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Semiótica

Material Teórico
Semiosfera

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Me. Bruno Fischer Dimarch

Revisão Textual:
Prof.ª Dr.ª Luciene Oliveira da Costa Granadeiro
Semiosfera

• Dos EUA à URSS;


• Semiosfera;
• Textos Culturais;
• Tradução.

OBJETIVOS DE APRENDIZADO
• Conhecer o panorama histórico e intelectual no qual emerge e se desenvolve a Semiótica
da Cultura ou Semiótica Russa;
• Fundamentar os conceitos de semiosfera, texto cultural e tradução;
• Compreender o processo de tradução dos textos culturais;
• Identificar contribuições do estudo da Semiótica da Cultura para a produção fotográfica.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam-
bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e
de aprendizagem.
UNIDADE Semiosfera

Dos EUA à URSS


Anteriormente, em nossa Introdução à Semiótica, discorremos sobre o teste-
munho de uma “consciência semiótica” eclodindo no século XX. Isso significou o
desenvolvimento de diferentes teorias em diferentes locais. Como exemplo, abor-
damos a Semiologia criada por Ferdinand de Saussure (1857-1913). Nas Unidades
anteriores, exploramos a Teoria Geral dos Signos de Charles Sanders Peirce (1839-
1914), cujas bases se encontram na Lógica e na busca por uma descrição que pudes-
se abranger desde as descobertas científicas à experiência comum. Sua Semiótica,
de caráter geral, ainda que estabelecesse diálogos com as questões de seu tempo,
faz isso mais profundamente com a história do pensamento, das Ciências e da
Filosofia. Em outros contextos, contudo, emergem diferentes formulações semióti-
cas, mais atadas às questões sociais, políticas e culturais. Se retomarmos à arqui-
tetura filosófica de Peirce, elas estariam no âmbito das Ciências Especiais, pois se
direcionam a um objeto – amplo, mas específico – chamado “cultura”.

A Revolução Industrial impactou seriamente o mundo. A comunicação e as artes


protagonizaram a emergência de novos meios, tecnologias e linguagens. Em decor-
rência desse processo, a linguagem, tanto a nova quanto a pré-industrial, tornou-se
o objeto de investigação dos mais atentos estudiosos.

Nesta Unidade, passaremos da teoria geral emergida nos Estados Unidos da


América sob a mente de Peirce para adentrar em um país simbolicamente oposto,
a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1922-1991).

Para entrarmos no contexto da emergente União Soviética, trazemos um filme de curta me-
Explor

tragem de Sergei Eisenstein (1898-1948), Diário de Glumov.


Eisenstein foi um dos pioneiros do cinema e mestre da montagem, criando um importante
legado de teorias e obras cinematográficas. Participou ativamente da vanguarda russa, que
buscava elaborar uma nova estética alinhada aos ideais revolucionários.
Confira no link abaixo (acesso em 13 de julho de 2019) a primeira obra cinematográfica de
Eisenstein (com forte presença da linguagem teatral e influência de George Méliès) lançada
em 1923: https://youtu.be/p2TeqpxVzhU

Uma Teoria Desagradável


Se, nos EUA, os estudos semióticos de Peirce não receberam o devido apoio, na
URSS, aqueles que pensavam a Semiótica encontrariam um forte opositor, Joseph
Stalin (1878-1953), que governou de 1920 até sua morte em 1953.

O “espírito semiótico” russo tem suas raízes no século XIX, mas só ganhará
vigor próximo à metade do século seguinte. “Suas atividades tiveram início em fins
da década de 1950, o que mostra a defasagem entre os ricos inícios da atividade
semiótica na URSS e o tardio começo dos trabalhos de Semiótica, reconhecida e

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assumida enquanto tal” (SCHNAIDERMAN, 2010, p. 26). Essa defasagem estava
pautada no clima da era stalinista.

Nos Materiais Complementares, você poderá conhecer mais sobre Stalin e o


stalinismo. Para fins deste estudo, salientamos que o líder russo instaurou um regi-
me autoritário, uma atmosfera de medo e terror, eliminando opositores e impondo
medidas irrevogáveis. Stalin interferia diretamente nos trabalhos acadêmicos e pes-
quisas científicas. Sendo pouco simpático a correntes de pensamento que estariam
na base da Semiótica, vetava o acesso a obras que não considera adequadas.

Espírito Semiótico
Mas, afinal, como era esse “espírito semiótico russo”? Vejamos a descrição de
Eisenstein feita por Boris Schnaiderman (2010, pp. 17, 18):
[...] a figura de Eisenstein [...] como a encarnação mais completa do “espíri-
to semiótico” da Rússia moderna. Tendo passado do teatro para o cinema,
sua atividade como diretor englobava a preocupação com diversas artes.
Ainda no cinema mudo, preocupou-se com a transmissão de efeitos de
som. A utilização da cor constituiu uma de suas preocupações constantes.
A relação entre pintura e cinema foi estudada por ele minunciosamen-
te, com análise magistral de quadros e desenhos. Em diferentes ocasiões,
mostrou a importância que teve para a gênese de suas ideias sobre mon-
tagem o conhecimento do ideograma japonês e chinês. A literatura está
presente sempre nas suas reflexões sobre cinema, que por sua vez trazem
elementos valiosos para a compreensão da obra literária [...]. Os próprios
desenhos para os filmes indicam uma capacidade incrível de se realizar em
diferentes meios de expressão. E são bem conhecidas as reminiscências em
que Prokófiev narra como a intervenção de Eisenstein foi decisiva para a
forma definitiva da trilha sonora dos filmes em que ambos cooperaram. [...]
É impressionante a preocupação do cineasta com a ciência de seu tempo
e, na realidade, ele expressou talvez como ninguém a síntese da ciência e
da arte, certamente uma das grandes preocupações da década de 1920.

Não fosse o regime stalinista (e mesmo as dificuldades que encontrou no Oci-


dente), Eisenstein teria criado obras talvez ainda mais impressionantes que aquelas
que nos foram legadas. Notemos o que há de semiótico nesse grande personagem.
Ele observava as linguagens para além de si próprias, encontrando conexões, es-
tabelecendo diálogos, engendrando uma plasticidade de signos. No ideograma ja-
ponês e chinês, aquela forma completamente diferente da nossa de estruturar a
língua e o pensamento, ele viu a montagem de seus filmes. Repare, são signos
muito diferentes e Eisenstein os coloca em diálogo, montagem e ideograma. Ele “se
preocupou com a transmissão de efeitos de som” no cinema mudo – pensar o som
onde há apenas imagem. Poderíamos conseguir som também com uma fotografia?

Eisenstein fazia uso, por exemplo, da justaposição em suas criações. Ele sabia que,
ao justapor um plano (signo) a outro (signo) diferente, criaria um signo novo na mente
do espectador que não seria apenas a soma dos anteriores, isto é, A + B não seria

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UNIDADE Semiosfera

apenas A e B, A + B resultaria em C. Vemos aqui algo que muito se assemelha à


teoria de Peirce sobre o signo genuíno em 3 categorias.

Muitos são os fotógrafos que exploram semioticamente a justaposição, a sobre-


posição e a montagem em suas imagens. Ao fazê-lo, cria-se um novo signo que não
é apenas a soma das partes, ainda que as contenha, mas um signo novo.

Figura 1 –O Construtor, autorretrato de El Lissitzky, 1924


Fonte: Wikimedia Commons

El Lissitzky (1890-1941) é outro artista que deflagra o espírito semiótico russo.


Era artista, educador, designer, fotógrafo, tipógrafo e arquiteto, e transitava entre
as diferentes áreas em uma elaboração estética inovadora, que dialogasse com as
transformações de seu tempo e espaço. Disseminou o Construtivismo e foi um dos
idealizadores do Suprematismo russo.

Observe como dialoga a fotomontagem acima com seu trabalho em tinta e aqua-
rela. Podemos ver sua mão com compasso e sua preocupação tipográfica na capa
de um catálogo criada por ele. Há signos que podem ser identificados nas imagens
que elucidam a preocupação semiótica do artista.

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Figura 2 –Um Proun de El Lissitizky. Colagem de tinta e aquarela, 1925
Fonte: Wikimedia Commons

Figura 3 – Design para o catálogo da escola VKhUTEMAS, 1927


Fonte: Wikimedia Commons

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UNIDADE Semiosfera

Explor
As coisas que não existem são mais bonitas – Manoel de Barros
A artista brasileira Rosângela Rennó criou uma série muito interessante que permite estudar os
procedimentos semióticos que estamos abordando. Sua série fotográfica Matéria de Poesia foi
feita sem que a artista fizesse um clique fotográfico. Ela adquiriu slides fotográficos em sebos
e mercados de pulgas, fez justaposições com eles e associou cada criação a frases poéticas de
Manoel de Barros. Assim, a soma de fotografias de desconhecidos gerou novos signos e a eles
foi conectada poesia gerando um signo diferente do anterior. A obra foi criada com diversas
partes – com signos que por si só já produzem efeitos emocionais, sensoriais e intelectuais –
mas a obra da qual resulta a ação artística de Rosângela Rennó é mais do que a soma das partes,
é algo novo que emerge do jogo semiótico da manipulação dos diferentes signos.
Veja mais nos Materiais Complementares.

Reside nesse jogo de signos e linguagens, sua investigação, teorização e aplica-


ção o “espírito semiótico” que esteve na base da Semiótica Russa do século XX, da
qual destacaremos a obra de Iuri Lótman.

Semiosfera
Vladímir Vernádski (1863-1945) é para nós, brasileiros, um nome desconhecido.
No entanto, na educação básica, aprendemos (ou deveríamos aprender) o concei-
to de “biosfera”. Houve tempo, inclusive, que o termo era largamente utilizado
nos meios de comunicação de massa. Vernádski ampliou e popularizou o conceito
(criado em 1875 por Eduard Suess) descrevendo a biosfera (em seu livro de 1926)
como um sistema no qual matéria viva e abiótica se influenciam. A biosfera seria a
segunda etapa no desenvolvimento da Terra, depois da geosfera.

Suas pesquisas a respeito da biosfera, na qual evoluem as espécies, induziram-


-no a pensar que, através dessa evolução, houve o desenvolvimento da consciência
e do pensamento dialógico. Além da esfera na qual a vida ocorre, outra esfera se
desenvolvera por meio da consciência, a esfera do logos (pensamento), a logosfera,
ou do nous (mente, espírito), a noosfera. A consciência humana seria, portanto, o
“lugar” da terceira etapa do desenvolvimento terrestre.

Filiado ao conceito de noosfera de Vernádski, temos o conceito de semiosfera.


Foi formulado pelo semioticista Iúri Lótman (1922-1993) em 1984 para
designar o habitat e a vida dos signos no universo cultural [...] Fora dele,
no entender de Lótman, nem os processos de comunicação, nem o desen-
volvimento de códigos e de linguagens em diferentes domínios da cultura
seriam possíveis. Neste sentido, semiosfera é o conceito que se constituiu
para nomear e definir a dinâmica dos encontros entre diferentes culturas e,
assim, construir uma teoria crítica da cultura. (MACHADO, 2007, p. 16)

Diferentemente da Teoria Geral de Peirce, estamos agora no âmbito de uma


semiótica que enfoca como objeto de estudo a cultura humana. Estabelece-se, cla-

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ro, que a semiosfera, a biosfera e a geosfera interferem uma na outra. O que se
assume é o estudo da semiose “que atende à necessidade crescente de conhecer
as linguagens produzidas pelos diferentes sistemas culturais e como elas produzem
significações” (MACHADO, 2007, p. 19).

Gostaríamos de citar ao menos um caso em que semiosfera, biosfera e geosfera


são, de modo evidente, afetadas mutuamente. Exemplos mais comuns, partindo
do sentido oposto, seriam o modo como eventos cataclísmicos (terremoto, tsuna-
mi etc.) afetam a vida no planeta e se desdobram culturalmente (desenvolvimento
de projetos arquitetônicos e de engenharia inovadores, criação de produções ci-
nematográficas sobre os eventos, mobilização de forças de apoio às vítimas etc.).
Vejamos agora como a semiosfera pode afetar as demais.

Johann Wolfgan von Goethe (1749-1832), em sua obra Fausto, traz poeticamente
diversas faces do espírito humano. Em uma parte avançada (e menos popular da
obra), “[...] contemplando a natureza, o protagonista primeiro exalta sua força, mas
depois se incomoda com seu potencial desperdiçado. Num momento, enche-se de luz
e concentra seu pensamento no projeto: ao divagar sobre o caos e desorganização da
natureza, decide torná-la útil em sua totalidade” (DIMARCH, 2007, p. 34). Goethe,
por meio de Fausto, anuncia o projeto da modernidade que inclui a interferência,
domínio e transformação da natureza como alicerces do progresso. Podemos ver
como, no século XVIII, Goethe já apontava para grandes interferências na natureza
que viriam a ocorrer (por exemplo, como a transposição do Rio São Francisco ou a
construção da hidrelétrica de Itaipu).

Uma das principais bases da Semiótica da Cultura foram os estudos de Roman


Jakobson no campo da Linguística. Ele investigou a linguagem indo além da lin-
guagem verbal e se estendendo até para além da linguagem humana. As lingua-
gens são sistemas, ou seja, conjuntos de elementos organizados. Esses sistemas são
formados por signos e são portadores de estrutura. Cada linguagem se estrutura a
partir de combinações de signos que lhe são próprias, que lhes confere seu caráter
específico e também suas semelhanças e conexões com outras linguagens.

A linguagem fotográfica, nosso objeto de estudo, é estruturada por elementos


(signos e códigos) que lhe são próprios (cor, enquadramento, ritmo etc.), o que a
torna singular e, ao mesmo tempo, há nesse sistema elementos que podem ser en-
contrados no cinema, no desenho, na pintura e abertura para diálogos com outras
linguagens como a verbal, a musical, a teatral, entre outras. Portanto, há na Foto-
grafia algo particular e algo que se assemelha a outras linguagens.

Em diálogo com a Teoria Geral dos Sistemas, pode-se afirmar que todo sistema é aber-
to em algum nível (DIMARCH, 2007 e VIEIRA, 2006). Isso significa que nada na cul-
tura (na semiosfera) está isolado, nada opera completamente à parte de outros sistemas.
Ao contrário, há uma relação entre os sistemas de signos (e com a biosfera e a geosfera).
A linguagem fotográfica é permanentemente influenciada pelo desenvolvimento tecnoló-
gico, em especial pelos incrementos na captação e edição de imagens. Outras linguagens
visuais também a influenciam, indicando novos caminhos, modelos e tendências.

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UNIDADE Semiosfera

A Semiótica de Lótman coloca a linguagem verbal como centralizadora e organizado-


ra das linguagens. Os sistemas não linguísticos, como a fotografia, a literatura e a religião,
estariam na periferia por não serem tão evidentes e coerentes às suas estruturas. Mas já
existem propostas mais atuais nas quais o centro depende de qual é o objeto estudado.

“A imprecisão e incompletude que habitam as periferias desse todo concêntrico são


inerentes aos sistemas não linguísticos. Por conseguinte, comportam o desconhecido,
o inusitado e, sobretudo, a criação” (OKTIABR in MACHADO, 2007, pp. 28, 29).

O que determina qual sistema está no centro e qual está na periferia é a sua estru-
tura e não a sua superioridade em relação aos demais. Tanto que Lótman explicitará
que há maior liberdade de criação na periferia. Ora, sabemos que a linguagem foto-
gráfica é um sistema que pressupõe a criação e mesmo inovações em sua estrutura.

A exemplo de inovação podemos citar o trabalho de Vik Muniz, cuja obra se estru-
tura em torno da fusão de criações plásticas (esculturas e composições com diferentes
materialidades em diferentes escalas) e registro fotográfico ou da fotografia transfor-
mada em objeto artístico. Imagens de crianças feitas com açúcar, releituras de obras
consagradas da história da arte feitas com sucata em grandes dimensões, pintura feita
com chocolate são algumas das criações plásticas que se tornam objeto de suas fo-
tografias e se consolidam como obras fotográficas. No sentido inverso, temos a série
Perfect Strangers, na qual suas fotografias tornam-se pastilhas de vidro instaladas nas
paredes do metrô – veja mais sobre o artista nos Materiais Complementares.

Figura 4 – Processo de criação de obra de Vik Muniz da série Perfect Strangers instalada na estação da 72nd
Street em Nova York (EUA) a partir de fotografias dos “tipos” de pessoas encontradas no metrô da cidade
Fonte: Wikimedia Commons

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Figura 5 – Obra de Vik Muniz da série Perfect Strangers instalada na estação da 72nd Street em Nova York
(EUA) a partir de fotografias dos “tipos” de pessoas encontradas no metrô da cidade
Fonte: Wikimedia Commons

Textos Culturais
A Semiótica da Cultura tem no conceito de “texto” uma de suas mais emblemá-
ticas descrições. Um texto é algo que se cria a partir de códigos, “ele mantém uma
relação direta com a linguagem que o precede e também é um gerador de lingua-
gem, pois o texto é um espaço semiótico de interação” (MACHADO, 2007, p. 31).
Quando interagimos com um texto cultural, entramos em contato com um objeto
no qual diversos sistemas são conjugados.

Figura 6 –Círculo de pedra em lago escocês


Fonte: Getty Images

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Pensando essa fotografia como um texto cultural, perceba como se cruzam os


sistemas. Temos um elemento da biosfera, uma paisagem escocesa, e nela uma
marca da presença humana, portanto, um texto cultural da semiosfera. O círculo
de pedras tanto é expressão de um elemento da cultura escocesa quanto de uma
elaboração estética, ordenada e humana da natureza. O que descrevemos até agora
foi o objeto da fotografia, o que ela está retratando, mas a fotografia já é uma nova
camada sobre esse objeto, um novo texto cultural. Nesse texto (a fotografia), há
uma relação direta com a linguagem que a precede, isto é, com a linguagem foto-
gráfica em geral. São os textos constituídos por subtextos, textos dentro dos textos.

Pode ocorrer de um texto cultural influenciar a linguagem, como vimos acima


na obra de Vik Muniz. Ora, a cultura é dinâmica, está em movimento perpétuo,
portanto é natural que os sistemas e textos culturais estejam igualmente em cons-
tante processo. Nenhum texto está acabado, fechado, pois há camadas de relações,
de sentidos e significados. O texto cultural é como um tecido no qual os fios estão
soltos, atados a outros tecidos e carretéis, nunca é isolado.

Iúri Lótman (in MACHADO: 2007) descreve ainda as três funções do texto da
seguinte forma:
1. Função comunicativa: o texto comunica, transporta uma mensagem de
um emissor a um receptor por meio da linguagem;
2. Função geradora de sentidos: se, na comunicação, busca-se uma men-
sagem sem ruídos ou interferências, ao gerar sentido, um texto ativa diver-
sas linguagens que o interpretam e a mensagem não pode mais ser homo-
gênea, como na função comunicativa, e sim heterogênea, com múltiplos
sentidos que podem emergir do texto;
3. Função mnemônica: o texto carrega memória, memória da cultura. Não ne-
cessariamente essa memória é cronológica ou reconhecível. Pensemos na foto-
grafia do círculo de pedras. Ela já carrega a memória da história da linguagem
fotográfica, de sua estrutura e seu modo de ser, e ainda traz as memórias dos
objetos por ela retratadas. O texto cultural é presente e memória.

Podemos perceber que as três funções fazem do texto cultural mais do que
informação, pois é constituído de memória e da propriedade de gerar senti-
dos. A própria geração de sentidos é um processo do qual não se tem controle.
Um mesmo texto cultural, ainda que tenha certas tendências para geração de sen-
tido, será interpretado de forma particular por cada receptor. O próprio emissor,
muitas vezes, aciona camadas de texto de forma não intencional e acaba tendo uma
leitura também particular do texto por ele criado.

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Tradução
O último assunto que abordaremos nesta unidade é o conceito de “tradução” na
Semiótica da Cultura.

Ao tomar contato com o termo “tradução”, geralmente fazemos associação com


a tradução entre palavras, frases e expressões de uma língua para outra. Esse pro-
cesso pode ser simples, como verificar a tradução de uma palavra de língua estran-
geira em um dicionário bilíngue. Pode também ser uma tarefa complexa, como a
tradução de poesias, expressões idiomáticas e regionalismos.

Para Lótman (MACHADO: 2007), a tradução não ocorre apenas entre línguas,
mas entre sistemas da semiosfera. O que separa um sistema de outro – a foto-
grafia da palavra escrita em língua portuguesa, por exemplo – é a sua fronteira.
Essa fronteira não se encontra fechada, sendo ela a responsável pela preservação
do sistema, delimitando-o, e pela transformação do sistema, estabelecendo trocas
com outros sistemas.

Reside na fronteira dos sistemas o processo de tradução, no qual um texto cul-


tural é signicamente reorganizado em outro texto cultural adequado ao sistema do
qual passou a fazer parte.

Figura 7 – Maçã verde com fita métrica


Fonte: Getty Images

A fotografia é um sistema. Essa imagem (acima) é um texto cultural. Já discuti-


mos anteriormente possíveis significados dessa imagem. Aqui temos exatamente o
processo descrito por Lótman. Ao se criar uma legenda para a imagem, traduz-se

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UNIDADE Semiosfera

um texto cultural estruturado como uma imagem em outro texto cultural estrutu-
rado como texto. Ora, a descrição e as interpretações da fotografia são traduções
para um sistema linguístico de algo cuja natureza é uma imagem.

A tradução, uma vez que altera a apresentação e representação do objeto ao


mudar de sistema, acaba por “trair” sua origem. Apesar de um conhecido jogo de
palavras italiano “traduttore, traditore”1, não se pode afirmar em absoluto que a
tradução seja uma traição. Antes, a tradução é a forma com a qual o diálogo se
estabelece, na qual os sistemas interagem. Toda tradução envolve criação, escolhas,
adaptação, adequação, criando, assim, outro texto cultural que se reporta ao pri-
meiro, mas é diferente deste.

Para o fotógrafo é interessante ter em mente que, ao mudar de sistema, em


especial à linguagem verbal, a fotografia deixa de ser a fotografia para se tornar
uma tradução, um outro texto cultural, que se origina da fotografia. Também é
interessante pensar a fotografia como um possível gerador de novos textos. Quan-
do ocorre uma conversa sobre uma imagem, temos uma descrição verbal de seu
caráter visual, dos sentimentos e memórias ativados, sua interpretação e, com isso,
recriamos a fotografia em novos textos culturais.

A tradução se dá por meio do diálogo, pensando o diálogo não apenas na fala,


mas em diferentes formas de relação. Quando alguém vê uma imagem, estabelece
um diálogo com ela. Cada mente poderá dialogar com a imagem a partir de suas
próprias habilidades, variando a qualidade da relação. Por exemplo, você, estudante
de fotografia, estabelecerá um diálogo com uma imagem fotográfica diferente de
quem não estudou a linguagem, as técnicas e a história da fotografia.

Em Síntese Importante!

A Semiótica da Cultura nos oferece chaves mais específicas para o estudo da fotografia, pois se
volta para o sistema humano no qual se desenvolve, a semiosfera. De Teoria Geral dos Signos
de Peirce para a Semiótica da Cultura, traçamos um percurso do geral ao especializado.
Como vimos, as bases russas nascem de uma consciência semiótica que abrange diver-
sas linguagens da cultura, mas é sobretudo nos estudos linguísticos e literários que ela
encontra sua força motriz. Não é por acaso que conceitos caros a esse estudo sejam texto
e tradução. Nem por isso, contudo, ela se pretende uma ciência das linguagens verbais.
A Semiótica da Cultura busca descrições abrangentes que permitam o estudo de qual-
quer objeto no âmbito da cultura e também de suas relações com a biosfera e a geosfera.
Na próxima unidade, daremos enfoque à outra linha da Semiótica da Cultura que tem se
voltado à crítica da imagem.

1
A fórmula “tradutor, traidor” foi empregada pela primeira vez por Vittorio Imbriani em 1869, mas em um sentido
acusativo, apontando para erros propositais feitos por tradutores de obras literárias. É importante ressaltar que,
mesmo que não existam erros intencionais (traição), sempre haverá tradução no contato com um texto cultural.
Como na semiose descrita por Peirce, é sempre preciso recriar na mente do interpretante o objeto descrito por um
signo. Portanto, mesmo quando entramos em contato com o objeto/texto cultural original, precisaremos traduzi-lo
em outro signo/interpretante/texto cultural em nossa mente.

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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Sites
Stalin
Stalin. Acervo Estadão: personalidades.
https://bit.ly/2lNNFDI
Era Stalin
Era Stalin. Verbete da Wikipedia de língua portuguesa.
https://bit.ly/2kyzgex
Entenda a história que levou à violenta ditadura stalinista
NOGUEIRA, A. Entenda a história que levou à violenta ditadura stalinista. Matéria
da revista Aventuras na História.
https://bit.ly/2UkAWFT
O que os russos pensam de Stalin?
VEREYKINA, E. O que os russos pensam de Stalin? Matéria da BBC Brasil.
https://bbc.in/2ke353C
Rosângela Rennó une foto e poesia de Manoel de Barros
MOLINA, C. Rosângela Rennó une foto e poesia de Manoel de Barros. Matéria do
jornal O Estado de São Paulo publicada em 15 de abril de 2010.
https://bit.ly/2lSoBM0
VikMuniz
MUNIZ, V. Página oficial do artista.
https://bit.ly/1N7IUsQ
Série Matéria de Poesia
RENNÓ, R. Série Matéria de Poesia (2008-20913).
https://bit.ly/2lQgP55
Estudo Fotográfico da Arte Urbana: da Aventura Proibida ao Engajamento Político. Psicologia ciência e profissão
RINK, Anita; VASQUES-MENEZES, Ione; METTRAU, Marsyl Bulkool. Estudo
Fotográfico da Arte Urbana: da Aventura Proibida ao Engajamento Político. Psicologia
ciência e profissão. Vol. 38, n.2. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2018.
https://bit.ly/2kJO7mi

Livros
Comunicação e Semiótica
SANTAELLA, L; NÖTH, W. Comunicação e Semiótica. São Paulo: Hacker Editores, 2004.

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Referências
DIMARCH, B. F. O Gótico e as Sombras: comunicação não comunicada. Disser-
tação de mestrado em Comunicação e Semiótica. São Paulo: PUCSP, 2007.

MACHADO, I. (org.). Semiótica da Cultura e Semiosfera. São Paulo: Annablume,


Fapesp, 2007.

SCHNAIDERMAN, B. (org.). Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 2010.

VIEIRA, J. de A. Teoria do Conhecimento e Arte: formas de conhecimento –


arte e ciência, uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e
Editora, 2006.

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