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PARTE I: A ÚLTIMA REVOLUÇÃO ROMANA I A SOCIEDADE

3. Idade barroca. Arcos ousados e pedras ricamente lavradas mostram o abandono do gosto
clássico. O estilo teatral agrada à multidão, que aprecia as representações das ( ■ estrelas» e
as vistosas cerimónias públicas. Um autêntico magnate local, o imperador Sétimo Severo
93-211),manda levantar, na sua cidade natal, Leptis Magna (Tunísia), este e outros edifícios. AS FRONTEIRAS DO MUNDO CLASSICO: C. 200

«Vivemos à volta do mar como o nevoeiro à volta de um


lago», dizia Sócrates aos seus amigos de Atenas. Sete séculos
depois, por alturas do ano 200, o mundo clássico mantinha-se
fixado à volta do «lago», continuava preso às costas do Mediter-
râneo. Os centros da Europa moderna ficaram muito para Norte
e Ocidente do mundo dos homens antigos. Para estes, alcançar
o Reno era chegar a «m,eio caminho dos bárbaros»; um homem
típico do Sul transporta a esposa, que falecera, de Tréveros para
Pavia, a fim de poder sepultá-la junto dos antepassados. Um
senador grego da Ásia Menor, nomeado governador nas margens
do Danúbio, queixa-se, nestes termos: «Os habitantes ... levam
a vida mais miserável da humanidade; não sabem cultivar a
oliveira nem bebem vinho.»
O Império Romano havia-se estendido até onde lhe parecera
necessáiio, no tempo da República e durante o Principado, para
amparar e enriquecer o mundo clássico, erguido à volta das costas
do Mediterrâneo havia mais de quatro séculos. O que nos espanta
é a extraordinária maré de vida mediterrânica deste império,
durante o seu apogeu, no século ui. Avança pela terra dentro
até uma distância nunca até então atingida, especialmente na
África do Norte e no Próximo Oriente. Por algum tempo é igual
o rancho militar preparado na Itália e em frente dos Grâmpios,
na Escócia. Junto dos montes Hodna, onde hoje são os ermos
territórios do Sul da Argélia, levantam-se grandes cidades, como
Tinimo com o seu anfiteatro, biblioteca, estátuas dos filósofos
clássicos. Na cidade de Dura-Europos, nas margens do Eufrates,
a guarnição observa o mesmo calendário das festividades de
Roma. O derradeiro Mundo Antigo herda este extraordinário
kVssuN ivs

4-6. Nesta página : o lago cercado de nevoeiro. Neste


mapa de Albi (século o Mediterrâneo figura no centro
d-diVItindo. A Bretanha (parte superior, à esquerda) é uma
pequena nesga da Terra; o delta do Nilo e o Eufrates (parte
inferior do centro e lado), pelo contrário, figuram mais
pormenorizadamente. Na página ao lado: à esquerda, mar
significa alimento; navio carregando trigo no porto de
Óstia (séculos I-tv). Segundo um observador do sé-
culo v, Constantinopla não tinha razão de queixa: «Apesar
da sua vasta população, há sempre abundância de viveres,
porque todas as provisões, ainda as mais variadas, podem
ser trazidas directamente por mar.» À direita, a alternativa.
Incómoda viagem por terra. «A nossa cidade—escreve um
habitante da Ásia Menor, no século IV — está longe do
mar; não pode, por isso, nem exportar o supérfluo nem
importar aquilo de que necessita em tempo de crise.»
Relevo de Adamklissi (Tropaeum Traiani), de 108-109.

legado. Como manter, através de tão vasto império, um estilo sem satisfazer as suas necessidades alimentares. Roma dependeu,
de vida e de cultura, originariamente baseado numa' estreita durante muitos anos, da grande frota anual da África. Durante
linha costeira de cidades-estados, eis um dos problemas prin-
o século vi, Constantinopla recebia, anualmente, 175 200 tone-
cipais do período compreendido entre 200 e 700. ladas de cereais do Egipto.
O Mediterrâneo clássico havia sido sempre um mundo con-
A água foi, nos primeiros sistemas de transporte, o que. 4_,1
denado à indigência. É um mar cercado por altas montanhas;
foramscinhdeotraspmdeno—artéi
as. suas planícies férteis e vales fluviais são como remendos de
indispensável dos transportes pesados. Logo que um carrega-
uma sarapilheira. Muitas das maiores cidades dos tempos clás-
mento deixa as águas do Mediterrâneo ou de um grande rio,
sicos ficavam em pobres lugares alcantilados. Os seus habitantes
ao movimento rápido e seguro sucede a morosidade ruinosa.
viam-se obrigados a descer constantemente às regiões vizinhas, Fica mais barato levar um carregamento de trigo de uma extre-
em busca de alimento. Descrevendo os sintomas da falta de
midade do Mediterrâneo à outra do que transportá-lo por terra
alimentação das populações destes lugares no meado do século II, até à distância de 275 quilómetros.
o Dr. Galen observa: «Os habitantes das cidades costumavam O Império Romano foi sempre formado por dois mundos.
colher e enceleirar cereais suficientes para o ano imediato à
Até 700, as grandes cidades marítimas não estão a grandes dis-
colheita. Recolhiam todo o trigo, cevada, feijões e lentilhas, e tâncias umas das outras; em vinte dias de boa navegação, um
deixavam os restos aos camponeses.» Vista a esta luz, a história viajante vai de um canto a outro do Mediterrâneo, o centro do
do Império Romano é a história da maneira como dez por cento
mundo romano. Em terra, porém, a vida romana tende sempre
da população (que vivia nas cidades e deixou a sua marca na
a concentrar-se em pequenos oásis, semelhantes a gotas de água
civilização europeia) se alimentava da forma sumária indicada
huma planície ressequida. Eram famosas as estradas romanas
por Galen, à custa do trabalho dos restantes noventa por cento que corriam através do Império; mas atravessavam cidades cujos
que trabalhavam a terra.
habitantes obtinham tudo o que comiam, e a maior parte do que
O alimento era a riqueza mais preciosa do mundo mediter- usavam, dentro de um raio de uns 130 quilómetros.
rânico. Implicava o transporte. Poucas das grandes cidades do
12 Era no interior, nas terras que ladeavam as grandes vias,
Império Romano dispunham, nos arredores, de terras que pudes- que as enormes despesas do Império se tornavam mais pesadas. 13
O Império Romano fazia um esforço considerável para manter 7, 9. Em baixo, o sírio rico. O seu
longo nome grego e romano—Mar-
a sua unidade. Soldados, administradores, correios, auxiliares, cus Julius Maximus Aristides — é
visitavam constantemente as províncias. Visto pelos imperadores acompanhado de uma longa inscri-
ção em aramaico. O escultor em-
em 200, o mundo romano parece uma rede de caminhos, inter- prega o estilo que precede o dos
rompidos por postos, ocupados por pequenas comunidades, que retratos bizantinos. Séculos st-m.
A direita : em cima, um egípcio.
cobram os impostos em alimentos, vestuário, animais, e recrutam Túmulo copta de Scheh-Abade,
a mão-de-obra exigida pelas necessidades da corte e do exército. Egipto. Século D/; em baixo, cam-
poneses do Reno. A túnica curta,
Esta rude máquina era servida, obrigatóriamente, por muitos de lã, e o barrete das classes infe-
homens. A violência não representava uma novidade. Era tão riores do Ocidente continuam a
usar-se durante a Idade Média.
velha como a civilização, em certos lugares. Na Palestina, por Sobrevivem no hábito e no capuz
exemplo, Cristo ensinara aos seus ouvintes como deviam proceder do frade. Túmulo do século st.

quando um funcionário «os requisitasse para o acompanhar (car-


regando a sua bagagem) durante uma milha». A palavra «requi-
sição» não era, originàriamente, uma palavra grega; derivava do
persa, tinha mais de 500 anos de idade, remontava ao tempo
em que os Aqueménidas haviam aberto as famosas estradas do
seu vasto império, empregando os mesmos duros métodos.
O Império Romano, que, perigosamente, se estendera até
tão longe do Mediterrâneo no ano 200, conservava-se unido devido
à ilusão de que era ainda muito pequeno. Raramente se viu um
império tão dependente como este da delicada perícia dos gover-
nantes. Neste momento, preside aos seus destinos uma estranha
aristocracia, unida pela mesma cultura, gosto e linguagem. No
Ocidente, a classe senatorial continua a ser um escol tenaz e
absorvente, que domina na Itália, África, França do Sul, vales
do Ebro e do Guadalquivir. No Oriente,_ a cultura e o poder
local concentram-se nas mãos das orgulhosas oligarquias das
cidades. Através do mundo helénico, diferença alguma, no voca-
bulário e na pronúncia, denuncia o lugar de nascimento dos
habitantes. No mundo ocidental, os aristocratas bilingues passam,
inconscientemente, do latim para o grego. Um natural da África
sente-se à vontade num salon literário de Esmirna, frequentado
por gregos educados.
Esta espantosa uniformidade era mantida por homens que
sentiam obscuramente que a sua cultura clássica se destinava a
14 excluir as alternativas do seu próprio mundo. Como muitas aris-
antigos dialectos, como o licaónio, o frígio, o capadócio ou o
siríaco e o aramaico, na Síria.
Vivendo lado a lado com o imenso mundo «bárbaro», as classes
governamentais do Império Romano haviam-se libertado dos
mais virulentos exclusivismos dos regimes coloniais modernos.
Eram bastante tolerantes quanto à raça e religiões locais. Mas
o preço que exigiam pela inclusão no seu próprio mundo era
conformidade — a adopção do seu estilo de vida, das suas tra-
dições, da sua educação, e, ainda, das suas duas línguas clás-
sicas — o latim, no Ocidente, o grego, no Oriente. Os que não
estavam em condições de cumprir eram corridos, francamente
desprezados como «rústicos» e «bárbaros». Os que podiam par-
ticipar mas não queriam — especialmente os Judeus — eram
tratados ora com ódio ora com desprezo, sentimentos só ocasio-
nalmente suavizados por certa curiosidade respeitosa pelos repre-
sentantes da antiga civilização do Próximo Oriente. Os que
participavam uma vez mas «desertavam» ostensivamente — os
10. Os defensores. Porta-estandartes
cristãos, sobretudo — podiam ser executados sumariamente. Por
romanos de um monumento local alturas de 200, muitos governadores das províncias, acompanhados
(Tropaeum Traiani), de Adamklissi,
na fronteira danubiana.
pelas turbas, assinalam, em diversos lugares, com histérica cer-
teza as fronteiras do mundo clássico, mediante perseguições
tocracias cosmopolitas — como as dinastias do fim da Europa contra os cristãos. «Não há coisa que mais me incomode do que
feudal ou os aristocratas do Império Austro-Húngaro —, os homens ouvir as pessoas dizerem mal da religião romana», declarava um
da mesma classe e cultura sentiam-se, em qualquer parte do mundo magistrado aos cristãos.
romano, mais unidos uns aos outros do que com a maioria dos Aísociedãde clássica de cerca de 200) era uma sociedade de
camponeses «subdesenvolvidos», seus vizinhos. Os «bárbaros» fronteiras firmes, mas não estagnante. No mundo grego, a tra-
exercem uma pressão silenciosa e persistente sobre a cultura do dição clássica já tinha mais de 700 anos. A sua primeira erupção
Império Romano. «Bárbaros» não eram apenas os primitivos de criadora, em Atenas, já não seduzia de maneira tão forte como
além-fronteiras; cerca de 200, estes «bárbaros» haviam-se juntado nos tempos das conquistas de Alexandre Magno; adoptara um
aos habitantes do interior do Império. Os aristocratas passam de ritmo de sobrevivência, rico de cambiantes delicados, de repe-
um lugar para outro, administram a justiça, falam a mesma tições pacientes, como no cantochão. Dera-se um prometedor
língua, observam os mesmos ritos, desempenham os modos de renascimento no século it. Coincidira com a revivescência da
vida de todos os homens educados. A estes costumes só se mantêm vida económica e a iniciativa política das classes superiores das
alheios os territórios habitados por - certas tribos aliadas da Ger- cidades helénicas. Na época dos Antoninos assiste-se ao apogeu
mânia ou da Pérsia. Na Gália, os camponeses ainda falam o dos sofistas gregos. Estes homens, apaixonados pela retórica,
eram, ao mesmo tempo, leões literários do tempo e grandes ricaços 17
16 céltico; na África do Norte, o púnico ou o líbio; na Ásia Menor,
urbanos. Dispunham de enorme influência e popularidade. Um
deles, Polemo de Esmirna, considerava «reles todas as cidades,
os imperadores como não sendo mais do que ele, e os deuses ...
como iguais». Atrás destes homens estavam as florescentes cidades
do mar Egeu. As principais lembranças clássicas em Efeso e
Esmirna (e, semelhantemente, as cidades e templos contempo-
râneos em Léptis Magna, na Tunísia, e Baalbeck, no Líbano)
parecem-nos hoje um resumo do mundo de então. Não passavam,
no entanto, de simples amostras de algumas gerações de magni-
ficência barroca do período que vai de Adriano (117-138) a
Sétimo Severo (193-211).
É justamente no fini do século II e começos do III que a
cultura grega se apresenta senhora do que forma o laStro da
tradição clássica através da Idade Média. São compilados nesta
altura as enciclopédias e os r uais de medicina ciências natu-
rais e astronomia que todos os homens cultos (latinos, bizantinos,
árabes) manejam durante os mil e quinhentos anos seguintes.
Os textos literários e as atitudes políticas que se conservam no
mundo grego até ao fim da Idade Média surgem, primeiramente,
na época dos Antoninos. Os senhores bizantinos do século xv
ainda empregam um rego ático secreto, usado pelos sofistas
do tempo de Adriano.
Nesta altura, o mundo grego absorve o Império Romano. 11. A sombra da Pérsia. Representa-se o imperador romano Valeriano, ajoelhado perante
Podemos apreciar a identificação com o Estado Romano e as Shapur I, figurado como sucessor de Dario e Xerxçs, mostrando os seus direitos às províncias
orientais do Império Romano. Relevo do rochedo de Bishapur, segunda metade do século
subtis modificações realizadas, observando um grego da Bitínia,
enquadrado, como senador, na classe governamental — Díon
Cássio, que escreve a sua História de Roma por alturas de 229. alto da cabeça. Mas aceitava a rude lei de um homem destinado
a dar-lhe um mundo ordenado. Só o imperador podia suprimir
Apesar da maneira entusiástica como vê o Senado Romano, lem-
a guerra civil; só ele podia pôr termo às contendas das facções,
bra-nos constantemente que o Império se estendera aos Gregos,
nas cidades gregas; só ele podia tornar a sua classe firme e res-
habituados, havia séculos, a um despotismo esclarecido. O impe-
peitada. Os escolares bizantinos que, séculos depois, procuram
rador romano era um autocrata. O decoro vulgar e algumas
conhecer a história de Roma através de Díon, vêem-se sem espe-
atenções para com as altas classes educadas eram as suas únicas
rança, frente ao mar, quando lêem os feitos dos heróis da época
preocupações — não o delicado maquinismo da constituição de
da República; mas compreendem perfeitamente os fortes e sérios
Augusto. Limitações frágeis, como sabia. Assistira a uma reunião
imperadores do tempo de Díon, porque a história de Roma é
do Senado, na qual um astrólogo acusara certos «calvos» de cons-
18 já a história de uma Grécia do fim do século II e começos do
pirarem contra o imperador, levando, instintivamente, a mão ao século In, isto é, a sua história.
19
Dá-se uma mudança do centro de gravidade do Império nesce, e a dinastia dos Sassânidas depressa sacode do corpo o
Romano para as cidades gregas da Ásia Menor; desabrocha um vestuário grego. Um império eficiente e agressivo, dominado por
mandarinato grego. A própria época dos Antoninos inclina-se uma classe superior alheia à influência ocidental, defronta o
para Bizâncio. Os homens do tempo de Díon Cássio enfrentam, Império Romano, na fronteira oriental. Em 252, 257 e, de novo,
porém, outros destinos : são fortemente conservadores; devem os em 260, o grande Shahnshah, o rei dos reis Shapur I, refere-se
seus maiores sucessos a uma reacção cultural; as fronteiras do assim aos triunfos dos seus cavaleiros : «Valeriano César veio
mundo .clássico são, para eles, claras e rígidas. Mesmo Bizâncio, contra nós à frente de um exército de 700 000 homens ... tra-
mesmo a civilização que esta cidade poderia erguer sobre a sua vou-se uma grande batalha, e Valeriano César caiu-nos nas mãos ...
velha tradição, mesmo as novidades revolucionárias, como o E incendiámos, devastámos, conquistámos, as províncias da Síria,
estabelecimento do cristianismo e a transformação de Constanti- Cilicia, Capadócia, e tornámos cativos os seus habitantes.»
nopla em «Nova Roma» — tudo isto era inconcebível para homens O medo de repetir a experiência inclinou a balança do domí-
como Díon. Esta civilização só pode surgir com a última revo- nio imperial do lado do Reno e muito mais do lado do Eufrates.
lução romana, nos séculos iii e iv. Pior ainda, o choque com a Pérsia sassânida modificou as fron-
Este livro tem por assunto a mudança e definição das fron- teiras do mundo clássico no Próximo Oriente; a preeminência
teiras do mundo clássico depois de 200. Pouco se relaciona com passou para a Mesopotâmia, e o mundo romano ficou sujeito à
os problemas convencionais do declínio e queda do Império influência da arte e da religião daquela imensa, exótica área.
Romano. O declínio e queda afectam únicamente a estrutura Nem sempre as datas convencionais são as mais decisivas.
política das 'províncias romanas do Ocidente; deixam incólume Todos sabemos que os Godos saquearam Roma em 410, mas as
o • centro cultural do fim da Antiguidade — o Mediterrâneo províncias perdidas do Ocidente continuaram a manter uma
Oriental e o Próximo Oriente. Mesmo nos estados bárbaros da «subcivilização romana» durante séculos. Contrariamente, quando
Europa Ocidental, o Império Romano, tal como sobrevive em as províncias orientais do Império passaram ao poder do Islão,
Constantinopla, é considerado, nos séculos vi e vil, como o maior em 640, deixaram de ser sociedades «sub-bizantinas» e «orientali-
estado civilizado do Mundo, e continua a ser chamado Respublica. zaram-se» rápidamente. 1 0 próprio Islão foi arrastado para oriente
O problema que preocupa então os homens é, sobretudo, a penosa das suas primeiras conquistas devido à submissão do vasto
modificação dos antigos limites. Império Persa. No século viu, o Mediterrâneo é governado de
Geogràficamente, o âmbito do Mediterrâneo diminuiu. Bagdade; torna-se um lago para os homens que estavam habi-
Depois de 410, foi abandonada a Bretanha; depois de 480, a tuados a navegar através do golfo Pérsico, e a corte de Hárune
Gália passou a ser firmemente dirigida do Norte. No Oriente, Arraxide (788-809), com os seus pesados enfeites de «subcul-
paradoxalmente, o recuo do Mediterrâneo começou mais cedo e tura persa», era uma prova de que a irreversível vitória do Próximo
mais imperceptivelmente, mas de maneira decisiva. Até ao século I, Oriente sobre os Gregos começara lentamente, mas com segu-
uma aparência de civilização grega cobre ainda uma grande área rança, por alturas da revolta de Fars, em 224.
do planalto iraniano. Uma arte greco-budista floresce no Afega- À medida que o Mediterrâneo recua, um mundo mais antigo
nistão, e as leis de um governante budista são acatadas fora de passa a revelar-se. Os homens da Bretanha adoptam os padrões
Cabul, traduzidas num impecável grego filosófico. Em 224, toda- artísticos da idade de La Têne. O servo da última Gália ressus-
via, uma família de Fars, o «taciturno Sul» do intacto patriotismo cita com o nome céltico de vassus. Os árbitros da piedade do
20 iraniano, apodera-se do governo do Império Persa. Este rejuve- mundo romano, os eremitas coptas do Egipto, restauram a língua 21
1,
-I
-4 dos faraós. Os himnólogos cantam a realeza de Cristo, servidos
por expressões que fazem lembrar a época suméria. À volta
4 do Mediterrâneo recuam mesmo as fronteiras mais afastadas do
interior. Uma outra face do mundo romano, que vivia desde
4 há muito na obscuridade, vem à superfície, como as terras de
-I) cores diferentes, revolvidas pela charrua. Três gerações após
--. DIon Cássio, o cristianismo torna-se a religião dos impera Ores.
-4 As pequenas coisas assinalam, muitas vezes, mais fielmente as
mudanças, porque inconscientemente. Junto de Roma, uma oficina
4 de escultores do século iv continua a fornecer estátuas impe-
-4 cavelmente vestidas de toga, mas os aristocratas que encomendam
-4 estas obras usam vestuário à moda dos «bárbaros» não mediter-
rânicos — a túnica de lã do Danúbio, a capa da Gália do Norte,
4
presa nos ombros por uma fíbula de filigrana da Germânia,
.4 mesmo as calças «saxónicas». Em todas as zonas do Mediterrâneo,
• cada vez mais profundamente, a filosofia grega deixa-se impregnar
de novos sentimentos religiosos.
*
Estas transformações representam os principais temas da
-* evolução do derradeiro mundo antigo. Nos dois próximos capí-
• tulos veremos os aspectos sociais e políticos da revolução come-
çada com estas metamorfoses no fim do século tu e no século iv.

-•
*

- -14
OS NOVOS GOVERNANTES: 240-350

Díon Cássio deixa de escrever em 229, sem pressentir o que


-e se vai passar. Os seus neto e bisneto ainda assistem à g5eUão
de Diocleciano (284) e à conversão de Constantino ao cristia-
4
nismo (312). Outro exemplo bem conhecido: o martírio de
4 S. Cipriano, em 258. O secretário de Cipriano podia dizer a um
- 10 velho amigo de S. Jerónimo (nascido por alturas de 342) que
S livros preferia ler o grande bispo. Não devemos pôr de lado
os laços humildes entre as gerações. O império romano pagão
/11
12. Diocleciano (284-305) e os seus colegas com vestes guerreiras. Compo-
• nentes de uma junta militar encostam-se uns aos outros, num gesto de sofi-
dariedade. Este grupo militar, de grande simplicidade, era tão medieval no
lb aspecto que os seus'\ figurantes foram considerados, durante muito tempo, como
cruzados e até adorados como imagens de S. Jorge. Escultura de pórfiro.
- *
22 Igreja de S. Marcos, Veneza.
- 4a
de Cipriano, no século iit, pode parecer-nos infinitamente dis-
tante do «último» império romano cristão de Jerónimo, no sé-
culo tv. O Império Romano era, porém, uma vasta sociedade
em movimento. A sua principal riqueza derivava da agricultura,
e a maior parte da sua população vivia da cultura da terra. Estava,
desta maneira, bem protegido contra os efeitos da instabilidade
política •de duas gerações e contra as invasões bárbaras posterio-
res a 240:
Depois desta data, o Império, decadente, tem de fazer frente
às invasões bárbaras e à instabilidade política numa escala para
a qual não estava preparado. Os meios de que lança mão para
vencer a crise, que vai de 240 até 300, marcam as características
da futura evolução da última sociedade antiga.
A crise põe a nu o contraste entre o coração do velho império
mediterrânico e o mundo mais primitivo e frágil das fronteiras. Ar'•
iKG

O domínio absorvente da aristocracia tradicional na vida cultural 13. No mundo das fronteiras: soldados
romanos combatendo no Danúbio. Rele-
e política do Império dependia de uma paz duradoira. No Norte vo de Adatnklissi, 108-109.
e ao longo, das fronteiras orientais vizinhas das montanhas da
Arménia e do Irão, a paz era, claramente, uma pausa momen- A unidade do Império é ameaçada por impérios locais de <,emer-
tânea nas leis da Natureza. O Império Romano era, como a China, gência»: Postúmio governa a Gália, a Bretanha e a Espanha,
um dos raros grandes estados do Mundo Antigo que tentaram de 260 a 268; Zenóbia, rainha de Palmira, domina parte das
criar um oásis de pacífico governo civil entre sociedades que províncias do Oriente, de 267 a 270.
haviam sempre vivido em guerra. Com a ressurreição da Pérsia, O Império Romano desconjunta-se. Diferentes grupos e
diferentes províncias perdem a disciplina. Ao longo das fronteiras,
em 224, o. estabelecimento da confederação gótica na bacia do
Danúbio, depois de 248, e os movimentos de bandos guerreiros cidades e lugares ficam desertos. Os soldados derrubam 25 impe-
ao longo do Reno, depois de 260, o Império vê-se obrigado a radores, e, em 47 anos, só um morre no leito. No entanto, à volta
sustentar a guerra em todas as fronteiras. do Mediterrâneo, uma sociedade mais resistente não perde a
Estava mal preparado para esta tarefa. Entre 245 e 270, as esperança e procura progredir. Nas suas grandes herdades, os
fronteiras desmoronam-se. Em 251, o imperador Décio é ani- senadores romanos continuam a cultivar a filosofia grega e adop-
quilado com o seu exército nas margens do Dobruja, em luta tam, nos seus bustos, a moda barroca dos Antoninos. Em Roma,
com os Godos. Em 260, Shapur I aprisiona o imperador Valeriano, na África, no Mediterrâneo, os bispos cristãos gozam de um
com muitos dos seus soldados. No estuário do Reno e na Crimeia, sossego e liberdade de movimentos que contrastam profunda-
os barcos dos Bárbaros antecipam os feitos dos Vikings. Devas- mente com a dura vida dos seus governantes pagãos. Nas décadas
tam as costas da Bretanha e da Gália e assaltam as cidades inde- de crise, muitos dos principais dirigentes das cidades do Medi-
fesas do mar Egeu. Em 271, o imperador Aureliano vê-se terrâneo continuam a desempenhar pacientemente os deveres
rotineiros da administração, como os de Oxirinco, no Alto 25
24 mesmo na necessidade de cercar Roma de muralhas militares.
Egipto, esperançados em que a «boa divina fortuna» do imperador
recomponha em breve a situação.
O sólido assento da vida civil mantém-se firmemente, mas
a crise tem um resultado imediato: o mundo romano nunca mais
volta a ser governado por um grupo notável de homens prudentes
como no tempo de Marco Aurélio.
O Império Romano é salvo por uma revolução militar.' 2aras
vezes a sociecrádê - Chegara a `Cortar 'o podre das classes supe-
riores com tanta coragem. A aristocracia senatorial é excluída
dos comandos , militares, em 260. Os aristocratas vêem-se obri-
gados a servir como os soldados profissionais, que haviam subido 16. O (dólar» da Idade
a pouco e pouco. O exército é refundido por estes profissionais. Média : solidus de ouro
de Constantino (306 - 337).
A pesada legião é dividida em pequenos destacamentos, para Em deliberado contraste
poder opor defesa mais flexível em profundidade, nas incursões com o rude Diocleciano,
Constantino é figurado
dos Bárbaros. As guarnições fronteiriças são protegidas por uma como herói civil — com
impressionante força de choque, formada por cavalaria pesada — os olhos erguidos para o
alto e perfil clássico. Moe-
os «companheiros» do imperador, o comitatus. Estas modifica- da de Nicomedia.
ções duplicam o tamanho do exército e aumentam em mais do
dobro o seu' custo. Urna força de 600 000 homens era o exército
mais vasto reunido durante o Mundo Antigo. As necessidades levam os imperadores ao aumento da burocracia. Por alturas de
300, queixavam-se os cidadãos de que «há mais colectores do que
14, 15. A esquerda, o soldado Constâncio Cloro, pai de Constantino. Medalha de ouro do
Tesouro Beaurains, Museu de Arras. À direita, a ressurreição imperial. Constâncio Cloro pagadores», devido às reformas do imperador Diocleciano (284-
chega a Londres em 296: »Traz-nos de novo a eterna luz de Roma.» Nas províncias ociden- -305). Como veremos no próximo capítulo, o peso do aumento
4 tais, a salvação das cidades depende da chegada do imperador à frente dos seus garbosos
dos impostos molda inexoràvelmente a estrutura da sociedade
regimentos de cavalaria pesada. Cópia de um medalhão de ouro, de Tréveros.
romana dos séculos INT e v.
A revolução militar do fim do século In é vista com irredu-
tível hostilidade pelos civis conservadores do tempo, e por isso
mal estudada por alguns historiadores modernos. Foi, no entanto,
um dos mais belos feitos do Estado Romano. Com o novo exér-
4 cito, Galiano vence os Bárbaros na Jugoslávia e na Itália do
4 Norte, em 258 e 268; Cláudio pacifica a fronteira do Danúbio,
em 269; Aureliano avança através das províncias do Oriente,
em 273; Galério esmaga a ameaça dos Persas, em 296.
Os soldados e oficiais das províncias do Danúbio, que haviam
parecido tão rudes aos aristocratas do Mediterrâneo durante a
época precedente, são os heróis da ressurreição imperial do fim
do século In e começo do século iv. Diz um deles: «Servi durante 27
17-20. O novo romano.
Um oficial das províncias
danubianas, do século iv.
Os seus escravos trazem-
-lhe as calças (18), o manto
com uma fíbula (19), o
cinto enfeitado com jóias
(20). Frescos de um tú-
mulo da Silístria (Bul-
gária).

27 anos; nunca fui castigado por indisciplina ou roubo. Andei poder mais alto da sociedade romana. Eram oficiais assalariados,
de um lado para o outro durante sete anos. Nunca me escondi pagos em nova moeda de ouro estabilizada — o solidus. No
atrás de outro, nunca deixei de ser o primeiro na luta. O capitão século iv, esta moeda de ouro, o «dólar da Idade Média», goza
nunca me viu hesitar.» O exército era um viveiro de talentos. do poder de compra do dólar moderno, numa sociedade ainda
Em fins do século Itt, os seus oficiais e administradores tiram à a braços com uma inflação perturbante. A sua posição no exér-
autocracia tradicional o governo do Império. O grande reformador cito e no funcionalismo deu aos servidores imperiais vastas opor-
deste período, Diocleciano, era filho de um liberto da Dalmácia; tunidades alimentares. Escrevia um contemporâneo: «Constantino
o. seu
- adjunto, Galério (305-311), guardara gado nos Cárpatos; foi o primeiro a abrir as províncias aos seus amigos; Constâncio II
um dos seus colegas, Constantino Cloro (305-306), não passava fartou-os até não poderem mais.»
de obscuro senhor rural dos arredores de Naissus (Nish). Eram Após a conversão de Constantino, em 312, os imperadores
homens cuja subida ao poder era tão espectaculosa e bem mere- e a maioria dos seus familiares são cristãos. A facilidade com que
cida como a dos marechais de Napoleão. Eles e os seus sucessores o cristianismo se impõe às altas classes do Império Romano, no
escolhem auxiliares de passado idêntico. Os filhos de um car- século iv, é devida à revolução que coloca a corte imperial no
niceiro, de um pequeno notário provinciano, de um porteiro de centro da sociedade do «homem novo», o qual acha comparati-
balneário público, tornam-se prefeitos do pretório quando a pros- vamente fácil abandonar as crenças conservadoras pela nova fé
peridade e a segurança das províncias orientais do Império depen- dos dominadores.
dem de Constantino e de Constâncio II. As novas classes superiores trazem com elas restos das suas
O reinado de Constantino, especialmente o período que vai activas origens militares. Todos os oficiais usam uniforme; mesmo
28 de 324 a 337, viu uma nova «aristocracia de serviço» alcançar o os imperadores abandonam a toga, e aparecem, nas suas estátuas, 29
vestidos de guerreiros. Estas vestes são o simples e grosseiro
uniforme da fronteira danubiana — um pequeno elmo redondo,
uma capa com uma fíbula de ombros, trabalho bárbaro, e um
pesado cinturão. O latim rústico das províncias fazia irremedià-
velmente parte do seu vocabulário oficial. Era assim que um
romano clássico denominava aureus a nova moeda de ouro; na
prática, porém, todos lhe chamavam solidus, ou seja, «coisa sólida»,
digna de crédito.
Um elemento novo, de origem alheia à aristocracia tradi-
cional do Império, veio, desta forma, a formar a classe governa-
mental. A fluidez social que levara estes homens ao alto nem era
indiscriminada nem abraçava toda a sociedade romana. No
Oriente, por exemplo, Constantinopla é remoinho isolado de
modificações cujas correntes só gradualmente afectam as classes
21, 22. Renascimento clássico. Em cima, marfim
superiores da sociedade, nas províncias. Libânio (314-393), um alusivo à celebração do casamento de uma filha de
grego retórico, posto em 341-342 perante os soldados de língua Símaco, senador pagão do fim do século iv. Em
baixo, casamento de um aristocrata do século tv.
latina que esperam o seu discurso, procede como se «falasse por Os noivos podem ser cristãos, mas a cena é franca
mímica», pcirque não podiam compreender o seu grego clássico. e deliciosamente pagã. Pormenor da tampa da
caixa nupcial de Secunda e Projectus.
Na cidade de Nicomedia, para onde retira, encontra melhor
companhia — «homens de bom nascimento», «amantes das musas».
Estranhos ao animado mundo da corte e do exército, sobre-
vivefn os lentos movimentos tradicionalistas. Os _proprietários
ricos continuam a coleccionar grandes estátuas e o sistema clás-
sico de educação continua a ministrar aos jovens ideias conser-
vadoras. Como os arcos opostos da mesma abóbada, a «nova»
sociedade dos súbditos imperiais vem a encostar-se à segura
sociedade tradicional das educadas classes superiores. O poder
absorvente e criador destas classes é extraordinário. Em fins do
século iv, por exemplo, ricos romanos, cujos avós haviam per-
petuado as violentas inovações do Arco de Constantino, apreciam
os belos trabalhos neoclássicos de marfim e sabem mais de
literatura latina do que muitos dos seus predecessores.
-- A antiga educação clássica fornecia os elementos de ligação
entre os dois mundos. Esta cultura, àvidamente absorvida, era
um trompe l'oeuil ao . qual o homem novo podia encostar-se. Um
30 governador de província confessava: «O meu pai era um pobre

zrÁttMSfr"SrC7AiR7A41/45r;"
L....._ \Ir
camponês; o meu amor pelas letras conquistou-me a vida de
senhor.» A maior parte da cultura clássica do século tv era uma 23, 24. À esquerda, o
«cultura-sucesso»; a obra mais importante que se lhe deve é um letrado ocupa a sua ca-
deira de professor (pro-
«resumo» (breviariunz), de trinta páginas, da história de Roma, tótipo da cátedra epis-
destinado aos governantes do Império. copal), tendo em frente
urna estante repleta de
Um dos aspectos requintados e deleitosos do mundo do fim antigos rolos de clássi-
da Antiguidade é o esforço consciente da fluida classe superior, cos. Relevo romano.
À direita, o evangelista
no sentido do regresso às raízes do passado, o desejo de assentar S. Mateus. Do Evan-
firmemente as bases da coesão. Os novos senadores protegem a geliário de Carlos Mag-
no, Aix-la-Chapelle, an-
produção de objectos de luxo, de belo lavor artesanal, para for- tes de 800.
talecer a situação da classe e a sua solidariedade. Celebram os
aniversários dos casamentos mandando lavrar cofres nupciais de
que apreciam a antiga cultura tradicional são os únicos membros
prata (como o cofre esquilino do Museu Britânico); anunciam estáveis de uma máquina burocrática que absorve os talentos
essas datas aos amigos por meio de belas tabuinhas de marfim, como uma esponja. O influxo constante das necessidades dos
de puro estilo neoclássico (como o díptico Nicomachi, do Museu provinciais, cuidadosamente abafadas pela literatura clássica grega
Vitória e Alberto). Estes dípticos servem também para lembrar de Constantinopla, dá à çlasse governante de Bizâncio a ilusória
a posse do lugar de cônsul, numa complicada heráldica, que tranquilidade das águas superficiais da presa de um moinho.
representa fnais a glória e antiguidade do título do que os Nomeiam o pessoal civil permanente e os governadores das pro-
méritos do novo possuidor. Os trabalhos mais polidos que
víncias; são eles que vêm a narrar a história de Bizâncio nos mil
provêm destes homens são, porém, as suas cartas, tão minuciosas
anos seguintes. Tão uniforme é a sua cultura que o seu último
e insípidas como os cartões de visita dos mandarins da China representante continua a escrever, sob o domínio dos sultões
imperial. Durante os séculos INT e v circula uma vasta colecção otomanos, no fim do século xv, uma história do tempo à maneira
de cartas, a maior parte das quais não passa de relatos pre-
de Tucídides.
tensiosos da classe governante do mundo romano, relativos às Nesta nova classe superior há duas feições que importa con-
perdas e ganhos de uma luta contínua pela conquista de privi- siderar. Em primeiro lugar, procurava criar-se um escol através
légios e influência. de uma activa carreira pública. A cultura clássica do fim da
As novas classes governamentais precisavam de mestres, e
Antiguidade assemelhava-se a uma alta pirâmide; forçava a uma
estes, por sua vez, vêm a formar o estado-maior de uma buro- «aristocratização», à formação de homens «elevados pela tradição
cracia que, em certos momentos, domina a corte. Ausónio (c. 310- habitual acima da massa comum da humanidade». Absorvendo, _
-395), poeta de Bordéus, torna-se a éminence grise do Império graças ao estudo, os modelos clássicos da literatura e moldando
do Ocidente. É possível a Agostinho, pertencente a uma pobre
o procedimento pelo dos heróis antigos, aspiravam a uma certeza
família de Tagaste (sul de Aras), na África, ocupar, aos 30
que só a participação consciente do modo de vida tradicional
anos, o lugar de professor de Retórica em Milão (384) e conquistar,
lhes poderia dar. Apenas uma meticulosa dedicação ao aperfei-
seguidamente, a consideração do governador da província e da çoamento dos Antigos poderia salvá-los, assim libertados das
nobreza local. Nas cidades helénicas do Império dá-se a fusão_ sanções tradicionais e de si mesmos. Juliano, o Apóstata (361- 33
32 dos senhores tradicionais com os novos burocratas. Os homens
4

-363), pensava sinceramente que o seu irmão Galo se «tornara


4 selvagem», mas que ele fora «salvo» pelos deuses, que lhe haviam mente? E a que perturbantes ideias, há muito em gestação nas
4 dado uma educação universitária. Não surpreende, nestas con- cidades do Mediterrâneo, deixaria isto aberto o caminho? Por
-dições, que pagãos e cristãos lutem tão violentamente, através agora, vejamos apenas como a sociedade «restaurada» do Império
4
4 i do século iv, por saber qual devia ser a verdadeira paideia, a
) verdadeira educação, se a literatura, se o cristianismo;"
I rn ambos
1-._. os partidos esperavam salvar-se mediante a educação. O homem
Romano, com a sua mistura de novos e velhos elementos, se
estabilizou e dispôs de relativa segurança durante um século.
- 4
que se cinzelara e polira como uma estátua, através da devoção RESTAURAÇÃO DE UM MUNDO:
pelos antigos clássicos, era o homem ideal. Representam-no, no A SOCIEDADE ROMANA NO SÉCULO IV
seu sarcófago, fixando sossegadamente um livro aberto — um
4
- «homem das musas», um santo da cultura clássica. Em breve se torna A nova classe governamental romana, que alastrara através
4 do Impei-iro- cerca de 350, julgava viver num mundo que resta-
um santo: o bispo cristão com a sua Bíblia aberta, o inspi-
belecera a ordem: Reparatio Saeculi. A «Idade da Restauração»
rado evangelista, curvado sobre uma página, são descendentes
-1 11 era o seu mote favorito, em moedas e inscrições. Logo que os
directos do retrato do homem de letras do fim da Antiguidade.
4 imperadores pacificaram a região do Reno, uma nova aristocracia
-
Em segundo lugar, não se sabia até que altura devia chegar
se espalhou pela Gália, como os cogumelos após a chuva: homens
-4 a pirâmide, sempre aberta na base. Até ao século iv, a profissão
docente é extraordinariamente fluida. O ideal de cultura clássica Como Ausónio, que lembrava como seu avô, fugido à invasão
4 bárbara de 270, encontrara grandes proprietários cujas fortunas
é constantemente alimentado pelos recém-chegados. A revolu-
4 cionária «conversão» de Constantino ao cristianismo não é a única se haviam mantido durante os dois séculos seguintes. Na África
e na Sicília, uma série de esplêndidos mosaicos ilustram a dolce
1) naquela época de modificações; há muitas outras, mais silen-
vita dos grandes proprietários, cuja existência não é perturbada
4 ciosas, mas igualmente fanáticas, à cultura tradicional e à velha
entre os séculos III e tv.
religião. O imperador Diocleciano defende o tradicionalismo
É importante este renascimento do século iv. As profundas
romano com fervor religioso; o mesmo faz Juliano, o Apóstata,
esse nouveau riche da cultura grega. No Baixo Império, porém, modificações religiosas e culturais do fim da Antiguidade não
têm por teatro um mundo aterrado pela sombra de uma catás-
dá-se repentinamente uma explosão de talento e génio criador,
como sucede muitas vezes quando um ancien régime é sacudido. trofe. Longe disso; os homens desta época formam uma sociedade
4 Uma notável corrente de homens hábeis, isentos dos preconceitos rica e surpreendentemente compreensiva, que se estabiliza e
da aristocracia e amantes do saber, empregam um estilo vigoroso conquista uma estrutura significativamente diferente da classe
e inquieto, que distingue o clima intelectual do fim da Anti- romana do período clássico. O traço mais característico desta
sociedade, tanto para os contemporâneos como para o historiador,
guidade de qualquer outro período da história antiga. Vêm todos
de cidades obscuras: Plotino é o vasto fosso entre os ricos e os pobres. No Império do Ocidente,
, (c. 205-270) do Alto EgiptorAgos- -
tinho (354-430) de Tagaste; Jerónimo (342-419) de Stridon, a sociedade e a cultura são dominadas por uma aristocracia sena-
para onde, por fim, desejava voltar; João Crisóstomo (c. 347-407) torial cinco vezes mais rica, em média, do que os senadores do
de um escritório de amanuense, em Antioquia. Onde termina século I. No túmulo de um destes senadores encontrou-se «uma
esta fluidez? Instituições menos conservadoras do que o sistema meada de fiado de ouro» — tudo o que restava de um verdadeiro
34 milionário romano do século D/: «Petrónio Probo, cujas proprie-
burocrático e educativo do Império fortalecê-lo-iam mais eficaz-
dades se espalhavam por todo o Império, adquiridas honesta- 35
mente ou não, o que não sei dizer», escreve um contem-
porâneo.
O que é verdadeiro para a aristocracia também o é para a vida
urbana. Mesmo as pequenas cidades conquistam importância. e:
Em õstia, por exemplo, as opulentas residências da aristocracia e:
do século iv são construídas dos blocos de andares das e
classes trabalhadoras do século ii. As grandes cidades do Império
mantêm o belo estilo de vida das classes superiores. O rápido
crescimento de Constantinopla prova isto mesmo. Fundada em 4=-
324, tem 4388 casas particulares, por alturas do século v. A pros- 4
peridade do mundo mediterrânico aumenta consideràvelmente.
O rendimento de um senador pode chegar a 120 000 peças de
ouro, o de um cortesão de Constantinopla a 1000, mas o de um
mercador não passa de umas 200, e o de um camponês não vai 41"
além de 5 peças por ano.
e
O imposto é a maior causa da mudança. O imposto predial
rústico triplica, cerca de 350, facto vivamente lembrado. Leva e
mais de um terço do produto bruto de uma herdade. É inexo-

25, 26. De novo a magnificência. Na página ao lado: pormenor do sarcófago de pórfiro


(c. 350) de uma filha de Constantino. Nesta página, os magnates na cidade: cortejo triunfal a
de um cônsul em Roma. Da Basílica de Junius Bassus, Roma, século iv. 4B -
e-

E
C-
C

•-
•'



27, 28. Em cima, Constantino dis-
tribui presentes. No século tv, as
ofertas do imperador e dos seus ofi-
ciais são frequentes. Pormenor do
Arco de Constantino, Roma. Em
"baixo, vend% uma corrida do circo.
Espectáculos como este, apesar de
condenados pelos bispos cristãos,
mostram que a vida das cidades do
Mediterrâneo se mantém e continua
a manter-se durante o século vt. Mo-
saico de Gafsa, Tunísia, século v. -'—
káll~11Ãàj~
29, 30. À direita: moradia
wn campestre, na África. Dife-
rente da casa horizontal de
um só andar, do passado
clássico, dotada de rés-do-
-chão e de torres, podia
servir de castelo na altura
da invasão. Os grandes pro-
prietários viram-se forçados
a dar esta protecção aos seus
rendeiros. Mosaico de Ta-
barka, Tunísia, século tv.
Em baixo: palácio cuidado-
samente protegido das vistas
do mundo exterior. Mosaico
de Sant'Apollinare Nuovo,
Ravena, século vt.
rável e está mal distribuído. O tempo e a distância são os maiores
inimigos (e inimigos vitoriosos) do Império Romano. As contri-
buições são conscienciosas, mas, numa sociedade tão vasta, nunca
LPRCIL.43, 4.
poderiam ser nem completas nem suficientes. A única maneira letRUZ¥ á 8C1::MFRIhi
RIÉnZLit
de diminuir uma carga tão pesada era iludi-la, deixando os menos
afortunados de a liquidar. Os imperadores reconhecem a situação.
De vez em quando reduzem o seu peso, mercê de procedimentos
espectaculares — privilégios, perdões, cancelamento dos débitos
difíceis de cobrar : Mas isto era como uma válvula de segurança,
deixando escapar o vapor acumulado. Podia impressionar, mas
não distribuía a carga. Nas províncias do Ocidente, a fortuna
do imperador passava clandestinamente para as mãos dos grandes
proprietários, enquanto os pequenos se arruinavam devido aos
:38 constantes pedidos dos cobradores das contribuições; por alguma
razão, no hino cristão Dies Irae, se apresenta a vinda do Juízo outro caminho. Só o calor constante da atenção pessoal e a leal-
Final em termos parecidos com a do aparecimento do cobrador dade para com cada indivíduo podem vencer as vastas distâncias
oficial romano. do Império. Os grandes homens tornam-se alvo de fervoroso
Uma sociedade sobrecarregada não é, necessariamente, uma apreço. Em Roma, por exemplo, os residentes locais conquistam
sociedade humilhada ou rígida. Como vimos, a sociedade do a influência que haviam perdido desde a República. São eles
começo do século iv mostra-se acessível às correntes vindas de agora, e não o imperador, que cuidam da cidade. Durante o
baixo (relativamente aos homens, à habilidade profissional, às Baixo Império, nas pinturas dos aristocratas que dão jogos ao
ideias), que o mundo mais estável de 200 repudiara como «infe- público, como governadores, mesmo à custa da sua fortuna pes-
riores», «bárbaras» ou «provincianas». soal, começa a aparecer a multidão, admirável e densa.
Os novos aristocratas eram, frequentemente, famílias com As correntes de influência da derradeira sociedade romana
fortes raízes locais. Durante o século iv, a maior parte dos «sena- modificam-se de alto a baixo. O novo escol é extraordinariamente
dores» não conhece Roma. São, no entanto, os dirigentes da livre. A esplêndida arte do tempo, por exemplo, é obra de artistas
sua sociedade. As carreiras oficiais não os desenraízam. Esco- e mecenas que se sentem completamente libertados dos precon-
lhem-nos para governar as províncias onde são importantes pro- ceitos das gerações anteriores. A produção da típica arte clássica
prietários. As cidades que visitam e as moradias que ocupam (em sarcófagos, ilustrações de livros, cerâmica) havia sofrido uma
são as mesmas da vida de simples particulares. Este sistema pausa no fim do século In. Os homens, agora, desenham o que
poderia ter produzido homens de horizontes mais limitados (ape- têm à mão. Os artistas locais sentem-se livres para levar às casas
sar de antecipado, havia muito, na história social do Império), dos grandes as novas e estranhas tradições outrora correntes nas
mas permitiu que a influência do governo alcançasse a verdadeira suas províncias. O vigor expressivo dos mosaicos e estátuas do
base da sociedade provincial. Os impostos eram pagos e os recru- século iv mostra o que a última cultura romana deve à salutar
tas não faltavam no exército, porque os rendeiros dos grandes deslocação e consequente robustecimento das raízes locais.
proprietários faziam o que eles lhes ordenavam. Eram eles que A sociedade do século rv apresenta um movimento duplo.
representavam o homem médio nos tribunais. Os grandes senho- No topo, devido à riqueza, a altura da pirâmide social aumenta,
res da localidade sentavam-se quase livremente ao lado dos juízes, o que torna mais claramente visível a diferença entre o romano
tratando dos negócios da comunidade. Só eles estavam entre as inferior e a sociedade clássica — diferente qualidade de vida nas
classes inferiores e os temidos cobradores. As petições impor- cidades. O miraculoso vigor da vida urbana, durante o século
tantes dos camponeses directamente apresentadas ao tribunal reflecte um preciso — e transitório — estádio de desenvolvimento
imperial, nos séculos ir e In, desaparecem; no fim do Império, da classe superior da sociedade. Nesta altura, um grupo de
todos os pedidos de protecção e queixas de agravos passam homens ricos, mais ou menos de igual condição, bem conhecidos
através de um homem importante — o patronus, o boss (le patron, uns dos outros, rivalizam em prestígio, gastando com as suas
em francês)—, que goza de influência na corte. A ideia medieval cidades de origem somas importantes em construções, estátuas,
do «santo patrono», o protector dos seus servos junto da corte e num dispendioso e colossal bricabraque. Por alturas do século iv
celestial, é uma projecção para o alto deste factor fundamental trocam o fórum e as praças públicas pelos subúrbios e vizinhanças
da vida romana. campestres, onde as suas habitações — palácios e villas — se
Os laços verticais não eram invariavelmente opressivos. Pou- enchem de magníficas tapeçarias orientais e pavimentos de mosai-
40 cos homens desta época pensam que a sociedade pode seguir cos. Os palácios de Óstia, por exemplo, são maravilhosos. Arcadas 41
31, 32. Nesta página: che-
gada do imperador, a cavalo,
precedido de uma vitória dan-
çante e protegido pelo XP
cristão. Esta salva estilizada,
de prata, presente imperial,
figurando Constâncio II, mos-
tra que o imperador está sem-
pre disposto a socorrer os seus
súbditos. Na página ao lado:
na corte do Baixo Império
Romano, as imagens figuram
no cortinado que está atrás do
governador, e a multidão saú-
da-as quando apresenta as
suas reclamações. Julgamento
de Cristo do Evangeliário Ros-
sano, século

protegidas por cortinados, paredes revestidas de mármores colo- o recuo do celta na Gália e na Espanha não deve coisa alguma
ridos, mosaicos vistosos, criam uma atmosfera de opulenta inti- ao Império Romano clássico; espalhou-se devido à influência
midade. Empregam-se canalizações, exigidas pelo novo luxo das contínua do latim falado pelos proprietários, os cobradores e os
casas de banho particulares. É um mundo mais íntimo, menos bispos dos séculos iv e v.
ávido de publicidade. Em certos palácios cultiva-se a amizade, Muitas províncias colaboram inteiramente com o Império
aprecia-se a ciência, e o desenvolvimento do talento e dos senti- Romano, pela primeira vez, depois do século HL As províncias
mentos religiosos entre as mulheres importa mais do que as do Danúbio, que fornecem soldados e imperadores durante a
actividades caseiras da época anterior. época da restauração, participam com gosto na vida romana,
Por outro lado, a intensidade da vida local faz com que certos e dão fanáticos tradicionalistas, administradores astutos, bispos
aspectos da civilização romana se espalhem mais largamente do ousados e corajosos.
que até então sucedera. De Bordéus a Antioquia, as aristocracias Mesmo o mundo bárbaro é afectado pelo desenvolvimento.
participam igualmente no governo do Império. Os mosaicos de Desaparece o glacis económico e cultural entre o mundo medi-
Rochester e Dorset mostram um estilo de vida compartilhado terrânico e o da fronteira militar do Império. Ao longo do Reno
pelos senhores rurais de Antioquia e da Palestina. Mais,em baixo, e do Danúbio ricas vilas e residências imperiais cosmopolitas
os humildes provincianos também se consideram verdadeiros tentam os países menos desenvolvidos da Europa Central. Em
42 «romanos». O desenvolvimento do latim «vulgar» e, portanto, alguns lugares, as fronteiras do Império Romano são estabilizadas 43
graças ao desaparecimento deste glacis. O romano médio sente período da Antiguidade. Os provinciais das regiões orientais do
mais fortemente do que antes que está s6 e unido contra um Império são «romanos» entusiastas. Chamam-se a si mesmos
mundo externo ameaçador. Dentro do Império, todo o homem Rhomaioi, durante os seguintes mil anos; para o Levante medieval
se pode considerar romanus, e o próprio Império se chama agora bizantino, o Império continua sempre a ser conhecido por Rum,
Romania. Junto do Reno médio, o alastramento da civilização «Roma», e os cristãos por «Romanos», Rumi. Os provinciais mani-
provincial na direcção da fronteira dá origem a uma perigosa festam esta lealdade, não através do frágil protocolo das institui-
simbiose romano-bárbara. Os Alamanos, que ameaçam a Gália ções senatoriais ou cívicas, mas directamente — caindo de joelhos
do lado da Floresta Negra, são já, de certa maneira, uma sociedade ante as estátuas dos imperadores, representados nas suas poses
sub-romana; os seus guerreiros vivem em villas de estilo romano majestáticas e de olhos prescrutadores, como os únicos homens cujo
e usam os mesmos pesados cinturões e complicados broches dos «cuidado constante» se estendia a todos os habitantes da Romania.
oficiais romanos que os vigiam, de Colónia, Mainz e Estrasburgo. Uma diferença vital entre o Império Oriental c o Império
A civilização romana do século iv torna-se mais liberal do Ocidental encontra-se na lealdade. No Oriente há mais colabora-
que antes. No Oriente, as províncias que haviam continuado dores do Império, e colaboradores mais prósperos, do que no
silenciosas desde -o começo do período helenístico revelam-se, Ocidente. Devido a isto, o entusiasmo pelo imperador ancora-se
repentinamente, viveiros de talentos. A Capadócia, proverbialmente mais profundamente no Império do Oriente e este torna-se mais
atrasada, produz numerosos bispos altamente inteligentes — os popular. -
mais célebres são os padres capadócios, Basílio de Cesareia Mesmo depois das conquistas da República Romana, grandes
(c. 330-379); Gregório de Nissa (c. 331-396) e Gregório de áreas do Ocidente continuam essencialmente agrícolas e pouco
Nazianzo (329-389), que enchem as escolas clássicas de Antioquia desenvolvidas. Uma economia tão primitiva não podia deixar de
de dedicados jovens. O Egipto, que fora deliberadamente des- ter repercussões complexas, num século fiscal sem precedentes.
conhecido pelo Império Romano, desperta rapidamente; de uma Por alturas do século v, a riqueza do Ocidente cai nas mãos de
só vez, e ao mesmo tempo, os camponeses do Alto Egipto criam algumas grandes famílias; uma oligarquia de senadores impõe-se
uma nova cultura monástica completa, e as suas cidades exportam
uma sucessão de poetas de língua grega.
33. Antioquia no século tv, uma cidade romana tardia. Pormenor de um mosaico.
A característica mais saliente deste alastramento da influência
romana é o facto de o próprio Império vir a significar uma coisa
diferente para os novos romani. O velho coração da lealdade
havia sempre sido considerado ou demasiadamente abstracto
ou distante de mais. A não ser para um restrito e conhecido
círculo, a nostalgia do Senado pouco significava; fora do mundo
latino não havia veneração pela cidade de Roma. Os imperadores
latinos, como Diocleciano e os seus colegas, mostram que é
perfeitamente possível ser-se romanas fanático e, no entanto, visi-
tar Roma apenas uma vez na vida. Para o oriente helénico, o
Império é o imperador. L'état c'est moi, é a ideia que está atrás
44 da espontânea elevação da pessoa do imperador, durante o último
34, 35. A nova expressão artís-
tica. Os artistas locais e os seus
protectores abandonam os câno-
nes clássicos. Nesta página : apro-
ximação abstracta da figura hu-
mana; mosaico de um túmulo
de Tabarka, Tunísia, século tv.
Na página ao lado: elementos
fantasiosos (Orfeu e animais)
misturados aos temas da mito-
logia clássica; pavimento da
Palestina, século v.
entre o homem médio e o governo imperial, em cada província. lago da Galileia e do Negev um jardim de moradias decoradas
No Oriente, a importância do comércio e a proliferação de peque- com pavimentos de mosaicos; os camponeses do Egipto vêem
nas mas prósperas cidades através da zona interior do Mediterrâ- uma manifestação de independência e liberdade nos acampa-
neo dão origem a uma sociedade mais equilibrada e igualitária. mentos monásticos da Tebaida. A diferença de vida entre a
Os proprietários locais de uma cidade grega podem ser muito Europa Ocidental e o Oriente mediterrânico, que é o legado ime-
ricos e conservadores, mas, enquanto a Gália e a Itália são absor- diatamente mais importante do Mundo Antigo, tem por fundo
vidas por meia dúzia de grandes clãs, dez famílias, pelo menos, estes contrastes humildes e concretos.
rivalizam de influência só à volta de Antioquia. Os lucros de Duas cidades dos séculos tv e v foram recentemente esca-
um magnate citadino grego limitam-se à sua localidade, e a própria vadas — Óstia (junto de Roma) e Éfeso (Efes, Turquia). Ambas
cidade continua a ser o objecto das suas energias. O conceito surpreenderam os arqueólogos devido aos vestígios arquitectó-
helénico de euergeia, de rivalidade de grandes casas no bem, em nicos do velho mundo, às lembranças da sua vida cívica. Os
prol das respectivas comunidades, era extraordinàriamente notá- mosaicos de Óstia apontam o caminho da arte medieval, embora
vel. Em meados do século v, um bispo, quando acusado de fortemente ligados, quanto à cor, às tradições do século t de
heresia, defende-se instintivamente em termos desta tradição : Pompeia e Herculano. Como muitos fenómenos do final do Impé-
«Que poderão assacar-lhe os notáveis locais? Não embelezou rio Romano, só a falta de perspectiva mostra a sua carência de
ele a cidade de aquedutos e pórticos públicos?» A classe média, relação com o mundo clássico. Os estudiosos da Antiguidade
próspera a equilibrada, nunca era humilhada nem oprimida pelos concentraram-se de tal maneira no estudo do século t do Império
proprietários poderosos; formava um forte reservatório de cons- Romano que quase esqueceram a longa e calma transformação
cientes e correctos funcionários civis, postos ao dispor da admi- da arte clássica e as formas da vida pública durante os dois séculos
nistração, em Constantinopla; é ela que, através do último período que se estendem de Trajano a Constantino.
romano, enriquece as suas cidades com estátuas, inscrições e São de notar duas características até então desconhecidas.
igrejas, cuja riqueza só agora começa a ser descoberta pelos Belas estátuas encontradas em ambas as cidades revelam, nos
arqueólogos na Turquia. rostos concentrados e olhos fundos, novas preocupações interiores,
Posteriormente, os camponeses da Ásia Menor, Síria e Egipto de ordem sobrenatural. Ambas possuem belas basílicas cristãs.
tornam-se 'muito diferentes dos desprezados servos das províncias Estas duas características sugerem que, embora os homens do
do Ocidente. Podiam obter bons preços pelos seus cereais, nas século tv, a idade da restauração, se hajam adaptado a uma
cidades, e liquidar as suas rendas e impostos. Podiam, nestas nova ordem social e politica, importantes modificações religiosas
condições, satisfazer os pedidos do governo, sem serem arrastados e culturais os separam do mundo clássico de 200. Para compreen-
a servir nas herdades dos grandes senhores rurais. Em meados dermos estas modificações temos de retroceder ao tempo de
do século v, a diferença de atmosfera entre as duas partes do Impé- Marco Aurélio; importa ter em vista diferentes aspectos e expe-
rio é, em grande parte, devida à diferente situação dos humildes. riências; devemos, mesmo, considerar diversas áreas da sociedade
Enquanto a Gália é devassada pelas revoltas dos camponeses romana, estudar as transformações dos dirigentes intelectuais e
provocadas pelos impostos e rendas excessivas, os camponeses religiosos dos séculos tt tu e tv, as esperanças e preocupações
,

da Síria do Norte podem construir casas de pedra nas aldeias, da população média das grandes cidades mediterrânicas.
que agora poucos nómadas abrigam; os proprietários da Palestina
48 mantêm um sistema hidráulico que torna as proximidades do

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