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Forças made in USA e o

efeito bumerangue da Lava


Jato
02/10/2020 07:02

Em 2017, movimentos sociais durante manifestação em apoio à Lava Jato. Foto:


Antonio Cruz/Agência Brasil

Ainda no auge da popularidade dos líderes da operação


Lava Jato, abordamos os riscos para o sistema judicial do
efeito bumerangue quando o ciclo de popularidade da
Operação e de seus agentes declinasse[1]. Assim como
outras megaoperações anticorrupção estudadas pela
ciência política internacional[2], ancoradas na mídia e na
sacralização de seus agentes, a dinâmica da Lava Jato
agrega componentes conjunturais com a trajetória de
escândalos presentes ciclicamente na história política
nacional.

+JOTA: Tudo sobre a Lava Jato

Para além de suas múltiplas dimensões que mobilizam


técnicas e usos do direito, destaca-se o padrão made in
USA, que inclui a derrubada de governos eleitos e a
exportação de modelos muito convenientes para a
consolidação de frações das elites jurídicas.
Potencializada pela evolução incremental dos lucros das
elites judiciais após o regime militar que mostram a força
do retorno do bacharelismo, a operação evidenciou,
também, a dimensão transnacional das alianças com o
chamado “sistema internacional anticorrupção”[3]. A
cooperação internacional no “combate a corrupção”
envolve o adensamento de prescrições, redes e acordos
entre ONGs, organizações multilaterais e agências de
desenvolvimento com sistemas nacionais de justiça. Na
ponta nacional assumem destaque a especialização de
agentes judiciais do Poder Judiciário e do Ministério
Público e a reivindicação de autonomia política para
agências de transparência e controle.

A aprovação pelo Congresso americano em 1977 do


Foreign Corrupt Pratics Act (FCPA), lei sobre práticas de
corrupção no exterior representa um impulso importante
para a construção de uma doutrina da “luta contra a
corrupção”[4]. Inicialmente objeto de controvérsia no
âmbito das organizações multilaterais por seu alcance de
punir “além do Estado Nacional”, essa iniciativa
americana influenciou fortemente a aprovação da
Convenção Anticorrupção na OCDE em 1997, que passou
a vigorar em 1999.

A entrada em cena de programas e iniciativas da OCDE


coadunou-se com o trabalho de formação e ativismo da
ONG Transparência Internacional fundada em 1993.
Posteriormente, incluiu os programas decorrentes da
Convenção da ONU de 2003. A ONU, através do
UNODOC, impulsionou a adoção de leis nacionais
contribuindo para a expansão das “agências
anticorrupção” através da articulação de expertises
jurídicas e policiais, originárias, em muitos casos, dos
programas de “combate as drogas”.

No final da década de 90, impulsionadas pelo Banco


Mundial e o FMI, as agências financeiras também passam
a incluir as prescrições anticorrupção nos modelos de
“boa governança”. Ao longo da década de 2000, diversos
acordos e programas internacionais mais específicos de
cooperação técnica e formação penetram no espaço
nacional.

A formação e a produção intelectual na área jurídica e na


ciência política fomentada por think tanks fornecem o
fundamento ideacional para a replicabilidade desses
programas por instituições nacionais[5]. Os casos
estudados internacionalmente evidenciam que esse jogo
de exportação-importação e as condições de sucesso
das empreitadas anticorrupção dependem muito das
estratégias de mobilização dos grupos políticos
interessados em reforçar ou construir posições no
espaço do poder nacional.

No caso brasileiro, as doutrinas anticorrupção se


conectaram muito bem com o incremento das
corporações do sistema de justiça e seu agigantamento
ao longo dos anos 2000[4]. A especialização burocrática
no Estado brasileiro em torno do combate a corrupção
relaciona-se diretamente aos movimentos de
institucionalização e proliferação de leis induzidas pelas
convenções internacionais com a OCDE, ONU, OEA
ratificadas pelo Brasil nesse período.

A capacidade do Ministério Público Federal brasileiro em


tornar-se o protagonista central nessa rede de agências
constituindo núcleos de cooperação internacional
autônoma, mostra um complexo fenômeno de conexão
dos agentes do sistema com homólogos do hemisfério
norte, em especial dos Estados Unidos e a presença e
acompanhamento de diferentes iniciativas de grupos de
trabalho induzidos por organismos multilaterais.

Esse fenômeno transcende os efeitos de conjuntura e


as sucessivas operações policiais que posicionaram
as instituições judiciais no centro do debate político e
se vinculam a um crescimento global das “autoridades
independentes” e órgãos de controle posicionados a
margem dos circuitos eleitorais e, em alguma medida,
do próprio regime democrático.

Nesse quadro, a Operação Lava Jato, transcendeu


largamente os limites do jogo judicial. A compreensão da
sua dinâmica política não se esgota no histórico de
hiperpolitização do campo jurídico brasileiro. Sinaliza,
antes, para recomposições das modalidades de
protagonismo e alinhamentos políticos no sistema de
justiça inauguradas desde a redemocratização.
Um dos desafios para uma sociologia política dessa
Operação é desvendar a extensão das vias abertas para
a inversão do crédito acumulado por seus agentes no
campo político. Ou seja, estamos diante de um ciclo finito
de incremento de recursos corporativos que oportunizou
grandes lucros para seus agentes, ou frente a uma
(re)definição mais ampla do protagonismo político-
judicial nas modalidades em que se apresentou desde a
década de 90? Até onde o sistema de justiça conseguirá
resistir a um efeito bumerangue que une alvos das
operações posicionados em diferentes pontos do espaço
político, assim como, ao desgaste da opinião de mídia
com os diversos efeitos colaterais e a fragmentação
regional as operações.

É importante recuperar que a longa construção da


legitimidade do poder Judiciário – estendida no pós-88
para o Ministério Público – ocorreu a custa da
mobilização das diferentes frações dessas corporações
em torno da importância de garantias de independência
funcional e afastamento do jogo político.
Paradoxalmente, a conquista dessas garantias que
apontariam para o mito da “despolitização” decorreu de
intensa politização através do associativismo e das redes
de coesão interna em torno da construção de sentidos
sobre o “papel político” e “social” de juízes e
procuradores em no regime democrático[7].

Nesse quadro, nossa conjuntura fornece duas pistas que


merecem atenção. De um lado, o procurador-geral do
MPF nomeado pelo atual governo abre um combate
aberto a Força Tarefa da lava Jato de Curitiba em um
debate público centrado na suspeição dos atos de líderes
da Operação. Em outra frente, avançam movimentações
na Câmara de Deputados no sentido de aprovar uma lei
que impõe quarentena de oito anos para as candidaturas
de juízes que, provavelmente, se estenderia, em segundo
momento, para os quadros do Ministério Público. Dois
efeitos da Lava Jato são postos em jogo, a sacralização
de suas lideranças e a possibilidade de inversão de lucros
políticos obtidos por seus agentes e por outros que
venham a surfar na onda de versões do novo
protagonismo político-judicial anticorrupção.

O protagonismo na condução da Operação Lava Jato


contribuiu para despertar uma agenda antipolítica muito
presente na história brasileira e colada ao descrédito
generalizado no sistema representativo. O esgotamento
desse ciclo pode já estar dando seus sinais com decisões
do STF desfavoráveis a Operação e os ataques internos
ao crédito da Força tarefa de Curitiba.

Resta saber até onde se estende o efeito bumerangue e


quais os potenciais danos que pode causar a
reivindicação de independência do sistema judicial e suas
fronteiras arduamente construídas desde o final do
regime militar. As experiências internacionais de “grandes
operações” não foram promissoras nem para a
estabilidade dos agentes judiciais, nem para a
consolidação de um efetivo sistema de combate à
corrupção, mas deixaram claro, os riscos que envolvem a
hiperpolitização da justiça e a importação seletiva de
modelos de justiça.

A saída antecipada do decano do STF, o ministro


Celso de Mello, noticiada com exclusividade
pelo JOTA, vai acelerar o processo de escolha pelo
presidente Jair Bolsonaro do novo ministro da Corte.
Esse é o tema discutido no episódio extra do Sem
Precedentes. Ouça:

[1] Ver colunas O Judiciário e a produção do escândalo


político JOTA, 13 de março de 2015 e Juízes vermelhos,
interesses cinzentos, JOTA 21 de fevereiro de 2018.

[2] Para um panorama geral ver DELLAPORTA, D. &


MÉNI, Y. (orgs.) Democracy and Corruption in Europe.
London. Pinter, 1997 e a coletânea BRIQUET, J. L. Juger
la politique. PUR. Paris, 2002 organizada por Jean L.
Briquet disponível para download livre em:
<https://books.openedition.org/pur/24754>.

[3] TOURINHO, Marcos. Brazil in the global


anticorruption regime. Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 61,
nº 1, e 004, 2018. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/0034-7329201800104>.

[4] Esta lei tornou ilegais os pagamentos efetuados a


funcionários de governos estrangeiros, partidos políticos
estrangeiros, candidatos a cargos políticos estrangeiros
em troca de vantagens comerciais ou econômicas sendo
aplicável não só a empresas com sede nos EUA, mas
também a empresas com ações cotadas nas Bolsas de
Valores Norte-Americana.

[5] Ver MENUZZI, E. & ENGELMANN, F. Elites jurídicas e


relações internacionais: Wilson Center e agenda
anticorrupção do Judiciário brasileiro. Conjuntura Austral.
Revista do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações
Internacionais da UFRGS, v. 11, 2020.

[6] Para maior detalhamento da relação entre a


cooperação internacional em torno dos movimentos
anticorrupção e as estratégias corporativas das
instituições judiciais ver o artigo recente ENGELMANN,
F.; MENUZZI, E. The internationalization of the Brazilian
Public Prosecutor’s Office: anticorruption and corporate
investment in 2000’s. Brazilian Polítical Science Review,
vol. 14, nº 1, 2020. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/1981-3821202000010006>.

[7] Ver ENGELMANN, F. Associativismo e Engajamento


Político dos Juristas Após a Constituição de 1988.
Revista Política Hoje. vol 18, n. 2, 2009. Disponível em:
<https://periodicos.ufpe.br/revistas/politicahoje/article/vi
ew/3842>.

Fabiano Engelmann – Professor do Programa de Pós-


Graduação em Ciência Política da UFRGS e pesquisador
do Núcleo de estudos em Justiça e Poder Política da
UFRGS.

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