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Tema

O século XX foi responsável por reforçar a descrença social e historiográfica acerca de


um ideal de progresso temporal que reinou na Europa durante os séculos XVIII e XIX. A
Primeira Guerra Mundial, a gripe espanhola, a crise econômica de 1929 e a Segunda Guerra
Mundial foram eventos e processos que aceleraram a perda de hegemonia dos ideários
modernos europeus. As mudanças do período em questão alteraram toda uma estrutura de
poder e discurso que estava até então fundamentada num suposto progresso constante. A
Primeira e Segunda Guerra são responsáveis por reorganizar a hegemonia mundial,
realocando seu centro do continente europeu para o norte da América, tendo o Estados Unidos
como nova superpotência dominante. A crise de 29 também foi fundamental para uma
transformação no âmbito econômico; abandonou-se o ideal de uma sociedade de livre-
mercado para a estruturação dos capitalismos de Estado. Todos estes fatos são reunidos pelo
historiador Eric Hobsbawm como fazendo parte de um período chamado “Era das
Catástrofes”. 1

De acordo com o dicionário Houaiss, a palavra “catástrofe” tem como uma das suas
definições “qualquer acidente de grandes proporções” e também a de “acontecimento de
2
consequências graves”. Um outro dicionário, de língua inglesa, tendo sua primeira
publicação em 1957, traz as definições de catástrofe/catastrophe como “1. um desastre súbito,
generalizado, ou extraordinário” e “3. um desastroso fim; ruína”. 3 Se pegarmos tomarmos
essas definições do que é uma “catástrofe”, por mais simplórias e superficiais que sejam,
podemos perceber que Hobsbawm fora certeiro ao denominar a primeira metade do século
XX como a Era das Catástrofes em seu livro “Era dos Extremos”. A utilização desta palavra
pode parecer sutil, especialmente por sua conveniência de significante, entretanto, o conceito
aqui em questão sofreu um deslocamento em seu uso social e político deveras considerável.

A etimologia do termo catástrofe remete ao grego antigo καταστρέφω (katastréphō), que


significava a resolução trágica/patética do enredo de um drama, geralmente da Tragédia. 4 Por
anos a fio, o termo teve seu significado recluso à literatura e à atuação?. Apenas após os
séculos XVIII-XIX é que se começa a popularizar a significação do conceito em referência ao
mundo material. Todavia, esse deslocamento significante para o mundo das coisas não se dá
de forma tão geral como as definições explicitadas acima. O uso do conceito de catástrofe fica
1
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
2
Houaiss (preciso que a senhora me mande a referencia, se possível)
3
Thorndike Barnhart (dicionário, preciso pegar a referência, livro emprestado)
4
Poética
recluso aos estudos geológicos, mais especificamente às calamidades decorrentes dos
desastres produzidos pelas forças da natureza (tempestades, terremotos, erupções vulcânicas,
etc.). A partir do século XIX e XX é que o conceito central dessa pesquisa é utilizado na vida
social e política com uma definição demasiadamente similar da palavra, também de origem
grega, “desastre/disaster/désastre” (“um evento que resulta em grande dano, morte, ou
dificuldade séria”5).

Hobsbawm recorta a era das catástrofes como tendo início na Primeira Guerra
decorrendo até o final da Segunda; contudo, para os fins dessa pesquisa, acredito que
devemos pensar o conceito de catástrofe – especialmente sua ligação com o de “desastre” –
como sendo fundamental para a compreensão do período subsequente aos evento de 1945. A
utilização das bombas atômicas e da energia nuclear levantou um enorme medo da ocorrência
de calamidades de enormes magnitudes. A questão do uso das bombas de energia nuclear para
fins militares e políticos ganhara palco nas discussões intelectuais, políticas e populares. O
medo da aniquilação nuclear provocou diversas e distintas manifestações na diplomacia e na
vida social. A questão é que a dominação técnica da natureza pelo Estado-Nação alterou o
sistema das relações internacionais, da relação de soberania do indivíduo em relação ao poder
governamental e, especialmente, da humanidade em relação à natureza. O fato é que, após o
bombardeio atômico estadunidense sobre o solo nipônico, o desenvolvimento de bombas
ainda mais potentes, a utilização da energia nuclear para fins não-militares e as constantes
tensões entre Estados Unidos e União Soviética, as noções de catástrofe/desastre tomaram o
horizonte de expectativa de diversos grupos.

A fluidez da modernidade otimista no progresso da humanidade/Europa do século


XVIII-XIX se transmuta em um binarismo “viver” ou “morrer” fruto de uma possível guerra
nuclear. Sobretudo, pelo fato de que o evento que assombra a todos nesse momento é uma
aniquilação total, seja esta destruição partindo dos Estados Unidos da América, da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, ou de ambas as partes. Uma catástrofe poderia ocorrer a
qualquer momento, bastava as autoridades políticas e militares desejarem que assim fosse.
Dessa forma, o conceito de catástrofe/catastrophe parece ganhar um caráter essencialmente
temporal nos “dias quentes” da Guerra Fria – como se fosse esperado um desastre súbito,
generalizado, ou extraordinário. Uma das provas que a ideia de catástrofe ganhou uma
dimensão temporal é o “Relógio do Juízo Final” (Doomsday clock), criado em 1947 pelo
comitê de diretores do Bulletin of the Atomic Scientists da Universidade de Chicago. A ideia é

5
https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/disaster
a de um relógio comum com doze unidades e que a humanidade sempre está a alguns minutos
da meia-noite, sendo a 0h representativa da destruição mundial através da aniquilação nuclear.
Em 1947 o relógio marcava sete minutos para a meia-noite, em 1953 estava em dois minutos
para a meia-noite, em 1988 faltavam seis minutos e hoje, em 2019, estamos novamente a dois
minutos da 0h.
A questão que não devemos perder de vista nessa pesquisa é que a manipulação da
energia nuclear, seja para fins bélicos ou não, representa a dominação do homem sobre a
natureza. Todavia, não da humanidade como um todo. Não houve a democratização do
controle das forças naturais, mas sim algumas superpotências foram responsáveis pelo
controle e utilização da recém-descoberta energia nuclear. Esse conhecimento técnico e
científico começa a alcançar estratos tão profundos que desencadeia processos capazes de
reestruturar não só as relações de poder, mas como também todo um sistema natural
geológico e ecológico. Os incidentes envolvendo a energia nuclear ao longo do século XX
expressaram uma rápida e estrutural mudança no ambiente social, biológico e geológico
simultaneamente. As bombas Little Boy e Fat Man que caíram sobre as cidades japonesas
alteraram não só os rumos da Guerra, mas toda a infraestrutura daquela sociedade. De fato, o
nível proporcional de destruição foi algo nunca antes visto pela humanidade. Todavia, não se
trata apenas disso, mas também das mudanças causadas pelos efeitos da radiação emitida pela
fissão nuclear do dispositivo. Uma arma que era capaz de contaminar a nível celular os que
fossem expostos ao seu raio de abrangência era algo novo e só pôde existir graças ao
investimento dos Estados nacionais no fomento do desenvolvimento técnico para fins
estrategicamente hegemônicos. O exemplo mais emblemático do poder de transmutação do
ambiente social e geológico que se teve no século XX talvez seja o acidente nuclear de
Chernobyl, em ucraniano Чорнобильська катастрофа (Chornobylʹsʹka katastrofa),
“Catástrofe de Chernobyl”, no qual as autoridades ucranianas acreditam que a “zona de
exclusão”, o local onde não se pode sustentar vida humana sem sequelas, permanecerá dessa
maneira por algumas dezenas de milhares de anos.
Não é preciso discutir aqui o fato ou não do ser humano ter alterado toda a estrutura de
vida em Chernobyl, ou em outros locais que sofreram com incidentes, acidentes e atentados
nucleares (como o desastre de Kyshtym em 1957, de Three Mile Island em 1979, o de
Goiânia em 1987, Fukushima em 2011, entre outros). O que se coloca como de interesse
essencial para essa pesquisa é que com a dominação técnica da natureza, e a capacidade cada
vez maior de alterar a mesma, como a temporalidade histórica pode ser pensada? Creio que
com a descoberta e o controle da energia nuclear ao longo do século XX, a temporalidade do
homem se aproxima cada vez mais da temporalidade geológica. Entretanto, a energia nuclear
é apenas o começo dessa aproximação.
Nos anos 2000, o laureado com o Nobel em Química em 1995, o químico atmosférico
Paul Crutzen, conhecido por seus trabalhos em mudanças climáticas, cunhou o termo
“Antropoceno”. Tal termo seria uma contestação à proposta de que vivemos no período
geológico do Holoceno, período correspondente ao pós-reaquecimento do planeta, datando o
fim do período glacial de aproximadamente 12 mil anos atrás. Crutzen afirmou que a
denominação Holoceno não seria a adequada para ditar o período geológico em que vivemos,
e propõe a existência do Antropoceno, no qual a geologia e a ecologia seriam constantemente
e fundamentalmente alteradas pelas ações do ser humano. Existem várias datas para o início
do período antropocênico, entretanto, uma das datações de maior consenso seria o teste
Trinity, que seria o modelo para a utilização da bomba atômica contra o Japão, pelos Estados
Unidos da América em 1945.
A pauta das mudanças climáticas é tópico central desde os anos 70 na vida política dos
Estados. Mais especificamente, a liberação de gases que corroboram para o aumento do efeito
estufa (como o CO2, CO, CFCs, CH4, entre outros) por nações, especialmente as
superpotências, e a extinção da biodiversidade, especialmente de flora, que geram, por
consequência, o aquecimento médio global, se tornaram a preocupação de muitos estadistas,
ativistas, diplomatas e cientistas. A questão é que com a alteração climática causada pelas
práticas estatais a vida da humanidade como a conhecemos volta a correr risco; novamente,
catástrofes se tornam iminentes. A atual visão cataclísmica do futuro por alguns setores da
sociedade global corresponde a um novo horizonte de expectativas baseado num imaginário
no qual a humanidade se encontra em uma corrida contra o tempo.

O já citado Bulletin of the Atomic Scientists atualmente conta com uma sessão
específica para tratar das mudanças climáticas. Muitos dos cientistas, como o próprio Paul
Crutzen, que durante a Guerra Fria foram ativistas contra o armamento nuclear, hoje se põem
contra às políticas públicas e privadas que contribuem para o agravamento da situação
emergencial que a civilização humana vê diante de si. A própria organização não-
governamental Greenpeace também se coloca como uma resposta para a condição alarmante
do planeta Terra e pode ser fator de reforço para a ideia que vivemos com um horizonte
catastrófico. Se pesquisarmos no site internacional do Greenpeace a palavra-chave
“catastrophe” encontramos setenta e sete resultados de busca, sendo quarenta e dois desses
ligados a “Energia” e vinte e três ligado a “Natureza”.6

Se utilizarmos a ferramenta Google Ngram, plataforma que aponta a recorrência em que


as palavras aparecem no banco de dados dos livros digitalizados no Google, e digitarmos os
termos “catastrophe” e “disaster” (a plataforma ainda não está disponível para o português)
vemos um gráfico em que o primeiro decai lentamente desde 1840, mas está em ascensão
desde os anos 2000, enquanto a recorrência da palavra “disaster” cresce vertiginosamente,
especialmente após 1900, e, assim como a primeira palavra, apresenta uma clivagem
acentuada no gráfico após os anos 2000.

É interessante notar que o conceito de catástrofe sofreu sua metamorfose ao passo em


que a humanidade foi capaz cada vez mais de dominar a natureza e de trazer um fim para si
mesma. Não estou aqui afirmando que ambos os fatos tem relação causal entre si, mas sim
que o conceito teve o tempo certo para ganhar conveniência de ser aplicado nos contextos
específicos. Justamente por isso, a escolha deste, sobretudo por sua vinculação com a palavra
desastre, torna a análise do século XX e XXI ainda mais enriquecedora para o entendimento
dos novos desafios dispostos para a historiografia. Visto que, como argumentou Hartog, o
futurismo, do implícito no conceito moderno de história, já não funciona mais para captar o
futuro porvir e orientar as sociedades no presente.7

Muito se discutiu e postulou acerca dos limites do presentismo de François Hartog. 8


Dois fatos devem ser exaltados: (1) a existência de uma multiplicidade de tempos históricos,
ou seja, variadas formas de se compreender as relações entre passado, presente e futuro; (2) e
a dimensão empírica da temporalidade, no sentido de que só se pode falar de tempo, falando
de outra coisa, no caso historiográfico: analisando-se as fontes.9 Sobre minha primeira
explicitação: a evidência que se coloca na mesa é a de que dificilmente podemos falar acerca
de uma única temporalidade, pois cada sociedade, grupo e, em última instância, indivíduo,
compreende o tempo histórico de uma maneira específica, levando em consideração
categorias meta-históricas. Portanto, mesmo que o presentismo proposto por Hartog exista em
determinados contextos, é completamente possível e esperado que outras maneiras de se
relacionar com o tempo se deem em distintas sociedades. O próprio caso da categoria de
atualismo proposta por Mateus Pereira e Valdei Araujo é prova disso. O que se põe é que
6
Se procurarmos por “disaster” encontramos 82 resultados, sendo trinta e dois relacionados a energia e vinte e
sete relacionados a natureza.
7
Hartog
8
Ver: Atualismo, Turin, etc.
9
Sobre esse segundo tópico, ver: Turin.
diferentes categorias temporais não parecem ser necessariamente excludentes, mas podem ser,
em realidade, coexistentes. Sobre minha segunda afirmação: o fato do tempo histórico não
possuir uma natureza ontológica material, ou seja, não existir como entidade metafísica, o
coloca refém de condicionantes que podem ser sistematizados, ordenados e interpretados pelo
intelecto humano. Nesse sentido, a interpretação dos vestígios do passado é fundamental para
a construção de uma categoria temporal que represente minimamente uma sociedade, um
grupo, ou até um sujeito.

Desse modo, desejo basear minha categoria temporal na utilização e significação de um


conceito, o de catástrofe, e isso requer que eu leve em consideração os condicionantes que
capacitam o entendimento dessa palavra como enunciado. Assim sendo, é preciso atentar para
“quem disse”, “como disse”, “onde disse”, “em que circunstância disse”, entre outros fatores,
em suma, para a relação entre o conceito e a experiência. Fundamental é também
compreender a natureza de um conceito como um indicador de conteúdo e simultaneamente
como um fator dos próprios indicadores. Como representativos e elucidativos da própria
natureza das relações que estão sendo analisadas.

Logo, a escolha das fontes dessa pesquisa foram primeiramente os dicionários de época,
mais especificamente de 1800 até 2019, de língua inglesa, portuguesa e francesa, visto que, a
princípio, os significados e usos do conceito de “catástrofe” nessas línguas neolatinas são
sinônimos. A utilização desses dicionários terá dupla função: (a) mapear quando,
aproximadamente, a definição de catástrofe se aproxima da de desastre e (b) compreender
como o conceito era formalmente identificado no recorte temporal dessa pesquisa. As outras
fontes dessa pesquisa revelam o recorte temporal aqui abordado. Em essência, começarei pela
datação mais comum do período do antropoceno (tendo início em 1945), ou seja tenho início
nos primeiros anos da Guerra Fria. Dessa forma, visto que temos uma relação de aproximação
entre História e Ciências Naturais, selecionarei os discursos dos vencedores dos Prêmios
Nobel em química e física de 1945 até o presente ano de 2019 que utilizam das palavras
catástrofe e desastre, a fim de compreender a relação entre o conceito e a experiência dos que
se utilizam de tais termos. Outras fontes também serão utilizadas; como discursos, manifestos,
artigos, que serviram como diálogos com as fontes principais.

Com isso, realizarei o cruzamentos das fontes supracitadas para tentar responder a
seguinte problemática: em que medida o contexto de ansiedade, medo, aflição causado pelo
domínio dos Estados Nacionais sobre a natureza dialogam com os significados dos conceitos
de catástrofe e desastre? E em que medida estes conceitos podem ser transpostos para uma
categoria temporal mais abrangente que revele uma forma de se organizar o passado, o
presente e o futuro? Minha hipótese é que a temporalidade histórica conecta-se com o mundo
das ciências naturais, não da forma como pensaram os historicistas do XIX, mas sim no
momento em que os desafios das ciências naturais são compartilhados com as ciências
humanas. O que altera toda a estrutura relacional de alguns grupos com a temporalidade
histórica; mais especificamente, elevando a definição de catástrofe à dimensão temporal, no
sentido de que o significado de catástrofe/desastre revela um horizonte de expectativa da
civilização humana. Dizendo de forma mais clara: o horizonte observado por certos
indivíduos revelam um futuro cataclísmico desde o século XX, seja pela ameaça nuclear, seja
pelo aquecimento médio global. Portanto, podemos dizer que existe um “catastrofismo”.

Para além das próprias demandas emergenciais do presentes que justificam essa
pesquisa, é fundamental nos dias de hoje, devido ao iminente aquecimento global,
compreender como os desastres e catástrofes naturais estão alterando o modo de enxergar a
história e o futuro. É central a contribuição para os ramos da história social, da história dos
conceitos e da teoria da história compreender as problemáticas que as ações políticas das
nações, especialmente as superpotências, geram nos contextos de consciência histórica
contemporâneos. Falar de energia nuclear e de aquecimento médio global como formas de
dominação da natureza, em última instância, é falar sobre ação política governamental em
busca de hegemonia.

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