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Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1

O CORPO HUMANO COMO BIOCULTURAL: REFERÊNCIAS AFRICANAS PARA


A ABORDAGEM DO CORPO HUMANO NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL
Alessandra Moreira Pacheco de Moraes (IB/UFF – PROEXT/MEC/SESu)
Márcia Menezes (Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro)
Simone Rocha Salomão (FE/UFF – FAPERJ)

RESUMO
Na escola aprendemos o corpo humano apenas na sua dimensão biológica,
desconsiderando seus aspectos históricos, culturais e sociais, além de negar qualquer
subjetividade que apresente. Assim, ao ensinar sobre corpo não contribuímos para a formação
da identidade das crianças e para o debate das questões étnico-raciais. Esse trabalho investiga
como podemos ensinar o corpo humano priorizando aspectos culturais, neste caso da cultura
africana. Desenvolvemos o trabalho em uma escola pública na cidade de Niterói, com uma
turma de 4º ano do Ensino Fundamental realizando um conjunto de atividades práticas. Como
resultados, acreditamos que colaboramos para despertar a consciência negra nas crianças,
cooperando para construção de identidades e para o debate de questões étnico-raciais.

PALAVRAS - CHAVE: séries iniciais, corpo humano, culturas africanas

INTRODUÇÃO
O corpo humano e o ensino de ciências
“O corpo é o traço mais significativo da presença humana.”
Terezinha Nóbrega
O corpo humano é objeto de interesse e de estudo em diversas áreas do conhecimento,
pois como afirmam Talomoni e Bertolli Filho (2005, p. 2) “filósofos, antropólogos,
sociólogos, biólogos e psicólogos vêm se preocupando com esta conceituação (do corpo) de
forma bastante específica”.
Dentro da tradição do ensino de Ciências são priorizados aspectos biológicos, que ao
longo dos anos escolares são cada vez mais divididos e isolados. Nas séries iniciais existe a
princípio uma fragmentação em cabeça, tronco e membros que se desenvolve ao longo do
Ensino Fundamental para o estudo dos sistemas e órgãos e, posteriormente no Ensino Médio
são abordadas as funções celulares e moleculares dentro das células (TRIVELATO, 2005).

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Além disso, nos livros didáticos de Ciências e Biologia o corpo humano é apresentado
nu, sem identidade, muitas vezes tendo seu funcionamento comparado com o de uma máquina
(VARGAS et all., 1988). Esta comparação reforça um corpo apenas mecânico, “sem vontade
própria, sem desejos e sem o reconhecimento da intencionalidade do corpo humano, o qual é
explicado através da mera reação a estímulos externos, sem qualquer relação com a
subjetividade” (MENDES & NÓBREGA, 2004, p. 125).
Desta forma, o corpo humano apresentado no ensino de Ciências é algo padronizado,
sem expressão, que não contempla as variedades e individualidades dos seres humanos. Esses
fatos podem trazer algumas consequências para o ensino e para construção da identidade dos
alunos, como afirma Macedo (2005):
“Ao ressaltar nossa condição de humanos, universalmente idênticos, os currículos de ciências
buscam fixar uma identidade que tem na dimensão biológica seu principal elemento. No
espaço-tempo da escola, no entanto, alunos e professores lidam com os discursos veiculados
por esses currículos, mas também com seus pertencimentos, suas vivências corporais.
Vivências que mostram que suas identidades são contingentes e que, seus corpos são alterados
pela cultura” (MACEDO, 2005, p.138)
Ademais, segundo Souza e Camargo (2011) compreender seu corpo a partir de sua
historicidade não significa negar a matéria física e biológica dele, mas sim relacioná-lo com
todas as práticas culturais e socais com as quais está envolvido.
Soma-se a isto, o fato de existirem algumas vertentes de pesquisa com uma nova
proposta para o conceito de estar vivo. De acordo com a teoria “Biologia do Conhecer”,
proposta pelo biólogo Humberto Maturana, um organismo vivo se constitui a partir do contato
com o entorno, está em um ato contínuo de conhecer e para conhecer, muitas vezes, temos
que nos relacionar. Desta forma, esta teoria une as ações biológicas aos fenômenos sociais,
estar vivo é “um ato contínuo de conhecer o mundo em que vivem”. (MATURANA, 2012,
apud SILVA & ANDRADE, 2012).
Devido a essas diferentes relações com o mundo, neste ato contínuo de conhecer, cada
corpo é singular e traz consigo uma história biológica, cultural e social. Assim, não há como
separar o corpo biológico do cultural, o corpo é biocultural (MENDES & NÓBREGA, 2004).
Merleau-Ponty (apud Mendes & Nóbrega, 2004) ainda aponta que todas as nossas
ações, muitas vezes sendo consideradas meramente biológicas, como beber, se alimentar,
excretar, estão acompanhadas de cerimoniais que variam conforme a espécie. Isto demonstra
que todas as nossas atitudes possuem intencionalidade e são carregadas de subjetividade,
reforçando, desta forma, a compreensão do corpo humano como biocultural.

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Deste modo, é importante contemplar dentro do ensino de Ciências as diversas


discussões que o corpo propicia, já que este é um tema tão presente no currículo escolar,
sendo abordado em todos os ciclos.
Na infância, as crianças têm uma grande curiosidade acerca dos seus corpos, realizando
perguntas referentes ao período de quando eram bebês e em relação às metamorfoses pelas
quais estão passando, o que torna o assunto “ Corpo Humano” interessante para ser abordado
na sala de aula (KINDEL, 2012). É válido ressaltar que a infância é um momento em que a
identidade e subjetividade estão sendo construídas e reconhecer o corpo de forma integral é
fundamental para esta construção.
Nos PCN de Ciências Naturais para as Séries Iniciais é afirmado que o corpo humano é
um todo dinâmico e que apresenta aspectos de herança biológica e de ordem cultural, social e
afetiva. Desta forma, o corpo humano não é uma máquina e “todo ser humano é único como
único é seu corpo.” (BRASIL, 1997, p. 22) Portanto, é reconhecida a importância e as
múltiplas possibilidades que o estudo do corpo oferece.
Outro ponto importante para destacar, é que os professores das séries iniciais são
multidisciplinares, sendo assim, ao trabalhar com um assunto não é necessário excluir uma
área de conhecimento. Deste modo, como afirma Kindel (Ibid, p. 27) “um olhar das Ciências
para as possibilidades de integração com as demais áreas é bastante enriquecedor de um
currículo nos anos iniciais” e o tema “Corpo Humano”, devido a sua amplitude, possibilita
esta interação.
Além disso, existe outra preocupação em relação ao corpo na Educação Infantil e nas
séries iniciais que está mais relacionada a educá-lo. Quando uma criança fica sentada na
cadeira, não podendo caminhar, falar, se movimentar está recebendo um tipo de educação
para o corpo (VAZ, 2002). Soma-se a isto o fato de que a escola tende a instituir códigos
morais e reprimir maneiras do corpo se manifestar, afastando o aprendizado a nível intelectual
das experiências que o corpo vivencia (MENDES & NÓBREGA, 2004).
Portanto, seria interessante considerar uma prática pedagógica em que fossem
contempladas essas questões, valorizando as múltiplas manifestações que o corpo pode ter,
além de trabalhar o corpo humano em seus diversos aspectos para que a criança identifique
em si, sua dimensão biológica, cultural, histórica e social.

Dialogando com alguns ideais de Bakhtin


Para contribuir para o debate deste trabalho iremos abordar o conceito de alteridade
desenvolvido por Mikhail Bakhtin. O “outro” na compreensão de Bakhtin é fundamental para

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que eu possa me enxergar diferentemente do que me vejo. Devido à condição de exotopia, o


outro sempre terá uma visão de mim que, devido ao local que ele ocupa, eu nunca conseguiria
ter. Portanto, o outro sempre terá um excedente de visão sobre mim. Sendo assim, o olhar do
outro pode me dar uma nova perspectiva sobre mim mesmo, complementando-me em
aspectos antes inacessíveis (BUSSOLETTI & MOLON, 2010). Desta maneira, a partir dessas
relações com o outro, o indivíduo vai tecendo sua identidade e subjetividade, pois na relação
com outro reconhecemos quem somos.
Outro aspecto que Bakhtin discute em seus textos é o modo como construímos os
nossos enunciados. Ele afirma que nossos enunciados, que podemos entender como discurso,
é formado e permeado de diversos outros enunciados com os quais tivemos contato ao longo
de nossas vidas (BAKHTIN, 2011). Bakhtin afirma, ainda, que todo enunciado que foi ouvido
por uma pessoa, pede uma resposta ou compreensão responsiva, então, mesmo em um diálogo
em que a pessoa não tenha uma resposta direta, aquelas palavras vão ser internalizadas para
posteriormente fazer parte do seu discurso (ou não) e, portanto, do seu modo de pensar.
(BAKHTIN, 2011)
Portanto, é interessante a escola propiciar encontros das nossas crianças com os
“outros”, sendo que este outro não precisa ser necessariamente uma pessoa física, mas sim
conhecimentos e outras formas de enxergar e vivenciar o mundo.
Ao discutirmos temas da cultura africana e afro-brasileira dentro da escola, introduzimos
debates e diálogos que, ao serem compreendidos, exigirão uma resposta (seja imediata ou uma
compreensão responsiva) sobre os assuntos discutidos, que poderão influenciar no modo de
pensar e agir das crianças.

O DESENVOLVER DO NOSSO TRABALHO


Neste relato de experiência, vamos comentar resultados de atividades que fizeram parte
de uma monografia de conclusão de curso de Licenciatura em Ciências Biológicas pela UFF,
da primeira autora (MORAES, 2013) e também a ação da professora regente da turma
envolvida, segunda autora, no cotidiano escolar.
Com o trabalho tínhamos a intenção de abordar o tema corpo humano com uma
perspectiva cultural além da biológica utilizando para isso elementos aspectos da cultura
africana, pois desta forma, acreditávamos que pudéssemos colaborar para o debate da questão
étnico-racial dentro da escola e na construção de identidade das crianças.
As atividades foram desenvolvidas no município de Niterói no Instituto de Educação
Professor Ismael Coutinho em uma turma de 4º ano do ensino fundamental no período de

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agosto a novembro de 2013. Essa turma trabalha com a metodologia da Pedagogia por
Projetos de Trabalhos, na qual o interesse das crianças é peça fundamental no desenvolver das
atividades, desta forma, elas mesmas escolheram estudar sobre a temática africana e
selecionaram o que gostariam de saber sobre esta temática. Portanto, nossa ação funcionou
para contemplar o interesse das crianças, além de abordar aspectos que nós julgávamos
importante para elas, como por exemplo, a abordagem cultural do corpo humano.
Para atingir nossos objetivos realizamos diversas atividades, dentre elas podemos citar:
contação de histórias, confecção de um painel sobre culturas africanas e afro brasileiras,
atividade para reconhecimento de características próprias, confecção de bonecas africanas,
confecção de máscaras africanas, confecção de instrumentos afro brasileiros, construção de
um mapa da África, aula sobre genética, estudo sobre o baobá em um passeio a Paquetá e
construção de uma coreografia de uma dança afro brasileira.
No âmbito desse relato de experiência, iremos tratar de algumas das atividades
desenvolvidas que julgamos essenciais para termos alcançado os resultados.

AS EXPERIÊNCIAS COMPARTILHADAS
Espelho, espelho meu - identificando características físicas próprias
A atividade “Espelho, espelho meu...” foi pensada como uma forma de cada criança se
ver e se sentir bonita na frente do espelho. A ideia consistiu em fixar um espelho em uma
parede da sala de aula, emoldurando-o com um painel onde cada criança escreveria o que tem
de mais bonito. Para completar, revistas com pessoas negras e mestiças seriam distribuídas
para serem recortadas para completarem o painel em volta do espelho. Nossas expectativas
com relação a esta atividade, entretanto, não contavam com tanta manifestação de
preconceito. Algumas crianças não aceitaram as revistas, pediam outras onde houvesse
“pessoas bonitas e não só africanos”, procuravam nas gavetas revistas comuns para
recortarem imagens de pessoas brancas e mostravam muita satisfação ao encontrá-las.
Em roda, conversamos sobre o comportamento daqueles que se referiam aos africanos
como feios. Mas não como pura repreensão, e sim com a perspectiva de refletir sobre a ideia
de beleza como algo que é criado e cultivado com determinados padrões. As crianças foram
carinhosamente convidadas a pensar mais sobre o assunto e tentar “procurar” a beleza de
todas as coisas, de todas as pessoas, as nossas belezas. E o espelho estaria ali para nos ajudar
nisto de alguma forma.
Desta maneira, foi possível perceber que as crianças tinham diversos preconceitos em
relação a traços físicos mais presentes nos negros, portanto, articulando valores culturais e

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aspectos biológicos no corpo humano. Devido a essa evidência, consideramos importante


desenvolver uma aula sobre genética para elucidar de onde vêm nossas características físicas e
refletir por acreditamos que algumas características são tidas como melhores ou mais bonitas.

De onde vêm nossas características físicas? – Conversando sobre herança genética


Iniciamos a aula perguntando se sabiam como foi formada a população brasileira.
Alguns responderam que sabiam, outros não responderam, então foi conversado sobre a
miscigenação principalmente indígena, europeia e africana.
Prosseguimos conversando sobre a transmissão de características genéticas e as crianças
demonstraram interesse em participar, explorando os esquemas de espermatozóide, o óvulo e
o zigoto que havíamos disponibilizado. Falamos sobre quem se parecia com a mãe, pai ou
avós para dar exemplos.
Foi proposto que construíssem um boneco com as características físicas que seriam
sorteadas a partir de um par de fichas, representando mesmo que de forma simples, um gen
alelo sendo recebido da mãe e outro do pai. Entretanto, quando as características começaram a
ser “sorteadas” houve alguma confusão. Primeiramente porque ninguém queria ter pele negra,
visto que procuravam espiar para tirar as fichas que determinassem pele de cor morena ou
branca, pois as legendas das combinações já estavam escritas no quadro. Uma menina que
sorteou “pele negra” ficou chateada e resistente, sendo necessário que a professora
conversasse com ela para continuarmos a atividade.
As crianças faziam de tudo para que os seus bonecos ficassem com características que
se aproximavam das branco/europeias. Uma menina rasgou uma das fichas sorteada por ela
que determinava “cabelo encaracolado”, pediu para trocar e escolheu a ficha que determinava
“cabelo liso”. Tivemos que conversar com ela para que aceitasse a mesma cor da ficha que
tinha anteriormente (a que formava cabelo encaracolado).
Um menino mesmo tendo tirado fichas que determinavam a combinação para cabelo
encaracolado escreveu a sua legenda como cabelo liso e também desenhou o boneco com o
cabelo liso. Esse aluno, que tem a pele branca, cabelos lisos e olhos escuros, resistiu a sortear
todas as características negras, porém pode ter entendido que a atividade era para formar um
boneco igual a ele, pois comparando-o ao boneco, apresentavam características bem
semelhantes. Aliás, ele foi uma das poucas crianças que quiseram colocar “olho escuro” no
boneco, iguais aos seus próprios. A maioria quis formar os bonecos com olhos claros, sendo
que nenhum dos alunos presentes tinha olhos claros. Logo, podemos identificar a preferência
por associarem a beleza a um padrão branco europeu.

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É interessante observar como é contraditória a questão étnico-racial para as crianças,


pois os mesmos meninos e meninas que se mostraram solidários aos conflitos da personagem
Bintou (menina africana de uma história que foi contada para as crianças, a qual tinha conflito
com seu cabelo e com a qual a maioria das crianças se solidarizou, defendendo que a
personagem seria linda independente do seu cabelo ou que não deveria se preocupar tanto
com a beleza exterior) com seu cabelo, não gostavam quando o boneco que estavam
montando tinha essa característica.
Portanto, esta aula e a anterior puderam elucidar a importância de trabalhar esse tema
desde as séries iniciais, já que os preconceitos e padrões de beleza branco/europeu estão muito
enraizados em nossa cultura, tornando uma tarefa muito difícil desconstruí-los.

Construindo bonecas e máscaras africanas – uma cultura toca a outra


A atividade do projeto que foi proposta em seguida tratava-se da confecção de bonecas
africanas, que seria orientada por uma aluna da própria escola, na Educação de Jovens e
Adultos, uma senhora chamada Jocineia. Já estávamos preparadas para mais uma avalanche
de preconceitos pelo fato de as bonecas serem negras e também porque os meninos seriam
convidados indistintamente para a oficina. Para nossa surpresa, entretanto, todos ficaram
entusiasmados para produzir as bonecas, inclusive os meninos. Além disto, se referiam às
bonecas como “lindas” e em momento algum da atividade que durou toda a tarde porque as
bonecas são trabalhosas e sua produção envolve parte de estrutura, pintura e enfeites, as
crianças criticaram o fato de só haver bonecas negras.
Na sequência das aulas a temática “Máscara” foi introduzida e foi realizada uma breve
conversa sobre a utilização das máscaras nas sociedades. Foram levadas máscaras africanas
estilizadas e imagens de máscaras para que eles observassem os elementos utilizados e se
inspirassem para a pintura das máscaras de papel machê que seriam produzidas.
As máscaras foram confeccionadas no Laboratório de Ensino de Ciências da FE/UFF.
Primeiramente, fizemos em argila a escultura de um rosto com características físicas de um
negro (lábios grossos, nariz largo). Na técnica de confecção, esta escultura é chamada de
“positivo”. Posteriormente, este é coberto com gesso, produzindo o “negativo”, que é
utilizado como molde para as máscaras. Empapelamos este molde com pedaços de jornal e
cola de farinha de trigo caseira. São necessárias no mínimo três camadas de jornal picado para
a máscara ficar com uma textura consistente. Ao final da secagem da cola, obtemos uma
máscara de papel machê. Depois furamos no local dos olhos e narinas e pintamos a máscara
com um tom de marrom escuro para aproximá-la de tom de pele negra.

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Fizemos dois tipos de máscaras: uma com os traços negros bem evidentes e a outra com
esses traços menos marcantes. As crianças poderiam escolher qual deles gostariam de pintar e
teriam que entrar em um consenso caso todos escolhessem o mesmo modelo. Após a escolha
das máscaras, realizaram sua pintura livremente, tendo como referência as máscaras trazidas.
Ao iniciarmos essa aula as crianças já estavam com muita expectativa para pintar as
máscaras e, portanto, não se concentraram na nossa fala sobre a utilização das máscaras e na
sua importância para algumas culturas africanas. Apenas algumas interagiram neste momento.
Levamos algumas máscaras africanas estilizadas para que vissem e se inspirassem para
a pintura. Demonstraram muito interesse ao verem as máscaras querendo pegar e
experimentar. Enquanto estavam interagindo com as máscaras fomos conversando sobre
alguns elementos que elas apresentavam, como as cores, os traços, etc. Aparentemente não
estavam atentas a nossa fala, mas quando começaram a pintar, observamos que faziam as
máscaras bem coloridas como foi conversado.
Como fizemos dois tipos de máscaras, poderiam escolher quais gostariam de pintar.
Pensamos que prefeririam a máscaras com os traços negros menos marcantes, já que na aula
sobre genética houve muita rejeição às características negras, como lábios grossos e nariz
largo. Entretanto, surpreendentemente, as crianças preferiram pintar as que possuíam
características negras bem evidentes. Podemos imaginar que tal comportamento se deu devido
às crianças menores se projetarem nos bonecos desenhados, enquanto as máscaras poderiam
significar um elemento alheio a elas, funcionando também como um elemento lúdico.
O resultado desta aula foi muito positivo. As crianças gostaram de pintar as máscaras,
querendo levá-las no mesmo dia para casa. Além disso, as máscaras ficaram bem interessantes
e com alguns traços da arte africana que tínhamos conversado.
Podemos perceber que as duas aulas que tiveram como tema central elementos da
cultura africana permitiram maior abertura das crianças para a temática africana. Acreditamos
que isto ocorreu, pois possibilitou a reflexão (mesmo não sendo tão explícita) de que existem
pontos em comum entre culturas, mesmo com histórico e valores diferentes entre elas,
aumentando assim o universo de referências das crianças. Além disso, estas atividades
tiveram um tom lúdico, o que possibilitou um maior envolvimento das crianças na atividade.

Ijexá, uma dança afro-brasileira - Explorando nosso corpo de outras formas


Iniciamos a aula fazendo um alongamento para concentrar as crianças, que nesse
momento já se mostraram animadas, demonstrando prazer em estar ali. Antes e durante o
alongamento fui conversando sobre a história do Ijexá, uma dança afro-brasileira que veio

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com os africanos da Nigéria e que é muito relacionada a algumas religiões, mas que está
presente também no carnaval aparecendo nos cortejos de Afoxé.
Depois do alongamento iniciamos uma dinâmica que consistia nas crianças andarem
livremente pela sala enquanto uma música estava tocando, porém em determinados momentos
era falado uma parte do corpo e todos teriam que formar duplas se tocando com esta parte do
corpo. As crianças pareceram gostar e estar se divertindo no seu desenvolver. Todas as partes
do corpo mencionadas durante a dinâmica foram claramente identificadas e algumas crianças
sugeriram outras partes como: cotovelo, joelho, etc., o que funcionou como um exercício de
exploração do corpo humano, para além das partes tradicionalmente mostradas nos livros
didáticos.
Ao final da dinâmica comentamos com as crianças que a música que estávamos
ouvindo era de um grupo chamado “Barbatuques” que quase não utilizava instrumentos, mas
que utilizavam seu próprio corpo para produzir sons. As crianças ficaram interessadas e
curiosas sobre isso, algumas querendo ouvir novamente. Isto aponta mais uma vez, as
diversas maneiras que temos para abordar o corpo humano na escola, sem nos restringir
meramente aos aspectos biológico, anatômicos e fisiológicos. Além disso, a atividade ainda
evidencia que o corpo nos constitui enquanto ser vivo, mas que também pode ser instrumento
de produção de cultura.
Posteriormente, colocamos o som do Ijexá para as crianças dançarem livremente,
algumas, principalmente os meninos, fizeram a atividade pulando, correndo, girando,
deixando o corpo se expressar espontaneamente. Já as meninas ficaram mais inibidas, então
no meio da música resolvemos ensinar alguns passos do ritmo que estávamos propondo. As
meninas que estavam inibidas começaram a participar novamente e as crianças se
disponibilizaram a aprender os passos, sendo um momento de bastante descontração.
Quando começaram a se dispersar, perguntamos quem gostaria de assistir o clipe da
música que estava tocando, nesse momento poucas se interessaram, mas, quando colocamos o
vídeo a maioria quis assisti-lo.
Em seguida, realizamos uma roda de conversa, onde propusemos fazer uma
coreografia com a música do clipe na qual usaríamos as máscaras para dançar. As meninas
aceitaram a proposta instantaneamente e os meninos ficaram receosos. Então propomos que
construíssemos instrumentos de sucata para que os meninos que não quisessem dançar
participassem tocando. Os meninos aceitaram e apenas um aluno não quis participar da
atividade, não dançando e nem tocando. Percebi que as crianças se entusiasmaram em dançar

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quando disse que iríamos usar as máscaras, apontando como a pintura da máscara foi uma
atividade prazerosa.
Ao final do processo as crianças apresentaram com muita satisfação toda produção que
tiveram ao logo das atividades, além da coreografia de Ijexá que elaboraram para os
familiares e algumas pessoas da comunidade escolar,

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS


Este trabalho surgiu com o intuito de investigar como uma abordagem cultural no
ensino do corpo humano nas séries iniciais pode contribuir para formação de identidade e para
o debate das relações étnico-raciais dentro da escola.
Ao longo de nossos encontros fomos conversando sobre as influências africanas
existentes no Brasil e as crianças foram capazes de estabelecer relações e reconhecer esses
elementos presentes em suas vidas, assim como identificá-los nas características físicas
próprias.
Entendemos que, desta forma, auxiliamos na construção de identidade, pois
contribuímos para este reconhecimento. Além disso, tivemos a oportunidade de conhecer
novas representações culturais, como as máscaras e as danças, e, considerando que o contato
com o diferente é essencial no processo de formação de identidade, ao apresentarmos algo
novo colaboramos para isto.
Acreditamos também, que cooperamos para o debate das questões étnico-raciais, pois
em muitos momentos debatemos sobre a existência do preconceito e, como tivemos a
oportunidade de conhecer um pouco melhor algumas manifestações da cultura afro-brasileira,
as crianças puderam reconstruir algumas visões que são estereotipadas e disseminadas pelo
senso comum.
Em termos metodológicos, no contexto do ensino de Ciências nas séries iniciais,
consideramos que as atividades desenvolvidas apontam outras possibilidades de abordarmos o
tema corpo humano no currículo das séries iniciais, privilegiando aspectos culturais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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