Você está na página 1de 10

A GÊNESE DA EXCLUSÃO:

O LUGAR DA MULHER
NA GRÉCIA ANTIGA

Cecília Caballero

Mestre em Direito,
Profª. da Universidade Federal de Santa Catarina.

Procurando traçar as vias trági- lhos, crianças e escravos), a Grécia An-


cas da morte das mulheres, tive de tiga se conhece somente a partir dos seus
admitir que essas vias eram textuais. cidadãos. Portanto, transitar por seus
Nada encontrei além da narração. caminhos implica, em revelar os ausen-
Como se só se pudesse confiar a mor- tes numa sociedade que, considerada o
te das mulheres às palavras, como se berço da democracia ocidental, desco-
apenas as palavras soubessem levá-la nheceu todos aqueles que não se ade-
a termo. Para isso há seguramente ra- quavam ao seu padrão de cidadania.
zões históricas, razões de civilização: Para além de outras muitas incóg-
uma mulher grega vivia sua existên- nitas que atravessam a antiguidade, o que
cia de moça, de esposa e de mão no se pretende neste artigo é (re)construir a
lugar mais recôndito da casa; ela tam- história das mulheres antigas, procuran-
bém devia partir desta vida de sua casa do inscrevê-las num sistema social pau-
bem fechada ao abrigo dos olhos, lon- tado pela percepção de que seu lugar se
ge de todo o público. Mas seja como define, não pela sua natureza, mas pela
for, a decência, ainda que sociológica, forma como se organizam historicamen-
nunca bastou para explicar tudo.** te as relações entre os sexos, caracteri-
zadas muito mais por suas restrições e
imposições de deveres às mulheres do que
Introdução pelo reconhecimento de seus direi-
tos.
Falar da antiguidade nos leva a Acima de tudo, busca-se de-
penetrar num mundo onde silêncios monstrar que apesar de organizada e
constituem o cotidiano da história. transmitida por um olhar masculino,
Apesar de formada na sua grande mai- a antiguidade grega e o seu maior le-
oria por aqueles considerados não ci- gado político, a democracia está cons-
dadãos (estrangeiros, mulheres, ve-

125
tituída na ausência pública de suas mu- cal, relações desiguais e de sujeição para
lheres e que inclusive, esta ausência, a com os seus, relações das quais nem
constitui. Assim, tem-se a construção de mesmo ele estava liberto a necessidade
todo um discurso histórico, filosófico e de sobrevivência submetia até mesmo o
literário que passa a desconsiderar a chefe ao seu jugo.
mulher não somente enquanto cidadã, Enquanto a oikia era o lugar su-
mas também como objeto de conheci- jeição, a polis era o espaço dos cida-
mento, que servem para justificar e con- dãos, dos iguais. A participação na ci-
firmar a superioridade masculina no do- dade exigia autonomia de ação e
mínio político e social. interação com outros homens igual-
mente livres com amplas condições
1. O lugar da mulher: a casa como para governar. Segundo
intransponível, o casamento como dig- ARISTÓTELES, “ o que constitui pro-
nidade. priamente o cidadão, sua qualidade
Partindo do pressuposto que a verdadeiramente característica, é o
história que se conhece é a história da direito de votar nas assembléias e de
vida pública e esta sempre foi indife- participação no exercício do poder
rente à presença da mulher, é preciso público em sua pátria. ”
procurá-la no seu confinamento pri- (ARISTÓTELES, 1998: 42)
vado. Segundo FERRAZ JÚNIOR, na Sem poder jamais desvincular-
antiguidade “a palavra privado tinha se do âmbito familiar, e ascender ao
o sentido deprivus, de ser privado de, público, a mulher esteve sempre limi-
daquele âmbito em que o homem, sub- tada a casa. “A casa era a sede da fa-
metido às necessidades da natureza, mília e as relações familiares eram
buscava a sua utilidade no sentido de baseadas na diferença: relação de
meios de sobrevivência. Neste espaço comando e de obediência, donde a
não havia liberdade(...)pois todos, in- idéia do pater famílias, do pai, do se-
clusive o senhor, estavam sob a con- nhor de sua mulher, seus filhos e seus
dição da necessidade. (FERRAZ escravos. “ (FERRAZ JÚNIOR, 1993:
JÚNIOR, 1993: 27) 27) O pater famílias é aquele que
Na Grécia Antiga, este espaço centra em torno de si todo o poder nas
resumia-se a casa, a oikia, que na an- sociedades antigas, que segundo
tiguidade clássica distinguia-se da ARISTÓTELES reúne o “ despotis-
polis. A casa, conceito amplo que re- mo, o poder do senhor sobre seus es-
úne a mulher, os filhos, a terra e os cravos; marital, o do marido sobre a
escravos, era o lugar onde o homem mulher; paternal, o do pai sobre os
desenvolvia todas as atividades visan- filhos” (ARISTÓTELES, 1998: 09)
do unicamente a sua conservação. Para A organização patriarcal na antiguida-
isto, o patriarca estabelecia, neste lo- de é fruto da religião primitiva, conside-

126
derada como elemento decisivo para sulta, sem dúvida nenhuma, a idéia de
a elucidação da organização política e geração, tal como os homens a con-
social antiga. Pela religião primitiva, ceberam. “ (COULANGES, 1998: 33)
a felicidade após a morte não podia A idéia de geração encerra uma
ser garantida durante a vida mas ape- questão fundamental para a compre-
nas e unicamente depois do falecimen- ensão da exclusão social da mulher
to. Dependerá, então, da observância, antiga, pois “ a mulher só participava
pelos descendentes, de uma série de nesse culto por intervenção de seu pai
ritos sagrados, tais como manter aces- ou de seu marido e, depois da morte,
so o fogo sagrado como forma simbó- não recebia a mesma parte que o ho-
lica de sua presença na casa, garantin- mem no culto e nas cerimônias da re-
do a paz e a tranquilidade do lar. “Nes- feição fúnebre. Daqui resultam, ain-
ta religião primitiva cada um dos deu- da, outras consequências muito gra-
ses não podia ser adorado por mais ves, no direito privado e na constitui-
de uma família. A religião era ção da família.” (COULANGES,
puramente doméstica.” 1998:34)
(COULANGES, 1998: 04) Uma das principais conseqüên-
Também, cada família tinha o cias da religião doméstica foi estabe-
direito de estabelecer os seus próprios lecer o casamento legítimo como fon-
rituais e cerimônias para a adoração te primária de instituição da família.
das almas. Tudo o que dizia respeito à Considerado um ato solene e dotado
religião era patrimônio exclusivo da de uma importância extrema na anti-
família sendo vedado a qualquer es- guidade, pelo casamento não havia a
tranho participar dos ritos. Entretan- mera troca de endereço para a mulher,
to, está pluralidade de dogmas sagra- mais sim o abandono de todas as liga-
dos não inibiu a existência dogmas ções com a família de seu pai. Segun-
comuns que emanavam deste modelo do COULANGES, esta ruptura é tão
religioso e que acabaram por torná-lo definitiva que “o casamento deu-lhe
fonte de toda organização social e po- segundo nascimento. Doravante esta-
lítica na antiguidade. rá colocada no lugar de filha de seu
O ponto de unificação se encon- marido. “ (COULANGES, 1998: 42)
trava na pessoa que reunia em torno de Através do casamento o pai dei-
si a capacidade exclusiva de orga- xa de ser “ senhor e juiz” de sua filha
nização e transmissão de todos os ri- e passa a ser o marido, aquele que vai
tos sagrados. Segundo COULANGES exercer o pater familias sobre sua
“é preciso atentar, como particulari- mulher. Pelas regras nupciais, ela sem-
dade, ao fato de esta religião domés- pre é dada de um homem para outro
tica só se transmitir de linha masculi- homem, acompanhada de alguns bens
na em linha masculina. Deste fato re- materiais para compensar o prejuízo

127
que traz. Pela religião primitiva, todos afinidade são muito importantes. Os
os atos que simbolizam o casamento le- parentes por alianças estão presentes
gítimo, apontam para o fato de que esta em todos os rituais de passagem que
troca de lugar por parte da mulher se marcam a vida na casa. “(LEDUC,
realiza efetivamente sem o consenti- 1993:290)
mento dela.
O casamento na antiguidade “é
organizado segundo dois casos de fi- 2. A emergência do público
gura: o casamento da rapariga que
tem um irmão e o casamento da rapa- É a partir desta forma de orga-
riga que não tem irmão.” (LEDUC, nização familiar, que passamos a ter
1993: 303) No primeiro caso a mu- umas das primeiras formas de organi-
lher passa a ser filha de seu marido. zação social, já que as cidades irão se
No segundo, o sogro, que não tem fi- formar a partir da confederação, das
lhos homens, precisa de um genro e famílias, fratrias e tribus, através das
tenta atraí-lo para si. Neste caso, além alianças estabelecidas pelo casamen-
de sua filha, o ele dá riquezas e pro- to legítimo. Segundo LEDUC “ nas
priedades, tornando o genro seu irmão sociedades estruturadas em casas que
e passando o noivo a ocupar a posição se aglutinam é o cruzamento das ca-
de tio da sua esposa. (LEDUC, 1993: sas que solda o grupo social e o erige
293) em conjunto indivisível. A cidade nas-
Perceba-se que entre os esposos ce com a instauração do parentesco
não se estabelece qualquer vínculo ma- cognático(filiação pelo pai e pela mãe
trimonial, mas que se tenta reproduzir legitimamente casados). ”
os laços de consanguinidade que irão (LEDUC, 1993: 303)
justificar a manutenção da mulher sob A cidade, na Grécia Antiga foi
a tutela do marido, visto que ele esta- “o centro principal a partir do qual
rá desta maneira sempre uma geração se organiza historicamente o perío-
acima da esposa e portanto, apto a tu- do mais importante da evolução gre-
tela-la, caracterizando por sempre a ga. Situa-se, por isso, no centro de
incapacidade da mulher. todas as considerações históricas. “
Acima de tudo o que a mulher (JAEGER, 1995: 106) A Polis teve,
antiga representava era um meio de então, como fundamento o casamento
trocas de riqueza entre as famílias, que legítimo e perpetuar-se-á (re)pro-
se operava através do casamento. Pe- duzindo casamentos legítimos, pois so-
las núpcias também se estabeleciam mente através deste é que se pode
alianças entre as duas casas. Assim, transmitir a geração.
“genro e sogro passam a ser aliados. Embora tenha sido um fenôme-
Nas sociedades homéricas, os laços de no constante em toda a antiguidade

128
clássica, cada Polis grega se manifes- do fundamental na Grécia Antiga. Para
ta de forma diversa. Estas diferencia- os antigos, quanto maior a Polis mai-
ções são constituídas, além de por cri- or a sua força e maiores serão as ri-
térios geográficos, pelas diversas re- quezas advindas do solo cultivado. O
lações que o sistema de parentesco e o surgimento da cidade coloca outra ne-
sistema político estabeleceram en- cessidade para os antigos até aquele
tre si. No entanto, ainda que tenham momento pouco conhecida, qual seja,
existido uma multiplicidade destas a ideia de um lugar que fosse comum
relações é possível identificar dois a todos os membros da cidade donde
modelos principais de emergência das vai emergir a ideia de espaço público,
cidades a partir da conjugação destes como domínio exclusivo dos cidadãos.
sistemas. Esta necessidade de espaço, acúmulo
O primeiro, se fundamenta na de forças e riquezas vai provocar vá-
organização social hierárquica das ca- rias transformações na família e na
sas. “Nas sociedades estruturadas em forma de processar o casamento, alte-
casas que se aglutinam é o cruzamen- rando o estatuto social da mulher.
to das casas que solda o grupo social Para pertencer a uma cidade, ou
e o erige em conjunto indivisível. seja ser considerado cidadão, eram ne-
“(LEDUC, 1993: 302) O segundo cessárias três condições. A primeira
modelo, característico de Atenas, re- delas consistia em estar sujeito a uma
jeita a organização a partir da oikia e autoridade exercida por quem detém
utiliza o dispositivo matrimonial como a maior riqueza na Polis; a segunda,
forma de constituir uma sociedade pertencer a uma casa, que representa-
aberta que tem como sustentáculo a va o sinal concreto da liberdade e a
circulação de mulheres através do ca- terceira condição, dizia respeito à ne-
samento. cessidade de se ter um lote de terra,
A Polis como organização soci- que simbolizava a integração com a
al hierárquica das casas representa na an- comunidade. A partir da conjugação
tiguidade clássica a herança dos tem- destes três fatores, a cidade vai se re-
pos obscuros. Há, no entanto, que com- produzir através da “herança
preender algumas das transformações sucessória” que reunia a transmissão
que a família primitiva sofreu para per- de poder, casas e terras, mas diversa-
ceber como a mudança de sua forma mente dos tempos primitivos, agora
de organização, determina o surgimento esta reprodução legítima se dará sem
do público ao mesmo tempo que mo- distinção entre os sexos.
difica a situação da mulher antiga, sem (LEDUC,1993: 304)
lhe retirar a pecha de inferior, Esta mudança não ocorre sem
O espaço territorial onde surge mais. Ela decorre da necessidade das
e se desenvolve cidade era considera- famílias crescerem numericamente para

129
ganharem riqueza e poder. Para tanto, foi não abandona seu caráter masculino.
preciso criar um dispositivo que permitis- Assim, filhos varões de casamentos legí-
se incluir os filhos da mulher na casa ma- timos poderão ser senhores da casa ma-
terna. Isto deu-se pela extinção da idéia terna, mas a mãe nunca poderá ser se-
de que através do casamento se constitu- nhora de sua casa, pois sua única função
em novos laços de consanguinidade e ces- na sociedade antiga era produzir legiti-
sam os originários, referentes à casa do midade.
pai. Ao permanecer ligada a sua família, a
mulher pode transmitir herança aos seus
filhos e estes por sua vez podem perten- 3. A democracia grega e o tráfico
cer à casa materna, dando-lhe força e de mulheres
poder.
Entretanto esta extinção da Cumpre agora analisar o segun-
consangüinidade, que determina que do modelo de casamento praticado na
a mulher não será mais filha de seu antiguidade clássica, mais especifica-
marido, não lhe deu poder algum so- mente em Atenas, para verificar qual
bre ela ou seus filhos após o casamen- o lugar e o papel desempenhado pelas
to, pois o pátrio poder ainda perten- mulheres durante a democracia grega.
cerá totalmente ao seu marido. O fim Diferentemente do modelo analisado
da consangüinidade outorga-lhe a anteriormente, que foi resultado dos
possibilidade de transmitir, não a ge- tempos primitivos, o casamento em
ração que mantém o poder ainda mas- Atenas é fruto de uma construção “ju-
culino, mas a somente a herança. Nota- rídica” própria e historicamente data-
se que a mudança em nada modifica a da, com objetivo claro de permitir a
situação de incapacidade da mulher, construção de uma cidade suposta-
pois esta continua incapaz sendo no- mente democrática.
vamente vista como um mero objeto Afirmam alguns autores que o
para ordenação social. modelo de casamento praticado em
Ainda que o estabelecimento da Atenas, e que representa o paradigma
ligação da mulher com a casa paterna matrimonial que a antiguidade conhe-
e a terra cívica lhe conceda a única ceu, foi concebido a partir das refor-
possibilidade de uma existência soci- mas de Sólon e, posteriormente, de
al reconhecida esta será sempre con- Clístenes. Estes, além de uma nova
siderada uma cidadã de segunda clas- forma de casamento, instituíram a cha-
se, pois sua participação em todas as mada comunidade cívica, conceito que
práticas da cidadania será sempre ve- define a democracia grega.
dada. Esta cabe unicamente o homem Antes de instaurar-se em Atenas
praticá-las, já que o poder permanece o que ficou conhecido como regime
ligado à transmissão da geração, que democrático, o que se tinha era um

130
enfraquecimento cada vez maior do públicas e privadas o que põe fim a es-
poder aristocrático e sacerdotal, soma- cravidão por dívidas entre homens nas-
do a um descontentamento crescente cidos atenienses, proibindo, inclusive,
da classe pobre. Diz COULANGES que este fato enseje novos escravos.
que “a oposição feroz dos pobres da Sólon também efetua uma divi-
montanha e a oposição paciente en- são dos atenienses em quatro classes
tre os ricos da várzea provocaram uma distintas e de acordo com seus rendi-
rude guerra contra os eupátridas. Por mentos. Atribui a cada classe uma par-
fim, os homens prudentes dos três par- cela de poder na cidade conforme a sua
tidos concordaram em confiar a Sólon representação numérica, reservando os
o cuidado de acabar com estas quere- cargos mais altos para os homens mais
las e prevenir, assim, maiores ricos. No entanto, a partir deste mo-
desgraças. “(FUSTEL DE mento todos os cidadãos passam a ter
COULANGES, 1998:317) a possibilidade de exercer alguma fun-
Para tentar contornar o descon- ção pública, pois todos são e, portan-
tentamento generalizado que reinava to, aptos à cidadania. Se estes fatos tem
em Atenas, Sólon vai introduzir duas a conseqüência preciosa de colocar
modificações essenciais na ordem po- todos os homens sob o mesmo estatu-
lítica e social daPolis. A primeira de- to de liberdade e poder, a democracia
las é a redefinição da comunidade cí- grega está longe de representar uma
vica e a segunda, disse respeito ao democracia real . Tratava-se, na ver-
estabelecimento de um novo modelo dade, de uma forma de oligarquia ate-
de dispositivo matrimonial. Segundo nuada, já que somente uma pequena
LEDUC “esta coincidência levanta a parcela de cidadãos usufruía dos pri-
eventual correlação entre a regula- vilégios da igualdade perante a lei.
mentação da dádiva graciosa* da noi- A sociedade política começa a
va e a emergência da nova cidade.” emergir destas transformações. Quan-
(LEDUC, 1993:321) do Sólon reorganiza a Polis, confor-
Percebendo que a posse da terra me as regras já apresentadas e estatui
cívica, que ocasionava a concentração de a abolição das diferenças de rendas
maior poder nas mãos de uma mi- públicas e privadas como critério para
noria rica, era um dos grandes proble- o exercício da cidadania, põe a termo à
mas em Atenas, a primeira modifica- organização hierárquica da socieda-
ção estatuída por Sólon consiste em de ateniense e todas as casas passem a
negar que o lote de terra seja o sinal formar famílias consideradas livres e
concreto da cidadania como ocorria até semelhantes política mas não econo-
o momento. Para retirar ainda mais o micamente já que as diferenças de ri-
poder das mãos dos ricos, também pro- quezas não foram abolidas. Atenas
cede a uma abolição geral das dívidas permanece ainda uma sociedade divi-

131
dida em castas, onde devido as dife- que se transfere agora não é a sua pos-
renças sociais e à tradição belicosa as se, como ocorria alguns séculos antes,
famílias não se aglutinam. mas o poder sobre a mulher. O contra-
Diferente do modelo anterior a to de casamento representa, então, so-
constituição do público não virá, en- mente, a transferência da tutela da
tão, da reunião de casas. “Em Atenas, mulher e do dote que a acompanha do
não é possível construir o espaço co- pai para o marido. No entanto, nem
munitário a partir da transformação ela nem o dote não se incorporam ao
indiferenciada de terra cívica, visto patrimônio de seu marido, tendo des-
que nem todas as casas da nova cida- te somente o usufruto. Em caso de
de são detentoras do solo e o legisla- divórcio ou de repúdio à mulher os
dor se recusa absolutamente a proce- dois devem voltar para sua família de
der a uma redistribuição da farta ter- origem.
ra da pátria. É por meio da instaura- Desta forma, a mulher deixa de
ção de um sistema matrimonial adap- ser um meio de transmissão e acúmulo
tado a esta situação que Sólon tenta de riquezas para passar a ser uma for-
reunir as casas. “(LEDUC, 1993: 338) ma de aglutinar as casas na Grécia
Neste momento aparece a se- Antiga. Isto porque, para provocar esta
gunda modificação introduzida por reunião/aglutinação de famílias e
Sólon. Esta consiste na introdução de um (re)fundar a cidade sobre novas bases
novo modelo de casamento que se agora democráticas - Sólon percebe
fundamenta, primeiramente, em negar a necessidade que todos os homens
a consangüinidade da mulher e seu casem suas filhas da mesma maneira,
cônjuge, impedindo que esta passe a gerando uma troca indiscriminada de
ser a filha do seu marido. Ressalte-se, mulheres, baseada no fim do dote
desde já, que este sistema codificado matrimonial. Como estas não carre-
pelo direito não lhe retira o rótulo de gam mais riquezas consigo e,
incapaz, o que vai fazer dela uma eter- consequentemente, não terão a possi-
na menor, cujos atos devem ser sem- bilidade de herdar, não há mais que se
pre praticados pelo marido. Esta inca- basear o casamento na igualdade de
pacidade é, no entanto, a chave para fortunas das famílias.
compreender a impossibilidade que as Sólon percebe que através do
mulheres tinham de acessarem a cida- casamento das filhas dos ricos com os
dania na antiguidade, mesmo durante filhos dos pobres e vice versa, se ga-
a chamada democracia grega. rantem os vínculos entre as famílias
Também pelo novo casamento dos nubentes e se impõe uma suposta
ateniense, a mulher não é mais uma convivência democrática em Atenas.
propriedade do seu pai para que possa “A troca das mulheres pode portanto
ser dada como no modelo anterior. O ser generalizada ao conjunto da cida-

132
de. Emprestando-se mutuamente as pos antigos privilegiando uma leitura des-
suas filhas, casas ricas e casas pobres te momento histórico a partir do univer-
aglutinam-se e garantem em conjun- so feminino.
to a sua reprodução: os vínculos de Desconstruir esta visão masculi-
parentesco afastam os riscos de guer- na do mundo (não somente do mundo
ra civil. “(LEDUC, 1993:339) antigo) tem sido a tarefa incansável de
Por outro lado, o acesso à comu- algumas mulheres que pretendem inse-
nidade cívica da mulher estava restrito a rir uma perspectiva de género na vida e
duas condições. Primeiro, ao fato de ser história e, assim, denunciar a manipula-
filha legítima de pais cidadãos e a segun- ção ideológica do conhecimento, que
do ao seu casamento com um homem coloca os homens ocidentais como pon-
que detenha o título de cidadão ateniense. to de referência para a compreensão de
Somente a conjugação destes dois fato- uma sociedade na qual as mulheres são
res, vai dar a mulher a possibilidade de tratadas como invisíveis, no máximo
ser reconhecida como cidadã ateniense. como coadjuvantes e nunca como su-
No entanto, a Atenas democráti- jeitos, buscando acima de tudo a con-
ca reservou à mulher um papel parado- solidação de uma sociedade feminina e
xal. Se indiretamente, encontram-se na democrática.
forma de sua constituição, para que pos-
sam efetivamente concorrer para a con-
solidação, elas deverão sempre ser con-
sideradas incapazes de praticar qualquer
ato da vida pública, o que equivale a sua
desconsideração como cidadãs.

4. Considerações finais

Desvendar o cotidiano antigo,


especialmente aquele que toca às mu-
lheres não parece ter sido tarefa fácil
para nenhum filósofo ou historiador
moderno. Ciente que se está deste fato,
não se objetivou neste artigo ultrapas-
sar nenhum limite que já não tenha
sido colocado anteriormente por ou
ainda , propor uma leitura inovadora
sobre o tema. Tratou-se unicamente de
oferecer um relato singelo sobre os tem-

133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica,


decisão e dominação. São Paulo: Atlas, 1993.
FUSTEL DE COULANGES. A cidade antiga. Trad. Fernando de Aguiar. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Par-
reira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
LEDUC, Claudine. Como dá-la em casamento? In História das mulheres: a
antiguidade. Org. DUBY, Georges e PERROT, Michelle. Trad. Maria He
lena da Cruz Coelho, Irene Maria Vaquinhas, Leontina Ventura e
Guilhermina Mota. Porto: Afrontamentos, 1993.
LORAUX, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher: imaginário da
Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
MASSEY, Michael. As mulheres na Grécia e Roma Antigas. Portugal: Euro-
América, 1988.

** Do livro de Nicole Loraux, Maneiras trági-


cas de matar uma mulher: imaginário da Grécia
Antiga, p. 10

* Por dádiva graciosa se deve entender o dote,


aquela quantia de bens e dinheiro que acom-
panhavam a noiva por ocasião do seu casa-
mento.

134

Você também pode gostar