Você está na página 1de 6

PROGRAMA DE RESIDÊNCIA INTEGRADA EM SAÚDE

ÊNFASE EM SAÚDE MENTAL

TRABALHO - ÊNFASE SAÚDE MENTAL COLETIVA

MÓDULO DA ALTERIDADE

TUTORAS: CLAUDIA E RAQUEL

RESIDENTES R2: Luciane da Rocha Oliveira e Vera Brinques

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O RACISMO NO BRASIL

PORTO ALEGRE – RS
2016
INTRODUÇÃO

O racismo enquanto um problema social manifesta-se pela depreciação do outro,


sua inferiorização e exclusão, de bens materiais e simbólicos capazes de lhe garantir uma
existência digna.
Sabemos que o contingente dos que vivem esta realidade ainda é bem expressivo
no Brasil. Infelizmente, não só os dados oficiais estão aí para comprovar, como, vez por
outra, os jornais noticiam flagrantes de racismo, em episódios que vão desde a interdição
de entrada em alguns lugares até a prisão ou mesmo morte de alguém simplesmente por
ser negro.
Já é costume no nosso país ouvir-se expressões de indignação ou de perplexidade
frente às denúncias de discriminação racial. Diante de manifestações explícitas de
racismo, muitos são categóricos e dizem tratar-se de uma situação absurda nos dias de
hoje. Chega-se mesmo a afirmar que isso não cabe mais no atual estágio da humanidade,
que o valor da pessoa está nas suas ações e não na cor de sua pele, que todos somos
iguais, ou que somos todos irmãos, etc. Entretanto, sabemos que não é bem assim. Em
uma sociedade hierarquizada como a brasileira, os lugares são muito bem definidos,
inclusive pelas fronteiras de raça e cor. Como diz Milton Santos 1:
Ser negro no Brasil é ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade
parece considera que há um lugar predeteminado, lá em baixo, para os negros e assim
tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da
pirâmide social como haver “subido na vida”.

REFLEXÕES SOBRE O RACISMO

A questão do negro brasileiro há muito inquieta e mobiliza a sociedade na busca de


esclarecer os percalços percorridos pela população negra, dado o lugar social que a ela
foi destinado desde o tráfico de escravos.
O racismo é, pois, um sistema de dominação que antecede a ideia de raça. Como
fenômeno que atravessa as relações entre os homens, está presente no mundo há muito
tempo e parte sempre do pressuposto da superioridade de uns sobre os outros. O que

1 SANTOS, M. Folha de São Paulo – Caderno Mais!, 07/05/00.


muda no decorrer da história é o princípio que sustenta a desigualdade.
Entender o racismo enquanto produção significa considerá-lo antes como uma
prática cujos efeitos são a consolidação de uma ordem social na qual as desigualdades
entre os homens são naturalizadas, isto é, as desigualdades por questões de “raça” são
tomadas com algo inerente à natureza.
Em outras palavras, dentro da perspectiva que estamos considerando, sugerimos
que, mais do que tomar o racismo como ideologia, seria interessante discutir a
subjetividade racista que é consumida e expressa, vendida e afirmada. Não se trata,
portanto, de pensar sobre o que algo – o racismo - representa para nós, mas como ele
está em nós, no nosso próprio modo de expressá-lo, afirmando ou rechaçando,
2
respectivamente, modos de existência compatíveis ou não com a ordem capitalista.
MUNANGA (1998) assinala que se pode conferir ao racismo um sentido mais
amplo, quando este envolve qualquer forma de discriminação, uma reação de intolerância
contra o que se considera uma característica natural de determinados grupos. É o caso
de um racismo contra jovens, contra mulheres, homossexuais.
Segundo ARENDT (2000), o racismo, emergiu simultaneamente em todos os
países ocidentais no século XIX, entretanto, nos séculos anteriores já tinha raízes
profundas. Considera que, na verdade, ele absorveu todos os pensamentos racistas que
existiam anteriormente, mas que por si mesmos não eram capazes de transformar o
racismo em ideologia.
FOUCAULT (2002)3 vai mais além ao afirmar que o racismo foi introduzido nos
mecanismos de Estado quando da emergência do biopoder, o qual considera um dos
traços fundamentais das tecnologias de poder desde o século XIX, momento em que o
domínio da vida sofre por completo a intervenção de um poder que se incumbiu não só do
cuidado com o corpo dos indivíduos, no sentido de aumentar-lhe a força útil, mas na
gestão de tudo o que diz respeito à vida desses indivíduos enquanto espécie humana.
Trata-se de gerir a vida na terra, de regulamentá-la, de modo a ter o absoluto controle
sobre a mesma. Quando discute a emergência do biopoder, Foucault nos interpela para
uma outra dimensão do racismo. Este é por ele entendido, como uma maneira de o
biopoder introduzir um corte no domínio da vida, sobre um domínio que ele mesmo se
incumbiu de intervir; “o corte entre o que deve viver e o que deve morrer”

2 ROLNIK, S. Subjetividade, ética e cultura nas prática clínicas. Reelaboração de uma palestra... ,p.1.
3 FOUCAULT, M. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 304.
Essa inquietação é devida aos impactos subjetivos e sociais derivados das
experiências das vivências como vítimas de um sistema de privilégios de brancos e
prejuízos de negros, pautado em práticas racistas que estigmatizam e inferiorizam a
população negra.
Para estudar as representações sociais do racismo é preciso que lancemos mão de
alguns conceitos, como alteridade, intersubjetividade e identidade, conforme sugerido por
Jodelet (2001) e Guareschi (2001). Os estudos de representações sociais que perpassam
questões referentes ao racismo têm situado a ocorrência deste fenômeno como
decorrência da instauração de uma alteridade-radical, fruto da fenda social existente entre
brancos e negros (JODELET, 2001).
Entende-se como alteridade4 a relação de sociabilidade e diferença entre o
indivíduo em conjunto e a unidade, onde os dois sentidos inter-dependem na lógica de
que para constituir uma individualidade é necessário um coletivo. Dessa forma eu apenas
existo a partir do outro, da visão do outro, o que me permite também compreender o
mundo a partir de um olhar diferenciado, partindo tanto do diferente quanto de mim
mesmo, sensibilizado que estou pela experiência do contato.
Pensando sobre o racismo, entende-se que se trata de um processo que se dá no
nível da intersubjetividade, campo onde as representações sociais surgem. Neste sentido,
é na dinâmica eu X outro, das relações sociais, que emergem representações situando
identidade e alteridade. Dentro de qualquer cultura há pontos de tensão e de fratura, e é
ao redor desses pontos de clivagem no sistema representacional duma cultura que as
novas representações emergem. Nestes pontos de clivagem há uma falta de sentido, um
ponto onde o não-familiar aparece. Assim, da mesma forma como a natureza não aprecia
o vácuo, assim também a cultura não suporta a ausência de sentido, engendrando
elaborações representacionais para familiarizar o não-familiar, e assim, restabelecer um
sentido de estabilidade (JODELET, 2001).
Para o considerado grupo dominante “branco”, o negro constitui-se como um
sujeito de características físicas e culturais que fogem daquilo que “deveriam” ser, uma
vez que diferem enormemente da “norma” branca. Assim, com o intuito de “familiarizar” a
não-familiaridade negra, o grupo hegemônico tece representações sociais que, de um
lado, desqualificam o negro, e de outro buscam assimilá-lo, levando-o a aderir a
representações sociais e identidades brancas.

4 https://pt.wikipedia.org/wiki/Alteridade
De acordo com Jodelet (2002) a alteridade é um duplo processo de construção e
de exclusão social que, indissoluvelmente ligados como os dois lados duma mesma
moeda, mantêm sua unidade por meio dum sistema de representações. Assim, a
perspectiva aberta pela abordagem das representações sociais fornece os meios para se
levar em consideração as dimensões simbólicas subjacentes a toda relação com a
alteridade. Colocar em perspectiva as relações com o outro, a pertença social e a sua
tradução nas manifestações concretas da vida e da produção social abre caminho para a
aproximação à alteridade radical. Esta última terá sua expressão ideal-típica e extrema no
racismo, considerado um “fenômeno total”, na medida em que se constrói ao mesmo
tempo nas práticas e discursos, supondo representações, teorização e organização dos
afetos. No quadro das práticas perfazem-se as diferentes formas de violência, desprezo,
intolerância, humilhação, exclusão; os discursos veiculam representações e teorias.
Essas representações se caracterizam por serem elaborações intelectuais de um
fantasma de inspeção, sondagem e vigília. Articuladas em torno das marcas da diferença,
elas estariam constantemente retomando a necessidade de purificar o corpo social,
proteger a identidade de si e do nós de toda promiscuidade, de toda mestiçagem tidas
como risco de invasão. As teorias, por sua vez, seriam “racionalizadas” por intelectuais.
Essas representações e teorias organizam os afetos cuja forma obsessiva e irracional
conduz à elaboração de estereótipos que definem tanto os alvos quanto os portadores do
racismo. Tal combinação de práticas, discursos, representações, estereótipos afetivos vai
explicar ao mesmo tempo a formação de uma “comunidade de racistas” entre os quais
existem laços de imitação, e da pressão que leva as vítimas do racismo a se aperceberem
como comunidade (JODELET, 2001).
Neste sentido, que a invisibilidade do sujeito negro na sociedade brasileira ganha
novas formas quando é implementado um sistema de reserva de vagas para indivíduos
negros na educação superior pública. É, então, que se passa a enxergar o indivíduo
negro. A alteridade negra é posta, de forma escancarada, sobre os privilégios do grupo
dominante. É neste contexto que todo o passado histórico se revela ainda atual.

Referências Bibliográficas

ANDRÉ, M. C. Psicossociologia e Negritude: breve reflexão sobre o “ser negro” no Brasil.


Boletim Academia Paulista de Psicologia, p. 87-102, 2007.

FERREIRA, R. F. e MATTOS, R. M. O afro-brasileiro e o debate sobre o sistema de cotas:


um enfoque psicossocial. Psicologia Ciência e Profissão, vol. 27, no.1, p.46-63, 2007.
HENRIQUES, R. Desigualdade Racial no Brasil: Evolução das condições de vida na
década de 90. Rio de Janeiro: IPEA, 2001.

JODELET, D. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, D. As


representações sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001b. p. 17-43.

JODELET, D. A alteridade como produto e processo psicossocial. In: Arruda Angela (org),
Representando a alteridade. 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social.

FREUD, S. Além do princípio de prazer. In: ________ . Obras psicológicas completas


de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. p.13 - 85. (Edição standard brasileira,
v.18) [originalmente publicado em 1920]

FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego. In: ________ . Obras psicológicas


completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. p.89 -179. (Edição standard
brasileira, v.18) [originalmente publicado em 1921]

FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: ________ . Obras psicológicas completas de


Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. p.74 -171. (Edição standard brasileira,
v.21) [originalmente publicado em 1930]

MENDONÇA, T. Política de segurança e a construção do conceito de “inimigo interno” no


Brasil. Trabalho apresentado. 1° Seminário Internacional de Ciência Política. Estado e
Democracia em Mudança no Século XXI. UFRGS. Porto Alegre, setembro 2015.
https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/Thailane-Mendon%C3%A7a_Pol
%C3%ADtica-de-seguran%C3%A7a-e-a-constru%C3%A7%C3%A3o-do-conceito-de-
inimigo-interno-no-Brasil-Thaiane-Mendon%C3%A7a.pdf

SOUZA, N. S. O estrangeiro: nossa condição. In: KOLTAI, C. (org.). O estrangeiro. São


Paulo: Escuta/FAPESP, 1998.

ZANELLA, A. V. Sujeito e alteridade: reflexões a partir da psicologia histórico-cultural.


Psicol. Soc., Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 99-104, ago. 2005. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
71822005000200013&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 04 jan. 2017.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822005000200013.

MUNANGA, Kabengele. Teorias sobre o racismo. In: Estudos e pesquisas n. 4. Niterói;


EDUFF, 1998

Você também pode gostar