultério
Fonte: iranian.com

Ainda hoje essa postura consiste num problema: parte dos cientistas humanos
defendem se tratar, as práticas de violência acima descritas, como práticas culturais.
Sendo assim, qualquer tentativa de universalização de valores (incluindo a liberdade,
a igualdade, o direito à vida e à inviolabilidade do corpo) seria um atentado contra
a autonomia cultural. Outra parte significativa, defende que alguns valores devam
ser universalizados.
Ocorre que, da mesma forma, sociedades que historicamente foram compreen-
didas como civilizadas também são portadoras de culturas violentas e que atentam
contra direitos básicos. Vide o histórico de guerras religiosas, intolerância, torturas,
execuções em fogueiras e enforcamentos que atravessa a história do cristianismo
na Europa. Vide a violência com que negros são tratados pela polícia nos Estados
Unidos hoje, citando só alguns, para não nos demorarmos nas incontáveis pos-
sibilidades de exemplos que demonstram que culturas de ódio e intolerância são
também fenômenos universais.
Importante pergunta a ser feita é: reconhecido o direito à autonomia cultural e a
necessidade de se relativizar valores, não seria necessário universalizar a liberdade,
a igualdade, o direito à vida e à inviolabilidade do corpo?

21
21
UNIDADE As Teorias Antropológicas da Cultura

Estruturalismo
O antropólogo, professor e filósofo francês
Claude Levi-Strauss (1908-2009) foi o fundador
da chamada Antropologia Estrutural, corrente que
se conformou a partir de seus estudos sobre os
povos indígenas do Brasil. Durante o período em
que aqui permaneceu, integrou a missão francesa
que teve como objetivo estruturar as áreas de
Ciências Humanas da recém-criada Universidade
de São Paulo, no período que se estendeu
de 1935 a 1939. Durante esses quatro anos,
estudando aspectos sobre a língua, costumes e
lendas de povos indígenas, coletou os dados que
permitiram criar uma nova teoria antropológica,
elaborada e apresentada entre o final da década Figura 12 – Claude Levi-Strauss
de 1940 e início de 1950. Fonte: Wikimedia Commons

Estudou os Kaingang, no Norte do Paraná (na região do rio Tibagi); os Kadiweu,


na divisa com o Paraguai; e os Bororo, do Mato Grosso. Em 1938, pôs-se a
estudar os índios Nambiqwara, do Mato Grosso; bem como os Tupi-Kaguahib, na
região do rio Machado, que se pensavam desaparecidos.

Os pressupostos dessa nova corrente teórica foram publicados em duas de suas


principais obras: As Estruturas Elementares do Parentesco, de 1949, e Tristes
Trópicos, de 1955; que o notabilizaram mundialmente.

Lévi-Strauss fez uso da chamada teoria estruturalista francesa, a qual pressupunha


que “estruturas universais” estariam por trás de todas as ações humanas, dando forma
às culturas em suas mais variadas manifestações: linguagem, mitos, religiões etc.

O impacto de sua teoria foi responsável por uma “revolução intelectual” e que
consistiu na aplicação do método estruturalista ao conjunto dos fatos humanos
de natureza simbólica. Isso possibilitou ao antropólogo estudar o “pensamento
selvagem”, e não o “pensamento do selvagem”. Não se trata de mero jogo de
palavras ou de uma mudança insignificante, senão na subversão completa do
enfoque das pesquisas antropológicas realizadas até ali. Ou seja, Lévi-Strauss deixou
de fazer a distinção do funcionamento mental entre os povos primitivos e os povos
europeus, para afirmar que o “pensamento selvagem” poderia ser encontrado em
cada um de nós.

Distinguiu-se gravemente dos demais antropólogos que buscavam revelar as


diferenças entre povos e culturas, nos mais das vezes valorativas; enquanto Lévi-
Strauss buscava as estruturas universais, também chamadas de “estruturas profundas”.

22
Sem se preocupar com as diferenças, os estudos
de Lévi-Strauss colaboraram na relativização entre
povos e culturas, estreitando seus laços pela via da
aceitação do diverso exatamente porque, para ele, as
diferenças entre os povos não constituíam o objeto
central de interesse antropológico.

Para Lévi-Strauss, a maior parte dos antropólogos


estava preocupada com o que nominou de “aparên-
cia”. Obviamente, utilizou-se de um dos fundamen-
tos do Estruturalismo para fazer esta afirmação,
exatamente a oposição entre essência e aparência.
Suas pesquisas estavam dirigidas aos sentidos pro-
fundos das ações humanas e de seus produtos, na
busca pela essência, encontrando-se com a psicolo-
gia, a lógica e a filosofia das sociedades estudadas. Figura 13 – O Pensamento
Selvagem (LÉVI-STRAUSS, 1962)
A mera descrição das práticas rituais de uma determinada sociedade, a aparência,
não lhe interessava.

Essa nova e revolucionária abordagem encontrou contornos teóricos acabados


na obra O Pensamento Selvagem, de 1962.

Sobre o impacto que representou, para além da Antropologia, implicava em


como tratar o até então denominado “homem primitivo”. Seu método estruturalista
permitia compreender que sociedades tribais revelavam sistemas lógicos notáveis,
de qualidades mentais racionais tão sofisticadas quanto as de sociedades até então
tidas como superiores.

Sua teoria desmontava as convicções comumente aceitas de que as sociedades


primitivas seriam intelectualmente deficitárias e temperamentalmente irracionais,
e que suas ações e obras, que constituiriam seus “pobres” repertórios culturais,
tinham por finalidade a satisfação de necessidades imediatas, como as de alimento,
vestimenta e abrigo.

Sob esses novos pressupostos teóricos, a visão pejorativa sobre as tribos


primitivas estava fadada a desaparecer.

Antropologia Interpretativa
A chamada Antropologia Interpretativa é também conhecida por Antropologia
Hermenêutica. As suas origens são recentes e rementem aos estudos empreendidos
pelo antropólogo estadunidense Clifford Geertz (1926-2006). Uma das novidades
mais interessantes dessa vertente é a maneira como direciona o olhar para as
culturas estudadas, buscando percebê-las como textos. Textos esses que devem ser
lidos e interpretados.

23
23
UNIDADE As Teorias Antropológicas da Cultura

As bases teóricas de Geertz estão fincadas nas ideias de Max Weber (1864-
1920), sociólogo alemão, que acreditava que o ser humano está amarrado em teias
de significado. Em suas palavras o autor diz o seguinte:

O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam


demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o
homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo
a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência
experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões
sociais enigmáticas na sua superfície. Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa
cláusula, requer por si mesma uma explicação.

Assim, seria preciso interpretar as culturas lendo-as e interpretando-as a partir


de seus próprios significados. A Antropologia deveria preocupar-se em não apenas
descrever, mas interpretar, fazendo com isso uma descrição densa dessas culturas.
Geertz nos ensina que ao procurar ler a cultura como texto podemos perceber
elementos além do olhar de fora. Isso porque nos impulsiona a ver “sobre os
ombros” dos homens e mulheres estudados aquilo que eles veem, sentem, vivem e
todos os códigos simbólicos que não são partilhados pela linguagem oral ou escrita
em seu cotidiano, nos tornando também letrados nessa cultura e, portanto, mais
aptos ao encontro e não ao estranhamento.

É nesse sentido que para o autor um dos objetivos principais da Antropologia


é expandir do “universo do discurso humano”. Dito de outra maneira, para ele
estudar a cultura do outro é revelar, ou melhor, dar-lhe voz para expressar-se em
seus próprios termos.

Ao atuar dessa maneira, o antropólogo estaria fazendo sempre um deslocamento


metodológico de se colocar como interprete e não como o protagonista narrador
do grupo humano estudado. Outro dado importante de nota é o fato de que o
autor entende que as descrições antropológicas são de segunda e terceira mão,
podendo até ser de quarta mão, caso essas se baseiem apenas em outras pesquisas.
As descrições primárias seriam de exclusividade do nativo. Em suas palavras, “o
antropólogo não estuda a aldeia, estuda na aldeia”.

Em resumo, poderíamos dizer que para o autor o método etnográfico interpre-


tativo ou hermenêutico deveria se basear em uma interpretação minuciosa do pla-
no simbólico de uma dada cultura, procurando entender o outro a partir dos seus
próprios significados, e não por uma visão exterior dele mesmo. Procurando ainda
com isso reter os significados, as “piscadelas” da sua extinção e transformando-os
em dados prontos a ser investigados posteriormente.

24
Antropologia Crítica ou Pós-Moderna
Ainda em pleno desenvolvimento, a corrente antropológica denominada como
crítica ou pós-moderna surge nos anos 1980 como uma forma de contraposição
das ideias vigentes dentro da Antropologia, tanto em suas linhas mais gerais, quanto
nas questões de cunho metodológico. Essa corrente foi fortemente influenciada
pelo pensador francês Michel Foucault, justamente por criticar os polos de poder
verificados na Antropologia.

No debate proporcionado por essa vertente, surge uma crítica aguda ao discurso
científico antropológico. Emerge daí a ideia de que a realidade é uma interpretação
e que essa interpretação é subjetiva, ou seja, caberia ao próprio pesquisador dar a
sua interpretação da realidade estudada. Com isso se quer dizer que a Antropologia
seria uma interpretação de outras tantas interpretações. Outra ideia marcante
é a busca por estudar o discurso contido em estudos já realizados, isso trouxe
uma possibilidade de que se pudesse entender como a Antropologia formava os
seus quadros dentro dos ditos países (Europa, EUA), revelando com isso a teia de
discursos e posições defendidas.

Em resumo, poderíamos dizer que essa vertente trouxe a questão do poder


para dentro dos estudos antropológicos, possibilitando não apenas uma revisão
conceitual da própria Antropologia, como também do olhar do antropólogo para si
e para o seu objeto de pesquisa, gerando com isso uma maneira politizada de lidar
com o nativo e as suas interpretações.

25
25
UNIDADE As Teorias Antropológicas da Cultura

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Sites
O nascimento da Antropologia Americana e o Difusionismo
O nascimento da Antropologia Americana e o Difusionismo: Franz Boas como
protagonista. Está disponível no site Nações do Mundo, disponível no link:
https://goo.gl/DZwF3e
Difusionismo e Evolucionismo
FONSECA, Dilaze Mirela; PACHECO, Marina Rute. Difusionismo e Evolucionismo.
Texto presente no site, disponível no link:
https://goo.gl/6sCRVy
História e Etnologia
SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. História e Etnologia: Lévi-Strauss e os embates em
região de fronteira. Texto está no portal Scielo, disponível no link
https://goo.gl/ucxdG6

Filmes
Queimada
dir.: Gillo Pontecorvo, Itália / França, drama, colorido, 1969.
Dança com lobos
dir.: Hector Babenco, EUA, drama, colorido, 1991.
Brincando nos campos do senhor
dir.: Kevin Costner, EUA, drama, colorido, 1990.
O Último dos Moicanos
dir.: Michael Mann, EUA, drama, colorido, 1992.
1900: Homo Sapiens
dir.: Peter Cohen, Suécia, drama, colorido, 1999.
O povo brasileiro
dir.: Isa Grinspum Ferraz, Nrasil, documentário, colorido, 2000.
Filmes antropológicos
Filmes antropológicos na plataforma VIMEO desenvolvidos pela pesquisadora e
professora Rose Satiko Hikiji do departamento de Antropologia da USP:
https://goo.gl/ro6IZu

26
Referências
ARENDT, Hanna. La crise de la culture: Huit exercices de pensée politique,
tradução do inglês sob a direcção de Patrick Lévy. Paris: Gallimard, 1972

BENEDICT, Ruth. 1934. Padrões de cultura. Lisboa: Livros do Brasil, s.d.

BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

CHILDE, V. Gordon. A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1966.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989

CLIFFORD, James; MARCUS, George E. Writing Culture: the Poetics and


Politics of Ethnography. Berkeley: Berkeley University Press, 1986.

DARWIN, Charles. A origem das espécies. Porto: Livraria Chardron, 1957.

DURING, Simon (Ed.). The cultural studies reader. London: Routledge, 2007.

ELIOT, T.S. Notas para a definição de Cultura. Lisboa: Século XXI, 1996.

ELLIOT, Hugh. Herbert Spencer. London: Constable and Company, Ltd., 1917

FRANCIS, Mark. Herbert Spencer and the Invention of Modern Life. Newcastle:
Acumen Publishing, 2007.

GOMBRICH, E.H. Para uma história cultural. Lisboa: Gradiva, 1994.

HALL, Stuart; GAY, Paul du. Questions of cultural identity. London: s/ed., 1996

KENNEDY, James G. Herbert Spencer. Boston: G. K. Hall & Co., 1978.

KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru, Edusc, 2002.

LEWIS, Herbert S. The Misrepresentation of Anthropology and its Conse-


quences. American Anthropologist, n. 100, p. 716-731. 1998.

MARGARIDA MARIA MOURA. Nascimento da Antropologia Cultural: A Obra


de Franz Boas. São Paulo: Hucitec, 2004.

MELLO, L. G. Antropologia Cultural: Iniciação, Teoria e Temas. Petrópolis:


Vozes, 2004.

RICHARDS, Robert J. Darwin and the Emergence of Evolutionary Theories


of Mind and Behavior. Chicago: University of Chicago Press, 1987.

ROUSSEAU, J. O Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

27
27
UNIDADE As Teorias Antropológicas da Cultura

TAYLOR, Michael W. The Philosophy of Herbert Spencer. London:


Continuum, 2007.

VERSEN, Christopher R. Optimistic Liberals: Herbert Spencer, the Brooklyn


Ethical Association, and the Integration of Moral Philosophy and Evolution
in the Victorian Trans-Atlantic Community. Florida: Florida State University
Press, 2006.

28
Antropologia
Material Teórico
Família e Parentesco

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Rodrigo Medina Zagni

Revisão Técnica:
Prof. Ms. Edson Alencar Silva

Revisão Textual:
Prof. Ms. Claudio Brites
Família e Parentesco

• A Antropologia da Família e do Parentesco

OBJETIVO DE APRENDIZADO
··Trataremos do tema “Família e Parentesco”.
··Trataremos dos valores universais e das dimensões fundamentais do
parentesco, discutindo o parentesco como elemento conceitualizador,
organizador e gestor das relações sociais, a partir da Antropologia da
Família e do Parentesco.
··Estudaremos a família e o matrimônio nas sociedades humanas,
desde as relações de consanguinidade e afinidade nas suas diver-
sas variantes.
··Debruçaremos sobre as principais teorias que permitem compreender
a dimensão cultural da família e do parentesco.
··Compreender como se formam e se transformam essas unidades
primordialmente culturais de convívio social, mas nos servirá também
de instrumento para a compreensão das práticas culturais que nos
cercam em nosso cotidiano.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo.

No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE Família e Parentesco

A Antropologia da Família e do Parentesco


Os estudos que tratam dos valores universais e das dimensões fundamentais
do parentesco, que discute sobre as teorias sobre descendência e aliança, e que
tratam do parentesco como elemento conceitualizador, que define, organiza e gere
as relações sociais, é a assim designada Antropologia da Família e do Parentesco.

Figura 1 – A Luxúria representada por Pieter Bruegel,


de sua série sobre os Sete Pecados Capitais
Fonte: Wikimedia Commons

Constitui seu campo de interesses, portanto, o parentesco, a família e o matri-


mônio nas sociedades humanas, estudando desde as relações de consanguinidade
e afinidade nas suas diversas variantes, até as
estruturas do parentesco (aquelas mais simples,
designadas como elementares; intermediárias,
chamadas de semicomplexas; e as complexas),
por meio de exemplos clássicos e etnográficos
(provenientes de pesquisas empíricas nas quais
o antropólogo, por meio da observação parti-
cipativa, registra hábitos de vida de grupos hu-
manos, nesse caso, familiares).
Perscrutando as condutas sociais, não só a
permissividade está sob enfoque dessa antropo-
logia, como as proibições matrimoniais e outros
interditos dados desde os códigos morais de con-
duta social – as leis tradicionais ou consuetudiná-
rias, verificadas em sociedades simples –, até as
Figura 2 – Otto Mueller, “sitzendes
leis escritas, de caráter burocrático e racionaliza- zigeuner-liebespaar”, 1919
do, mais caras às sociedades complexas. Fonte: artnet.com

8
Trata particularmente de como a Antropologia contribuiu para pensar o caráter
social (e não natural) da família e a não universalidade do nosso modelo de família
nuclear. Destaca ainda o significado do casamento e do tabu do incesto como
instituições sociais, sobretudo a partir da obra de Lévi-Strauss e sua contribuição
para o pensamento antropológico.

Também os interditos mágico-religiosos, que fundamentam os princípios


esotéricos e teológicos, não só para a validade do matrimônio, mas também para
a escolha, por vezes, do próprio cônjuge.

Trata-se de um objeto primordialmente antropológico, dado que o parentesco


é definidor, entre outros critérios, de identidades sociais e, sendo assim, variam de
sociedade para sociedade. O papel do parentesco é não só antropológico, mas,
sendo antropológico, é primordialmente relativo.

A interação do parentesco nas várias instâncias sociais e entre grupos sociais


distintos é, portanto, um dos muitos desafios compreensivos da Antropologia, nas
perspectivas da diversidade, heterogeneidade e correlações.

Duas categorias de teorias são primordiais nos estudos sobre o parentesco:


temos as teorias da filiação, definidas a partir dos estudos principalmente do
psicólogo e antropólogo sul-africano Meyer Fortes (1906-), sobre as semelhanças
e diferenças a respeito de critérios de filiação entre distintos grupos sociais; e as
teorias da aliança, primordialmente do fundador da antropologia estruturalista,
o francês Claude Levi-Strauss (1908-2009), e dos antropólogos franceses Louis
Dumont (1911-1998) e Françoise Héritier (1933-), que, por sua vez, investigam
outras redes de parentescos independentes da consanguinidade.

Figura 3 – Meyer Fortes Figura 4 – Françoise Héritier Figura 5 – Claude Levi-Strauss


Fonte: npg.org.uk Fonte: Wikimedia Commons Fonte: Wikimedia Commons

9
9
UNIDADE Família e Parentesco

Conceitos e Tipos Antropológicos de Família


No sentido antropológico, sociológico e histórico, a família constitui-se a partir
dos rituais engendrados para marcar sua formação e transformações, bem como
pela determinação de seu número de cônjuges.

Figura 6
Fonte: Wikimedia Commons

O ritual de constituição de uma nova família é chamado de matrimônio e varia de


sociedade para sociedade, podendo ser encontradas diversas formas de matrimônio
em lugares e épocas distintas.
Outro princípio determinante para a constituição da família é o da residência,
que pode ser dividida em três modalidades conforme suas características principais:

Princípio da Residência dos Cônjuges


matrilocal quando o noivo vai residir junto da família da noiva
patrilocal quando a noiva vai residir junto da família do noivo
neolocal quando o casal reside em um local independente de seus familiares

A constituição da família pode ainda depender de critérios referentes à origem


dos cônjuges, se pertences ao mesmo grupo social ou se são de diferentes grupos.
Trata-se dos princípios de:

Princípio da origem dos cônjuges


exigência do matrimônio exclusivamente com pessoas pertencentes ao mesmo
endogamia
grupo social (raça, nacionalidade, religião, classe social, clã, comunidade etc.)
exogamia exigência do matrimônio exclusivamente com pessoas de grupos diferentes

10
Constitui-se também pelo número de cônjuges, podendo ser:

Princípio da Origem dos Cônjuges


monogâmica constituída a partir de um homem e uma mulher
poligâmica mais de um homem para uma mulher ou mais de uma mulher para um homem
grupal trata-se do matrimônio entre mais de uma mulher com mais de um homem

Figura 7 – Entre os Yanomami reina o monogamia, mas chefes


e os pajés de prestigio podem ter duas ou mais mulheres.
Fonte: zerowastelifestyle.de

Conforme podemos verificar no quadro acima, a poligamia pode assumir duas


formas, de acordo com a configuração do matrimônio. Os dois tipos, por sua vez,
são nominados da seguinte forma:

Tipos de Poligamia
poliginia um homem e mais de uma mulher
poliandria uma mulher e mais de um homem

As duas últimas formas de constituição do matrimônio referem-se à figura legal


do cônjuge, não como indivíduo portador de direitos, mas como “rés” alheia, ou
seja, como “coisa”, ou propriedade daquele com quem contraiu matrimônio. Nessa
modalidade, temos:

Princípio da Condição de Propriedade dos Cônjuges


em que a mulher é tratada como patrimônio de seu esposo e, com a morte desse,
Levirato
seu sucessor a herdaria
Sororato em que o homem é obrigado a casar-se com uma ou mais irmãs de sua esposa

11
11
UNIDADE Família e Parentesco

Figura 8
Fonte: Wikimedia Commons

Quanto à dimensão, a família pode ser variável, determinada pelo tipo de auto-
ridade nela exercida e pela quantidade de núcleos. A questão é relativamente sim-
ples: temos, por exemplo, um núcleo podendo ser conformado por pai, mãe e seus
filhos; no momento em que um filho se casa, passa a formar outro núcleo, e assim
sucessivamente (os núcleos podem obedecer a outras configurações). A questão
da autoridade se refere a quem manda efetivamente no núcleo, decidindo sobre os
seus destinos. Nessa perspectiva, a unidade familiar se subdivide em:

Princípio da Dimensão da Família


extensa há mais de uma unidade nuclear e geralmente estende-se por mais de duas gerações
constituída pelo marido, esposa e filhos, e desfaz-se assim que os filhos deixam
conjugal ou nuclear o convívio dos pais para constituir suas próprias famílias, a autoridade é exercida
pelo próprio casal

É na família de dimensão extensa que se opera o princípio da autoridade, isso


porque na família conjugal ou nuclear a autoridade é dividida pelo casal, não havendo
hierarquias entre marido e mulher. De acordo com o exercício da autoridade, as
famílias de dimensão extensa dividem-se em:

Princípio da Autoridade em Famílias Extensas


matriarcal a mãe desempenha a figura central, representando a fertilidade
patriarcal a autoridade é exercida pelo pai, o varão mais velho

12
O Problema do Etnocentrismo no Entendimento
de Distintas Formas de Família e de Matrimônio
Em qualquer circunstância, não podemos ser et-
nocêntricos, ou seja, julgar uma cultura alheia sob
o prisma da nossa. Devemos respeitar as diferenças
culturais de outros povos e de seus períodos his-
tóricos, bem como as instituições e maneiras que
criaram as sociedades para se organizarem, pois re-
sultaram de processos cujos valores éticos e morais
constitutivos divergem dos nossos.

Por mais estranha que pareça uma cultura em


seus vários aspectos, como, por exemplo, o da
constituição da família e do matrimônio, não deve-
mos julgar suas distintas formas de organização, de-
finindo-as como inferiores ou mesmo superiores à
nossa, elas são apenas “diferentes”. Inclusive, para
muitos povos não muito distantes do nosso, nossa Figura 9 – Alfred Reginald
cultura é que é “estranha”, se formos analisados de Radcliffe-Brown (1881-1955)
forma etnocêntrica e, portanto, errônea. Fonte: Wikimedia Commons

Sistemas Antropológicos de Parentesco


Alguns conceitos estão correlacionados na Antropologia, ao de parentesco, entre
eles os de: linhagem, regras de residência, aliança, afinidade, etc., primordialmen-
te caros às proposições do cientista social inglês Alfred Reginald Radcliffe-Brown
(1881-1955), de Claude Lévi-Strauss e do antropólogo britânico Edward Evan Evans-
-Pritchard (1902-1973).

Figura 10 – E.E. Evans-Pritchard


Fonte: Wikimedia Commons

13
13
UNIDADE Família e Parentesco

Sob a ótica da antropologia, Evans-Pritchard, na


obra Os Nuer, definiu a unidade social do clã como um
sistema de linhagens. Por sua vez, uma linhagem se
trata de uma sucessão genealógica que traz, nos seus
dois extremos, um fundador e seus descendentes vivos.

A Antropóloga Eunice Durhan, no livro Família e


reprodução humana, chama a atenção para o fato
de que, a partir de uma visão antropológica, os sis-
temas de parentesco constituiriam estruturas formais Figura 11 – Eunice Durhan
nas quais se combinariam três relações básicas: Fonte: al.sp.gov.br

Relações Básicas em Sistemas de Parentesco


descendências entre pai e filhos e/ ou mãe e filhos
consanguinidade entre irmãos
afinidade criadas pelo casamento

Família e Parentesco para Lévi-Strauss


A importância do estruturalismo de Lévi-Strauss nos estudos sobre a família
e o parentesco foi o seu deslocamento para o campo da cultura. Ou seja, de
uma unidade biológica, a família passou a ser designada, como objeto de estudos,
como uma unidade cultural. Ainda que vetorizada pela consanguinidade (mas nem
sempre e para toda e qualquer realidade), a família constitui também um objeto
significativo para estudos de ordem sociológica, uma vez que, do todo social,
buscando-se unidades constitutivas menores, a família é o núcleo de sociabilidade,
ou a unidade sociológica primordial, imediatamente posterior à categoria indivíduo.
Como unidade sociológica, é portadora, geradora e difusora de cultura.

A Biologia explica dinâmicas da reprodução, mas não seus fazeres sociais,


dados culturalmente uma vez que são construídos em sociedade. Também reduz
a análise aos traços que conectam indivíduos por meio de suas correspondências
genéticas, mas tão somente isso, resultando no seu isolamento, uma vez que o élan
que conecta redes de parentesco não provêm do sangue, senão dos significados
socialmente construídos a respeito da consanguinidade e de outros caracteres
que configuram, para distintas sociedades, distintos critérios de pertencimento ao
núcleo familiar, como: cooperação, matrimônio, obrigação, dever, honra, virtude,
interdependência, submissão, autoridade etc.

No grupo familiar, ainda segundo Lévi-Strauss, configuram-se redes de


comunicação que reproduzem as dinâmicas do todo de sociedade nas quais está
inserida, respondendo aos estímulos externos, provenientes desse todo social
que os engloba, na forma de uma cultura primordialmente familiar, que resiste
ou adere às transformações sociais em curso segundo a partilha de valores e
tradições que definem para si, conforme suas filiações e identidades, que também

14
são partilhadas no grupo familiar, negociadas em maior ou menos grau a adesão de
seus componentes (vide a desobediência ou reticência dos mais jovens; e eventual
intransigência e conservadorismo dos mais velhos, no mesmo grupo familiar).
Tratando-se do mundo da cultura, em oposição ao mundo da natureza, Lévi-
Strauss define a família como o mundo das regras. Sendo assim, códigos de
conduta provenientes do próprio núcleo familiar ou incorporados como valores
externamente (como da religião, da educação formal, do governo e da sociedade
em geral) definem o que é permitido e o que é proibido.

O incesto, a poligamia, o adultério, o sexo pré-nupcial, dentre tantos outros temas


passam a ser objetos de severa normatização, bem como a verificação sobre suas
prescrições, objeto de intenso controle social, de dentro e de fora do grupo familiar.

Figura 12
Fonte: Wikimedia Commons

A família não obedeceria, portanto, para Lévi-Strauss, a uma ordem natural


(a da consanguinidade, como quer a Biologia) – se assim fosse, seria o campo de
liberdade plena dos instintos –; pelo contrário, como vimos, pesam sobre a família
pesados códigos de conduta, socialmente construídos, ou, como queiram, culturais.
Trata-se de uma ordem cultural, a da aliança.
Ver a família para além das fronteiras biológicas permite ao antropólogo verificar
que ela está na base fundadora da própria humanidade, pois se o que define a
sociedade humana são suas redes de troca e interdependência, nos estudos sobre
família e parentesco, a desnaturalização da família revela que a sociedade humana
tem como unidade primordial não o indivíduo, mas o indivíduo no núcleo familiar.

15
15
UNIDADE Família e Parentesco

Família, Reprodução e Parentesco


entre Clássica e Nova Antropologia
A ótica antropológica sobre os estudos
focados na família, reprodução e paren-
tesco, a exemplo se seus demais focos de
interesse, valorizam o método qualitati-
vo, em geral etnográfico (para coleta e
registro de dados a partir da observação
participativa), no contato direto com os
atores sociais que compõe essas relações,
ou seja, antes de serem instituições ou
meras práticas sociais, tratam-se de vivas
relações sociais, em transformação no Figura 13 – Barrie Thorne
tempo e no espaço. Fonte: Akademický Bulletin

Não nos aprofundaremos na recente Antropologia da Reprodução, para a qual


a reprodução (tanto no sentido biológico como social) está ligada à cultura, e não
restrita ao intercurso sexual, mas nos paradigmas fundadores de uma Antropologia
da Família e do Parentesco.
Contudo, uma de suas mais expressivas autoras, a socióloga Barrie Thorne
(1942-) tratando das contribuições do movimento feminista sobre os estudos da
família, no campo inter e multidisciplinar para além da Antropologia, envolvendo
estudos filosóficos, históricos, psicológicos e sociológicos, chamou a atenção para
cinco características que marcariam uma nova perspectiva crítica desses estudos:
1. o tratamento da categoria “família” como uma unidade natural, entrecruzando
seus caracteres biológicos e ideológicos;
2. determinação das desigualdades a partir das relações de gênero, geração,
sexualidade, raça e classe;
3. estudo das relações entre indivíduo e comunidade, bem como entre o
público e o privado;
4. valorização das experiências de convívio familiar, tanto de conflito quanto
de cooperação;
5. o rompimento com esquemas interpretativos que isolavam a família das
transformações sociais em curso.

16
Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Filmes
Tudo o que Você Sempre quis Saber sobre Sexo
Dir.: Woody Allen, EUA, comédia, colorido, 1973.
Monty Python: O Sentido da Vida
Dir.: Terry Jones, Inglaterra, comédia, colorido, 1973.
Calígula
Dir.: Tinto Brass / Bob Guccione, EUA, drama, colorido, 1980.
O Cárcere e a Rua
Dir.: Liliana Sulzbach, Brasil, documentário, colorido, 2004.
Uma História Severina: O Cordel, A Música, Um Filme
Dir.: Debora Diniz e Eliane Brun, Brasil, documentário, colorido, 2005.
Que Casa é Essa?
S/Dir., Brasil, documentário, colorido, 2007.
Dias Contados: Mães Encarceradas no Estado de São Paulo
Dir.: Cláudia Garcia, Brasil, documentário, colorido, 2009.

Leitura
Contribuições da Antropologia para o Estudo da Família
SARTI, Cynthia Andersen. Contribuições da antropologia para o estudo da família.
Psicol. USP, São Paulo, v. 3, n. 1-2, p. 69-76, 1992.
https://goo.gl/HkXg8n
Apresentação de Família, Reprodução e Parentesco: Algumas Considerações
FONSECA, Claudia. Apresentação de família, reprodução e parentesco: algumas
considerações. Cad. Pagu, Campinas, n. 29, p. 9-35, Dec. 2007.
https://goo.gl/Ef6Z9Q

17
17
UNIDADE Família e Parentesco

Referências
ARROS, Myriam Lins de. (org.) Família e Gerações. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

AUGÉ, M. Os domínios do parentesco. Lisboa: Ed. 70, 1978.

BARROSO, Carmen; CORREA, Sônia. What’s so new about the new reproductive
technologies? In: GINSBURG, Faye; RAPP, Rayna (orgs.). Conceiving the new
world order. Berkeley: University of California Press, 1995.

BONTE, P. Épouser au plus proche: inceste, prohibition et stratégies


matrimoniales autour de la Méditerrannée. Paris: Ed. de l´École des Hautes en
Sciences Sociales, 1994.

CARSTEN, Janet. Cultures of relateness: new approaches to the study of


kinship. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

DUARTE, Luis Fernando D.; HEILBORN, Maria Luiza; LINS DE BARROS,


Myriam; PEIXOTO, Clarice. (orgs.) Família e religião. Rio de Janeiro: Contra
Capa, 2006.

DURHAN, Eunice R.; Família e reprodução humana. In: Perspectivas


antropológicas da mulher. n. 3, Rio de Janeiro: Zarar, 1978.

EDGAR, Don. Globalization and Western bias in family sociology. In: SCOTT,
Jackie; TREAS, Judith; RICHARDS, Martin (orgs.). The Blackwell Companion
to the Sociology of Families. Oxford: Blackwell, 2003.

EVANS-PRITCHARD, E. E. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978.

GHASARIAN, C. Introdução ao estudo do parentesco. Lisboa: Terramar, 1999.

LÉVI-STRAUSS, C. O olhar distanciado. Lisboa: Ed. 70, 1986.

________. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis: Vozes, s/d.

MOREAU, P. L’inceste à Rome. Paris: Les belles lettres, 2002.

RADICLIFFE-BROWN. A. R. Estrutura e Função na Sociedade Primitiva.


Petropólis: Vozes, 1973.

THORNE, Barrie; YALOM, M. (orgs.). Rethinking the family: Some feminist


questions. Boston: Northeastern University Press, 1992.

18
Antrologia
Material Teórico
Religião, Religiosidade e Magia

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Rodrigo Medina Zagni

Revisão Técnica:
Prof. Ms. Edson Alencar Silva

Revisão Textual:
Prof. Ms. Claudio Brites
Religião, Religiosidade e Magia

• Religião como Objeto de Estudo Antropológico


• Religiões e a Questão da Verdade
• A Natureza das Religiões
• Crença e Ritual
• Religiosidade e Magia
• Intolerância e Religião

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Compreender o fenômeno religioso, que nos servirá também de
instrumento para compreensão das práticas que nos cercam em
nosso cotidiano.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo.

No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE Religião, Religiosidade e Magia

Religião como Objeto de Estudo


Antropológico
O tema religião é sempre algo delicado de lidar, justamente porque esbarramos
em questões de ordem subjetiva e, portanto, de identidade. No entanto, ao tratar
esse tema como problema antropológico, podemos colocá-lo em outros termos, ou
seja, entender qual é o papel da religião no cotidiano dos seres humanos. Assim,
partimos em busca do entendimento dos códigos partilhados pelas pessoas em
torno das religiões e também com relação às instituições religiosas.

Com isso, podemos dizer de antemão que a preocupação da Antropologia é


distinta da ideia de crítica aos sistemas religiosos, mas, ao contrário disso, se volta
à compreensão desses sistemas, de seus conjuntos de crenças, dos seus rituais e das
ações dos indivíduos motivadas por esses elementos. Assim, a Antropologia define
religião como um conjunto de práticas e convicções que direcionam as maneiras de
ver e ler o mundo de uma dada cultura ou grupo social.

É nesse sentido, portanto, que o olhar antropológico abordará a religião. A sua


atenção estará dada paro o horizonte daquilo que é partilhado pelas pessoas e que
lhes traz variadas significações. Em outras palavras, não a religião como verdade,
mas a religião como código que poderá vir a ser analisado e pesquisado o que
interessa aos antropólogos.

Religiões e a Questão da Verdade


Em essência, toda religião possui a sua verdade e, no mais das vezes, elas não
coincidem entre si; a ponto de a verdade de uma ser a mentira para outra. Sendo
assim, nenhuma religião é dona da verdade, senão daquela que lhe é própria.
Verdade em princípio religioso deve ser compreendido em relação como cada
princípio de composição fundamental e inegável de um sistema religioso ou
religião. Às vezes, o caráter de verdade de uma afirmação se baseia na tradição
dos antepassados ou na palavra de um profeta ou de um livro sagrado crido como
palavra de um deus.

8
Figura 1 – Alguns conflitos religiosos ocorridos na Alemanha, mas que foram solucionados
com a assinatura da Paz de Augsburgo, em 25 de setembro de 1555, que inaugurava um
período no qual o príncipe podia impor sua crença aos hábitos de seus domínios
Fonte: dhm.de

O sectarismo de religiosos em não admitir o direito de outras fés religiosas


conceberem verdades distintas das suas acaba sendo a matriz geradora do que
chamamos de conflitos religiosos.

Ao não admitir a verdade do outro, ainda que distinta da sua, tão somente
do direito de existir e mobilizar crenças, leva a uma percepção negativa sobre
credos religiosos distintos daquele que enxerga na sua verdade, a única considerada
possível e merecedora do direito de existir. Logo, tudo que diverge dessa verdade
é inferior e deve, portanto, desaparecer, bem como seus portadores e difusores.

Trata-se do modelo de concepção prévia sobre qualquer mensagem que soe


diferente de suas referências sobre a verdade difundida por uma religião dominante.
É prévia ao conhecimento das religiões que pregam mensagens diversas; logo, não
seria necessário conhecê-las, pois apenas por soar diferente já se acredita saber o
suficiente sobre ela, negativando-a valorativamente: a esse fenômeno chamamos
de preconceito (um conceito prévio ao conhecimento sobre aquilo sobre o qual se
emite um juízo de valor).

9
9
UNIDADE Religião, Religiosidade e Magia

O preconceito religioso, comumente, é acompanhado pelo fanatismo, o que


configura um dos maiores males da humanidade.

Figura 2 – Membros do Ku Klux Klan na Carolina do Norte, em 1958


Fonte: Wikimedia Commons

A Natureza das Religiões


A religião pode ser entendida tanto como uma instituição (a Igreja Católica,
a Igreja Protestante, o Budismo, o Islamismo, por exemplo) quanto como um
fenômeno presente na cultura de toda a humanidade, desde os mais remotos
tempos até os dias de hoje, isso porque práticas religiosas podem ser verificadas já
desde os primeiros grupamentos humanos.

Figura 3 – A Igreja Católica é a maior denominação religiosa (organização religiosa)


do Cristianismo, com mais de um bilhão de fiéis
Fonte: iStock/Getty Images

10
Figura 4 – As religiões cristãs protestantes surgem no século XVI em um racha da Igreja Católica
Fonte: iStock/Getty Images

No campo das Ciências Humanas, da Filosofia e da Teologia, alguns estudiosos


definem a religião como a manifestação de um conjunto de crenças em seres
espirituais, ou seja, cuja existência não seria objetiva, mas subjetiva; não concreta,
mas abstrata; não visível, mas invisível.

Invariavelmente, as religiões são portadoras e difusoras de repertórios


normativos, ou seja, por meio de textos sagrados ou pela oralidade, difundem
normas religiosas cujo objetivo seria prescrever valores morais que definiriam a
boa conduta religiosa, frente ao objetivo da salvação. Em contraste com a natureza
do comportamento humano, essas normas tendem a impor uma moral sobre as
vontades, prescrevendo a condenação no pós-morte como a pior das penas pela
inobservância desses preceitos normativos.

A subserviência dos súditos não se explica tão


somente por conta de sua crença ou fé, como sub-
missão cega a uma autoridade religiosa; mas baseia-
-se na pior das certezas do Homem: a aproximação
inexorável da morte; reciprocamente à pior de suas
incertezas: sobre seus destinos no pós-morte, o que
se verifica em várias sociedades. Sendo assim, a
alma humana está inclinada, frente as suas certe-
zas e incertezas, às religiões, isso porque é porta-
dora daquilo que definimos como religiosidade. O
sentimento religioso, ou seja, a religiosidade, está
presente em nossa vida desde que tomamos cons-
ciência sobre nossa própria existência, o que inclui
a consciência sobre sua finitude e sobre o maior de Figura 5 – Dalai-Lama,
seus abismos desconhecidos: o que ocorre depois líder espiritual do Budismo
da morte, se é que algo ocorreria. Fonte: iStock/Getty Images

11
11
UNIDADE Religião, Religiosidade e Magia

Essas certezas e incertezas nos acompanham, em maior ou menor grau, por


toda a vida até nossa morte e, não tendo sido elucidadas por nenhuma outra
forma de conhecimento (o que inclui as ciências), segue sendo, a religião, a ins-
tituição que acalenta seus fiéis, dando-lhes camadas de certezas sobre as quais a
condição humana pode seguir sua caminhada, no percurso de sua efêmera, mas
significativa existência.

Crença e Ritual
Basicamente, a religião é constituída por dois elementos: a crença (fé) e o ritual.
A crença (fé) consiste em um sentimento de respeito, submissão, confiança e até
mesmo medo em relação ao sobrenatural. É o desejo humano de aceitar qualquer
fenômeno, mesmo que não haja para ele comprovação científica.
É o caso, por exemplo, da “fé cega” a
explicações racionais quando de “pseu-
do-aparições” de entidades sobrenatu-
rais – a Virgem Maria em manchas de
janelas de algumas casas na cidade de
São Paulo, que mobilizou romarias até
as casas em busca de “salvação” e de mi-
lagres. A crença pode ser também obje-
to de interesses alheios, primordialmen-
te políticos e econômicos – serviria tanto
para promover candidaturas políticas
quanto para vender santinhos, camisetas
etc. Mas aqui nos referimos àqueles que
tiram proveito da “boa fé” das pessoas, Figura 6
ou de sua crença religiosa. Fonte: iStock/Getty Images

Figura 7 – Suposta aparição de Jesus em frigideira


Fonte: telegraph.co.uk

12
Já o ritual trata-se da manifestação do sentimento por um ou mais indivíduos,
por meio da ação. O ritual religioso se refere, portanto, ao sentimento religioso (isso
porque nem todo ritual é, necessariamente religioso, basta que seja um conjunto de
ações cujo significado seja imaterial). Dessa maneira, podemos definir ritual como se
tratando de um sistema de práticas aceitas tradicionalmente, modos de ser e estar no
mundo, ou normas, que podem ser verificados em determinadas cerimônias.

Figura 8 – El Colacho, festa tradicional em que um homem, vestido de diabo, salta sobre bebês
Fonte: vice.com

É um tipo de ação padronizada ou, se quisermos, ritualizada, e que se volta para


um ou vários deuses, seres espirituais ou forças sobrenaturais, com uma finalidade
qualquer. No mais das vezes, o ritual tem a finalidade de comunicar algo aos deuses,
como pedidos ou agradecimentos a graças alcançadas, e assumem as mais diversas
formas: festividades, danças, música, transes, orações etc. Também tem a função
de conectar o indivíduo ao Sagrado, fazendo com que transcenda sua dimensão
meramente material, a fim de atender aos seus desejos da alma, “alimentando-a”
por meio do ritual naquilo que chamamos então de “transcendência”.
Numa única cerimônia religiosa podem existir vários rituais inter-relacionados.
Temos várias festividades religiosas brasileiras que se enquadram nessas categorias
ritualísticas, tanto quanto a peregrinação à Meca pelos muçulmanos ou o autoflagelo
cometido por adeptos de várias religiões ocidentais e orientais – com o uso de
brasas, chicotes, facas etc.

Figura 9 – Comunidades de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros


Fonte: iStock/Getty Images

13
13
UNIDADE Religião, Religiosidade e Magia

Religiosidade e Magia
Tanto a religiosidade quanto a magia são duas maneiras propriamente humanas
de se conectar com o “sagrado”. Práticas mágicas correspondem ao poder de
acionar as divindades e fazê-las agir, interferindo no mundo humano.
Desde os mais remotos tempos, a humanidade desenvolveu distintas formas de
se relacionar com entidades sobrenaturais e que julgavam ter o poder de interferir
no mundo dos vivos, buscando a partir daí relações com o sagrado. Tanto a magia
quanto a religiosidade forneceram formas ao Homem para o estabelecimento desse
contato com o mundo sobrenatural, com o objetivo de resolver questões humanas
materiais ou espirituais.

Figura 10 – A Feitiçaria e a Magia são consideradas artes ou ciências que se aprendem


Fonte: iStock/Getty Images

A magia seria então uma espécie de estratégia ou tática das sociedades para
obterem a ajuda dos deuses em suas vidas. As práticas mágicas são necessariamente
ritualizadas e se perpetuam com o passar do tempo, se transformando de acordo
com distintos contextos sociais, mas mantendo antigos significados.
Contudo, magia e religião não são termos sinônimos. A magia é paralela à religião,
ela faz uso das tradições religiosas existentes em uma determinada sociedade,
com o objetivo de obter melhores resultados que a própria religião oficial. Seria
uma espécie de “atalho” para se chegar aos deuses, segundo a interpretação das
religiões oficiais, e muitas de suas práticas foram tidas pelas religiões dominantes
como proibidas, motivo pelo qual chegaram a ser, em muitas sociedades, banidas.
Há pesquisadores que apontam que a magia teria decaído nas sociedades
em que teria havido cisões entre ciência e religião. Feitiçaria, magia popular e
bruxaria, como práticas mágicas de interferência espiritual na realidade, teriam
sido substituídas por uma fé maior na ciência e na técnica, motivo pelo qual
sociedades que se modernizaram abandonaram práticas mágicas em seu cotidiano.
Contudo, mesmo que se leve em consideração essas ideias, é difícil retirar a magia
do horizonte religioso, dado que é através de ações mágicas que muitos rituais
religiosos ganham eficácia simbólica.

14
Figura 11 – A feitiçaria consiste num conjunto de conhecimentos práticos e teóricos sobre magia,
ou seja, sobre a invocação de espíritos com a finalidade de criar certos efeitos no mundo terreno
Fonte: iStock/Getty Images

Intolerância e Religião
Já nessa etapa inicial de nossas reflexões, tendo dado conta das primeiras
conceituações teóricas sobre religião e religiosidade, podemos nos perguntar: por
que as religiões estão tão ligadas a fenômenos de intolerância?
Porque desvelam visões distintas de mundo e suas interpretações, ou melhor,
são operacionalizadas nesse sentido.
A religião, como instituição, não deve ser confundida com religiosidade. Isso
porque todos nós possuímos religiosidade, ainda que não tenhamos nenhuma
religião. É o caso daqueles que acreditam (têm fé) em um deus, ou em deuses, sem
praticar ou se identificar com alguma religião.
A religiosidade constitui nossa dimensão imaterial de existência, onde residem
nossas necessidades subjetivas como: amar, ser amado, perseguir uma ideia de
justiça, de verdade...

Figura 12
Fonte: iStock/Getty Images

15
15
UNIDADE Religião, Religiosidade e Magia

Essa dimensão é chamada de “Sagrado”, conforme entende a Teologia e a


Antropologia Cultural. Nas mais variadas religiões, recebe os mais distintos nomes:
Deus, Alá, Buda, Kishna etc. O que é necessário saber, em termos antropológicos,
é que constitui o estado de transcendência em que, por meio do ritual (dado em
livros sagrados ou outras formas de indicações expressas em praticamente todas as
religiões), o indivíduo transcende a sua dimensão meramente material e se conecta
a algo maior, que lhe alimenta a alma e lhe devolve à matéria transformado, em
condição de equilíbrio e paz.

Figura 13 – Palavra Alá em caligrafia árabe


Fonte: iStock/Getty Images

Nesses termos, a religião poderia ser instrumento de uma sociedade pacífica,


tolerante, e não estaríamos discutindo as relações entre religiões e condutas de
intolerância. Dissemos “poderia” porque não se leva equilíbrio a alguém fomentando
o ódio, a intolerância ou reafirmando exatamente os valores da matéria em
detrimento dos valores do espírito.

Não se transcende a matéria quando o valor ritual é o do dinheiro e o objetivo


deixa de ser a completude dos desejos da alma para a garantia de satisfação plena
dos desejos da matéria.

Viveríamos em desequilíbrio, portanto, não em estado de paz, sequer conosco.

Como aceitar o outro, se não aceitamos nem a nós mesmos, quando incorporamos
valores excessivamente materiais e privilegiamos apenas o “ter”, relegando nosso
verdadeiro “ser”?

16
Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Filmes
O Nome da Rosa
Dir.: Jean Jacques Annaud, Alemanha / França / Itália, drama, colorido, 1983.
O Judeu
Dir.: Jom Tob Azulay, Brasil, drama, colorido, 1986.

17
17
UNIDADE Religião, Religiosidade e Magia

Referências
CATÃO, Francisco. O Fenômeno Religioso. São Paulo, Editora Letras &
Letras, 1995.

BAROJA, Julio Caro. As bruxas e o seu mundo. Lisboa: Vega, Coleção Janus, 1978.

BENTO, Victor Eduardo Silva; Totem e tabu: uma semiologia psicanalítica em


Freud? Estudos de Psicologia, Campinas, v. 24, n. 3, jul./set. 2007.

FREUD, S. Totem et tabou. France: Payot, 1965.

MAUSS, Marcel. Esboço de uma teoria geral da magia. In: ______. Sociologia e
Antropologia. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.

MOMIGLIANO, A. et al. El conflito entre el paganismo y el cristianismo en


el siglo IV. Madrid: Alianza, 1989.

PEREIRA, José Carlos. A magia nas intermitências da religião. Revista Nures,


n. 5, jan./abr. 2007.

RATZINGER, Joseph (Bento XVI). Fé, Verdade, Tolerância – O cristianismo e as


grandes religiões do mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência
“Raimundo Lúlio”, 2007.

SILVA, Gilvan Ventura da. Reis, Santos e Feiticeiros: Constâncio II e os funda-


mentos místicos da Basiléia. Vitória: EDUFES, 2003.

SILVA, Rosângela Maria de Souza. Sobre o Deus de Sócrates (Introdução,


Tradução e Notas). Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade de São
Paulo, 2001.

SILVA, Semíramis Corsi. Universo Mágico em Roma: Representações e Práticas


de Feitiçaria. Ensaios de História, Franca, v. 9, n. 1/2. 2004.

TUPET, Anne Marie. La magie dans la poésie latine – Des origines à la fin du
règne d’Auguste. v. 1. Paris: Les Belles Lettres, 1976.

ZABALA, Jesús de Miguel. Demonologia en Apuleyo. In: ALVAR, J. BLÁNQUEZ,


C. WAGNER, C. G. (eds.). Heroes, semidioses y daimones. Madrid: Ediciones
Clásicas, s/d.

18

Você também pode gostar