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UM PONTO DE VISTA FUNCIONAL

SOBRE A PREDICAÇÃO

Ataliba Teixeira de CASTILHO 1

• RESUMO: O texto relata o desenvolvimento do Projeto de Gramática do Português Falado, discute a


predicação no quadro da gramática funcional e apresenta alguns resultados da análise de advérbios e
adjetivos predicativos no português culto falado no Brasil, com base nos materiais do Projeto NURC.

• PALAVRAS-CHAVE: Língua falada; gramática funcional; predicação; advérbios; adjetivos.

Preliminares

A partir de 1988, um grupo de pesquisadores filiados a doze universidades


brasileiras impôs-se a tareia de preparar coletivamente uma gramática de referência
do português falado culto do Brasil, com base nos materiais do Projeto de Estudo da
Norma Urbana Lingüística Culta (Projeto NURC/BR). Assim surgiu o Projeto de
Gramática do Português Falado (PGPF).
Como nenhuma teoria gramatical pode dar conta da totalidade dos fenômenos
que compõem uma gramática de uso, optou-se pela convivência de teorias distintas,
alternando debates descritivos e teóricos, para o acompanhamento dos resultados.
Na prática, acompanham uma orientação gerativista os grupos de trabalho
encarregados da fonética e fonologia, da morfologia derivacional e sintaxe II (relações
sentenciais), e uma orientação funcionalista dos grupos de trabalho de morfologia
flexionai, de sintaxe I (classes de palavras) e de organização textual interativa.
Cada Grupo de Trabalho (GT) estabeleceu uma agenda de pesquisas para o pe-
ríodo de 1989 a 1995. Os textos produzidos no interior dos grupos são submetidos a
um debate plenário em seminários anuais, de que se realizaram sete até o presente.
Refeitos os textos, eles são publicados em série própria, de que saíram três volumes,
estando o quarto no prelo e o quinto em preparação (Castilho, 1990; Ilari, 1992; Castilho,
1993b). Em 1996, tais estudos serão consolidados na gramática propriamente dita.

1. Professor Associado de Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo. Pesquisador bolsista do CNPq.
Coordenador Geral do Projeto de Gramática do Português Falado.

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O GT de sintaxe I está constituído por Maria Helena Moura Neves, atual
coordenadora, Carlos Franchi, Rodolfo Ilari, Esmeralda V. Negrão, Sírio Possenti,
Erotilde Pezatti, Roberto Camacho, Célia Maria Moraes de Castilho e o autor deste
artigo. Alguns bolsistas de graduação e alunos de pós-graduação atuam como
pesquisadores auxiliares. Dou aqui algumas indicações sobre o tipo de gramática
funcional que vem sendo desenvolvido por esse GT e menciono alguns processos
semântico-sintáticos estudados nesse e em outros ambientes. Devo assinalar, logo de
entrada, que não há entre os pesquisadores mencionados unanimidade de pontos de
vista sobre o que segue. O presente artigo aglutina, portanto, alguns pontos de vista
pessoais e convicções compartilhadas entre os pesquisadores.

O ponto de vista funcionalista

Uma observação preliminar diz respeito à variedade de acepções dos termos


/unção e funcionalista na teoria gramatical.
A gramática funcional a que me refiro postula a língua como uma atividade
social, e nisto se afasta da sintaxe gerativa, que interpreta a língua como uma atividade
mental, e da Sintaxe Estrutural, que a interpreta como um sistema (Castilho, em
andamento). Como bem reconheceu Halliday (1974, p. 98 ss), a gramática funcional
concentra a atenção nos usuários e nos usos da língua, mediante uma valorização do
receptor, do emissor e da variação lingüística no quadro da reflexão gramatical.
Ao contextualizar os fatos gramaticais na situação de fala que os gerou, a
gramática funcional toma como ponto de partida as significações das expressões
lingüísticas, indagando como elas se codificam gramaticalmente.
Um programa de pesquisas que busque investigar os diversos processos de
gramaticalização deve admitir, com Franchi (1976,1991), que a língua se compõe de
três sistemas: o sistema semântico, o sistema sintático e o sistema discursivo, todos
eles articulados pelo léxico.
De acordo com esse autor, o sistema semântico, conceituai ou nocional,
compreende dois subsistemas: o predicativo-descritivo e o dêitico-referencial. O
sistema sintático compreende os subsistemas categorial, argumentai, o de relações
gramaticais, o de processos e transformações, o de casos sintáticos etc. O sistema
discursivo abriga as negociações intersubjetivas que fazem da língua um contrato
social. Franchi insiste em que não há relações de determinação entre esses sistemas,
que estão apenas associados, devendo ser concebidos de tal forma que se preserve a
existência autônoma de cada um.
A gramática funcional toma os sistemas semântico e discursivo como inputs e
o sistema sintático como output. Por outras palavras, postula-se que a língua exista
não porque disponha de uma estrutura, mas sim que sua estrutura existe em vista da
necessidade de cumprir certas funções. Ora, a correlação não biunívoca entre funções

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e estruturas explica a natural heterogeneidade das línguas. Como decorrência disso,
um estudo funcionalmente orientado despreza a busca imediata de generalizações
que se encontram na comparação das línguas entre si, privilegiando, num primeiro
momento, o estudo empírico de uma dada língua.
A postulação funcionalista mais forte é a da gramática como um processamento
das categorias discursivas e semânticas, de que resultam as estruturas sintáticas. A
gramática, portanto, seria uma cristalização das formas discursivas mais produtivas,
processo esse conhecido como gramaticalização.
Há certo risco em estabelecer a seqüencialidade discurso -»semântica sintaxe
para explicar o funcionamento das línguas naturais, pois é mais provável que esses
sistemas operem numa forma simultânea, como verdadeiros módulos da mente
humana. As atuais tendências da gramática funcional parecem distinguir-se ou pela
admissão tácita da seqüencialidade, ou pela admissão do funcionamento simultâneo
desses componentes.
Assim, o funcionalismo radical, representado por Garcia (1979) e Givón (1979),
enfatiza as pressões icônicas do discurso sobre a gramática, negando existência à
sintaxe. O funcionalismo moderado defende a confluência de fatores estruturais e
discursivos sobre a sintaxe. Integram esta vertente - embora não haja uniformidade
de pontos de vista entre eles - Givón (1983,1984), Dubois (1980,1985,1987), Hopper
& Thompson (1980, 1984), Dik (1981, 1989) e Halliday (1985).
Dubois (1985), participante desta última vertente, considera adequado identificar
nas línguas naturais um campo de permanentes "motivações em competição".
Segundo esse autor, identificam-se aí, de um lado, as necessidades discursivas dos
falantes no quadro de um "funcionalismo transparente" e, de outro, as forças internas
de um "estruturalismo autônomo".
Em suma, a gramática funcional se constitui de três componentes: o discursivo,
o semântico e o sintático. Passo a enumerar sumariamente os tópicos ora em debate
em cada um desses componentes, furtando-me a uma resenha minuciosa.

1. O componente discursivo

Como se sabe, não existe ainda uma teoria integrada do discurso. De todo modo,
tem-se mostrado produtiva a análise dos seguintes processos discursivos, por apre-
sentarem correlatos na sintaxe:
a) a teoria dos atos de fala, em sua relação com a sentença. Dik (1989, p. 50)
correlaciona a "entidade" ato de fala com a unidade estrutural cláusula, que distingue
da proposição, da predicação, do termo e do predicado,
b) o fluxo da informação e a organização tópica do texto. Jubran et al. (1992)
postularam que os "tópicos discursivos" são de natureza fundamentalmente intera-
cional, e não podem ser confundidos com os turnos conversacionais. Um tópico
discursivo tem por propriedade primeira a "centração", que

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abrange os traços de a) concernência: relação de interdependência semântica entre os enunciados
- implicativa, associativa, exemplificativa ou de outra ordem - pela qual se dá sua integração no
referido conjunto de referentes explícitos ou inferíveis; b) relevância: proeminência desse conjunto,
decorrente da posição focal assumida por seus elementos; c) pontualização: localização desse
conjunto, tido como focal, em determinado momento da mensagem (op. cit., p. 361-2).

Diversas marcas formais delimitam os tópicos discursivos. Esses autores mos-


tram que os tópicos discursivos exibem uma estrutura hierárquica;
c) definitude e indefirútude no discurso. Dubois (1980) e Lavandera (1984)
mostraram que a estratégia de representação das personagens numa narrativa se
reflete na seleção do material lingüístico. Esses conceitos são dinâmicos e se
constroem no discurso, na dependência da fixação maior ou menor dos falantes em
determinados participantes da ação. Assim, definido é o tema para o qual se "abriu
um arquivo" no aparato cognitivo dos interlocutores, dada sua importância na
interação. Os temas indefinidos não implicam essa fixação. Os diferentes processos
de composição do sintagma nominal e de seleção dos pronomes estão correlacionados
com essas estratégias discursivas.
d) fundo e figura no discurso. Autores que se concentraram nas condições de
produção do texto mostraram que duas situações básicas as motivam: a necessidade
de compartilhar experiências, impressões e opiniões e o desejo de informar, de narrar
algo supostamente desconhecido pelo interlocutor (Benveniste, 1966; Weinrich, 1967).
Essas situações foram denominadas, respectivamente, "discurso" (Benveniste), ou
"comentário" (Weinrich), e "história" (Benveniste) ou "narração" (Weinrich), tendo-se
repertoriado as marcas formais que lhes correspondem, sobretudo a seleção dos
tempos verbais.

2. O componente semântico

Deslocar-se da semântica para a sintaxe não é um caminho fácil, seja pelos riscos
de se estabelecerem aí relações de determinação, seja por não dispormos de teorias
semânticas razoavelmente estáveis.
Leech (1974), Lyons (1977) e Kates (1980) parecem identificar três campos de
atuação dessa disciplina: a semântica léxica, a semântica sentenciai e a semântica-
pragmática. Em Castilho (1993) propus que os termos sentido, significado e significa-
ção fossem usados para representar as noções criadas no ambiente lexical, gramatical
e interacional, respectivamente.
Entre outros, os seguintes processos semânticos têm correlatos no enunciado:
(1) a referência e a pressuposição, (2) a predicação, (3) a quantificação, (4) a dêixis e
(5) a foricidade.
Na segunda parte deste artigo, tratarei da predicação, nos quadros das atividades
desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho de sintaxe I do PGPF.

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3. O componente sintático

O componente sintático é visto numa gramática funcional em suas relações com


os processos pragmáticos e semânticos.
Os seguintes fenômenos sintáticos têm sido considerados:
a) a identificação das classes. Lakoff (1982) e Givón (1986) dissertaram sobre as
duas fontes da categorização lingüística: a categorização clássica, elaborada por
Aristóteles e retomada pela semântica de Frege e pela gramática gerativa, e a
categorização natural, elaborada por Wittgenstein e retomada a partir dos anos 80
pela psicologia, pela antropologia e pela lingüística cognitiva. Segundo a teoria
clássica, as classes gramaticais são discretas e dotadas de propriedades inerentes.
Segundo a teoria natural, as classes têm limites imprecisos {fuzzy hedges) e os itens
que elas comportam possuem diferentes graus de integração, sendo que muitas
relações podem ser reconhecidas entre os membros de categorias diferentes. Lakoff
(1975) propôs o termo hedges para designar determinadas classes ou expressões
"whose job is to make thinks fuzzier orless fuzzy" (p. 234), e Givón (1986) propôs uma
solução híbrida entre as duas teorias, a que denominou teoria do protótipo. Essa teoria
postula que alguns membros de uma categoria compartilham todos os traços ou
propriedades dessa categoria - e seriam, portanto, seus protótipos - , outros, diferen-
temente, compartilham apenas alguns traços, afastando-se da prototipicidade. Estas
considerações se mostraram particularmente importantes na descrição dos advérbios
delimitadores (Moraes de Castilho, 1991), também conhecidos como aproximadores
(Quirketal., 1985; Castilho, 1993a);
b) a organização funcional da sentença e a articulação tema-rema. Ilari (1986)
descreve aspectos da sentença na língua portuguesa baseado nessa perspectiva.
Castilho (1989) argumenta que a ATR ultrapassa o domínio da sentença, alcançando
poder explanatório sobre as unidades textuais;
c) a ordem do ponto de vista funcional: têm sido oferecidas explicações
funcionalistas sobre a disposição dos argumentos sentenciais e as pressões discursi-
vas, controladas, evidentemente, por aspectos de natureza estrutural. Questões
relativas às construções de tópico, ao sujeito de verbos intransitivos existenciais e
apresentacionais, entre outros temas, têm sido examinadas de acordo com essa ótica
(Braga, 1987; Pontes, 1987; Pezatti, 1992);
d) a concordância nominal e verbal em sua correlação com a saliência morfoló-
gica são temas versados em Lemle & Naro (1977), Rodrigues (op. cit.), Scherre (1988).
Apesar das enormes dificuldades envolvidas pela abordagem funcionalista,
deve-se reconhecer que algumas descobertas permitem visualizá-la como uma
perspectiva teórica que tem levantado questões intrigantes. Impossível deixar de
reconhecer, também, que a gramática funcional é um programa em rápido desenvol-
vimento. É bem verdade que em dado momento se cometeram alguns exageros como,
por exemplo, decretar a morte da sintaxe, vitimada pelo discurso. Um sociolingüista
como Labov, cuja metodologia de regras variáveis suscitou uma grande quantidade

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de estudos funcionalistas, sentiu-se no dever de alertar para os riscos de um
enviesamento antiformalista. Ele mostra que há setores nas estruturas lingüísticas
irredutíveis a aproximações com o discurso (Labov, 1987). No Brasil, têm debatido
esse assunto Votre & Naro (1989), Nascimento (1990), Dillinger (1991) e Naro & Votre
(1992). Foge ao escopo deste artigo uma resenha minuciosa dos argumentos aí
expendidos.

A predicação

Para discutir um ponto de vista funcionalista sobre a predicação, gostaria de


tomar como ponto de partida uma intuição fundamental devida a Apolônio Díscolo,
gramático alexandrino do séc. I d.C. Apolônio Díscolo integrava os estudos gramati-
cais em três pontos: o som e a sílaba, a classificação das partes da oração e a própria
oração (Bécares Botas, 1987, p. 32). Ele entendia que a oração se realiza num nível
duplo, o semântico (a oração tem uma significação auto-suficiente) e o funcional ("os
casos oblíquos se conectam com os retos por meio de um verbo inserido entre ambos,
a ação do qual passa do nominativo - reto - para o oblíquo") (op. cit., 1137).
É precisamente sua concepção sobre os casos que tem importância para minha
argumentação aqui. Para Apolônio Díscolo, os casos não designam formas, e sim
relações sintáticas. Assim, o caso reto é o que está "ordenado", ou está em "ordem
coincidente" com a pessoa verbal (op. cit., IV 46), codificado na gramática pela
concordância do verbo com seu sujeito, ao passo que o caso oblíquo é o "desviado",
o não coincidente com a pessoa do verbo (op. cit., IV18); essa relação não é marcada
pela concordância em línguas indo-européias como o grego e o português.
Ora, esta percepção permite identificar duas relações sintáticas de base: a
predicação, que é a relação marcada pela concordância, e a complementação, que é
a relação não marcada pela concordância. Tanto a predicação quanto a complemen-
tação implicam a atribuição de casos: nominativo à esquerda do verbo, no caso da
predicação; acusativo, dativo ou ablativo à sua direita, no caso da complementação.
Tais casos podem ter uma representação morfológica, como no grego clássico, ou
uma representação abstrata, no caso do português.
A predicação, portanto, pode ser definida como a relação entre um predicador
e seu sujeito, ao passo que a complementação é a relação entre o predicador e seus
argumentos internos.) Desnecessário ressaltar que as gramáticas formais negam
validade a esta distinção, unificando na predicação os dois processos. Razões
semânticas que exporei adiante sustentam, entretanto, tal distinção, válida, segundo
penso, nos quadros do raciocínio funcionalista.
Retomando agora a concepção da língua como um conjunto de sistemas inter-
ligados pelo léxico, vou examinar a predicação mais de perto, praticando o conhecido
paradoxo da ciência de separar o que vem reunido. Essa tripartição de domínios

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permite lançar alguma luz sobre o complexo fenômeno da predicação. Entretanto, não
apresentarei aqui um relato exaustivo do "estado da arte" sobre ela.

1. Predicação e semântica

Segundo a lógica aristotélica, a designação é um processo de predicação e,


assim, cada item lexical pleno de significado é um predicador. Os nomes predicam,
isto é, designam os seres e as coisas; os adjetivos, os estados; os verbos, as ações e
os eventos; as preposições, as relações, e assim por diante. Aristóteles, naturalmente,
cercou essa afirmação dos devidos cuidados:

os nomes são símbolos das coisas, mas a relação entre o conceito (nóema) e o sinal {semêion) ou
entre a coisa (prâgma) e o nome (ónoma) não é sempre de congruência. Não se recobrem sempre
inteiramente conceito e palavra. O que está no som é símbolo do que está na alma, mas não
necessariamente o conceito que está no som, o significado, é congruente com o conceito que está
na alma, embora só sob as formas de linguagem possam ser apreendidos os conteúdos mentais.
(Moura Neves, 1987: p. 64-5)

A predicação por designação gera o sentido, que decorre da relação entre o


item e seu referente. Este modo de ver as coisas corresponde ao subsistema referencial
do sistema semântico mencionado anteriormente. Ele não será tomado em conta aqui,
pois a predicação será entendida como a incidência de um item sobre outro.
Outra percepção semântica postula que a predicação é um processo gerador de
significados não contidos no sentido dos itens lexicais envolvidos, e depende crucial-
mente da relação entre um item-predicador e um item-sujeito. Aqui estou utilizando
"sentido" como o conteúdo do item lexical (isto é, como o somatório de seus traços
semânticos) e "significado" como a resultante da combinação dos sentidos de dois
itens lexicais relacionados sintaticamente. O predicador, portanto, transfere a seu
sujeito uma propriedade sua, que poderá ser (i) a emissão de um juízo sobre o valor de
verdade da classe-sujeito, (ii) a alteração da extensão dos indivíduos designados pela
classe-sujeito ou (iii) a alteração das propriedades intensionais da classe-sujeito. Estas
são, ademais, outras diferenças entre predicação e complementação, visto que na com-
plementação o sentido do argumento não é modificado pelo sentido do predicador.
Seja o seguinte recorte de enunciado:
(
( (
(1) Realmente, jogador alto ganha fácil a partida no campeonato:
)S[ ]S
Em (1), temos as seguintes relações de predicação:
(i) alto predica o argumento jogador, qualificando-o com o traço de
dimensão;

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(ii) fácil predica o predicador ganha, qualificando-o;
(iii) ganha fácil predica o argumento jogador alto, atribuindo-lhe o traço
de agentividade;
(iv) realmente predica toda a sentença, avaliando-a de modo assevera-
tivo.

Essas quatro predicações resultam da relação entre os predicadores alto, ganha,


ganha fácil e realmente e seus sujeitos jogador, ganha, jogador alto e a sentença,
respectivamente. O exemplo (1) mostra que o predicador pode tomar por sujeito uma
classe referencial, uma classe predicadora ou toda uma sentença. Mas a predicação
pode incidir sobre mais de um sujeito, como veremos a seguir. Em todos esses casos
é patente que a classe-sujeito recebe uma contribuição semântica que não estava
inscrita nas suas propriedades: tanto é certo que os jogadores não são necessaria-
mente altos, não ganham necessariamente as partidas, ganhar partidas não é uma
tarefa necessariamente fácil, nem a sentença acima deve ser necessariamente
asseverada. Pode-se dizer que através da predicação adicionaram-se propriedades
novas sem, contudo, alterar as propriedades preexistentes.
Por outro lado, observando-se as "direções da predicação" representadas pelas
flechas que acompanham o enunciado (1), nota-se que o movimento da direita para
a esquerda é o mais habitual, não se excluindo o movimento da esquerda para a direita,
identificada em (iv).
A gramática tradicional denominou de diferentes maneiras as predicações aí
exemplificadas: (i) é descrita como um caso de qualificação (ou restrição, ou delimi-
tação); (ii), como modificação; (iii), como a predicação propriamente dita; (iv), como
modalização. Uma descrição mais econômica reconheceria em todos esses processos
apenas o da predicação pura e simplesmente, para cujo estudo será necessário
formular um plano de pesquisas.
Mas as hesitações da gramática tradicional, por outro lado, evidenciam que é
uma tarefa árdua teorizar sobre os significados gerados pela relação entre o predicador
e seu sujeito. Nesse particular, as indicações de Weinreich (1972) parecem-me de
grande utilidade. Nas relações entre os signos, ele distingue dois processos básicos:
o de encadeamento {Unking) e o de transferência (nesting). Tal como nos casos
anteriores, apresentarei uma leitura pessoal desse importante texto de Weinreich.
Assim, acompanhando em parte esse autor, direi que o encadeamento e a
transferência representam distintas manifestações da predicação entendida como um
fenômeno semântico. A estas acrescentarei a predicação por cancelamento.
No encadeamento há uma predicação composicional, em que às propriedades
intensionais do item-sujeito são acrescentadas as propriedades que procedem do
predicador. Em (2), houve a adição das propriedades de quantificação aspectualiza-
dora do advérbio normalmente às propriedades de divertir-se aos sábados:

(2) normalmente eles se divertem aos sábados.

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Na transferência há uma predicação não composicional, visto que o significado
resultante não se encontra nos sentidos dos itens relacionados. Assim, em
(3) pôs-se a andar,
o primeiro verbo toma por sujeito o segundo, e a noção de inceptividade revelada pela
paráfrase
(3a) começou a andar
não se encontra no estado de coisas descrito por pôr nem por andar. Dizemos então
que essa predicação gerou um significado novo, transferindo-se o conjunto de um
"lugar" léxico-semântico para outro. Segundo Ilari (1992), a não-composicionalidade
gera as expressões idiomáticas. Assim, comparando romance machadiano com
elefante branco, ele argumenta que no primeiro sintagma há uma relação de intersec-
ção entre as propriedades de romance e as de machadiano, ao passo que, no segundo,
"o sentido que atribuiríamos, no atual estágio da língua, a cada um dos constituintes,
é irrecuperável".

Pode ser que a predicação composicional e a não composicional representem


pólos extremos no eixo da predicação, em que haveria graus intermediários de
modificação do sujeito. Assim, em
(4) a casa está praticamente vendida,
o advérbio praticamente confirma alguns dos traços de vender, apagando outros. Essa
predicação por cancelamento parcial dos' traços ficaria a meio caminho entre a
composicionalidade e a não-composicionalidade.
No pólo da composicionalidade estariam os especificadores, a maior parte dos
adjetivos, advérbios e verbos absolutos e auxiliados. No pólo intermediário do
cancelamento estariam os delimitadores, ou aproximadores. Finalmente, no pólo da
não-composicionalidade estariam alguns verbos auxiliares e as expressões idiomáti-
cas ou formas cristalizadas, constituídas pela associação de classes tais como V + N
(por exemplo, em dar-se conta, ter tempo), N + Adj (como em elefante branco) etc.
É importante reter que a sentença é uma espécie de "sopa predicativa", pois
tanto entre os constituintes do dictum quanto entre este e o modus, desencadeiam-se
diversos processos predicativos.

2. Predicação e sintaxe

No item anterior, procurei dar uma caracterização semântica da predicação.


Indicarei agora os ambientes em que tais processos ocorrem.
2.1 Predicação no espaço sintagmático da sentença, em que podem ser docu-
mentadas predicações por determinação, por quantificação, por delimitação e por
atribuição, no caso do SN, e por modalização, no caso do SV. Detalhando um pouco:

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(1) Os espetificadores tomam por sujeito o núcleo do SN. Com isso, os
artigos, os demonstrativos, os possessivos e os quantificadores seriam entendidos
como predicadores. A esses constituintes devem-se agregar os delimitadores, anali-
sados por Moraes de Castilho (1991).
(2) Os SAdj tomam por sujeito o núcleo do SN.
(3) Os SAdv tomam por sujeito os núcleos do SV, do SN e do próprio SAdv.
Um interesse secundário destas postulações está em identificar no interior dos
sintagmas os mesmos mecanismos gramaticais que se identificam no interior das
sentenças.
2.2 Predicação no espaço funcional da sentença: o V toma por sujeito o SN
argumento externo.
2.3 Predicação da sentença: os chamados "advérbios de sentença" tomam por
sujeito toda a sentença, como em (1) e (2), segundo se pode constatar através das
paráfrases:
(la) É real que S
(2a) É normal que S
Quando o predicador toma por sujeito um item referencial (como em casa
BONITA), temos uma predicação de primeira ordem. Quando o sujeito é outro
predicador (como em casa MUITO bonita), temos uma predicação de segunda ordem.
Finalmente, em (1) e (2) temos uma hiperpredicação. Para uma elaboração dessas
relações, veja Jespersen (1971, cap. VII) e Kato & Castilho (1991).

3. Predicação e discurso

Há situações em que o predicador toma por sujeito não um termo codificado no


enunciado, e sim um dos participantes do discurso. Nesses casos, direi que a
predicação afetou o sistema discursivo da língua.
Sejam os seguintes exemplos:
(5) essa turma seguramente entrará em G3 a não ser que se faça um esforço (EF, POA,
278: 213).
(6) nas feiras hippies as pessoas naturalmente compram bugigangas.
Em (5), se a proposição for tomada como sujeito de seguramente, teremos um
caso de possibilidade epistêmica, causada pela combinação desse Adv com o tempo
futuro do verbo, como se observa pelas paráfrases:
(5a) eu acho que P
(5b) talvez P
(5c) é provável que P.

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Mas se entendermos que seguramente pode simultaneamente tomar por sujeito
a proposição e o locutor, (5) poderá ser interpretada como:
(5d) eu estou seguro que o conteúdo de P não é seguro.
Em (5d), o autor da S assume perante seu interlocutor a asseveração contida no
item seguramente, mantendo incerto o conteúdo proposicional. Houve, portanto, uma
predicação discursiva, paralelamente à predicação do enunciado.
Em (6), nota-se que a predicação desencadeada por naturalmente pode gerar
mais de um significado:
(i) se o interlocutor processa tal S tomando por sujeito do Adv toda a
S, provavelmente ele a parafraseará como
(6a) que as pessoas compram bugigangas nas feiras hippies é natural
e o advérbio estará modalizando asseverativamente a sentença;
(ii) se ele considerar que o predicador adverbial está incidindo sobre o
verbo, provavelmente interpretará esse enunciado como
(6b) é hábito comprar bugigangas nas feiras hippies
e o Adv estará quantificando o verbo;
(iii) finalmente, se o interlocutor estiver passando por uma feira hippie,
e ouvir (6) de seu parceiro de conversação, ele poderá interpretar
que o sujeito do Adv, além dos acima indicados, contidos no
enunciado, pode ser ele próprio, como um participante da enuncia-
ção, identificando-se um efeito perlocutório, parafraseável mais ou
menos assim:
(6c) visto que é verdadeiro que as pessoas compram bugigangas nas feiras hippies, e
isso é até mesmo um hábito, meu interlocutor está achando natural que eu lhe
compre algo.
Nessa interpretação, o Adv estará concorrendo para o desencadeamento de uma
inferência conversacional, vale dizer, de uma significação que, à semelhança de (5d),
não se encontra na "literalidade" de (6).
Em exemplos como (5) e (6) explorou-se a força ilocucionária da predicação
adverbial, caracterizando-se um caso de predicação discursiva, ou pragmática.
As observações feitas neste e no item anterior fornecem um quadro, dentro do
qual se pode descrever a predicação adverbial e adjetivai no português falado.

A predicação adverbial e adjetivai

Casteleiro (1981) e Ilari et al. (1990) estabelecem uma distinção entre adjetivos
e advérbios predicativos e não predicativos, a partir de considerações de ordem
semântica e sintática.

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Partindo daí, apresento neste item um resumo de trabalhos anteriores: Castilho
(1993a), sobre a predicação adverbial, e Castilho & Moraes de Castilho (1993), sobre
a predicação adjetivai.
Vou postular os seguintes processos, para dar conta da atuação dessas classes:
(1) predicação por avaliação da classe-sujeito: advérbios e adjetivos mo-
dalizadores;
(2) predicação por quantificação da classe-sujeito: advérbios e adjetivos
quantificadores;
(3) predicação por qualificação da classe sujeito: advérbios e adjetivos
qualificadores.
Nunca será demais insistir em que as designações acima não remetem a itens
únicos e distintos, e sim a processos semânticos não excludentes, não opositivos, não
negativos. Conforme deve ter ficado claro, um mesmo item pode desencadear mais
de uma significação, gerando outras tantas ambigüidades que tipificam as línguas
naturais como produtos de situações sociais. Assim, determinado valor semântico
destacado na análise representa a significação considerada mais saliente e mais
relevante para a interação em curso.

1. Predicação modalizadora

Os modalizadores predicam a classe-sujeito numa forma subjetiva, verbalizando


uma avaliação pessoal a respeito de seu conteúdo. O significado que resulta dessa
operação realça a intervenção do locutor, razão por que parece adequado caracterizar
os advérbios e os adjetivos modalizadores como "orientados para o falante".
Os dados do Projeto NURC, analisados dessa perspectiva, apontam para a
existência de três subclasses de modalizadores: os epistêmicos, os deônticos e os
pragmáticos.

1.1 Modalizadores epistêmicos

Os modalizadores epistêmicos expressam uma avaliação sobre o teor de verdade


da classe-sujeito. Eles podem ser asseverativos e quase-asseverativos.

1.1.1 Epistêmicos asseverativos

Advérbios e adjetivos em uso epistêmico asseverativo são usados sempre que


o falante considera que o conteúdo da classe-sujeito é verdadeiro, e que, portanto,
suas propriedades intensionais preenchem suas necessidades interlocutivas. O falante

86 Alfa, São Paulo, 38: 75-95,1994


manifesta, em decorrência, um alto grau de adesão ao conteúdo da expressão
predicada. O verbo saber pode representar essa classe:

(7) eu tenho vontade de ir lá (...) porque realmente é um espetáculo bonito (D2 SSA
98: 811).
(8) a causa real da crise política são as elites.
(9) evidentemente a ele caberá tomar a decisão (DID REC 131: 260).
(10) a causa evidente da crise política são as elites.
É bastante extensa a lista de advérbios e adjetivos que podem aparecer em usos
epistêmicos asseverativos: evidente(mente), natural(mente), efetiva(mente), ob-
via(mente), reconhecida(mente), logica(mente), segura(mente), certa(mente) etc.

1.1.2 Epistêmicos quase-asseverativos

Os advérbios e adjetivos epistêmicos quase-asseverativos indicam que o falante


considera o conteúdo da classe modificada quase certo, próximo à verdade, como
uma sorte de hipótese que depende de confirmação. Há uma baixa adesão com
respeito a esse conteúdo, pois o falante manifesta insegurança quanto à adequação
das propriedades intensionais da classe predicada. As expressões eu acho, eu
suponho, é provável que são a contraparte dos advérbios e adjetivos adiante exem-
plificados:
(11) e possivelmente passe essa fase (D , SP, 360: 226)
2

(12) a manta protege o pêlo do cavalo de uma possível machucadura (DID, SP, 18: 756)
(13) provavelmente [a cadeia de supermercados] é superior a qualquer uma do país
(D , REC, 5: 302)
2

(14) a causa provável da crise política são as elites


(15) eventualmente eventualmente as linhas eróticas...e a religiosa se cruzam (EF, SP,
153: 302)

1.2 Modalizadores deônticos

Através dos advérbios e adjetivos deônticos, o falante informa que o conteúdo


da classe-sujeito é considerado necessário. Agora, não é mais o teor de verdade que
está em jogo, destaca-se que há um controle humano sobre os eventos e sobre os
referentes, isto é, ocorre sua modalização intrínseca, nos termos de Quirk et al. (op.
cit.). Exemplos:
(16) não que necessaríamenente ele precise saber que (...) (EF, POA, 278: 690)
(17) temos uma decisão necessária a tomar, no caso de uma crise
(18) toda e qualquer cirurgia...no campo médico...implica obrigatoriamente despesas
(19) o recurso obrigatório para isso é a mobilização

Alfa, São Paulo, 38: 75-95, 1994 87


1.3 Modalizadores pragmáticos

Os modalizadores pragmáticos predicam basicamente os participantes do dis-


curso, deixando o conteúdo proposicional ou o referente do N num discreto segundo
plano. Advérbios e adjetivos que exercem esse papel servem para verbalizar as reações
do locutor, ou do locutor em face de seu interlocutor, diante do conteúdo que se quer
veicular. Eles exemplificam a função emotiva da linguagem, e podem ser representa-
dos pela expressão "eu sinto X (diante de Y) em face do conteúdo Z":
(20) felizmente ainda não começaram aquela fase mais difícil (D , SP, 360: 49)
2

(21) o Brasil vive uma situação infeliz


(22) francamente...sinceramente...ainda não consegui entender onde ele quer chegar
(23) sua reação sincera desconcertou ainda mais
Os adjetivos desta classe, também chamados psicológicos, têm a propriedade
de predicar tanto o conteúdo de N, expresso no enunciado, quanto um dos partici-
pantes do discurso, em geral o próprio falante, numa forma bidirecional, como em:
(24) São Paulo é uma cidade asfixiante (DID, SP, 137: 93)
isto é,
(24a) São Paulo é uma cidade asfixiante
(24b) São Paulo me asfixia
O mesmo se aplica a itens como simpático, atrativo, curioso, espantoso, lamen-
tável, surpreendente.

2. Predicação quantificadora

A predicação quantificadora é um processo semântico-sintático por meio do qual


um operador incide sobre uma classe modificando sua extensão, isto é, sua proprie-
dade de designar um conjunto de indivíduos.
Os dados apontaram para dois tipos de quantificação adverbial ou adjetivai: ou
se adicionam indivíduos a um conjunto ou se lhe subtraem. Resultam daqui dois tipos
de predicadores quantificadores: os aspectualizadores iterativos (operação de adição)
e os delimitadores (operação de subtração).

2.1 Quantificadores aspectualizadores

Em Castilho (1984), argumentei que o aspecto tem no português um forte caráter


composicional, visto que não dispõe de morfologia própria, podendo ser descrito com
base em um modelo semântico em que se distingue no verbo a operação de seu
resultado. O aspecto operativo tem uma face quantitativa (donde o semelfactivo e o
iterativo) e uma face qualitativa (donde o imperfectivo e o perfectivo). O aspecto
resultativo não parece comportar noções secundárias.

88 Alfa, São Paulo, 38: 75-95, 1994


Os advérbios e adjetivos aspectualizadores iterativos predicam mais de um
indivíduo do conjunto, apresentando-o de uma forma ^determinada, não especifica-
da, ou de uma forma determinada, especificada, na dependência do item selecionado
pelo falante. Alguns exemplos:
(25) geralmente essas ocasiões são muito breves...quando elas...se elas existirem (D ,
2

POA, 291: 1159)


(26) porque o que acontece mensalmente ou trimestralmente né... é mais subdividido
(D , RJ, 355: 160)
2

(27) ao rever os seus objetivos muitas vezes o professor se dá conta de que (...) (EF,
POA, 268: 60)
(28) aqui a saída normal / habitual / semanal é nas quintas-feiras
A omissão dos itens grifados acima comprometeria a "pluralização" do estado
de coisas descrito por ser muito breve, acontecer, dar-se conta de e do referente do
deverbal saída.

2.2 Quantificadores delimitadores

Advérbios e adjetivos de quantificação delimitadora restringem a extensão da


classe-sujeito, circunscrevendo-a a um domínio do conhecimento ou a um ponto de
vista. Essa operação implica uma subtração de indivíduos:
(29) economicamente o negócio pode ser muito bom
(30) uma questão econômica dificulta a demarcação das terras dos índios
(31) pessoalmente eu não gosto do nome Shangri-lá (D , SP, 255: 1144)
2

(32) você não pode ter essa avaliação pessoal neste caso (D , SP, 343: 1153)
2

Nos exemplos acima, a extensão de ser bom negócio, questão, não gostar de e
avaliação foi delimitada pelos advérbios e adjetivos grifados, restringindo-se sua
extensão.

3. Predicação qualificadora

Através da predicação qualificadora, interferimos nas propriedades intensionais


da classe-sujeito, seja para confirmá-las, cancelá-las parcialmente ou para adicionar-
lhes traços. Decorrem disso os qualificadores confirmadores, canceladores e adicio-
nadores.

3.1 Qualificadores confirmadores

Advérbios e adjetivos confirmadores selecionam todas as propriedades intensio-


nais da classe modificada, operação de que resulta um efeito de ênfase:

Alfa, São Paulo, 38: 75-95. 1994 89


(33) nós aqui ficamos mais autenticamente brasileiros (D , REC, 5: 1238)
2

(34) tem peças que são autênticas porcarias (DID, SP, 161: 255)
(35) rígorosamente seria provavelmente um negócio desse jeitão aqui...certo? (EF, SP,
338: 191)
(36) se [a firma] não puder fazer isso ela vai à falência...pura e simplesmente (DID, SP,
250: 341)
(37) no Oriente há um símbolo clássico...a serpente que morde a própria cauda (EF,
SP, 124: 418)
(38) eu acho que não me lembro do lugar especial pra plantar (DID, SP, 18: 400)
O processo semântico desencadeado pelos itens grifados é habitualmente
descrito na literatura sob a denominação um tanto vaga de "ênfase", propondo-se por
vezes rótulos tais como "enfatizadores". Acredito que o rótulo "confirmadores"
descreve com maior adequação o choque entre as propriedades intensionais do
predicador e de sua classe-alvo.

3.2 Qualificadores canceladores

Os canceladores operam num sentido inverso ao dos confirmadores. Agora,


propriedades intensionais da classe-sujeito são parcialmente apagadas, ainda que se
preservem outros traços. A operação gera dois efeitos: o de aproximação e o de
aspectualização.

3.2.1 Canceladores aproximadores

Esses predicadores criam um significado aproximativo, instruindo o interlocutor


a não ser estrito na interpretação da expressão predicada:
(39) Coisas nossas passou praticamente em todas as grandes cidades brasileiras (EF,
SP, 153: 530)
(40) mas o exame de mestre era muito mais complicado ( ) o de arrais é uma espécie
de exame de curso infantil (D , SSA, 98: 1084)
2

(41) [a professora] quase sempre ela é procurada pelos alunos (D , SP, 360: 1242)
2

(42) depois de um teórico período de experiência junto à firma de seu pai, o Toninho
foi nomeado vice-diretor da empresa
(43) esse presidente exibe uma relativa disposição para com os descamisados

3.2.2 Canceladores aspectualizadores

Nestes casos, a qualidade atribuída à classe-sujeito implica o apagamento de


traços altamente relevantes da classe-alvo. O caso mais patente é o dos aspectuali-

90 Alfa, São Paulo, 38: 75-95,1994


zadores, que chegam a alterar a Aktionsait do verbo e do N deverbal, transpondo-os
de perfectivos para imperfectivos:
(44) [a morte num avião é rápida] ...eu não gosto de morrer aos pedacinhos... aos
poucos (D , SSA, 98: 1569)
2

(45) a Bolsa de Valores sofreu uma queda lenta na última semana


(46) aqueles assuntos que:: não provocam em mim um interesse momentâneo muito
grande (D , SP, 255: 1103)
2

Em (44), a telicidade do \>erbo monei é transformada em atelicidade pelos


adverbiais aos pedacinhos, aos poucos. Em (45), o mesmo pode dizer-se de queda,
que recebe de lenta um traço de imperfectividade. Finalmente, em (46), o sentido
permansivo de interesse torna-se perfectivo graças à predicação de momentâneo.

3.3 Qualificadores adicionadores

Há advérbios e adjetivos que agregam propriedades intensionais às classes-su-


jeito. A adição de uma qualidade é o tipo de predicação mais produtivo, e por isso
mesmo advérbios e adjetivos são muitas vezes denominados "classes qualificadoras",
o que implica hipertrofiar uma de suas atuações. Os dados apontam como mais
freqüente a adição dos traços de intensidade ou grau, e de dimensão.

3.3.1 Adicionadores graduadores

Os qualificadores adicionadores graduadores são habitualmente denominados


"intensificadores", rótulo que tem o defeito de pressupor apenas uma "graduação para
mais". Essa propriedade é definitória, no caso dos adjetivos, permitindo uma das raras
distinções entre N e Adj: enquanto modificações do N remetem a diferenças de
dimensão, as modificações do Adj remetem a diferenças de intensidade:

(47) falou muito/pouco


(48) depois o que eu li de Gabriel Garcia Marquez achei extremamente fraco (D , REC,
2

5: 534)
(49) [isso é] um negócio altamente boêmio...ouviu? (D , SSA, 98: 1346)
2

Outros advérbios graduadores: tremendamente, absolutamente, extraordinaria-


mente, incomparavelmente, infinitamente, imensamente, profundamente.

(50) tem uma diferença vamos dizer grande (DID, SP, 18: 456)
(51) os musicais fazem um sucesso tremendo (DID, SP, 161: 503)
(52) e todos os carros da cidade pequena podem fazer uma fumaceira desgraçada que
vão poluir a cidade (D , SP, 343: 314)
2

Alfa, São Paulo. 38: 75-95, 1994 91


3.3.2 Adicionadores dimensionadores

Parece que apenas os adjetivos podem agregar ao referente do N sobre que se


aplicam os traços de dimensão, medida, tamanho:
(53) a casa da fazenda...ela era uma casa antiga...tipo colonial brasileiro...janelas
largas (DID, SP, 18: 10)
(54) e as moças...usavam vestidos mais ou menos longos...para os bailes (D , SP, 396:
2

68)
(55) ah cabelo a gente tinha cabelo comprido...enrolava ( ) que a cabeça ficava
parecendo...nem sei...um BALde (D , SP, 396: 1932)
2

Conclusões

Este trabalho mostra que há uma harmonia categorial entre advérbios e adjetivos,
quando examinamos seu papel predicador. A língua representa em sua estrutura os
mesmos processos semânticos através de formas estruturalmente diversas.
Os três tipos de predicação adverbial e adjetivai servem na interação a propósitos
diferentes. Os modalizadores são "orientados para o falante", visto que verbalizam a
atitude deste em relação ao conteúdo da classe modificada. Os quantificadores e os
qualificadores são "orientados para o referente", visto que especificam a extensão e
a intensão da classe modificada.
O sujeito desses predicadores pode estar no enunciado ou na enunciação; neste
caso, dei-lhes a designação algo genérica de predicadores pragmáticos.
Para retratar o tipo de contribuição semântica trazida pela predicação, acolhi os
dois processos propostos por Weinreich (1972), aos quais agreguei um terceiro. Com
isso, o quadro ficou assim organizado:
(i) predicação por encadeamento ou adição: o predicador cede um traço à
classe-sujeito. A maior parte dos advérbios e adjetivos predicativos operam nesta
forma: os modalizadores epistêmicos / deônticos / pragmáticos, os quantificadores
aspectualizadores, os qualificadores confirmadores / adicionadores, neste caso, com
exceção dos aspectualizadores;
(ii) predicação por transferência: da relação entre o predicador e a classe-sujeito
surge um significado inteiramente novo, o que ocorre maiormente nas expressões
idiomáticas. O termo "transferência", que deveria traduzir o inglês nesting, tem o
defeito de encobrir - em minha leitura - o alcance real desta categoria. O corpus
examinado mostrou-se pobre a respeito desse processo, porém pesquisas adicionais
poderiam revelar advérbios e adjetivos que desencadeiam esse processo;
(iii) predicação por cancelamento ou subtração: o predicador apaga parte dos
atributos da classe-sujeito. Os dados revelaram a existência de duas predicações por
cancelamento: ou se diminuem os indivíduos do conjunto, como nos quantificadores

92 Alfa, São Paulo, 38: 75-95, 1994


delimitadores, ou se alteram as propriedades intensionais da classe-alvo, como nos
qualificadores canceladores aproximadores / aspectualizadores.
A continuação desta pesquisa implicará a realização de estudos monográficos
sobre os itens mais produtivos. No presente trabalho, nada avancei na análise do papel
discursivo de advérbios e adjetivos, por acreditar que muita análise semântica deve
ser ainda feita. A precedência da reflexão semântica sobre a discursiva pode conjurar
os riscos de um funcionalismo radical.

CASTILHO, A. T. de A functional viewpoint on predication. Alfa, São Paulo, v. 38, p. 75-95,


1994.

• ABSTRACT: This paper (1) gives an account of the development of the Spoken Portuguese Grammar
Project, (2) discusses predication within the frame of a functional grammar, and (3) offers some results
of the analysis of predicative adverbs and adjectives, used in spoken standard Brazilian Portuguese, as
witnessed in materials of the NURC Project. (Abstract prepared by the Editor.)

• KEYWORDS: Spoken language; functional grammar; predication; adverbs; adjectives.

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