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Estado de mal-estar social

Não é preciso ser Piketty para saber quem ganha


com a concentração de renda
17.jul.2020 às 23h15

O estado de bem-estar social, que teve sua origem na Europa, foi uma
resposta direta à eclosão da “questão social”, no final do século 19. O
medo da revolução, a preocupação em assegurar a coesão nacional,
associada à crescente indignação com as condições de vida dos
trabalhadores, levou liberais, progressistas e mesmo conservadores,
como Bismarck, na Alemanha, a uma inesperada convergência. Era
necessário transferir ao Estado maiores responsabilidades para regular a
economia e propiciar a melhoria das condições de vida de uma massa de
trabalhadores dilacerada pela Revolução Industrial.

Com a cisão entre sociais-democratas e marxistas, no início do século


20, e o afastamento dos democratas cristãos do fascismo, após a
Segunda Guerra, a coordenação democrática dos conflitos distributivos,
com o objetivo de gerar o pleno emprego e o bem-estar da população,
tornou-se o modelo predominante nas economias desenvolvidas.

Esse consenso começa a esmorecer em meados dos anos 1980, em face


de suas diversas contradições internas, mas também do fim da ameaça
comunista e do surgimento de uma nova ideologia que se tornaria
dominante entre as elites globais, pautada nas virtudes míticas do
individualismo e do livre mercado.

Nosso ensaio social-democrático, expresso no pacto de 1988, surge,


assim, no contrapé da história. A Constituição buscou substituir diversos
arranjos sociais corporativistas e excludentes do período Vargas por
políticas públicas baseadas em direitos universais à saúde, educação,
assistência e previdência social, além de incorporar novas demandas
como a proteção do meio ambiente e o reconhecimento de direitos de
grupos vulneráveis e tradicionalmente discriminados.

A realidade demonstrou que não tem sido simples colocar em prática o


compromisso de criar uma “sociedade mais livre, justa e solidária”, como
previsto no artigo 3º da Constituição Federal. Apesar de avanços
sensíveis em esferas como educação, saúde e assistência social, os
beneficiários da desigualdade resistem na defesa de seus privilégios,
subsídios, isenções, regressividades tributárias e outros achegos que, ao
longo de décadas, foram sendo entrincheirados no ordenamento jurídico.

Nesse contexto o debate em torno do ajuste fiscal, desvinculação de


receitas, reforma tributária e teto de gastos não pode ser tomado
ingenuamente.

Se é imperativo controlar o déficit público para recuperar a capacidade


de investimentos em educação, saúde, infraestrutura, segurança,
pesquisa e tecnologia, essenciais ao bem-estar da população e à
sustentabilidade da economia, não se deve esquecer da voracidade e
competência comprovada do 1% e especialmente do 0,01% da população
de se arvorar sobre recursos públicos ou reconfortar com um sistema
tributário que lhe foi tecido sob medida.

Não é preciso ser nenhum Thomas Piketty para saber quem ganha e
quem perde e quais mecanismos têm fortalecido uma obscena e
persistente concentração de renda no Brasil. Basta abrir a janela ou olhar
no espelho para saber.

Certamente não é a vinculação de receitas para investimentos em


educação e saúde a principal responsável pelo desequilíbrio fiscal
brasileiro, muito menos as despesas com mecanismos de assistência
social.

Desvincular e lançar recursos hoje destinados aos mais pobres para que
sejam livremente disputados na atroz arena do conflito distributivo
brasileiro, chamada Orçamento, não será um passo rumo a liberação do
Estado brasileiro, mas sim um salto em direção à consolidação de um
perigoso estado de mal-estar social.

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