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A importância da análise econômica

do Direito
José Maria Arruda de Andrade
31 de maio de 2020, 10h58

A discussão sobre a relação entre a economia e o


direito não é nova. Qualquer saber (conjunto de
saberes, de conhecimentos formalizados) não
jurídico que influencie a formação de normas
jurídicas e de decisões jurídicas desperta a
atenção quando se quer discutir as fronteiras de
uma teoria da argumentação e da
operacionalidade do direito.

Existiria apenas uma economia científica a


orientar o aprimoramento do direito?

Toda análise econômica do direito deveria estabelecer e defender


normativamente finalidades (econômicas) apriorísticas tendo o direito
como mero instrumento?

Acreditamos que não.

Seria possível defender o uso ainda mais intensivo de economia no


direito (um even more economic approach) sem com isso aderir às
fileiras daqueles que creem que exista uma análise econômica que seria
a melhor e a mais bem testada metodologia jurídica?

E que o uso ainda mais intensivo da economia significaria usar seus


instrumentos de forma menos eloquente e ideológica do que a mera
defesa de pautas políticas e mais técnica, em reforço (e não superação)
à aplicação do direito posto vigente, já que nosso país está marcado pelo
direito legislado (estado democrático de direito e separação dos
poderes)?
Acreditamos e defendemos que sim.

A economia, assim como o direito, é marcada por abordagens e opiniões


distintas. Inocente daquele que acha que a mera citação de um estudo
econômico atribuirá ao seu estudo um caráter empírico.

Defendemos, entretanto, a importância do uso de abordagens


econômicas para múltiplas situações de interesse jurídico. Porém, como
a alusão a um termo como o da “análise econômica do direito” desperta
paixões – daqueles que não a suportam e daqueles que pretendem ser
seus representantes comerciais exclusivos, ciumentos e raivosos em
redes sociais – bem vale uma digressão[1].

Levando em conta que tanto o direito quanto a economia buscam


descrever vários fatos sociais (relações intersubjetivas e suas
consequências) em comum (com maior ou menor abstração) a partir de
vocabulários específicos e próprios e a partir de abordagens distintas,
seria de se esperar que suas perspectivas pudessem ser úteis para uma
compreensão mais ampla no âmbito restrito de cada campo.

Avançando em uma direção que seja mais profunda ou pretensiosa do


que a mera pesquisa de contextos gerais (econômicos) para a
compreensão de um determinado tipo de problema legal, há inúmeros
exemplos históricos de análise econômica do direito, ou seja, professores
dedicados a estudar os dois saberes de forma conjunta. Se adotarmos
um sentido bem amplo de análise econômica do direito, podemos citar o
primeiro grande movimento americano de law and economics do final do
século XIX[2], algumas das escolas marxistas de direito e o
ordoliberalismo alemão[3].

Mas o fato é que quando se menciona a expressão Análise Econômica do


Direito (AED) ou Law and Economics (L&E) busca-se referir a um
determinado método de estudo jurídico construído após o esforço inicial
de alguns economistas e juristas que se valeram de técnicas econômicas
neoclássicas para estudar assuntos jurídicos a partir de construtos
derivados da teoria dos preços. Alguns temas já estavam bem próximos
da preocupação econômica, como o direito concorrencial, regulatório e
comercial; outros, contudo, pareciam mais distantes, como a
responsabilidade civil, contratos, direito de família e direito processual. A
origem desse movimento é identificada com o trabalho de Ronald Coase,
a partir do ensaio “The Problem of Social Cost”[4] e pelos estudos de
Calabresi, e ganhou projeção com a pesquisa realizada na Universidade
de Chicago[5].

Antes desses esforços, pode-se dizer que os estudos que utilizavam a


economia para a compreensão do direito estavam restritos à obtenção
de determinados objetivos econômicos por meio de regras jurídicas
(regulação). Após o advento desses novos construtos, o direito passa a
ser analisado como importante instituição (na guinada da economia para
o estudo das instituições)[6]. Uma forte reação acadêmica não demora a
se fazer presente, já que essa abordagem passa a concorrer com outras
ciências sociais aplicadas. Convém ressaltar, contudo, que o alvo de boa
parte das críticas não é redirecionada àqueles primeiros estudos de
Coase ou Calabresi, mas aos textos que se seguiram, notadamente o
clássico Economic Analysis of Law, de Richard Posner, publicado em
1973, e isso porque a proposta passa a ser a de usar a economia como
forma de aprimorar e influenciar a formação do direito, a partir da
perseguição da eficiência econômica ou maximização de riqueza, o que
corresponde a usar o direito como instrumento de atingimento de certas
finalidades preestabelecidas[7].

Em linguagem direta, a análise econômica do direito tradicional (AED),


ligada à Escola de Chicago[8], apresenta-se como teoria normativa a
partir da eleição apriorística de uma finalidade (eficiência econômica em
seu sentido bem específico, e poucas vezes compreendido, da Escola de
Chicago)[9] a ser atingida pelo direito.

Nos Estados Unidos, o advento e posterior domínio dessa metodologia


deve ser bem compreendido em suas especificidades, tais como: (i) a
política econômica americana (advento do neoliberalismo, crise fiscal,
inflação e ascensão ameaçadora da indústria japonesa), (ii) a
metodologia americana (e seu certo apreço a abordagens instrumentais
do direito – realismo e social science-oriented approach, p.e.) e (iii) um
sistema jurídico típico de um commom law, em que o construtivismo
jurisprudencial possui maior espaço.

A análise econômica do direito em sentido estrito seria, portanto, uma


teoria orientada pela eficiência econômica lastreada no Ótimo de
Pareto[10]. Nesse sentido, a interpretação do direito deveria buscar a
eficiência econômica típica dos neoclássicos, ainda que isso,
metodologicamente, esteja em colisão com as características
tipicamente valorativas de algum direito concretamente referido (se
pensarmos naqueles que defendem a transposição direta daquele
método a outros países, incluindo os que possuem uma ordem
econômica constitucional positivada, como o Brasil).

Em termos mais simples, a análise econômica do direito – em seu sentido


mais tradicional – prega a utilização de técnicas de estudo das
consequências econômicas das decisões jurídicas, sempre em termos
de eficiência alocativa. O próprio fundamento do direito seria a economia
em seu viés neoclássico, tendo como pressuposto a não intervenção
estatal (sempre mais defendida do que adotada, já o sabemos) e a
eleição da previsibilidade dos mercados como algo superior a outros
argumentos (como os fundamentos e garantias constitucionais)[11].
Trata-se, portanto, de uma teoria normativa, ou seja, comprometida em
afirmar como deve ser a aplicação do direito.

Ainda assim, não podemos reduzir a importância de uma análise


econômica do direito a determinados expedientes típicos do pensamento
norte-americano republicano do final do século XX, cujo argumento da
eficiência econômica como elemento normativo e teleológico possuía
uma finalidade prática e política nítida, de retomada do neoliberalismo do
governo Reagan (“government was the problem and not the solution”)
após o predomínio de décadas do pensamento keynesiano.

O uso de instrumentos analíticos econômicos pode ser extremamente


importante – e essa é a nossa pauta – para o direito, de forma que
evitaremos, aqui, as típicas bravatas metodológicas dos defensores de
formas tradicionais de análise econômica em nosso país (aquelas
referências mercadológicas do tipo: “a melhor metodologia jurídica”, “a
mais testada” etc). Tampouco daremos atenção às provocações de seus
defensores de que os juristas não devem ter medo de economia e que o
direito deve ser aplicado de forma eficiente (?!), típicas das introduções
de livros coletivos ou dos textos de alguns de seus autores.

Ao invés defender o uso do instrumental e do vocabulário econômico


para influenciar como os aplicadores do direito deveriam julgar casos
(complexos ou não) ou que tipo de ajuda a teoria dos jogos pode dar a
quem se depara com possíveis sentidos possíveis da norma, chamarei a
atenção para vários exemplos imprescindíveis da economia para a
compreensão de desafios jurídicos.

Naquilo que nos interessa mais diretamente, a saber, o direito


econômico, financeiro e tributário, o uso de instrumental econômico
pode ser interessante, sobretudo em abordagens lege ferenda e na
revisão de determinadas políticas econômicas concretas.

No âmbito tributário, salta aos olhos a necessidade de estudos


econômicos que determinem os potenciais efeitos de um projeto de
reforma tributária sobre a economia e sobre específicos setores. Quantas
abordagens de matriz insumo-produto poderiam ser evocadas para, ao
menos tentar, simular certos efeitos de uma determinada reforma sobre
o mercado, a partir de análises de interdependência entre os setores
(consistente em um sistema de equações lineares a representar a
distribuição da produção de um setor em relação aos demais, na forma
de insumos e demanda final, englobando o consumo das famílias, do
governo, da formação bruta de capital fixo e das exportações). Seriam
elas determinantes? Certamente, não. Basta ver os estudos que foram
produzidos antes da transição para a não-cumulatividade do PIS e
COFINS. Mas, os elementos oriundos de tais estudos podem fornecer
subsídios ao legislador e à sociedade antes de uma reforma e podem ser
preferíveis às intuições e armadilhas semânticas de qualquer sorte.
No âmbito da governança executiva das renúncias tributárias, o uso de
abordagens econômicas como as da econometria pode ser rico em dar
indícios do sucesso ou não de uma legislação já implementada. Basta
citar os estudos formulados sobre a desoneração da folha de pagamento
no âmbito acadêmico e no da Secretaria de Política Econômica do
Ministério da Fazenda, que subsidiaram a avaliação do gestor da política
econômica e do próprio legislador.

A diferença básica, e podemos nos aprofundar nesses exemplos


posteriormente nessa coluna – como já o fazemos em diversas palestras
– é que, nesses casos, a economia ajuda na compreensão da legislação
formulada ou a ser formulada, pode informar o legislador (eleito pelo
povo brasileiro) e os juristas sobre potenciais ou prováveis efeitos
decorrentes das medidas econômicas implementadas por meio de
normas jurídicas (aquilo que outros chamam de políticas públicas).

Além disso, como ocorre com frequência no direito concorrencial da


análise de concentrações econômicas, o uso mais intensivo da economia
permite uma melhor instrução probatória para a devida aplicação do
direito.

O que defendemos, contudo, é que esse instrumental econômico na


aplicação do direito ao caso concreto faz parte do campo da teoria das
provas e não o da decisão (fundamentação) jurídica, ou seja, a economia
está ao lado da boa aplicação do direito vigente e não a serviço da
construção de um novo sistema jurídico (contra legem, por exemplo). E
essa parece ser uma diferença radical.

O uso mais intensivo de economia significa, como o entendemos, o


manejo transparente de como os modelos são calibrados, como as
variáveis de interesse serão analisadas, quais serão os grupos de
controle utilizados nas comparações de cunho estatístico e assim por
diante. Em termos ainda mais diretos: uma ciência riquíssima e
sofisticada como a economia (e também a matemática) jamais serviria a
propósitos pré-estabelecidos e de cunho partidário ou de abordagens
limitadas ao curto prazo. Por certo, elas podem ser cooptadas, mas
nunca a ciência como um todo, apenas alguns autores, certamente mais
engajados e com interesses específicos, além dos cegos pela
ingenuidade da paixão pelo saber alheio.

Essa tem sido, portanto, a nossa defesa normativa: o uso cada vez mais
sofisticado da economia no direito para bem compreender (i) os efeitos
da promulgação de certas leis, (ii) a avaliação dos resultados das leis que
estão postas e (iii) as provas de convicção utilizadas na construção de
argumentos de justificação de decisões jurídicas (norma individual e
concreta). Tal uso deve ser acompanhado dos pressupostos e limitações
metodológicos de cada modelo (construção de árvores de decisão,
econométrico, matriz insumo-produto, equilíbrio geral computacional
etc), o que, em geral, são bem conhecidos e apresentados pelos
economistas proficientes, e pouco estudados pelo idólatras adventícios
do direito, que buscam construir um modelo metodológico genérico, que
vê, na teoria dos jogos, um exemplo de livro de autoajuda a ensinar como
bem decidir no caso de dúvidas.

[1] Aqueles que quiserem entender um pouco mais a minha abordagem


sobre a teoria da argumentação e o uso mais intensivo do vocabulário
econômico estão convidados a visitar meu livro: Economicização do
Direito Concorrencial, que tratou do tema tendo como objeto a análise de
concentrações empresariais no âmbito do direito concorrencial brasileiro.

[2] Pode-se afirmar que surge, inclusive, como uma reação ao


pensamento neoclássico econômico, ao contrário do atual movimento.
Os economistas do primeiro movimento estavam interessados na relação
entre o direito e a distribuição da riqueza na sociedade americana e com
uma certa desconfiança de que bem-estar pudesse ser alcançado
simplesmente a partir dos mercados e até mesmo da common law. Ver
Herbert HOVENKAMP, “The First Great Law & Economics Movement”,
Stanford Law Review, 1990, 994–95.

[3] Sobre o ordoliberalismo alemão, ver meu livro Economicização do


Direito Concorrencial. São Paulo: Quartier Latin, 2013: 81-92.

[4] Journal of Law and Economics, III. Chicago: Chicago University, 1960,
p. 1-44.

[5] Ver HOVENKAMP, “The First Great Law & Economics Movement”,
994. Robert Cooter, autor de um importante livro sobre Law and
Economics, faz um interessante balanço sobre o sucesso dessa teoria.
Ver COOTER, Robert D. “Thicker Selves in Law and Economics: towards
unified social theory”. In: GROßFELD, Bernhard & SACK, Rolf & MÖLLERS,
Thomas M. J. & DREXL, Josef & HEINEMANN, Andreas (coords.).
Festschrift für Wolfgang Fikentscher zum 70. Geburtstag. Tübingen:
Mohr Siebeck, 2008, p. 43-69.

[6] A distinção entre nova economia institucional e análise econômica do


direito no estilo de Chicago não parece estar sendo feita com o devido
cuidado na literatura brasileira. Assinalando a diferença entre as
abordagens, ver Richard POSNER, Para Além do Direito, p. 434 e,
sobretudo, 450-467. Sobre a eficiência econômica na Escola de Chicago,
ver Nicholas MERCURO e Steven G. MEDEMA, Economics and the Law:
From Posner to Post-Modernism, p. 57-69. Para um balanço rico em
detalhes do law and economics, ver Richard POSNER e Francesco
PARISI, “Law and Economics: An Introduction”, in Law and Economics
Volume 1: Theoretical and Methodological Foundations, Cheltenham,
Glos ; Lyme, N.H.: Edward Elgar Pub., 1997, p. ix-li.

[7] KIRCHNER, Christian. “The Difficult Reception of Law and Economics


in Germany. In: International Review of Law and Economics, vol. 11, 1991,
pp. 280-281.

[8] A Escola de Chicago surgiu a partir da obra de teóricos relacionados


a essa universidade e que partiam dos primeiros estudos baseados na
teoria dos preços de Aaron Director. Nesse sentido, Richard POSNER,
“The Chicago School of Antitrust Analysis”, p. 194. Ver, ainda, o
depoimento de Bork sobre o papel de A. Director na formação da Escola
de Chicago, na nova introdução de seu famoso livro, Robert H. BORK,
The Antitrust Paradox: A Policy at War with Itself, p. xii. Na Economia,
seus principais representantes foram Milton Friedman e George Stigler;
na Análise Econômica do Direito (law and economics), Richard Posner e
Robert Bork. Também teve muita importância o estudo de Ronald Coase
(“The Nature of the Firm”), muito embora haja diferenças entre as
abordagens.

[9] Como lembrou Robert Bork, sobre a ignorância generalizada em


torno do próprio conceito que ele defendia, o de eficiência econômica
(bem estar do consumidor): “Productive efficiency is a simple,
indispensable, and thoroughly misunderstood concept. Not one antitrust
lawyer in ten has a remotely satisfactory idea of the subject, and the
proportion of economists who do, though surely higher, is perhaps nor
dramatically so.”Cf Robert H. BORK, The Antitrust Paradox: A Policy at
War with Itself, p. 104.

[10] Ou na variante flexibilizante do critério Kaldor-Hicks, do Ótimo


Potencial, onde os ganhos de alguns compensam as perdas de outros.
Sobre esse princípio da compensação, também popularizado como
wealth maximization por Richard Posner, ver MERCURO, Nicholas e
MEDEMA, Steven G. Economics and the Law: From Posner to Post-
Modernism. Princeton: Princeton University Press, 1997, pp. 19–21 e
COOTER & ULEN, op. cit., p. 48.

[11] Por uma questão de delimitação de escopo, não trataremos das


escolas pós-Chicago e de correntes alternativas à análise lastreada em
pressupostos neoclássicos, já que se tornou um clichê defender,
retoricamente, a AED com a pretensa flexibilização obtida a partir do
avanço da matemática e do neoinstitucionalismo.

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José Maria Arruda de Andrade é professor associado de Direito


Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP),
livre-docente e doutor pela mesma instituição. Foi secretário-adjunto da
Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador
visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em
Munique (Alemanha).

Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2020, 10h58

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