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RESUMO
Na escola aprendemos o corpo humano apenas na sua dimensão biológica,
desconsiderando seus aspectos históricos, culturais e sociais, além de negar qualquer
subjetividade que apresente. Assim, ao ensinar sobre corpo não contribuímos para a formação
da identidade das crianças e para o debate das questões étnico-raciais. Esse trabalho investiga
como podemos ensinar o corpo humano priorizando aspectos culturais, neste caso da cultura
africana. Desenvolvemos o trabalho em uma escola pública na cidade de Niterói, com uma
turma de 4º ano do Ensino Fundamental realizando um conjunto de atividades práticas. Como
resultados, acreditamos que colaboramos para despertar a consciência negra nas crianças,
cooperando para construção de identidades e para o debate de questões étnico-raciais.
INTRODUÇÃO
O corpo humano e o ensino de ciências
“O corpo é o traço mais significativo da presença humana.”
Terezinha Nóbrega
O corpo humano é objeto de interesse e de estudo em diversas áreas do conhecimento,
pois como afirmam Talomoni e Bertolli Filho (2005, p. 2) “filósofos, antropólogos,
sociólogos, biólogos e psicólogos vêm se preocupando com esta conceituação (do corpo) de
forma bastante específica”.
Dentro da tradição do ensino de Ciências são priorizados aspectos biológicos, que ao
longo dos anos escolares são cada vez mais divididos e isolados. Nas séries iniciais existe a
princípio uma fragmentação em cabeça, tronco e membros que se desenvolve ao longo do
Ensino Fundamental para o estudo dos sistemas e órgãos e, posteriormente no Ensino Médio
são abordadas as funções celulares e moleculares dentro das células (TRIVELATO, 2005).
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Além disso, nos livros didáticos de Ciências e Biologia o corpo humano é apresentado
nu, sem identidade, muitas vezes tendo seu funcionamento comparado com o de uma máquina
(VARGAS et all., 1988). Esta comparação reforça um corpo apenas mecânico, “sem vontade
própria, sem desejos e sem o reconhecimento da intencionalidade do corpo humano, o qual é
explicado através da mera reação a estímulos externos, sem qualquer relação com a
subjetividade” (MENDES & NÓBREGA, 2004, p. 125).
Desta forma, o corpo humano apresentado no ensino de Ciências é algo padronizado,
sem expressão, que não contempla as variedades e individualidades dos seres humanos. Esses
fatos podem trazer algumas consequências para o ensino e para construção da identidade dos
alunos, como afirma Macedo (2005):
“Ao ressaltar nossa condição de humanos, universalmente idênticos, os currículos de ciências
buscam fixar uma identidade que tem na dimensão biológica seu principal elemento. No
espaço-tempo da escola, no entanto, alunos e professores lidam com os discursos veiculados
por esses currículos, mas também com seus pertencimentos, suas vivências corporais.
Vivências que mostram que suas identidades são contingentes e que, seus corpos são alterados
pela cultura” (MACEDO, 2005, p.138)
Ademais, segundo Souza e Camargo (2011) compreender seu corpo a partir de sua
historicidade não significa negar a matéria física e biológica dele, mas sim relacioná-lo com
todas as práticas culturais e socais com as quais está envolvido.
Soma-se a isto, o fato de existirem algumas vertentes de pesquisa com uma nova
proposta para o conceito de estar vivo. De acordo com a teoria “Biologia do Conhecer”,
proposta pelo biólogo Humberto Maturana, um organismo vivo se constitui a partir do contato
com o entorno, está em um ato contínuo de conhecer e para conhecer, muitas vezes, temos
que nos relacionar. Desta forma, esta teoria une as ações biológicas aos fenômenos sociais,
estar vivo é “um ato contínuo de conhecer o mundo em que vivem”. (MATURANA, 2012,
apud SILVA & ANDRADE, 2012).
Devido a essas diferentes relações com o mundo, neste ato contínuo de conhecer, cada
corpo é singular e traz consigo uma história biológica, cultural e social. Assim, não há como
separar o corpo biológico do cultural, o corpo é biocultural (MENDES & NÓBREGA, 2004).
Merleau-Ponty (apud Mendes & Nóbrega, 2004) ainda aponta que todas as nossas
ações, muitas vezes sendo consideradas meramente biológicas, como beber, se alimentar,
excretar, estão acompanhadas de cerimoniais que variam conforme a espécie. Isto demonstra
que todas as nossas atitudes possuem intencionalidade e são carregadas de subjetividade,
reforçando, desta forma, a compreensão do corpo humano como biocultural.
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agosto a novembro de 2013. Essa turma trabalha com a metodologia da Pedagogia por
Projetos de Trabalhos, na qual o interesse das crianças é peça fundamental no desenvolver das
atividades, desta forma, elas mesmas escolheram estudar sobre a temática africana e
selecionaram o que gostariam de saber sobre esta temática. Portanto, nossa ação funcionou
para contemplar o interesse das crianças, além de abordar aspectos que nós julgávamos
importante para elas, como por exemplo, a abordagem cultural do corpo humano.
Para atingir nossos objetivos realizamos diversas atividades, dentre elas podemos citar:
contação de histórias, confecção de um painel sobre culturas africanas e afro brasileiras,
atividade para reconhecimento de características próprias, confecção de bonecas africanas,
confecção de máscaras africanas, confecção de instrumentos afro brasileiros, construção de
um mapa da África, aula sobre genética, estudo sobre o baobá em um passeio a Paquetá e
construção de uma coreografia de uma dança afro brasileira.
No âmbito desse relato de experiência, iremos tratar de algumas das atividades
desenvolvidas que julgamos essenciais para termos alcançado os resultados.
AS EXPERIÊNCIAS COMPARTILHADAS
Espelho, espelho meu - identificando características físicas próprias
A atividade “Espelho, espelho meu...” foi pensada como uma forma de cada criança se
ver e se sentir bonita na frente do espelho. A ideia consistiu em fixar um espelho em uma
parede da sala de aula, emoldurando-o com um painel onde cada criança escreveria o que tem
de mais bonito. Para completar, revistas com pessoas negras e mestiças seriam distribuídas
para serem recortadas para completarem o painel em volta do espelho. Nossas expectativas
com relação a esta atividade, entretanto, não contavam com tanta manifestação de
preconceito. Algumas crianças não aceitaram as revistas, pediam outras onde houvesse
“pessoas bonitas e não só africanos”, procuravam nas gavetas revistas comuns para
recortarem imagens de pessoas brancas e mostravam muita satisfação ao encontrá-las.
Em roda, conversamos sobre o comportamento daqueles que se referiam aos africanos
como feios. Mas não como pura repreensão, e sim com a perspectiva de refletir sobre a ideia
de beleza como algo que é criado e cultivado com determinados padrões. As crianças foram
carinhosamente convidadas a pensar mais sobre o assunto e tentar “procurar” a beleza de
todas as coisas, de todas as pessoas, as nossas belezas. E o espelho estaria ali para nos ajudar
nisto de alguma forma.
Desta maneira, foi possível perceber que as crianças tinham diversos preconceitos em
relação a traços físicos mais presentes nos negros, portanto, articulando valores culturais e
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Fizemos dois tipos de máscaras: uma com os traços negros bem evidentes e a outra com
esses traços menos marcantes. As crianças poderiam escolher qual deles gostariam de pintar e
teriam que entrar em um consenso caso todos escolhessem o mesmo modelo. Após a escolha
das máscaras, realizaram sua pintura livremente, tendo como referência as máscaras trazidas.
Ao iniciarmos essa aula as crianças já estavam com muita expectativa para pintar as
máscaras e, portanto, não se concentraram na nossa fala sobre a utilização das máscaras e na
sua importância para algumas culturas africanas. Apenas algumas interagiram neste momento.
Levamos algumas máscaras africanas estilizadas para que vissem e se inspirassem para
a pintura. Demonstraram muito interesse ao verem as máscaras querendo pegar e
experimentar. Enquanto estavam interagindo com as máscaras fomos conversando sobre
alguns elementos que elas apresentavam, como as cores, os traços, etc. Aparentemente não
estavam atentas a nossa fala, mas quando começaram a pintar, observamos que faziam as
máscaras bem coloridas como foi conversado.
Como fizemos dois tipos de máscaras, poderiam escolher quais gostariam de pintar.
Pensamos que prefeririam a máscaras com os traços negros menos marcantes, já que na aula
sobre genética houve muita rejeição às características negras, como lábios grossos e nariz
largo. Entretanto, surpreendentemente, as crianças preferiram pintar as que possuíam
características negras bem evidentes. Podemos imaginar que tal comportamento se deu devido
às crianças menores se projetarem nos bonecos desenhados, enquanto as máscaras poderiam
significar um elemento alheio a elas, funcionando também como um elemento lúdico.
O resultado desta aula foi muito positivo. As crianças gostaram de pintar as máscaras,
querendo levá-las no mesmo dia para casa. Além disso, as máscaras ficaram bem interessantes
e com alguns traços da arte africana que tínhamos conversado.
Podemos perceber que as duas aulas que tiveram como tema central elementos da
cultura africana permitiram maior abertura das crianças para a temática africana. Acreditamos
que isto ocorreu, pois possibilitou a reflexão (mesmo não sendo tão explícita) de que existem
pontos em comum entre culturas, mesmo com histórico e valores diferentes entre elas,
aumentando assim o universo de referências das crianças. Além disso, estas atividades
tiveram um tom lúdico, o que possibilitou um maior envolvimento das crianças na atividade.
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com os africanos da Nigéria e que é muito relacionada a algumas religiões, mas que está
presente também no carnaval aparecendo nos cortejos de Afoxé.
Depois do alongamento iniciamos uma dinâmica que consistia nas crianças andarem
livremente pela sala enquanto uma música estava tocando, porém em determinados momentos
era falado uma parte do corpo e todos teriam que formar duplas se tocando com esta parte do
corpo. As crianças pareceram gostar e estar se divertindo no seu desenvolver. Todas as partes
do corpo mencionadas durante a dinâmica foram claramente identificadas e algumas crianças
sugeriram outras partes como: cotovelo, joelho, etc., o que funcionou como um exercício de
exploração do corpo humano, para além das partes tradicionalmente mostradas nos livros
didáticos.
Ao final da dinâmica comentamos com as crianças que a música que estávamos
ouvindo era de um grupo chamado “Barbatuques” que quase não utilizava instrumentos, mas
que utilizavam seu próprio corpo para produzir sons. As crianças ficaram interessadas e
curiosas sobre isso, algumas querendo ouvir novamente. Isto aponta mais uma vez, as
diversas maneiras que temos para abordar o corpo humano na escola, sem nos restringir
meramente aos aspectos biológico, anatômicos e fisiológicos. Além disso, a atividade ainda
evidencia que o corpo nos constitui enquanto ser vivo, mas que também pode ser instrumento
de produção de cultura.
Posteriormente, colocamos o som do Ijexá para as crianças dançarem livremente,
algumas, principalmente os meninos, fizeram a atividade pulando, correndo, girando,
deixando o corpo se expressar espontaneamente. Já as meninas ficaram mais inibidas, então
no meio da música resolvemos ensinar alguns passos do ritmo que estávamos propondo. As
meninas que estavam inibidas começaram a participar novamente e as crianças se
disponibilizaram a aprender os passos, sendo um momento de bastante descontração.
Quando começaram a se dispersar, perguntamos quem gostaria de assistir o clipe da
música que estava tocando, nesse momento poucas se interessaram, mas, quando colocamos o
vídeo a maioria quis assisti-lo.
Em seguida, realizamos uma roda de conversa, onde propusemos fazer uma
coreografia com a música do clipe na qual usaríamos as máscaras para dançar. As meninas
aceitaram a proposta instantaneamente e os meninos ficaram receosos. Então propomos que
construíssemos instrumentos de sucata para que os meninos que não quisessem dançar
participassem tocando. Os meninos aceitaram e apenas um aluno não quis participar da
atividade, não dançando e nem tocando. Percebi que as crianças se entusiasmaram em dançar
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quando disse que iríamos usar as máscaras, apontando como a pintura da máscara foi uma
atividade prazerosa.
Ao final do processo as crianças apresentaram com muita satisfação toda produção que
tiveram ao logo das atividades, além da coreografia de Ijexá que elaboraram para os
familiares e algumas pessoas da comunidade escolar,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Martins Fontes, 6ª edição, 476p. 2011.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências Naturais. Brasília, 90 p.1997.
BUSSOLETTI, D. & MOLON, S.I. Diálogos pela alteridades: Bakhtin, Benjamine Vygotsky.
Cadernos de Educação. Pelotas, nº 37, p. 69 a 91, 2010.
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