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Antropologia Filosófica

Material Teórico
Introdução à Antropologia Filosófica e às
suas Possibilidades Ante a Condição Humana

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Antonio Auresnedi Minghetti

Revisão Textual:
Prof. Me. Luciano Vieira Francisco
Introdução à Antropologia Filosófica
e às suas Possibilidades Ante
a Condição Humana

• Conceituação e Compreensibilidade da Antropologia Filosófica;


• O Homem como um Animal Admirável – Dimensões Fundamentais
do Ser Humano;
• Questões e Modos de Compreensibilidade do Homem – Inferências
Históricas e Culturais;
• O Problema da Subjetividade da Essência e de seus Fundamentos
Ontológicos – a Essência da Verdade;
• A Proposta de Especificação Antropológica de Ernst Cassirer –
O Símbolo.

OBJETIVO DE APRENDIZADO
• Estudar o desenvolvimento das características da comunicação humana e o paradoxo na
comunicação do ser humano com a realidade, no sentido existencial.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam-
bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de
aprendizagem.
UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

Conceituação e Compreensibilidade
da Antropologia Filosófica
A nominação Antropologia Filosófica deriva da junção das palavras gregas
anthropos, que significa o ser humano ou algo relativo ao homem e logia, que
significa estudo, acrescentadas da palavra filosófica, derivada também do termo
grego philosophia, que literalmente significa amor pela sabedoria, mas que após a
junção com anthropos, consiste no estudo de problemas fundamentais do homem
dentro da totalidade de saberes, inter-relacionados no espaço-tempo, no que impli-
ca buscar respostas a algumas questões: O que é o ser humano? O que significa
ser um ente1 humano? Qual é a sua natureza? Qual é a sua razão de ser? Como
se deu e para aonde caminha o seu desenvolvimento?

Antropologia Filosófica ao ter como objetivo primeiro o homem, traduz o inten-


to de o homem, a partir da concepção que este tem de si, ao longo de sua existên-
cia, investigar a forma pela qual, através de seu modo específico de ser no mundo
entre outros seres, compreende e acessa as realidades que lhe são acessíveis e,
por vezes, até mesmo as transcende. Essa condição específica requer primordial-
mente uma antropologia da essência humana – e não especificamente de suas
características –, tornando esta Disciplina diferente de outras antropologias que
também estudam o homem sob perspectivas outras.

A Antropologia filosófica é uma disciplina relativamente coeva, com origem, em


especial, nos trabalhos do filósofo Max Scheler (1874-1928), que a considerou o
elo entre as Ciências Positivas e a Metafísica.
A relação fundamental do homem com o fundamento do mundo reside
no fato de que este fundamento se compreende e realiza no homem –
que, como tal, tanto como ser espiritual quanto como ser vivo, é sempre
apenar um centro parcial do espírito e do ímpeto do “ser que existe
por si”. Eu digo: ele se compreende e realiza imediatamente no homem
mesmo. (SCHELER, 2003, p. 88-89)

Para Scheler (2003), a missão de uma antropologia filosófica é mostrar exata-


mente como a estrutura fundamental do ser humano explica todas as funções e
obras específicas do homem que refletem o seu conhecimento: a linguagem, cons-
ciência moral, as ferramentas, ideias de justiça e injustiça, o Estado, a administra-
ção, as funções representativas das artes, o mito, a religião e Ciência, historicidade
e sociabilidade (MORA, 1951, p. 60).

Scheler (2003), em sua antropologia, admite que nessa o modo de enten-


der a relação do homem com o fundamento do mundo, seria semelhante ao

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Ante as várias interpretações para ente, aqui optamos pela de Theodoricus Teutonicus de Vriberg (1250?-1320),
que em sua obra De ente et essentia (2017) afirmou não que não exista uma distinção, propriamente dita, entre
ente e essência, uma vez que a essência e o ser implicam o mesmo no que tange à significação; a diferença se faz
presente tão somente quanto ao modo de significar.

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pensamento manifestado por filósofos como Espinosa, Hegel e outros, que en-
tenderam o ente originário tomar ciência de si no homem, entremeio o mesmo
ato em que o homem nesse pousa. Assim, Scheler coloca o problema do homem
no próprio homem, ao questionar o lugar por esse ocupado através de sua racio-
nalidade quando comparada às suas funções outras e, assim, recupera a dúvida
kantiana, que impunha ao homem respostas para quatro problemas filosóficos
básicos: O que eu posso conhecer? O que eu devo fazer? A que posso aspi-
rar? O que é o homem?

No De Anima, o filósofo Crisipo de Solis (280-208 a.C.), expoente do estoicis-


mo, ao referir o homem comparou-o a uma aranha: “[...] que utiliza seus sentidos
tal como aquela estende suas patas desde o centro de sua teia para os pontos
periféricos, de sorte a digerir as moscas que enrodilham nos fios” (CRISIPO apud
MONDOLFO, 1968, p. 124).

Figura 1
Fonte: Getty Images

Para Pedro Bertolino (1998), a compreensão da criatura na cultura antiga tam-


bém deparou em Heráclito de Éfeso, no fragmento 67a, o homem aranha como
modelo antropológico:
Assim como a aranha, instalada no centro de sua teia, sente quando uma
mosca rompe algum fio (da teia) e por isso acorre rapidamente, quase
aflita pelo rompimento do fio, da mesma forma é a alma do homem, fe-
rida alguma parte do corpo, apressadamente acode quase indignada pela
lesão do corpo, ao qual está ligada firme e harmoniosamente. (EFESO,
2003, p. 155)

Leopoldo e Silva (2008) igualmente reafirma o ideal de homem no Ocidente, um


espírito aracnídeo a espreitar o mundo desde o interior de si para subsumi-lo em
sua antropofagia insaciável, como citou Jean Paul Sartre:

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Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

A academia filosófica francesa após 100 anos de academismo ainda


está nisso, todos nós lemos Laland, Meyerson e outros grandes mes-
tres da época. Nós acreditamos que o espírito aranha atraia as coisas
para dentro da teia. Cobre essas coisas com uma baba branca e depois
as deglute lentamente, reduzindo-as a sua própria substância. O que é
uma mesa? Uma rocha? Uma casa? Um certo conjunto de conteúdo de
consciência! Ou certa ordem desse conteúdo. De forma deselegante
com seus professores Sartre compara a filosofia ou a espiritualidade
francesa que reinava em sua época, com esse Espírito Aranha. Sartre
compara o pensamento filosófico com essa aranha, que ao devorar as
próprias coisas as transformam em ideias, tal que o pensamento fosse
uma espécie de nutrição ou um alimento animal. Esta é uma concepção
alimentar ou algo a ser digerido pelo espírito. (LEOPOLDO E SILVA,
2008, grifo nosso)

No pensamento ocidental, o vocábulo natureza depreende interpretações díspares:


• Princípio vital ou princípio ativo que anima e movimenta toda a vida, qual a
uma força generativa e espontânea;
• Indica a essência2 própria de um ser ou aquilo que um ser é necessária e inde-
pendentemente;
• Seria o conjunto de qualidades de alguma coisa, suas propriedades e atributos
que a definem, as quais especificamente no homem, revelam seu carácter ou
sua índole inata, instintiva;
• A ideia de algo natural ou inato contrapõe a de acidental e, àquilo contraído
pelo costume ou em faces conjunturais da vida vivida;
• À natureza compete a ordem e a vinculação universal e necessária entre as
coisas, expressadas através de leis naturais.

Thomas Hobbes, contrariamente a Aristóteles, defendia a ideia de que os ho-


mens seriam maus por natureza, tanto como não seriam seres sociais. Hobbes
reavivou a expressão da comédia3 de Plautus, que afirmava “[...] o homem ser lobo
do próprio homem” e a popularizou no século XVII, tomando o homem sob a
sua condição primitiva de existência, ao admitir que, no princípio, não existiriam
sociedades organizadas, os homens viviam isolados e em luta permanente, em um
estado de conflitos de todos contra todos, motivados por interesses de sua socieda-
de singular, onde vigorava a lei do mais forte.

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Ante as diversas definições existentes para a palavra essência, aqui estamos utilizando a acepção de Theodoricus
de Vriberg (2017, p. 6), para quem ela reportaria o actus essendi, aquilo mesmo que dá a existência, o ato de ser;
não o puro ato de ser pelo qual se compõe com uma essência, mas antes o ato de ser uma essência, ou por outra
via o que faz com que uma coisa seja e, ao ser não seria senão a essência seja do que fosse. Em Vriberg ser e es-
sência não se distinguem entre si realmente, apenas segundo a noção e a forma como são denotados; no entanto,
um juízo se faz ao ser conveniente à substância e, outro quando compete ao acidente.
3
Titus Maccius Plautus (254-184 a.C.), dramaturgo romano do período republicano de Roma, escreveu A comédia
dos asnos, na qual empregou a expressão Homo Hominis Lúpus, cujo significado poderia ser interpretado como
o homem sendo um lobo para outros homens. Plautus explanara o comportamento antropológico caracterís-
tico do ser humano, quando este exclui os que não participam de seu grupo.

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Assista ao filme A guerra do fogo, do original La guerre du feu, com direção de Jean-Jacques
Explor

Annaud, Anthony Burgess e Desmond Morris, baseado na obra de S. H. Rosny Sr. Confira a
sinopse disponível em: http://bit.ly/2LmJiuQ

Figura 2
Fonte: Reprodução

Jean-Jacques Rousseau formulou uma tese exatamente oposta à de Hobbes:


para Rousseau, no estado de natureza o homem viveria isolado, livre, feliz, e
sempre conduzido por bons sentimentos e em perfeita harmonia com o seu
habitat natural, ao que denominou bom selvagem. A tese de Rousseau implica
a sociedade em um processo permanente de corrupção dos seres humanos, por
isso entendia que a melhor condição para viverem seria estar sob o “estado puro
da natureza”, quando o homem vivia como caçador e coletor, livre, saudável, ho-
nesto e feliz.

Esse conceito é deparado em sua grande obra, Discurso sobre a origem e


os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755), onde Rousseau
(1983a) argumenta que aquilo que se imaginava ser o progresso fruto do desen-
volvimento humano, na verdade seria a sua decadência. A condição humana se
alterou drasticamente quando um indivíduo cercou um terreno e deste se apro-
priou, originando aquilo que se denominou propriedade privada e, ultimando
a bondade natural própria dos selvagens. Para Rousseau a decadência da huma-
nidade ocorreu quando os homens passaram a viver em cidades, a habitar pro-
priedades privadas e a industrializar as suas atividades primárias, no que incorreu
na concentração de rendas, resultando na desigualdade e, fazendo da própria
civilização a escória da humanidade.

Rousseau entendia que o homem nasceria livre, mas por toda a parte encontrar-
-se-ia a ferros, ou seja, o homem possuiria uma natureza boa que seria corrompida
em seu processo civilizatório. Em outra de suas obras, Do contrato social (1757-
1762), Rousseau (1983b) reflete sobre como deveriam ser as instituições para que
a organização social fosse mais justa, que preservasse o bem supremo do homem,
a sua liberdade de natureza.

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UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

Explor
Assista ao filme Avatar, de 2009, disponível em: https://youtu.be/5PSNL1qE6VY
O filme mostra a realidade de um outro planeta, mas muito bem pode representar o conceito
de estado de natureza e a ideia do bom selvagem vivendo em perfeita harmonia em
seu habitat natural, de Jean-Jacques Rousseau. O enredo remete os seus espectadores à re-
flexão sobre a exploração ilimitada de povos autócratas, mostrando total desapego aos bens
naturais e culturais. Avatar apresenta os terráqueos na exploração de riquezas do planeta
Pandora; entretanto, este é habitado por uma espécie alienígena singular, os na’vis, que não
querem ceder à invasão e devastação provocada pela usura humana. Para submeter esse
povo, é desenvolvido um corpo protótipo de um na’ vi, mas operado por um cérebro huma-
no, o projeto denominado Avatar.

A década de 1930 foi marcada pelas consequências da vitória do fascismo na


Itália (1923) e do nazismo na Alemanha (1933), contudo, é mais lembrada pela
Revolução Industrial, com a sua passagem da produção artesanal à produção em
série, em um sistema que submetia os operários a uma forma de produção que
extrapolava as condições físicas e psicológicas e cujo objetivo era o maior lucro
possível ao capitalista, sem quaisquer preocupações com as condições psicofísicas
de seus trabalhadores.

Assista ao filme Tempos modernos, de 1936, trailer disponível em: https://youtu.be/4OmEi_AIjZc


Explor

Figura 3
Fonte: Reprodução
Tempos modernos se refere a uma forte crítica ao mundo moderno e industrializado, mais
precisamente ao capitalismo, stalinismo, nazi-fascismo e ao imperialismo, bem como levan-
ta uma denúncia aos maus tratos a que os empregados passaram a ser submetidos durante
a Revolução Industrial.

Após a Segunda Guerra Mundial, as condições impostas pela Revolução Indus-


trial fizeram irromper a luta do proletariado por meio de movimentos políticos que
o representavam, em um confronto principalmente com o nazi-fascismo, momento
em que referenciais teóricos de administração eram mais elaborados no rigor da rea-
lidade vivida e quando surgiram novos intelectuais radicais que se assentaram nessa
empreitada, dando azo novamente à força das armas sobre a das ideias.

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Nessa efervescência surgiu a figura de Karl Heinrich Marx (1818-1883) e a sua
teoria segundo a qual a estrutura econômica de uma sociedade determina as ideias
de uma comunidade e de seus membros. Para Marx não existiria o indivíduo fora da
vida social e do tempo, enquanto um ser isolado, abstrato e universal, portanto, a sua
essência só poderia corresponder ao conjunto de suas relações sociais, determinadas
pelas associações produtivas e econômicas a que esse está submetido.

Tal condição implica não ser a consciência a determinar o modo de existência


dos homens, mas sim as condições materiais a que estão submetidos que inferem
na consciência e nos seus valores de vida, definidos e expostos na construção de
suas ideias, as representações simbólicas. Essa condição indica que quaisquer ten-
tativas de explicar e compreender os seres humanos, requisita partir das condições
materiais em que cada indivíduo viveu – ou vivencia –, explicitando ter como ponto
de partida a sua história concreta ao longo de sua existência social. Em crítica à
economia de seu tempo, Marx (1971, p. 28-29) assim referiu:
Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas entram em
contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua
expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se
tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças pro-
dutivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma
época de revolução social. A transformação da base econômica altera,
mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao conside-
rar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração mate-
rial – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das
condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, reli-
giosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas
quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas
últimas consequências. Assim como não se julga um indivíduo pela ideia
que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transfor-
mação pela sua consciência de si; É preciso, pelo contrário, explicar esta
consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente
entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.

O grande contributo deixado por Marx para o porvindouro foi a insinuação


de que o modo de produção da vida material condiciona todo o processo de vida
social, política e intelectual, o que indica não ser a consciência dos homens a de-
terminar a realidade, mas sim é a realidade social que determina a sua consciência.
No século XVIII, em plena Revolução Francesa, o grande iluminista Denis Diderot
(apud EAGLETON, 1993, p. 156) afirmava: “Sou como sou, porque foi preciso
que eu assim me tornasse. Se mudarem o todo eu também serei mudado! O todo
está sempre mudando, logo [...]”.

No século passado, destacou-se a figura do filósofo francês Jean-Paul Sartre


(1905-1980), que não aceitou a ideia de a natureza – ou essência – determinar a
sua existência. Sartre inverteu a concepção cartesiana de “penso, logo existo”,
ao admitir que a existência primeiramente deve preceder a essência, no que implica
o ser humano ser um nada ao iniciar o seu existir e, à medida que vai existindo,

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Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

define-se e passa a ser algo. Esse nada existencial de partida confere ao homem a
sua liberdade de escolhas, o que também implica a responsabilidade de se construir,
limitado às condições encontradas em sua vida experienciada.

Para Sartre, lançado no mundo o homem não tem essência, é não-ser, a pura
ausência de ser; gradualmente toma consciência de sua existência e assim mani-
festa a sua vontade de ser. Ocorre que ser significa concretizado um objetivo im-
praticável ao homem; se o fizesse se tornaria ser em-si, passível de determinação
permanente, o que não ocorre porque ao adentrar o mundo nada é e só a partir daí
dará início ao processo interminável de construção de si. De certa forma, Sartre se
aproximou de Marx quando admitiu que o homem deve considerar e enfrentar as
condições já existentes, a priori de si, indício este de não ser a natureza humana a
lhe definir, mas sua condição humana no mundo a limitar as suas oportunidades
e os seus desejos.

A consciência humana, mostra Sartre, é exatamente seu poder de modificação,


isto é, fazer aparecer o nada sobre todo fundo de realidade, pulverizar as diversas
determinações, escolher, definindo-se com a ideia da escolha pela sua consciência.
A possibilidade de dizer sim ou não, não se distingue da consciência, da apreensão
de si-mesmo, para além de qualquer motivo outro que não o si da ação. Essa liber-
dade, o homem a experimentar, na angustia, o verdadeiro sentimento metafísico
a revelar a única liberdade humana.

Essa consciência empoderada de nadificação e ao mesmo tempo de liberdade,


opõe-se em tudo ao “em si” – plenitude do ser, desígnio das coisas, aquilo que as
faz ser o que são e desprovidas de consciência –, o ser pleno, maciço e opaco das
coisas. Nestes termos, condenado à liberdade absoluta, o homem deve necessaria-
mente inventar o seu caminho.

Assista ao filme Senhor das moscas (Lord of the flies), sinopse disponível em: http://bit.ly/2JEeUc8
Explor

O enredo desse filme é resultante do romance de William Golding, em seu livro Lord of the
flies, originalmente publicado em 1954 e considerado um clássico da literatura pós-Segunda
Guerra Mundial, com um conteúdo que expressa um estudo da natureza humana e enca-
minha o leitor a uma densa reflexão sobre a cultura e as suas condições para a formação do
homem civilizado.

Cada indivíduo em si é um representante da espécie humana, ou seja, é um


e ao mesmo tempo é todos. Enquanto em si, contém várias particularidades que
representam a sua personalidade individual, as quais fazem parte das particularida-
des possíveis à existência humana, o que indica que a análise da espécie humana
precede a quaisquer estudos de sua personalidade.

É necessário considerar a condição peculiar do animal homem, que diversa-


mente de outros animais, carece de uma regulação instintiva em seu processo de
adaptação ao mundo que lhe cerca, enquanto que para os outros animais o mundo
é invariável e nesse vive harmonicamente a partir da genética herdada, que lhe

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constitui de maneira fixa e imutável, a constituir o seu mundo particular, de modo
que quando o seu aparelho biológico não mais responde a essa constância, perece.

Quanto a essa especificidade, Ernest Cassirer (1874-1945) afirma que o mundo


dos animais ignora a transformação de impressões em representações obje-
tivas, pelas quais a identidade do objeto desempenha um papel crucial e decisivo
na apreensão da realidade; dessa constatação se deduz que o animal é incapaz de
intuir sensivelmente e unificar todo o contexto em uma estrutura particular, dife-
rentemente do que ocorre com os homens, quando a representação pode divergir
da apreensão e suscitar um conjunto de complexos que impressionarão a região de
percepção e análise especificamente humana (CASSIRER, 1956).

Segundo Józef Maria Bochenski (1902-1995), religioso da ordem dos dominica-


nos, lógico e filósofo polonês:
O que, antes de tudo, chama a atenção é que o homem, do ponto de vista
biológico, absolutamente não teria o direito de se impor à totalidade do
mundo animal, de explorá-lo e dominá-lo. Porque o homem é um ani-
mal imperfeito; tem visão ruim, um olfato apenas perceptível e, audição
mínima; armas naturais, como garras, faltam-lhe totalmente. Sua força
é insignificante, não é capaz de correr nem nadar com velocidade. Além
disto nasce nu e morre muito mais facilmente que outros animais, de frio
ou de calor, tal que do ponto de vista biológico não teria direito à existên-
cia, desde há muito já deveria ter perecido, como tantas outras espécies
imperfeitas de animais. (BOCHENSKI, 1977, p. 80)

Diferentemente, o homem se apresenta com qualidades ímpares em relação aos


outros animais, a consciência de si mesmo como entidade independente, a com-
petência em recordar o passado, vislumbrar o futuro e saber de seu perecimento,
viver intensamente o presente, atributos que lhe possibilitam compreender, criar
e vivenciar o seu mundo, não obstante a limitação de seus sentidos. Do animal à
pessoa só falta uma palavra articulada, assim, a elocução é a condição necessária
e suficiente para o acesso ao reino dos humanos. Enquanto o animal tem apenas o
seu ambiente, o homem tem todo o mundo porque pela comunicação infringe os
seus limites. Para Georges Gusdorf (1970), o homem é o animal que fala e que se
constitui em sociedades nas quais as suas relações se apoiam na fala que se institui
em uma linguagem articulada.
A fala surge como uma função sem órgão próprio e exclusivo que tornas-
se possível localizá-la em um ponto determinado do organismo. A evolu-
ção histórica proporcionou uma pré-determinada disposição anatômica
dispersa no organismo para contribuir para a fala; cordas vocais, pul-
mões, língua, boca, aparelho auditivo e principalmente estruturas cere-
brais. Ora, todos estes componentes existem no macaco, porém este
não articula palavras! Se este tem a possibilidade da linguagem, mas não
detém esta realidade, configura-se evidentemente que em essência a fun-
ção da palavra não é de origem orgânica, mas intelectual. (GUSDORF,
1970, p. 8)

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Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

Segundo o bioquímico francês Jacques Lucien Monod (1910-1976), existe uma


configuração evidente de que, em essência, a função da palavra não é de origem
orgânica, mas intelectual:
[...] a linguagem pode ter precedido, talvez por algum tempo, a emer-
gência de um sistema nervoso central particular aos seres humanos e ter
contribuído decisivamente para a seleção daquelas variantes mais aptas
a utilizar todos os seus recursos. Em outras palavras, a linguagem pode
ter criado o ser humano e não o ser humano a linguagem. (MONOD
apud STEINER, 2005, p. 153, grifo nosso)

O animal não conhece o signo, não processa as informações dos significados


das palavras, apenas identifica sinais, o que denota uma reação condicional a uma
situação reconhecida de forma global, mas não raciocinada e analisada em seus
detalhes. Panofsky (2004, p. 23), ao tratar dos registros deixados pelo homem,
assim afirma:
O homem é, na verdade, o único animal que deixa registros atrás de si,
pois é o único animal cujos produtos chamam à mente uma ideia que se
distingue da existência material destes. Outros animais empregam signos
e ideiam estruturas, mas usam signos sem perceber a relação da significa-
ção e ideiam estruturas sem perceber a relação da construção. Perceber
a relação da significação é separar a ideia do conceito a ser expresso dos
meios de expressão. E, perceber a relação de construção é separar a ideia
da função a ser cumprida dos meios de cumpri-la.

Para Minghetti (2008), a fala não é nem o ser nem a ausência deste, mas um
comprometimento entre a designação das coisas com as pessoas que a designam; a
fala não existe a priori da iniciativa humana que a coloca em movimento, o que em
essência resulta a linguagem não ser de um, mas de um grupo, ou seja, está entre e
ali manifesta o ser relacional do homem. Os órgãos sensório-motores antecipam e
exaltam todo um esquema de um universo particular, sobre o qual se apoiará todo
o comportamento comunitário e, da mesma forma, a realidade psicobiológica a sig-
nificar antecipadamente um destino individual ou coletivo. Ao não existir um órgão
específico da fala, admitimos a linguagem como um subproduto da razão do homem,
levado à consciência de si, o que se configura como um desenvolvimento cultural:
“Ainda, se um determinado órgão houvesse, provavelmente falaríamos a mesma lín-
gua em nosso planeta, pois nasceríamos falando” (MINGHETTI, 2008, p. 3).

A linguagem não está submetida ao dicionário, mas sim é este que se dá à tarefa
de avaliar a palavra e catalogar o seu significado a partir da realidade humana vivi-
da dinamicamente, encontrando na fala o modo de afirmação de uma comunidade
que se estabelece no mundo. A operação da fala cria para os homens mais que o
presente, cria uma natureza consentânea, apta a memorizar o passado, criar uma
expectativa do futuro e vivenciar o presente do presente, na forma como cita o
renomado linguista dinamarquês Louis Trolle Hjelmslev (1899-1965):
A fala transformada em palavra não intervém para facilitar estas relações
sociais, ao contrário, as constituem em uma linguagem, num processo

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discursivo que permanentemente transfigura e dinamiza sua ambiência.
A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensa-
mento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus
atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base
última e mais profunda da sociedade humana. (HJELMSLEV, 1975, p. 1)

Para Minghetti (2008), a invenção da linguagem talvez tenha sido a primeira das
grandes criações da humanidade e dessa surgiram os germes de todas as outras,
porque qualquer evolução intelectual passa previamente pela linguagem estabeleci-
da. Na locução ocorre o ato de substituição de uma percepção ou uma ideia por um
sinal convencionado que a expressa e, pela fala o homem cria e intenta dominar se
não as realidades da natureza, ao menos o sentido destas. Ao exprimir o homem
cria e intenta dominar, senão as realidades de sua ambiência, ao menos o sentido
destas. Pela fala o homem nomeia as coisas; é um ato de substituição de uma per-
cepção ou ideia por um sinal sonoro, convencionado que a anuncia, evoca, abriga
as coisas no reino dos humanos: nomear pela fala é chamar algo à existência, tirá-
-lo do nada e dar-lhe luz na vida vivida; esta denominação fundamenta o direito à
sua existência no mundo real. Todo pensamento só se estabelece na medida em
que é dado à linguagem, portanto, pode-se afirmar que, socialmente, configura-se
nas palavras o que denota a dependência direta do pensamento com a fala em uma
relação dialética, tal que pela locução o homem acesse o portal do mundo e este
retorne ao seu senso:
Há que se considerar que não é fácil discernir na própria linguagem o es-
tatuto da língua; ela se realiza na fala; em si mesma, é uma abstração do
sistema institucionalizado dos esquemas e normas que presidem ao uso.
Provavelmente ela oferece um semblante de objeto ao indivíduo para o
qual é exterior, estrangeira, e que a apreende: ele a encontra nos léxicos
e gramáticas; mas esses livros são fala fixada, eles falam a respeito da lín-
gua, eles não são a língua. (DUFRENNE, 2004, p. 110, grifos nossos)

Uma língua é para os seus usuários um sistema que permite exprimir a infinitude
de pensamentos com um número finito de palavras, tal a recompor tudo que se
pode querer dizer. Há que se considerar um outro viés possível, que leva em conta
a criatividade do “eu” pela fala ao se apossar do universo, coloca-a em questão, por-
que esse eu existe apenas na reciprocidade com o outro; o eu isolado, bem dizer,
não passa de uma abstração.

Pela linguagem o homem estabelece nexos associativos entre sons e significado,


completa o espaço e tempo vital, dando sentido a si dentro de um mundo codificado e
decodificado permanentemente por palavras suscitadas de uma fala comum. Assim, a
linguagem representaria a parte pensante do ser humano, distinta, portanto, de outras
representações. É bem verdade que esse processo está condenado a sofrer incontáveis
e imprevistas extensões, pela imposição do tempo e em face à expansão de costumes
linguísticos, tanto quanto pelas intenções da fala no processo de comunicação.

A fala é um comprometimento da linguagem entre as coisas e pessoas, de modo


que não existe a priori da iniciativa que a coloca em movimento, como asseverou

17
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UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

Dufrene (2004) ao considerar língua e linguagem em um fundo de abstração, como


condição possível de manifestação da fala para passar à condição de ato.

Poder-se-ia afirmar que a fala inicia no pensamento, onde é pré-processada, tan-


to que só adquirimos a proficiência em outra língua quando aprendemos a pensar
neste outro idioma, o que significa a linguagem ser instrumento de preponderância
da exterioridade sobre a interioridade e de seu retorno da interioridade para a exte-
rioridade, após processamento de filtragem de sua razão. Para Maurice Merleau-
-Ponty (1974, p. 21) a língua é a chave de nossas experiências:
A língua dispõe de certo número de sinais fundamentais, arbitrariamente
ligados a significações-chave; ela é capaz de recompor qualquer signifi-
cação nova a partir daquelas, consequentemente de dizê-las na mesma
linguagem, e finalmente se exprime porque reconduz todas as nossas
experiências ao sistema de correspondências iniciais entre tal sinal e tal
significação de que nos apoderamos aprendendo a língua, e que é, ele,
absolutamente claro, porque nenhum pensamento se arrasta nas pala-
vras, nenhuma palavra no puro pensamento de alguma coisa.

O exercício da comunicação provoca no campo fechado da linguagem uma


querela que coloca em jogo o destino do homem e à vista uma de suas especifici-
dades, quando este se vê ante a escolha entre interioridade e exterioridade, entre
a comunicação conveniente ao meio em que está inserido e a pura expressão da
realidade. O homem, vítima de si, que pretendesse exprimir as vicissitudes do seu
ser íntimo, acabaria por se regular pelos ritmos de sua cenestesia e sua cantilena
nada mais significaria que o estado de suas vísceras. Se a realidade humano-social
fosse conhecida em sua absoluta cristalinidade e se a sua interpretação se desse por
consciências também absolutamente ingênuas, a Filosofia seria um aparato inútil.
Explor

Cenestesia: Conjunto de sensações que torna possível perceber os movimentos.

O homem se denuncia em cada uma de suas atitudes e a justa interpretação de


cada manifestação humana pode definir a sua personalidade única e irrepetível,
quando da tentativa de lhe dar o valor que lhe é socialmente justiçoso. O olhar de
cada indivíduo sobre o mundo é uma perspectiva que só a esse pertence e o seu
estilo significa tão somente a tomada de consciência dentro de sua perspectiva sin-
gular. O que não muda episodicamente é que mesmo o mais simples dos mortais
apenas se realiza em uma linguagem como o seu contributo pessoal à linguagem de
todos, no que representa a sua contribuição ao universo da cultura humana.

O homem busca compreender a realidade, mas no mais das vezes depara apenas
a superfície da realidade ou a sua falsa exterioridade. A realidade da Filosofia é a bus-
ca pelo desvelamento da realidade em sua autenticidade, assim como o modo pelo
qual se manifesta ao homem, a verdade da realidade humana. Para George Steiner
(2005, p. 302) somos capazes de dizer fantasticamente mais do que precisaríamos
para a nossa sobrevivência física e significarmos infinitamente mais do que dizemos.

18
O homem é, pois, o único animal falante, não como uma propriedade inata,
mas em um desenvolvimento cultural incessante, de onde derivou uma linguagem
a cada cultura, em um sistema convencional da fala para determinada comunidade
humana, na qual o seu exercício ganha valores sob a forma de códigos institucio-
nalizados em um vocabulário e em uma gramática peculiar. A fala transformada
em palavras constitui a rede de relações sociais, em um processo discursivo que
permanentemente transfigura e dinamiza a ambiência, tal que o discurso sobre as
coisas seja uma sequência ordenada de enunciados, de onde cada indivíduo extrai
o seu valor para estabelecer as próprias conclusões. A fala ao se constituir em um
complexo orgânico historicamente desenvolvido, assenta-se naturalmente como
um organismo vivente que em cada época perpetua a construção e transformação
da língua grupal.

Asseverar a naturalidade de alguma coisa implica necessariamente reconhecer


que essa coisa tenha uma existência; não poderia não ser e tampouco divergiria
em sua existência espaço-temporal, ou seja, daquilo que foi, é e será, porque se
constitui de um efeito movido por relações de causalidade, que organizam a natu-
reza e o ordenamento dos seres segundo determinada ordem fenomênica gerida
por leis universais e necessárias, que estabelecem a constância e reprodução de en-
cadeamentos estáveis entre as coisas. Essa condição implica assumir que esses fe-
nômenos, por serem naturais, são independentes da ação e intenção dos homens,
sujeitos tão somente à natureza, do que se deduz também existir uma natureza
humana pela qual os homens se definem através de pensamentos sensíveis e
pelos quais delimitam as suas ações.

O Homem como um Animal Admirável –


Dimensões Fundamentais do Ser Humano
Protágoras de Abdera (485-411 a.C.), filósofo sofista da Grécia Antiga, é mais
conhecido por sua célebre frase: “O homem é a medida de todas as coisas, das que
são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são, das que estão na sua
natureza e, da explicação da sua inexistência”4 – Theaetetus, por Platão, 152a.5

Essa citação se refere um dos diálogos platônicos, cujo título tem o nome de Pro-
tágoras e expõe o colóquio de Sócrates com esse sofista. Para Platão, Protágoras
foi o criador do ofício de sofista, professor na Grécia Antiga e no Império Romano,
que ensinava a aretê, palavra grega que significa perfeição, nas atividades exercidas
pelos indivíduos.

Para Protágoras a medida significava um ajuizamento, o qual subjetivo de-


penderia das experiências pessoais; explicava: “Tal como cada coisa se apresenta
para mim, assim ela é para mim, tal como ela se apresenta para você, assim ela

4
Esta posição de Protágoras não refere que o homem seja a medida de fenômenos naturais, apenas daquelas coisas
originadas na mente humana.
5
Texto apresentado e adaptado a partir da versão portuguesa de Ana da Piedade Elias Pinheiro, publicada em Lis-
boa, pela Editora Relógio d’Água, em 1999, na coleção Humanitas – autores gregos e latinos.

19
19
UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

é para você” – Theaetetus, por Platão, 152a. Portanto, Protágoras concebeu o


seu axioma sobre uma base subjetiva na dependência da particularidade de cada
indivíduo singular, o que mostra a inexistência de uma verdade absoluta; implícito
esse relativismo como a marca registrada dos sofistas, o que contraria o projeto de
Sócrates de se abeirar do conceito absoluto de cada coisa. Se o homem é a medida
de todas as coisas e tal medida é relativa, então a validade de uma aferição só pode
ser validada se provier de uma avaliação assentada por um conjunto de homens, leis
e regras que identificam determinada cultura, cada qual com a sua especificidade.

Axiomas: são verdades inquestionáveis e universalmente válidas, muitas vezes utilizadas


Explor

como princípios na construção de uma teoria ou como base para uma argumentação.

Para melhor entender o relativismo das verdades, leia o conto sufi6, de Paulo Coelho,
Explor

disponível em: http://bit.ly/2JC5EFe

Este texto de Paulo Coelho expõe a temperança, ou o comedimento que asse-


gura o domínio da vontade sobre todos os instintos humanos.6

Noêmia de Sousa Chaves (2017, p. 1) realça a prudência na obra kantiana: “[...]


a prudência em sentido largo, a qual se relaciona com o cosmopolitismo ou o bem
e o progresso da espécie humana como um todo”.

Para Souza Chaves (2017, p. 3), a prudência, em sentido estreito, refere-se, de


forma direta, ao indivíduo em sentido subjetivo, pois se refere à felicidade pessoal e
busca de bem-estar: “[...] a razão cria a ideia de uma espontaneidade que poderia co-
meçar a agir por si mesma, sem que uma outra causa tivesse devido precedê-la para
a determinar a agir segundo a lei do encadeamento causal”.

Figura 4 – Alegoria da prudência (1560), Ticiano.


Óleo sobre tela, 75,5 × 68,4 cm
Fonte: Wikimedia Commons

6
Conto tradicional da sabedoria tradicional árabe.

20
A composição denominada Alegoria da Prudência é uma obra do pintor
italiano Tiziano Vacellio, conhecido por Ticiano, em que retrata a si mesmo,
a seu filho Orazio e, possivelmente, a seu sobrinho Marco Vecellio, represen-
tando as três Idades do homem. Filho e sobrinho trabalharam com o pintor.

Estão representados da esquerda para a direita:

A velhice (Ticiano) – virada para a esquerda;

A idade adulta ou maturidade (seu filho Orazio) – virada para frente;

A juventude (seu sobrinho Marco Vecellio) – virada para a direita;

Abaixo das cabeças humanas estão representadas as de três animais:

O lobo – voltada para a esquerda;

O leão – voltada para a frente;

O cão – voltada para a direita.

A alegoria também se refere ao tempo: passado, presente e futuro. Os ani-


mais, conforme certas tradições, estão ligados a tais categorias do tempo e
à prudência. Segundo o escritor Macrobius, do século V, a cabeça do leão
refere-se ao presente, quando se é forte; a cabeça do lobo é designada pelo
passado; a cabeça do cão representa o futuro.

Uma inscrição latina faz um meio círculo em volta das cabeças humanas. Ela
diz: ex praeterito prudenter agit ne futura deturpet, que pode ser traduzida
como: “A partir da experiência do passado, opere o presente de forma pruden-
te, para não estragar as ações futuras”. Segundo alguns, Ticiano tinha como ob-
jetivo direcionar sua família, em relação à herança que deixaria, após sua morte.

Embora haja muitas explicações sobre a pintura, a mais aceita é a de que


Ticiano tinha por objetivo mostrar que a prudência é fruto da experiência,
que por sua vez vem com a velhice, importante para a discriminação e o
julgamento artístico.
Fonte: http://bit.ly/2LpnzCn

Souza Chaves (2017, p. 6) comenta o lugar da prudência na arquitetônica kan-


tiana, a partir de Patrick Kain:
Nós necessitamos evitar a influência das emoções e das paixões e nos
governar a nós mesmos, já que nós estamos numa posição de escolher e
buscar uma vida feliz. É digno de nota que, nessa linha de pensamento,
as aulas de Antropologia são dependentes de considerações prudenciais,
e não especificamente morais.

Joan Fuster i Ortells (1922-1992), escritor valenciano, em 1967 lançou um pe-


queno livro exatamente com o título do axioma de Protágoras, El hombre, medida
de todas las cosas:
Quando Protágoras formulou a marcante afirmação de que o homem
seria a medida de todas as coisas incorreu no pecado de vaidade filo-
sófica, em nome do gênero humano. A frase tem um corte petulante
e pueril e, de certo modo não deve de ser muito difícil refutá-la. Mas,

21
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UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

também tem toda a evidência que ao se assentarem neste princípio, os


pensadores antigos ofereceram a seus contemporâneos e, à posteridade
uma ideia consoladora, útil e estimulante. De resto, o homem sempre
esteve persuadido de ser, se não a medida, ao menos o centro de todas
as coisas; tendeu a aceitar e configurar o mundo, em função de suas pró-
prias necessidades como indivíduo e como espécie. Traduzida em termos
práticos, seria o equivalente a instaurar, para todas as ordens da vida, um
critério de valor cujo módulo fosse a razão, os sentidos e a vontade do
homem. (FUSTER, 1970, p. 24)

A premissa implicada à submissão da vida na Terra ao Homo Mensura re-


gistrada por Fuster (1970) necessariamente requer o alargamento do termo ho-
mem, a ser entendido não em seu sentido singular, mas no amplo sentido do
vocábulo humanidade.

Praticamente, na mesma Era de Protágoras, a Grécia teve Sófocles (496-406


a.C.), dramaturgo e um dos mais importantes escritores desse período, com desta-
que especial, aqui, à sua obra Antígona, tragédia composta por volta de 442 a.C.

Figura 5 – The logic of the sublime, Alenka Zupančič


Fonte: Reprodução

Em Antígona, Sófocles assinalou o homem como o grande milagre da Criação.


Nas representações dessa obra, o coro recitava pungentemente:
Numerosas são as maravilhas da natureza, mas de todas, a maior é o
Homem! Singrando os mares espumosos, impelido pelos ventos do Sul,
ele avança, e arrosta as vagas imensas que rugem ao redor! Ge [Gaia],
a suprema divindade, que a todas as mais supera, na sua eternidade, ele
a corta com suas charruas, que, de ano em ano, vão e vêm revolvendo
e fertilizando o solo, graças à força das alimárias! (SÓFOCLES, 1996,
p. 164, colchete nosso)

O dramaturgo William Shakespeare (1564-1616), em sua renomada tragédia


Hamlet, o príncipe da Dinamarca, um clássico da dramaturgia, escrita entre 1599
e 1601, fez a mesma observação: “Que obra-prima é o homem! Como é nobre em

22
sua razão! Que capacidade infinita! Como é preciso e bem-feito em forma e movi-
mento! Um anjo na ação! Um deus no entendimento, paradigma dos animais, mara-
vilha do mundo” (SHAKESPEARE apud MIRANDULENSIS, 2015, p. 7).

Na Renascença italiana nasceu o movimento humanista, cenário no qual a tônica


do espírito romântico consistia em refutar orientações e preocupações teológicas,
ao centrar no projeto construtivo do homem, a exploração de todas as possibilida-
des de seu existir. Essa vanguarda foi iluminada pela figura de Giovanni Pico della
Mirandola, filósofo, erudito neoplatônico e humanista (1463-1494) e de seu contri-
buto ao movimento renascentista, o Oratio Ioanis Pici Mirandulensis – Concordiae
Comitis –, que posteriormente se transformou no “berço do iluminismo”, ao fim
do século XVIII e, em assento basal da Declaração dos Direitos Humanos da Orga-
nização das Nações Unidas (ONU), no século passado: “Todas as pessoas nascem
livres e iguais em dignidade e direitos; são dotadas de razão e consciência e devem
agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. (Art. 1º, Declaração
Universal dos Direitos Humanos, 1948)

O Oratio de Giovanni Pico della Mirandola, considerado “Il manifesto del Rinas-
cimento”, fez de seu autor o idealizador da Pax Philosofica e se tornou a tônica do
século XV ao fundir a Metafísica e Ética, fundamentando-as na liberdade de escolha
do homem, fator determinante à dignidade essencial da Criação Divina. O Oratio
preconiza que somente a dialética harmonizaria as filosofias díspares, ao conciliar
Ciência e religião, no sentido de que desvela o cerne de todos os sistemas. Giovan-
ni utilizou no Oratio, principalmente concepções de Platão e de fontes hebraicas
e talmúdicas, na busca pela essência do humanismo cristão, a partir de uma visão
metafísica e neoplatônica do Universo, como a grande cadeia que emana de Deus.

Giovanni Pico foi pioneiro na proposição de uma concepção de liberdade que


frutificasse a partir do livre arbítrio do homem primigênio, ao vê-lo como um hie-
rofante que media o mundo para controlar o seu destino por meio da Ciência da
Natureza e que busca no amor pela sabedoria uma fonte para a verdadeira religião
que volve às antigas fontes da humanidade (MINGHETTI apud MIRANDULENSIS,
2015, p. 40).

No introito do Oratio, Giovanni Pico é contundente ao precisar o homem como


uma obra a priori indeterminada, alocado por Deus no centro do Universo, com a
capacidade e responsabilidade de sua coCriação no definir a si:
Não te fiz nem celeste nem terrestre, nem mortal nem imortal, para que
tu, livremente, tal como um bom pintor ou um hábil escultor, dês aca-
bamento à forma que te é própria, segundo teu desejo e resolução. Você
poderá degenerar-se e transformar-se em ser inferior, aquele conside-
rado irracional; mas poderá regenerar-se de acordo com sua decisão, e
aproximar-se dos seres superiores que são divinos. (MIRANDULENSIS,
2015, p. 50, grifo nosso)

Giovanni distinguia o homem entre as criaturas divinas, como um interposto,


descendente das superiores e soberano das inferiores. Ao posicionar e dimensionar

23
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UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

o homem na natureza; reviveu a antilogia Mensura principium hominibus, do sofis-


ta Protágoras de Abdera, para quem o único critério seria tão somente o homem
singular, distinção em relação aos outros seres, por não ter um assento próprio,
conforme retratou em seu conhecido axioma, que expressou a liberdade do homem
que, sem imposições deveria moldar a si, escolher ser segundo a sua natureza.
Após ser alocado no centro do Universo, o Criador ter-lhe-ia dito:
Não te dei, Adão, um aspecto que lhe seja único, nem um lugar para
assentar, nem um dom peculiar, para que tua face, teu lugar, teu dom,
deseje-os, conquiste-os e os possua segundo teu juízo e tua decisão.
As naturezas outras são pré-definidas e contidas em nossas leis. Tu, não
submetido a quaisquer limites, só mercê do arbítrio que em tuas mãos
coloquei, definas a ti próprio. Alocado no meio do mundo, poderá mais
facilmente apreciar tudo quanto está à sua volta. Não te fiz nem celeste
nem terrestre, tampouco mortal ou imortal, para que tu próprio, como
um bom artífice esculpa a forma que preferir, segundo teu desejo e re-
solução. Segundo teu parecer poderás degenerar até os desarrazoados
inferiores, ou se aproximar dos superiores divinos se tua consciência re-
generar. (MIRANDULENSIS, 2015, p. 61)

Com o Oratio, Giovanni Pico introduziu na Renascença o conceito de liberdade


de escolha ao homem arquetípico, que fundiria a Metafísica com a Ética, ao se ba-
sear no alvedrio como fundamento da dignidade essencial do homem, na estrutura
do Cosmos. O método de realizar essa possibilidade divina se daria pela Tríade
Superior, de fundamental importância na vida e evolução do ser humano: a medi-
tação, inteligência intuitiva e compaixão; daí a essência do Oratio:
[...] para que tu, livremente, tal como um bom pintor ou um hábil es-
cultor, dês acabamento à forma que te é própria, segundo teu desejo
e resolução. Você poderá degenerar-se e transformar-se em ser infe-
rior, aquele considerado irracional; mas poderá regenerar-se de acordo
com sua decisão, e aproximar-se dos seres superiores que são divinos.
(MIRANDULENSIS, 2015, p. 43, grifo nosso)

A ideia de que o homem poderia ascender à cadeia dos seres, pelo pleno exer-
cício de sua capacidade intelectual, foi uma profunda garantia de dignidade à sua
existência peculiar na vida terrestre, dado que ao tempo de Giovanni Pico, à exten-
são dada ao vocábulo homo se designava o homem singular.

O Discurso à dignidade do homem foi o marco que firmou a nova posição


humana na Europa pré-renascentista, obra na qual se vê o homem através da
imagem de Deus. Pico faz uso da magia tanto quanto da Kabbalah para justificar
a sua tese, pela qual o homem poderia controlar o seu destino ao utilizar os seus
predicados de gênese, uma vez que a natureza humana fosse em si indeterminada
e fraca, do que resultaria construir a sua identidade pela pluralidade das culturas
humanas. Pico exalta o homem à liberdade e capacidade de saber e dominar a
realidade em sua totalidade; foca a sua obra aludindo ao projeto de construção
do ser humano, que não possuindo nenhuma imagem determinada a priori, não

24
teria outro caminho a não ser aquele que o destino lhe impôs, procurar a própria
culminância. Todo o Oratio é perpassado pela ideia do homem como uma criação
distintiva e excepcional. Logo no primeiro parágrafo, Giovanni trata da existência
do homem como um grande milagre, recorrendo a Asclepius, o deus da Medicina,
consubstanciado no argumento de Hermes Trismegistos, quão admirado semelhan-
te a Sófocles expressou: “Magnum, o Asclepi, miraculum est homo”. (MINGHETTI
apud MIRANDULENSIS, 2015, p. 51).

Questões e Modos de Compreensibilidade


do Homem – Inferências Históricas
e Culturais
Sucedeu que o homem se tornou o senhor da natureza; exterminou e ainda exter-
mina vários animais perigosos, outros domesticou, além de alterar substancialmente
a superfície da Terra a ponto de inferir nas condições climáticas de seu planeta-casa,
no exato momento em que a sua preocupação se volta às viagens interplanetárias.

Que animal é esse tão imperfeito e ao mesmo tempo tão extraordinário, que
mesmo contendo atributos tão medíocres perante propriedades de animais outros,
conseguiu se fazer dono da natureza? A resposta é evidente: este nobre animal
possui algo chamado de razão que, com extrema eficácia, salvo inúmeras situa-
ções históricas, que aliado à sua intelecção, proporcionou-lhe o domínio do planeta
Terra. Mas Bochenski (1977, p. 81) lhe acrescenta outros predicados:
Parece que o homem não só em mais inteligência que os outros animais,
mas que sua inteligência é também de outra natureza, demos-lhe o nome
que quisermos. Esta natureza própria da inteligência humana se mostra
no fato de ele e, só ele, possuir uma série de características que o distin-
guem de todos os outros animais. As que mais chamam a atenção são as
cinco seguintes: a técnica, a tradição, o progresso, a capacidade de
pensar de modo inteiramente diferente que outros animais e, finalmente,
a reflexão. (BOCHENSKI, 1977, p. 81, grifos nossos)

Em Bochenski (1977), a técnica no homem consiste de que se serve de ins-


trumentos que esse próprio fabrica. Não obstante outros animais também fa-
zerem algo semelhante, o produto desses é algo pueril se confrontados com a
alta e complexa produção humana. Quanto a ser um ente social, este tem um
sentido distinto de instinto, está ligado à sua progressiva tradição, na qual não
apenas aprende, mas se conserva em um estado de permanente desenvolvimen-
to, especificamente na interação eficiente entre os membros de uma determinada
comunidade, a qual se dá através de um processo complexo de linguagem com a
qual se comunica com outros membros, envolvendo a fala, os sinais e símbolos.
A característica de permanente desenvolvimento do intelecto se vê claramente
quando as gerações são comparadas e se avalia o progresso de suas produções,

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UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

enquanto que os animais outros transmitem uns aos outros conhecimentos fixos
e limitados ao seu potencial biológico.

É digno de registro que no homem, não obstante todo o seu progresso, este
pouco se identifica com o seu desenvolvimento biológico, porquanto nada o difere
dos antigos gregos, embora tenha um conhecimento absolutamente maior.

Enquanto os animais se caracterizam por um pensamento imediatista, o homem


pensa a curto, médio e longo prazo; mas o pensar humano tem facetas especí-
ficas, tais como a faculdade de abstração que lhe proporciona pensar de modo
global, uma possibilidade dada por sua independência, que lhe possibilita ir além da
objetividade prática e utilitarista como, por exemplo, quando esse homem se volta
à ciência e religião. Essa consciência independente, característica única do animal
homem é a que lhe proporciona a capacidade de refletir, saber que é livre, que pode
dominar as leis da natureza em alguns momentos. Essa reflexão permite ao homem
não apenas se voltar ao mundo exterior – como os outros animais –, mas também
pensar em si-mesmo, preocupar-se com o seu “eu” e se perguntar sobre o sentido
de sua própria vida, já que é o único animal que tem consciência que em um dia
qualquer fenecerá, coisa que apesar de seu alto grau de desenvolvimento científico,
a humanidade ainda não resolveu; a busca pela longevidade, bem como o homem
tem consciência de seu corpo enquanto vivo e sabe da impossibilidade de mudá-lo:
Ao se considerar todas estas peculiaridades do homem, não se pode es-
tranhar que o fundador de nossa filosofia ocidental, Platão, tenha chega-
do à conclusão de que o homem é algo inteiramente distinto do resto
da natureza. Ele, ou antes aquilo que o faz ser homem – a psique, a
alma, o espírito – está sim no mundo, mas não é do mundo, não per-
tence a este mundo. Eleva-se acima de toda a natureza. (BOCHENSKI,
1977, p. 84, grifos nossos)

A consciência que leva certeza de sua limitação ante a morte, suscita no homem
o seu desejo quimérico de infinitude e, frente a esse trágico enigma o homem se
pergunta: ante a morte, qual é o sentido da vida? Bochenski (1977) propõe três
alternativas de resposta: a primeira, oriunda do século XIX, associa o final da vida
humana a algo mais amplo e universal, a sociedade, o Universo chegará à perfei-
ção independentemente do perecimento de seus habitantes. Evidentemente para
a maior parte dos pensadores da Modernidade esse pensamento é insustentável e
reducionista da vida, porque não considera o humano em si, mas em um contexto
global; uma segunda possível solução pertence à corrente dos existencialistas, que
afirma o homem não ter sentido algum, uma vez que seja um erro da natureza, uma
criatura falha ou paixão inútil como afirmava Sartre (apud BOCHENSKI, 1977,
p. 88): “O enigma da existência humana não pode ser resolvido; é um absurdo
que existamos, é um absurdo que morramos. Seremos eternamente uma questão
trágica para nós mesmos”; outra corrente filosófica segue, de certa forma, Platão
ao acreditar que o homem pode alcançar a infinitude em uma outra vida em um
mundo outro, no que implica a solução do enigma estar fora da natureza, fora deste

26
mundo. Platão afirmou que a resposta definitiva a essa questão viria de um Deus,
mas essa foge ao âmbito da Filosofia, reportando-se mais à Teologia.

Erich Fromm (1900-1980), psicanalista, filósofo e sociólogo, avaliou o homem


enquanto um ser para si-mesmo, diante do relativismo, indiferentismo autoritaris-
mo, subjetivismo etc. O seu objetivo era a essência – natureza – humana, a sua
potencialidade ao bem e ao mal e, assim, descobrir a vocação que motivaria as
suas ações, quer seja natural, social ou psicologicamente, uma vez que não po-
deria retornar ao estágio pré-humano de harmonia com a natureza; terá, sim, de
prosseguir em seu caminho inexorável rumo ao assenhoramento da natureza e de
si. A esse pensamento de Fromm (1970) compete lembrar que: “Nenhum homem
poderá se banhar duas vezes no mesmo rio... pois na segunda vez o rio já não
será o mesmo, tampouco o homem!”, disse Heráclito de Éfeso (540-480 a.C.).

Ouça a canção Como uma onda, composição de Nelson Motta.


Explor

Nada do que foi será


De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa, tudo sempre passará
A vida vem em ondas como o mar
Num indo e vindo infinito

Fromm (1970, p. 44) concluiu a principal missão do homem em sua vida: seria
dar luz a si e se tornar aquilo que potencialmente é.
O dinamismo de sua história é intrínseco à existência da razão, que o
faz desenvolver e, por meio dela, a criar um mundo seu, no qual possa
se sentir à vontade consigo mesmo e com seus semelhantes. Todo novo
estágio que atinge deixa-o descontente e perplexo e, esta mesma per-
plexidade impele-o a avançar em busca de novas soluções. Não há um
impulso para o progresso inato no próprio homem; é a contradição de
sua existência que o faz prosseguir no caminho que tomou. Tendo perdi-
do o Paraíso, a unidade com a natureza, tornou-se o eterno vagabundo
(Ulisses, Édipo, Abraão, Fausto); é impelido a ir avante e com esforço
perene para tornar conhecido o desconhecido, preenchendo com res-
postas as lacunas de seu conhecimento. Ele tem que prestar contas de si
a si-mesmo, bem como do significado de sua existência. Ele é impelido a
sobrepujar essa cisão interior, atormentado por um anseio pelo Absoluto,
por outra espécie de harmonia que possa afastar a maldição que o sepa-
rou da Natureza, de seus semelhantes e, de si-mesmo.

Para Fromm (1970) é necessário compreender todos os ideais, inclusive os que


despontam de ideologias seculares, tais como expressões da necessidade humana,
julgando-os quanto à sua veracidade, quão uma solução real para a necessidade do
homem, de equilíbrio e harmonia em seu mundo.

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UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

O Problema da Subjetividade da
Essência e de seus Fundamentos
Ontológicos – a Essência da Verdade
Ainda que de fato discorrêssemos sobre significação quanto à essência para a
coisa significada, falso seria se assumíssemos evidentemente que “[...] toda essência
se pode discernir [...]” quanto aos demais. Quando pensamos o homem, conside-
ramos o homem segundo o seu ato de ser entre as coisas da natureza, conforme
a máxima de Santo Agostinho (apud MINGHETTI, 2018, p. 84, grifo nosso): “[...]
não por acaso, que toda essência seja essência, a não ser pelo que é (existir). Logo,
não posso discernir a essência do homem, a não ser que pense o seu atual ser”.

A essência é, pois, a natureza de uma coisa, termo criado para traduzir a palavra grega
ousia, o ser, aquilo que constitui o que determinada coisa é. Por ora, quando necessário,
nesta atividade, como essência serão referidos também outros atributos substanciais,
tais como o conteúdo, a substância, o inaparente, sensível. Para o teólogo dominicano
Theodoricus Teutonicus de Vribergh (1250-1310), ser e essência não se distinguem
entre si realmente, apenas segundo a noção e forma como são denotados.

Figura 6 – Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo (1943), Salvador Dalí
Fonte: Wikimedia Commons

Bochenski (1977, p. 39, grifos nossos) coloca em questão a possibilidade de


existência de uma verdade fora da consciência humana:
É absolutamente certo que existe alguma coisa; também é certo que po-
demos conhecer muitas coisas; e, é igualmente certo que podemos comu-
nicar a outros, algumas das coisas que conhecemos. [...] Não obstante não
temos meios para afirmar que existe uma realidade fora de nós, fora
de nossa consciência; poderia ser que existam coisas e realidades, mas

28
que estas se encontram somente dentro de nós, em nossas ideias, o que
levaria à distinção entre realidade e aparência, mas não entre o interno
e o externo. Dessa exposição se segue que tudo que cremos conhecer
seja de fato assim como o vemos. É certo que alguma coisa existe, mas
como essa coisa é na realidade, é outra questão [...]. É certo que existem
muito mais coisas do que aquelas que podemos conhecer e, conhecemos
muito mais do que podemos comunicar aos outros.

A interpretação de Bochenski identifica no homem uma realidade constituída a


partir de si, em seu tempo e espaço.

Martin Heidegger (1970), sobre a Essência da verdade e a subjetividade da


essência a partir da tese de Kant, mostra os desdobramentos do criticismo
kantiano. A questão capital em Heidegger, uma das grandes questões que se
impõem à Filosofia, implica saber o que seria a verdade.

Ernildo Jacob Stein (2004) cita que em Kant, em sua Crítica da razão pura,
o conceito de ser da Filosofia Moderna se faz um aspecto decisivo. Kant discute
a ontoteologia da tradição e, ao mesmo tempo discorre sobre a impossibilidade
de um argumento ontológico que comprove a existência de Deus. Essa atestação
revela o caminho que a Filosofia Moderna percorreu até Kant e proclama a direção
que tomou após a Modernidade.

Ontoteologia: implica a ontologia de Deus e/ou a Teologia do ser, uma tradição de Teologia
Explor

Filosófica proeminente entre os escolásticos medievais. Em certos usos, o termo geralmente


é tido como se referindo à metafísica ocidental.

No texto Essência da verdade: a tese de Kant sobre o ser, Heidegger explo-


ra as ocasiões nas quais Kant desenvolve a sua teoria do ser e onde as passagens
esparsas são interpretadas por Heidegger, mostrando que Kant, o destruidor da
Metafísica, constrói uma ontologia crítica no interior de sua Revolução Copernica-
na. Kant o faz negativamente, como crítica da ontologia clássica objetivista, onde
ser não é um predicado real e, positivamente, como ontologia transcendental
emanada da crítica da razão pura, na qual ser é somente uma posição. Ao se ar-
ticular contra a ontoteologia tradicional, a ontologia kantiana apresenta o seu
conceito de ser como pura posição.

Heidegger, em seu livro A essência da verdade, questiona o que exatamente


se entenderia ordinariamente por verdade? Em uma visão singular e pela consigna-
ção vocabular, o verdadeiro seria o real, aquilo que não seria falso, portanto, aqui
existe um diferencial, no qual a realidade consistiria de uma concordância com o
conceito que previamente entendemos do corpus analisado. Ser verdadeiro para
Heidegger constitui um duplo existir: primeiro, na concordância entre a coisa e
aquilo que desta previamente se presume; por segundo, na conformidade entre
o que é significado em enunciação e a coisa própria; este duplo caráter reflete a
essência da verdade, na qual se amolda ao conhecimento com a coisa. Aqui não

29
29
UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

se trata, evidentemente, de interpretações individuais, mas de concepções desve-


ladas no seio de um contexto comunitário.

Para melhor entender o duplo caráter da verdade em Heidegger, leia e reflita sobre o poema
Explor

intitulado Somos todos anjos de uma asa só, precisamos nos abraçar para alçar voo, de
Mário Quintana, disponível em: http://bit.ly/2k1TVXW
Mariel José Pimentel de Andrade - Universidade do Minho https://tinyurl.com/y5n5l4yu

A Proposta de Especificação Antropológica


de Ernst Cassirer – O Símbolo
Em A fala, Georg Gusdorf indica uma das passagens do entretien que segue
ao Rêve de d’Alembert, de Diderot, no qual há no jardim do rei, dentro de uma
jaula de vidro, um orangotango que se posta com o aspecto de um São João a
pregar no deserto. O cardeal de Polignac, um dia, admirando o animal que o fitava,
aproximou-se e olhando em seus olhos, ter-lhe-ia dito: “[...] fala! fala e eu te batizo
[...]”. Mais à frente, Gusdorf admite que um sábio de uma espécie estranha ao nos-
so planeta, que se limitasse a examinar os restos mortais de um homem e de um
grande macaco, não discerniria, provavelmente, a diferença capital entre os dois,
tantas seriam as semelhanças que seus organismos apresentam. Certamente não
descobriria que no homem existe a função da fala (GUSDORF, 1970, p. 8).
Evidentemente, o orangotango não respondeu ao cardeal, e assim não ultrapassou
o portal da animalidade à humanidade. Gusdorf (1970) usa desse conto de Diderot
para enfatizar a curta distância entre o animal e homem, e ainda a superioridade des-
te último, que no exemplo citado, julga o prior aumentar a dignidade do animal pela
força de um sacramento. Do animal à pessoa falta apenas uma palavra articulada,
assim, a linguagem é a condição necessária e suficiente para o acesso ao reino dos
humanos. O homem é o animal falante que se constitui em sociedades deste reino,
nas quais as suas relações se apoiam em uma linguagem (MINGHETTI, 2008b, p. 3).
A fala transformada em palavra não intervém para facilitar essas relações sociais;
ao contrário, constituem-nas em um processo discursivo que permanentemente
transfigura e dinamiza a sua ambiência. O discurso é uma sequência ordenada de
enunciados de onde cada um extrai o seu valor a partir dos que o precederam, es-
tabelecendo uma nova conclusão. Essa concepção funcional da linguagem abre
espaço à linguística do discurso que em nossos dias é o ramo-piloto da pragmática
e fenomenologia, de modo que ao iluminar a origem psicossocial do ato de falar
encontra no discurso a sua pertinência epistemológica.
A fala surge como uma função sem órgão próprio e exclusivo, tornando pos-
sível localizá-la em um ponto determinado do organismo. A evolução histórica

30
proporcionou uma pré-determinada disposição anatômica dispersa no organismo
para contribuir para com a fala; cordas vocais, pulmões, língua, boca, aparelho
auditivo e, principalmente, estruturas cerebrais. Ora, todos estes componentes exis-
tem no macaco, porém, este não articula palavras! Se tem a possibilidade da lingua-
gem, mas não detém esta realidade, há configuração evidente de que, em essência,
a função da palavra não é de origem orgânica, mas intelectual. O animal não in-
terpreta o signo, conhecendo apenas o sinal, o que denota uma reação condicional
a uma situação reconhecida de forma global, mas não analisada em seus detalhes.
Assim, não havendo um órgão específico da fala, admitimos a linguagem como
um subproduto da razão do homem, quando levado à consciência de si, que se con-
figura como um desenvolvimento cultural. Ainda, se determinado órgão houvesse,
provavelmente falaríamos a mesma língua em nosso planeta, pois nasceríamos fa-
lando. Poderíamos assumir que a invenção da linguagem foi a primeira das grandes
invenções da humanidade e dessa surgiram os germes de todas as outras.
Qualquer revolução intelectual passa por uma transformação prévia da linguagem
estabelecida. Exprimir é um ato de substituição de uma percepção ou uma ideia por um
sinal sonoro convencionado que a anuncia, abriga e evoca, pela qual, através da fala,
o homem cria e intenta dominar, senão as realidades da natureza, ao menos o sentido
dessas. Parafraseando Pico della Mirandola, em seu Oratio hominis dignitate, esse
homem pela fala torna-se a medida de todas as coisas, um deus em seu microcosmo.
Em sendo a língua um complexo orgânico, desenvolvido historicamente, e com-
portando-se como um organismo vivente, realiza, em cada época, uma construção
coletiva, embora inconsciente, nutrindo-se de seu grupo social. Nomear desta for-
ma é chamar algo à existência, tirá-lo do nada e lhe dar luz na vida; tal denomina-
ção fundamenta o direito à existência no mundo real. Todo pensamento se constitui
à medida que é formulado. Como a linguagem é a expressão mais direta do pensa-
mento, pode-se dizer que geralmente se forma nas palavras. Por meio da fala, o ho-
mem acessa o portal do mundo e este lhe vem ao pensamento para depois do qual
sair em forma de palavras. Situar-se neste mundo é estar em harmonia com a rede
de palavras que coloca as coisas em seu lugar dentro de um determinado contexto.
Uma língua é para os seus usuários um sistema que permite exprimir um número
indefinido de pensamentos com um número finito de sinais, escolhidos de maneira
a recompor exatamente tudo o que se pode querer dizer, comunicando a evidên-
cia das designações das coisas. Há uma dependência recíproca entre a palavra, o
pensamento e as circunstâncias, que seriam, desta forma, menos representação do
real, mas de uma língua que manipula inconscientemente a forma de ver o mundo.
Pela linguagem o homem estabelece nexos associativos entre sons e significa-
do, torna prenhe o espaço e tempo vital, dando sentido a si dentro de um mundo
codificado e decodificado permanentemente pelas palavras, suscitadas por uma
fala comum. Assim, a linguagem seria uma essência que representaria a parte pen-
sante do ser humano, distinta de outras representações.

31
31
UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

Toda a realidade coloca o homem e as suas possibilidades em uma condição


de incapacidade da experienciação estésica do real, face as suas relações com o
cotidiano em relação à natureza física e sobrenatural, à qual estamos permanente-
mente sujeitos. Ainda, todas as suas experiências são manifestadas por um falar,
designar, por um conceituar. É bem verdade que este processo está condenado a
sofrer incontáveis e imprevistas extensões e mudanças pelas imposições do tempo,
face à acumulação de costumes e de modas linguísticas.
A fala não é nem o ser, nem a sua ausência, mas um comprometimento entre
coisas e pessoas, e não existe a priori da iniciativa pessoal que a coloca em movi-
mento, razão pela qual no resumo a consideramos uma abstração, um não objeto
no sentido latino desta palavra; ab-jectum, aquilo que está visível e fisicamente à
sua frente. Há sempre uma indefinibilidade do objeto para o qual o espírito logra
colocar ordem na arbitrariedade dos sistemas sígnicos.
A linguagem nos apresenta o homem enquanto natureza, força do ser que nesse
se manifesta; não o homem real, tampouco o homem imaginário, mas o homem
possível enquanto um projeto divino. A referência a esta natureza assegura a verda-
de da língua e de seu significado.
A linguagem não está submetida ao dicionário, mas sim é este que se dá à tarefa
de avaliar a palavra e catalogar o seu significado, a partir da realidade humana, que
encontra na fala um modo de afirmação de si e de seu estabelecimento no mundo.
A operação da fala cria para os homens, mais que o presente, cria uma natureza
consentânea, conforme escreve Santo Agostinho (2006) em seu Solilóquios, apta
a memorizar o passado, criar uma expectativa do futuro e vivenciar intensamente o
presente do presente. Em Santo Agostinho há considerável aspecto romântico do
humano: carreia para o futuro toda a sua esperança e delimita um modus-vivendis
na vida do presente, a partir da linguística como percepção do mundo e da lingua-
gem articulada como a verdadeira essência de “ser” nesse mundo. Se falar fosse
apenas comunicação, nós, humanos, estaríamos no limiar da mediocridade.

Exercício 1: Assista e analise o filme-documentário A maçã, de Samira Makhmalbaf.


Sinopse: Zahra e Massoumeh são as personagens reais deste filme. Parecem retar-
dadas porque passaram enjauladas em casa onze de seus treze anos de vida. Seus
pais, simples e idosos, com o agravante da mãe ser cega, pensavam estar seguindo
alguns vagos preceitos do Alcorão, um dos quais diria que as meninas são como flo-
res e que expostas ao Sol murchariam. Mohsen Makhmalbaf, pai de Samira e rotei-
rista que assinou o filme, fez a seguinte dedicatória: “[...] o aprisionamento destas
meninas reforça a opinião de que tempo perdido em prisão não pode ser contado
como parte de uma vida”. O filme A maçã possibilita inúmeras metáforas, uma das
quais, para o jornal O Estado de São Paulo, retrata a prisão da mulher. Mais deta-
lhes disponíveis em: http://bit.ly/2Ln3JIe

32
Figura 7 – Zahra e Massoumeh
Fonte: Reprodução
Na análise deste filme, considere a condição de Ernst Cassirer (1874-1945), na qual
os símbolos utilizados pelo homem para a feição de suas representações do mundo
objetivo possuem peculiar autonomia, dizendo respeito ao espaço, que seria, em
primeiro lugar, a percepção mais imediata da realidade.

Em seu Essai sur l`homme – Ensaio


sobre o homem, com o subtítulo Intro-
dução a uma filosofia da cultura hu-
mana –, Ernest Cassirer busca analisar
exatamente o que seria o homem; para
tanto, procura respostas a partir de tra-
balhos anteriores de Nietzsche, Marx
e Freud. Conclui que esses abordaram
tal tema sob perspectivas singulares e,
em sua crítica, compara-as ao mito gre-
go dos leitos de Procusto, “[...] no qual
os fatos empíricos são esticados para
amoldarem-se a um padrão preconcebi- Figura 8
do”. (CASSIRER, 1975, p. 41) Fonte: cidui.org

Procusto era um bandido que assaltava viajantes e os obrigava a se deitar em seu leito de
Explor

ferro. Se os hóspedes fossem demasiados altos, amputava o excesso de comprimento de


suas pernas para ajustá-los à cama, e os que tinham pequena estatura eram esticados até
atingirem o comprimento suficiente. O caso é que as suas vítimas jamais se ajustariam exa-
tamente ao tamanho da cama, porque Procusto, secretamente, tinha duas camas de tama-
nhos desiguais.

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33
UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

Ao estudar e pesquisar uma definição ao homem e entendê-lo como um animal


symbolicum, Cassirer (1975) considera que talvez essa não seja uma propriedade
apenas desse – outros animais poderiam tê-la igualmente. Considerou, em especial,
a simbologia presente especificamente no homem, a partir da arte e religião, além
de singularmente outros componentes da cultura humana, todos estes submetidos
ao tempo e espaço, incluindo aqueles que se referem ao homem exterior e interior:
Tudo o que ocorre exterior ao homem é inerte e sem efeito. Sua essência
não é dependente de condições externas; ele só depende unicamente do
valor que ele-mesmo se doa. As riquezas, sua categoria, sua distinção
social e mesmo sua saúde ou dons intelectuais, tudo isso se faz indiferen-
te. Só importa a inclinação, a disposição interior da alma e, nada pode
abalar este princípio íntimo. Isso não diminuirá o homem a ele-mesmo,
tampouco fará sua vida mais inferior e, a ele não fará nenhum mal nem
interior nem exterior. (CASSIRER, 1975, p. 21)

Assim como Georg Gusdorf, Cassirer (1975) investiga o processo da fala como
uma característica puramente humana, bem como os processos performativos da
linguagem, a qual deriva e procede do pensamento humano, determinando o seu
comportamento, tão influenciado pela simbologia cultural, a ponto de ser caracte-
rizado como um animal symbolicum.

Derrida (2002) cita que para os gregos, bárbaros eram aqueles possuidores de
uma linguagem inarticulada, portanto, desprezados por sua locução deficiente e que
não sabiam falar o grego; sentimento compartilhado mais tarde pelos romanos. Oví-
dio, em seu exílio no Mar Negro, mesmo sendo o testemunho da mais alta civilização
da época, escreveu: “Barbarus hic ego sum, quia non intelligor ulli” – “Incapaz de
me fazer compreender, aqui eu sou o bárbaro”. O termo bárbaro teve estreita rela-
ção com balbus, balbutiens, com o alemão babbeln e com o francês babiller, em
estreita ligação desses vocábulos com o nome dado à Babel, em evidente conotação
do episódio da Torre com os bárbaros que pronunciavam palavras incompreensíveis.

Dessa forma, a língua é precedida de uma linguagem lastreada sob um sistema


simbólico referencial, arbitrário, porém, convencional e lógico entre determinada co-
munidade, o que levou o linguista Ferdinand Saussure a classificá-la como uma ins-
tituição social que permite a uma pessoa compreender e fazer-se compreender no
revelar de suas ideias, sempre tutelada em seu desenvolvimento permanente pelas
impressões deduzidas a partir da fala de um outro, aqui entendido como alteridade.
Foram à capacidade miraculosa das gramáticas para gerar expressões
contra factuais, proposições condicionais e, acima de tudo, tempos verbais

34
do futuro que deram poder à nossa espécie para ter esperança, para
ultrapassar a extinção do indivíduo. Nós resistimos, resistimos criativa-
mente, em razão de nossa decisiva capacidade de dizer não à realidade,
de construir ficções de alteridade para nossa consciência habitar, uma
alteridade sonhada, desejada ou esperada. É nesse exato sentido que o
utópico e o messiânico são figuras de sintaxe. (STEINER, prefácio, 2005)

Dufrenne (2004) aconselha ao gramático enunciar regras para uma língua recor-
rendo à língua para formulá-las, mas também as procurando na fala e, no limite,
no conjunto de todas as falas, pois a língua é o que assegura a unidade de todos
os discursos possíveis nessa fala. Cassirer (1975) reporta a dificuldade encontrada
por Dufrenne e a classifica de “as camadas geológicas da fala”, duas formas de
linguagem: uma coloquial, mais representada pela linguagem proposicional; uma
propriedade do mundo animal em geral, de onde surge expressões involuntárias
de sentimentos, ligados à linguagem emocional. Para Cassirer (1975), a diferença
entre as linguagens proposicional e emocional se constitui da verdadeira fronteira
entre o mundo humano e o mundo animal. A outra forma de linguagem está calca-
da na estrutura sintática e lógica da língua culta.

As considerações de Cassirer (1975), com relação a um sistema de comunicação


entre os animais, suscitam uma questão de partida: os chimpanzés possuem cultu-
ra? Em caso positivo, seria da competência da Antropologia.

Wolfgang Köhler (1887-1967), um dos principais teóricos da Psicologia de


Gestalt, realizou pesquisas com chimpanzés entre as décadas de 1910 e 1920.
Köhler realizou várias experiências que consistiram em colocar um ani-
mal faminto numa jaula onde eram penduradas bananas que o animal
não conseguia alcançar. O chimpanzé resolveu o problema quando pu-
xou um caixote e o colocou sob a fruta a fim de alcançá-la. Segundo
Köhler, a solução encontrada pelo chimpanzé não é imediata e só ocorre
quando o macaco tem uma visão global do campo e estabelece a relação
entre o caixote e a fruta. Esta experiência mostra que os animais, no caso
do macaco, são capazes de perceber a realidade, permitindo uma ação
não planejada pela espécie. Portanto, não se trata de uma ação instintiva,
de simples reflexo, mas de um ato de inteligência. Nos animais que agem
de acordo com o instinto, a ação é invariável de indivíduo para indiví-
duo; porém, em animais dotados de inteligência as ações são flexíveis e
capazes de se adaptar às necessidades momentâneas, tanto que um dos
chimpanzés, Sultão, o mais inteligente, foi capaz de encaixar um bambu
em outro para alcançar a fruta.

Fonte: http://bit.ly/2k1j3hv

35
35
UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

Figura 9
Fonte: Wolfgang Kohler

A experiência de Köhler, mostra que nos animais existe uma inteligência, mes-
mo que reduzida em relação aos humanos, a qual reflete uma capacidade mental de
raciocinar, planejar e, resolver problemas, a qual leva a um aprendizado.

Nos Estados Unidos existe um centro de pesquisas, com a participação, inclu-


sive, de brasileiros, o qual contém uma comunidade de bonobos – Pan paniscus
–, igualmente conhecidos por chimpanzés-pigmeus (INTERNATIONAL UNION
FOR CONSERVATION OF NATURE, 2012), onde se estuda a possibilidade de co-
municação entre esses símios e o homem. Segundo a bióloga Carla Araújo Vieira:
O bonobo é um símio do grupo dos primatas, semelhante ao chimpanzé e
distinguem-se destes por apresentar pernas relativamente longas, lábios cor-
-de-rosa e o rosto moreno. Segundo estudos genéticos o animal mais próximo
ao ser humano. Como todos os integrantes do grupo dos primatas, apresen-
tam face pequena e cérebro grande quando comparados ao resto da face.

Fonte: http://bit.ly/2JJNfXc

Figura 10
Fonte: Wikimedia Commons

36
Carla Araújo Vieira explica que as principais características da espécie são uma
postura ereta, uma cultura matriarcal e igualitária. Vivem em comunidades de, em
média, trinta a oitenta indivíduos, movendo-se em grupos menores quando em
busca de alimento.

As fêmeas e os jovens emigram de suas comunidades natalinas e se mudam


entre as comunidades vizinhas antes de se estabelecerem permanentemente em
um grupo. Os machos geralmente permanecem na comunidade natal. Os machos
de bonobo são menos territoriais e menos agressivos para com os machos das
comunidades vizinhas. As coalizões femininas influenciam as estratégias de acasa-
lamento e a partilha de alimentos, sendo mantidos e reforçados por comportamen-
tos únicos aos bonobos, conhecidos como esfregaço genital. Este comportamento
também serve para reduzir as tensões sociais.

A massa corporal em machos varia entre 34 e 60 kg, contra uma média de 30


kg nas fêmeas. O comprimento total dos bonobos – desde o nariz até a anca – é
de 70 a 83 cm. A partir da experiência com os bonobos, torna-se possível crer
que os macacos antropoides tenham competências para desenvolver e assimilar
determinados processos simbólicos, por integrarem uma subordem de primatas
que apresentam um cérebro grande e desenvolvido, o que lhes possibilita expres-
sar emoções, manter os olhos voltados à frente, possuírem um par de mamas e
dedos com unhas rebaixadas, hábitos diurnos e vivência tanto no topo das árvo-
res, quanto no chão; porém, não são garantias de que se avizinham do limiar do
mundo humano.

Segundo a professora doutora Zelinda Maria Braga Hirano, do Departamento


de Ciências Biológicas da Universidade Regional de Blumenau (Furb), que esteve
em visita a esse centro nos Estados Unidos, os símios que lá estão se comunicam
com os pesquisadores através de uma linguagem gestual, configurando terem a
posse de um determinado sistema de comunicação por sinais e alto grau de inte-
ligência em relação a outros animais, mesmo dentro da espécie. A respeito dessa
diferença, Cassirer assim comenta:
Nos animais, o mundo da representação ignora ainda a transformação
das impressões em representações objetivas e, o princípio de constância
e a identidade do objeto que desempenha um papel crucial e decisivo na
apreensão da realidade. [...] diferente para os homens, onde se caracteriza
o mundo da representação de um modo difuso de apreensão, um con-
junto de qualidades de complexos, que caracterizam a região de percep-
ção especificamente humana. [...] vivendo e agindo no espaço de forma
nenhuma o animal o intui sensivelmente; o animal é incapaz de se opor
a ele (o espaço) objetivamente e, de representá-lo como uma unificação
inteira em uma estrutura determinada. (CASSIRER, 1975, p. 24)

Cassirer (1975) fala a respeito de uma teoria unitária para a compreensão do


animal homem, quando distingue o “sinal” representado na contiguidade natural
e o “símbolo” representado por uma convenção social, do que originou o título do
segundo capítulo de livro – Uma chave para a natureza do homem – o símbolo:

37
37
UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

[...] no mundo humano encontramos uma característica nova que pare-


ce ser a marca distintiva da vida humana. O círculo funcional do homem
não é apenas quantitativamente maior; passou também por uma mudança
qualitativa. O homem descobriu, por assim dizer, um novo método para
adaptar-se ao seu ambiente. Entre o sistema receptor e o efetuador, que
são encontrados em todas as espécies animais, observamos no homem
um terceiro elo que podemos descrever como o sistema simbólico. Esta
nova aquisição transforma o conjunto da vida humana. Comparado com os
outros animais, o homem não vive apenas em uma realidade mais ampla;
vive, pode-se dizer, em uma nova dimensão da realidade. Existe uma dife-
rença inconfundível entre as reações orgânicas e as respostas humanas. No
primeiro caso, uma resposta direta e imediata é dada a um estímulo exter-
no; no segundo, a resposta é diferida. É interrompido e retardado por um
lento e complicado processo de pensamento. (CASSIRER, 1975, p. 47-48)

Cassirer (1975) distingue, portanto, os sinais dos símbolos: enquanto um sinal


estabelece relações do homem com o seu mundo físico, o símbolo é parte inte-
grante da rede de significados que circundam o mundo humano; em suma, na cul-
tura humana os sinais são operadores e os símbolos são designadores, conquanto
que ambos, dentro da cultura, exijam do homem a sua consequente reflexão.

De uma possível inteligência animal, apenas poder-se-á afirmar que só se de-


dica a pensar coisas de animal; este não tem a propriedade humana de predicação
das coisas de seu entorno; não obstante, Cassirer (1975) admite possuir uma imagi-
nação, conforme indicam pesquisas recentes sobre a cognição animal. Todavia, tão
somente o homem desenvolveu essa nova forma de representação que comporta
uma imaginação que se traduz por inteligência simbólica.

Para Ernst Cassirer (1975), exatamente em face desse processo dinâmico, onde
são mobilizadas imaginação e inteligência simbólicas, seriam as razões pelas
quais a vida humana extrapolaria as suas condições biológicas e sociais. Se
validarmos a ideia de que o conceito de cultura possa ser estendido aos animais
não humanos, certamente tanto as Ciências Sociais, quanto as Ciências Biológicas
precisarão revisar os seus paradigmas e valores, pois todo o sistema cultural possuir
uma lógica própria seria um ato primário e insensato de etnocentrismo imaginar
poder transferir a lógica de um sistema para outro, não obstante essa ser a ten-
dência usual, considerar lógico apenas o sistema próprio no qual se está inserido e
atribuir a outros quaisquer uma altiva irracionalidade. Em sua filosofia das formas
simbólicas, Ernst Cassirer nomeadamente mostra que a questão da linguagem e
concomitantemente a dos símbolos são tão antigas como a questão do ser.

Gillo Dorfles (1992), apoiado no Ensaio sobre o homem de Cassirer, faz uso
da apreensão senciente, ao admitir que se possa notar nos animais uma resposta a
sinais, mas jamais a símbolos, porque somente os homens detêm a particularidade
de construir e reagir a estes. Segundo Dorfles (1992), os homens estão a tal ponto
envolvidos por formas linguísticas que expressam símbolos místicos, ritos religiosos

38
e outros que não são mais capazes de ver ou conhecer o mundo, senão por inter-
posição desta relação semiótica.
Logo, em vez de definir o homem como animal rationale, deveríamos
tê-lo como animal symbolicum. Ao fazê-lo, podemos designar sua dife-
rença específica e entender o novo caminho aberto para o homem no
caminho para a civilização. (CASSIRER apud DORFLES, 1992, p. 24)

A máxima premissa da teoria de Cassirer se assenta no postulado kantiano, que


prega a impossibilidade de um conhecimento absoluto do mundo real, uma vez
que o nosso aparato mental possui limites que o pré-condicionam, a priori de
quaisquer observações. Kant acedeu à sua lógica transcendental por essa convic-
ção, que enfatiza o poder sobretudo organizador da racionalidade, a qual por si não
somente se ordena subjetivamente à realidade natural, mas unifica os aspectos do
pensamento, a envolver o perceber e conceber. Para Kant, não apenas as infor-
mações colhidas a priori impõem as suas formas ao entendimento das coisas que
aparecem, mas concomitante à própria sensibilidade adiciona informações outras
em uma síntese, entre a intuição e o intelecto, para dar vida à gnose singular.

Cassirer (1975) parte da análise da estrutura mental do homem, ao afirmar


que essa prima pela tendência de se expressar através de símbolos. Disso re-
sulta à filosofia estudar as formas simbólicas pelas quais se dá o discurso humano
que para Cassirer (1975) seriam três: a linguagem, o mito e conhecimento, tal
que mais que limitar-se a expressar um objeto, o homem o intensificaria, emo-
cionalmente, via a simbolização comocional. A teoria das formas simbólicas de
Cassirer sempre esteve presente nas raízes de seu pensamento, enunciado em
diferentes modos:
• Cada forma-símbolo é condição de possibilidade de referência a um objeto;
• Existe uma gradação metódica nas formas e no cume se encontra a Ciência;
• Cada esfera do simbólico possui o seu caráter totalizante;
• Existe uma pretensão de absolutidade inerente a todas estas esferas.

Exercício 2 – análise simbólica:


Mandala é uma representação geométrica da relação dinâmica entre o homem e o
Cosmo; o vocábulo em sânscrito significa círculo, ou completude e representa a bus-
ca pela paz interior. O diagrama é composto de formas geométricas concêntricas e
entrelaçadas, utilizado no hinduísmo, budismo, nas práticas psicofísicas da ioga e
no tantrismo como objeto ritualístico e ponto focal para a meditação. Um dos as-
pectos mais importantes das mandalas são as suas cores, de modo que o:
• Branco simboliza a pureza;
• Azul simboliza a sabedoria;
• Vermelho simboliza a compaixão.

39
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UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

Figura 11
Fonte: Getty Images
Na mandala existem duas figuras distintas: um quadrado e um círculo combina-
dos em uma forma que poderia ser chamada de mística. Segundo Giuseppe Tucci
(1969), em seu livro Teoria e prática da madala, o sentido literal da mandala é o
círculo ou centro, no qual o círculo é o símbolo do Cosmos na sua totalidade, en-
quanto o quadrado é o símbolo da terra, ou do mundo construído pelo homem. O
seu centro, a morada da divindade, está contido dentro do quadrado, o palácio do
ser interior, rodeado por um círculo, ou por uma série de círculos, cada um simboli-
zando determinada fase da iniciação ou nível da consciência. A mandala é a Terra e
o homem é, ao mesmo tempo, o átomo que compõe a essência material do homem
e a Galáxia dentro da qual a Terra não passa de um átomo. Na tradição oriental, a
mandala é, em essência, um veículo para concentrar a mente, de modo a permitir
que vá além de seus limites costumeiros.

Investigadores posteriores, tais como Melanie Klein, Hannah Segal e Adrian


Stokes encontraram outros arquétipos simbólicos, por exemplo:
• Linha ou objeto horizontal = descanso;
• Linha ou objeto vertical = ação, trabalho, desafio/audácia, homem;
• Objeto anguloso ou escarpado = homem;
• Figura moldável ou suave = mãe;
• Habitação = útero;
• O vão da porta = nascimento;
• Janela = olho, conversação;
• Espaço abobadado = cooperação;
• Espaço avançado = competição, querela;
• Círculo = Deus.

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Exercício 3 – Análise Simbólica:

Figura 12 – Construção n.º 78 (1955), Figura 13 – Concreção 5836 (1958),


Ivan Ferreira Serpa Luís Sacilotto
Fonte: Acervo do conteudista Fonte: Acervo do conteudista

Figura 14 – Círculo branco (1918), Figura 15 – Sobreposição das


Alexandre Rodchenko figuras 12 a 14
Fonte: Acervo do conteudista Fonte: Acervo do conteudista

A intenção foi sobrepor linhas verticais com círculos concêntricos para mostrar a união
dos homens com o Criador.

Cassirer (1975) faz com que a crítica da razão kantiana se torne uma crítica da
cultura, ao ampliar e complementar o sistema criticista, sobretudo nas esferas mais
visadas pelo qual: a linguagem e o mito. Cassirer (1975) distingue a grade simbó-
lica da experiência humana e realça o quanto o homem é envolvido pela qual, a tal

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UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

ponto de se constituir menos um animal racional que um animal simbólico, cuja


lógica depreende a própria lógica e o fundamento último da implicância da posse
do mundo pelo homem.

Exercício 4 – Análise Simbólica:

Figura 16 – Embalagem de preservativo “A maçã” (2005)


Fonte: Reprodução | Neocy Fin
Nesta obra, a esfera simbólica representa o lugar, tipicamente humano, onde as de-
terminações ambientais – uma maçã cortada – atuam sobre o sujeito cognoscente
sob a forma de impressões. Antes de serem absorvidas passivamente, encontram
as vias de uma mediação e elaboração que culminam na função expressiva de
uma genitália feminina. Ludicamente, ao associar a obra a uma mensagem publici-
tária de utilidade pública, o símbolo remete para além da maçã e do órgão feminino.
Mitologicamente, a maçã está associada ao pecado original de Adão e Eva, parte da
doutrina cristã que anseia explicar a origem da imperfeição humana, de seu sofri-
mento e da existência do mal em face da queda do homem. Não obstante a Bíblia
não fazer referência específica a essa fruta, credita-se à qual o pecado original, o mal
hereditário que adentra o mundo em face da desobediência de Adão e é transmitido
ao homem através da sexualidade desregrada.

O objetivo de Cassirer (1975) é entender a forma pela qual se dá a coexistência


epistemológica entre a objetividade e subjetividade do homem; analisar o meca-
nismo pelo qual a mente humana lê e descreve o mundo real, conforme o seu pró-
prio esquema representativo. Essa sui generis qualidade destorcida do intelecto,
na verdade, formula a verdadeira essência de seu poder criativo, já que a partir da
qual serão modelizadas as infinitas formas simbólicas da linguagem humana.

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Em seu Essay sur l`homme, ao abordar La crise de La connaissance de soi,
Ernst Cassirer (1975, p. 19) questiona: «Qu`est-ce que l`homme ? L`homme est cet-
te créature qui est constamment en quête de soi-même et quie, à chaque instant,
doit examiner minutieusement les conditions de son existence».

Importante ressaltar a observação de Ernst Cassirer (1975, p. 16), que associa


o conhece-te a ti mesmo ao imperativo categórico kantiano como ideia central
à adequada compreensão de moralidade e eticidade: «Connais-toi toi-même est
considérée comme un impératif catégorique, comme une loi morale et religieuse
fontamentale».

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UNIDADE Introdução à Antropologia Filosófica e às
Suas Possibilidades Ante a Condição Humana

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Livros
A posição peculiar do homem no mundo segundo o filosofo Max Scheler
MIGUEL, M. R. A posição peculiar do homem no mundo segundo o filosofo Max
Scheler. Campinas, SP: PUC, 2014.
Discurso pela dignidade do homem
PICO, G. Discurso pela dignidade do homem. Porto Alegre, RS: Fi, [20--].
http://bit.ly/2JLXABW

Filmes
O ponto de mutação
O Ponto de Mutação refere a obra escrita por Fritjof Capra, Editora: Cultrix, Ano: 1982.
http://bit.ly/2k3dXBo

Leitura
O conceito Homo Mensura
SARDI, G. C. O conceito Homo Mensura. Revista Contemplação, n. 16, p. 111-122, 2017.
http://bit.ly/2JOuIsK

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Referências
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Florianópolis, SC: Independentes; Núcleo Castor de Estudos e Atividades em Exis-
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São Paulo: EPU, 1977.

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pensamento de Ernst Cassirer. Porto Alegre, RS: Fi, 2017.

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tiva, 2004.

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neiro: Jorge Zahar, 1993.

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1970.

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Acesso em: 5 dez. 2018.

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