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Pontifícia Universidade Católica – Rio de Janeiro

História Social da Cultura

Disciplina: Cidadanias ressignificadas em tempos de globalização e os


desafios da democracia na América Latina contemporânea

Marlon Ferreira dos Reis


Matrícula: 2012714

Resenha texto: CASTRO, Eduardo; DANOWSKI, Deborah. Há futuro por vir?


Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie: Instituto socioambiental,
2014, pp. 11-35.

2020
Resumo
O texto parte do princípio de que, a partir dos anos 1990, com as sólidas análises
das causas antrópicas da crise ambiental planetária, produziu-se uma percepção popular,
midiática e acadêmica acerca do fim do mundo. A evidente catastrófica mudança recicla
e atualiza as ideias relacionadas ao “fim do mundo” – seja no cinema, em
documentários, livros, filmes, etc.. O iminente cenário contrasta com o otimismo dos
últimos séculos e coloca em cheque a própria humanidade. De forma resumida, apesar
de uma desigualdade na distribuição inicial da precariedade, o “fim do mundo” abarcará
todas as civilizações, incluindo a dominante, pois a extinção recai sobre a própria ideia
de espécie humana (mesmo os povos que não estão no centro catalizador da crise).
Diversas descrições desse fim ganham expressão. Não apenas as ciências naturais
e a cultura de massa se alimentaram do “fim do mundo”, mas a própria metafísica.
Eduardo Castro e Deborah Danowski apontam que, nos últimos anos, produziu-se
diversas sofisticações intelectuais no que tange a ideia da finitude do mundo e/ou
humanidade. Assim como o estabelecimento de novos princípios que articulam a
jurisdição e vão contra antigas bases éticas e fenomenológicas.
A finitude secular do mundo ganhou voz expressiva pela primeira vez na Guerra
Fria, com a corrida nuclear iniciada após os ataques em Hiroshima e Nagasaki. Lê-se a
frase célebre de Günther Anders: “a ausência de futuro já começou”. Mas talvez ele
nunca tenha começado, refletem os autores: pode muito bem ter sua gênese no neolítico,
ou com o surgimento do Homo Sapiens, talvez sejamos nós a catástrofe da tragédia
humana. Entretanto, a crise climática tem uma ontologia que (apesar de complexa)
remonta a segunda metade do século XX. De acordo com Crutzen e Stoermer, que
cunharam o termo Antropoceno para se referir ao período geológico atual, no qual a
humanidade ganha caráter de força geológica, a aceleração das mudanças climáticas
teria se intensificado depois da Segunda Guerra Mundial.
Em suma, o período geológico recebeu “nosso nome” e, por consequência, todas
as alterações, para o mal ou para o bem, apontam para ser de nossa responsabilidade.
Desse modo, como bem expressou os Castro e Danowski, o Antropoceno “é uma época,
no sentido geológico do termo, mas ele aponta para o fim da ‘epocalidade’ enquanto tal,
no que concerne à espécie. Embora tenha começado conosco, muito provavelmente
terminará sem nós [...]”.1 Em suma, o nosso presente, no Antropoceno, é um momento
sem devir.
Sendo assim, o objetivo do ensaio é levar a sério as construções míticas acerca do
fim do mundo, no sentido de enxerga-lo como uma tentativa de invenção de uma
mitologia adequada ao presente antropocênico. Ou seja, o que é interessante é o laço
entre a especulação metafísica e as matrizes mitológicas: sendo assim, a “literatura
fantástica e a ficção científica são as metafísicas pop, as ‘mitofísicas’ de nossa época”.2
Tanto na metafísica quanto na mitofísica, um dos aspectos do nosso tempo é a
aceleração descontrolada e disruptiva, a qual faz o “tempo” ficar fora do eixo, sendo o
tempo entendido como dimensão de manifestação da mudança, e muda a todo momento.
Por conseguinte, tudo que se diz sobre a crise climática se torna, rapidamente,
anacrônico e defasado, assim como o que pode ser feito se apresenta como muito pouco
e tarde demais. O que revela uma instabilidade conjugada com uma súbita insuficiência
de mundo, geradora de uma decomposição do tempo e do espaço.
Somado a isso, e justamente por isso, os autores argumentam que a crise que
enfrentamos é uma ameaça inédita e que não sabemos ao certo como revertê-la. Os
limites para a sobrevivência do “Sistema Mundo” beiram (ou já ultrapassaram) um
ponto crítico. Atualmente, já enxergamos as consequências das ações antrópicas
destrutivas no planeta – significadas na forma de catástrofes. Todavia, deve se ressaltar
que a distribuição social dos impactos planetários não são quantificáveis de forma fácil.
Assim como a solução das desigualdades na disponibilidade de recursos essenciais
esbarra em problemas de governança. Pois, a dicotomia local versus global invade as
noções de sustentabilidade, vide a necessidade de ação global, mas que sempre esbarra
nos interesses e soberanias locais. Nessa linha, os autores temem a queda no dualismo
problemático entre natureza e cultura, e afirmam a necessidade de agregar as noções de
sustentabilidade, ecologia, geologia, entre outros, ao próprio conceito de política, visto
que as conceptualizações atuais são um “arranjo”, no qual se finge que a ecologia é um
problema extraordinário e singular para a política, e não uma atribuição fundamental.
Ademais, os autores afirmam que estamos, em suma, prestes a entrar em um
regime do Sistema Terra inteiramente diferente de tudo que conhecemos. O futuro se
fecha em uma imprevisibilidade. Não se trata apenas de mudanças significativas em
relação a um valor de referência de “saudável”, mas da aceleração e intensificação
1
CASTRO, Eduardo; DANOWSKI, Deborah. Há futuro por vir? Ensaio sobre os medos e os fins.
Florianópolis: Cultura e Barbárie: Instituto socioambiental, 2014, pp. 16
2
CASTRO, Eduardo; DANOWSKI, Deborah. Op. Cit., pp. 18.
exponencialmente crescente, a intensificação da variação e a perda de qualquer valor de
referência. Cada vez mais os recordes desastrosos são batidos mais rápido e de forma
mais intensa. Tanto “para mais” quanto “para menos”, recordes de calor e de frio
coabitam no mesmo Sistema Terra. Essa instabilidade e imprevisibilidade afeta as
medidas e as escalas, de forma que corrói o tempo e o espaço, sobrepondo e
confundindo local e global. “Tudo que fazemos localmente tem consequências sobre o
clima global, mas por outro lado nossas pequenas ações individuais de mitigação
parecem não surtir qualquer efeito observável”.3
O que isso sugere é que a aceleração saiu do espectro da história humana e
adentrou na história biogeofísica: deixamos de ser um agente biológico para ser uma
força geológica. Fato que também ocorre em sentido contrário: a biogeofísica adentra o
espaço social e histórico. O que temos com o Antropoceno é um processo que geologiza
a moral, e, por outro lado, o que o distingue significativamente dos outros períodos
geológicos é que ele é a primeira época geológica em que uma força geologicamente
significativa é consciente de seu papel.
Outro fator central levantado pelos autores é a questão da proporcionalidade, Hans
Jonas e Günthers Anders anteciparam a ideia de que a potência tecnológica moderna
possui ações e consequências que são deslocalização e perenização das ações humanas.
Em poucas palavras, a discrepância entre intenções e resultados do uso disruptivo de
certas tecnologias ultrapassam qualquer uma das nossas experiências tecnológicas
anteriores. É um processo de corrosão do tempo e do espaço que anuncia o surgimento
de uma continuidade/convergência crítica entre os ritmos da natureza e da cultura,
“sinal de uma iminente ‘mudança de fase’ na experiência histórica”. 4 O tempo histórico
reencontra o tempo meteorológico e ecológico. Da mesma maneira, o espaço
psicológico vai se tornando coextensivo ao ecológico, assumindo a forma de um
“pânico frio” suscitado pela enorme distância entre a nossa capacidade científica de
fazer prognósticos sobre o fim do mundo e a nossa incapacidade política de imaginar o
fim do capitalismo como sistema exploratório destrutivo.
O problema do fim do mundo só se coloca no âmbito do discurso e no âmbito da
correlação entre o “fim” e para quem. Apenas os que tem consciência podem elaborar
previsões apocalípticas, entretanto, materialmente, não são os únicos que tem um
mundo a perder: “se se determina simultaneamente para quem este mundo que termina é

3
CASTRO, Eduardo; DANOWSKI, Deborah. Op. Cit., pp. 25
4
Ibidem, pp. 30
mundo, quem o mundano ou o ‘mundanizado’ que define o fim”. 5 O mundo é, então,
uma perspectiva objetiva. O fim do mundo se formula como uma separação entre o
mundo e seu habitante, o ente do qual o mundo é mundo. O Antropoceno é o
Apocalipse, em sentido etimológico e escatológico.
Análise crítica
O primeiro ponto de diálogo que gostaria de estabelecer é com o argumento de
Bruno Latour, no qual o autor aponta que o Antropoceno representa uma novidade em
relação ao período anterior no que tange ao discurso desenvolvimentista. A ideia de uma
modernização já se torna anacrônica no momento em que se evoca uma bifurcação
estrutural entre natureza e cultura.6 Tal bifurcação já não se sustenta desta maneira, a
natureza invadiu as humanidades, assim como o oposto também ocorreu. Em outras
palavras, há desafios contemporâneos em “que também se coloca aos limites
disciplinares para lidar com esse encontro, tornando anacrônica a divisão entre ciências
da natureza e ciências humanas. Um encontro de tempos, enfim, mas sem concordância
à vista”.7
A ideia de desenvolvimentismo como fator fundamental de perpetuação de um
sistema exploratório também aparece em Isabelle Stengers. A autora aponta que trata de
questionar a capacidade do que se chama de “desenvolvimento” de dar respostas aos
problemas climáticos contemporâneos. Esse desenvolvimento utilitário seria refém dos
interesses do capital e seriam, fundamentalmente, de curto prazo. Legando a questão
ambiental para um segundo plano.8
Nesse sentido, lembro do argumento de Marshall Berman que, utilizando Fausto9,
de Goethe, sintetiza as ideias modernas e representa o “modelo fáustico de
desenvolvimento”. Tal modelo é referente ao século XIX-XX e confere prioridade
absoluta, por parte das Nações, aos gigantescos projetos de energia e transporte em

5
Ibidem, pp. 33.
6
LATOUR, Bruno. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de
Antropologia. São Paulo, USP, 2014, v. 57 nº 1, pp. 13.
7
TURIN, Rodrigo. Tempos Precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Zazie Edições:
pequena biblioteca de ensaios (online), 2019, pp. 15. Disponível em:
<https://static1.squarespace.com/static/565de1f1e4b00ddf86b0c66c/t/5d6bbdd368abb200010a6389/1567
342037866/PEQUENA+BIBLIOTECA+DE+ENSAIOS_RODRIGO+TURIN_ZAZIE+EDICOES_2019.
pdf>. Último acesso em: 27/05/2020.
8
STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: Resistir à barbárie que se aproxima. Cosac Naify,
2015, pp. 11-12.
9
Fausto é um poema trágico de língua alemã dividido em duas partes, escrito por Johann Wolfgang von
Goethe. O enredo se trata de um personagem, Fausto, que possui todas as ciências, todavia se mostra
insatisfeito com o que já tem. Buscando sabedoria, Fausto faz um pacto com um demônio, Mefistófeles.
A história trata do desejo de Fausto pelo absoluto.
escala internacional; seu objetivo é menos os lucros imediatos que o desenvolvimento a
longo prazo das forças produtivas, aos quais gerarão os melhores resultados. Uma
síntese entre o poder público e o poder privado, simbolizada na união com Mefistófeles,
que executa o trabalho sujo, e Fausto, o administrador público. Em suma, “o Fausto de
Goethe é a primeira e ainda melhor tragédia do desenvolvimento”. 10 Contudo, ao final
do século XX, o esse modelo desenvolvimentista já havia se estabilizado na maior parte
dos países capitalistas na forma de uma união entre os interesses privados e públicos, do
capital e da política. Uma dissolução entre diferentes esferas que se apresenta como um
obstáculo para a fusão conceitual, proposta por Latour, entre ecologia e política (visto
que a fusão entre economia e ecologia ainda é embrionária; quiçá impossível).
A questão é que, como assinalou Rosa Luxemburgo, o bárbaro está se instaurando
em nosso hábitos. O efeito blasé das inúmeras notícias de catástrofes ambientais e
políticas pode abrir espaço para a incerteza de se realmente há um problema. De fato, há
um problema, a palavra final já foi dada pelos especialistas. Entretanto, como diversos
autores já colocaram, o negacionismo tem seu espaço social (e econômico), assim como
objetiva a perpetuação da incerteza, pois é na incerteza que encontram seu espaço de
ação. A possibilidade de se estabelecer uma conclusão através de um debate racional
entre cientistas e negacionistas é complexa, “uma vez que o sucesso dos negacionistas
não reside em vencer algum conflito, mas simplesmente em assegurar que o resto do
público esteja convencido de que há um conflito”.11
Como coloquei em outra resenha, o problema é que negacionistas buscam a
substituição da verdade dos fatos por falácias. Tal comportamento inicia um processo de
aniquilação de sentidos mediante o qual nos orientamos (incluindo os meios pelos quais
identificamos a oposição entre o verdadeiro e falso). Desse modo, o problema começa
quando não importa mais se a colocação feita é verdade ou mentira; a distinção entre
uma e outra se torna nublada e, em última instância, irrelevante. A supressão da
realidade pela crença se torna um cenário perfeito para o agravamento de catástrofes.
Portanto, o que temos são diferentes previsões sobre o futuro, baseadas em
distintas experiências do tempo. Entretanto, como levantou os autores, é da natureza do
colapso iminente que ele atingirá a todos, de uma forma ou de outra”. Não só o
Ocidente, ou Oriente, os países capitalistas ou socialistas, “mas toda a espécie humana,
a própria ideia de espécie humana, que está sendo interpelada pela crise – mesmo,
10
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 1986, pp. 47.
11
LATOUR, Bruno. Op. Cit., p. 16.
portanto e sobretudo, aqueles tantos povos, culturas e sociedades que não estão na
origem da dita crise”.12
No horizonte humano, por conseguinte, o maior fator de sincronização de todas
essas experiências do tempo é a ideia de uma escatologia climática global. Nesse
sentido, é preciso estabelecer um diálogo com Helge Jordheim, pois o autor afirma que
um período histórico é caracterizado por diversas formas de organização temporal, e
que, muitas das vezes, tais ordens são conflitantes entre si (como no caso de
negacionistas e climatologistas). Respostas a esses conflitos aparecem na forma de
tentativas de comparar, unificar e adaptar diferentes tempos, ou em outras palavras,
sincroniza-los em um único tempo homogêneo. Jordheim argumenta que,
primeiramente, a característica fundamental da história não é a unidade, uniformidade e
homogeneidade do tempo, mas sim a pluralidade, multiplicidade e heterogeneidade das
temporalidades social e historicamente condicionadas – em outras palavras, que a
característica fundamental da história é a Ungleichzeitgkeit, não-sincronicidade, inerente
em todos os conceitos, linguagens, culturas e eventos.13
Meu projeto de pesquisa surgiu exatamente a partir de questionamentos acerca de
como os recorrentes desastres ecológicos e geológicos, acarretados pela ação humana na
natureza, relacionam-se com a experiência do tempo histórico de alguns grupos na
sociedade contemporânea. Nesse sentido, a partir da análise de distintos documentos,
refleti sobre o significado e o emprego do termo “catástrofe”, e como este é utilizado
nos séculos XX e XXI para descrever vivências trágicas no âmbito social, ecológico e
geológico. Assim sendo, conjecturei a hipótese da existência de uma categoria temporal
tipicamente contemporânea, a qual foi batizada de “catastrofismo” – uma relação com o
tempo, no qual o espaço de experiência e o horizonte de expectativa são marcados por
catástrofes.
Tenho como hipótese que com a descoberta e o controle da energia nuclear ao
longo do século XX, a temporalidade do homem dialoga cada vez mais com a
temporalidade geológica-ecológica. Entretanto, a energia nuclear é apenas o começo
dessa aproximação. Através da dominação técnica da natureza, o ser humano se torna
mais capaz de alterar o ecossistema em que faz parte, de forma global. O que altera toda
a estrutura relacional de alguns grupos com a temporalidade histórica; mais
especificamente, elevando a definição de catástrofe à dimensão temporal, no sentido de
12
CASTRO, Eduardo; DANOWSKI, Deborah. Op. Cit., pp. 12.
13
JORDHEIM, Helge. Introduction: multiple times and the work of synchronization. History & Theory,
v. 53, Dezembro, 2014, pp. 498-518.
que o significado dessa palavra pode revelar um horizonte de expectativa da civilização
humana. Dizendo de forma mais clara: o horizonte observado por certos indivíduos
expressa um futuro cataclísmico desde o século XX, tendo a dominação técnica da
natureza como fio condutor, seja pela ameaça nuclear, seja por suas consequências
biogeofísicas.
Podemos concluir, portanto, que o texto aqui resenhado seja de enorme valia para
compreendermos como as “mitofísica” fazem parte de uma relação com essa
temporalidade catastrófica expressada pelo grupo de cientistas que alertam sobre a crise
climática. Acredito, nesse sentido, que a questão ambiental e nuclear se colocam como
uma corrida contra o tempo (em sentido cronológico), não apenas para reverter/prevenir
as catástrofes que podem vir a se tornar presentes no mundo contemporâneo, mas antes,
para sincronizar as perspectivas dos especialistas que possuem um horizonte
catastrófico a vista com os anseios políticos e da população de maneira geral. Em pouca
palavras, é preciso que se saia do espectro da inação e rumemos para uma junção entre
política e biogeofísica para que haja um futuro por vir.

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