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‘Ensaio sobre a cegueira’ como romance de advertência:

REFLEXÕES NA PANDEMIA
Uma trágica antecipação do ‘pandemônio’
que vivenciamos hoje
Christiane Russomano Freire
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

Introdução

O
romance, em seus mais diferentes estilos, conforme nos ensina Walter Benjamin (2010),
floresce no início da Idade Moderna, deixando para trás a narrativa como discurso vivo,
baseada na tradição oral e transmitida de geração em geração por narradores autônomos.
Seu surgimento como manifestação literária só foi possível em virtude da invenção da imprensa, e
sua existência e divulgação são indissociáveis do aparecimento do livro.

O que distingue, especialmente, o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e
mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral, nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da
narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros.
E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance
é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e
que não recebe conselhos e nem sabe dá-los (BENJAMIN, 2010, pp. 200-201).

Para Benjamin, os estatutos históricos da narrativa e do romance se distinguem


substancialmente: enquanto a primeira apresenta como centro do seu movimento a “moral da
história”, o segundo apresenta “o sentido da vida” (Idem, ibid., p. 212). Dito de outra forma, a
narrativa tem como marca a natureza utilitária, podendo conter um ensinamento moral, um
conselho prático ou simplesmente um provérbio; já o romance não contém ensinamentos, ele
normalmente expressa a profunda perplexidade diante da vida.
A breve referência ao lugar ocupado pelo romance no rol das manifestações culturais
modernas, no presente artigo, tem como objetivo a tomada de empréstimo do conceito de
“romance de advertência”, adotado por Leonidas Donskis e Zygmunt Bauman no diálogo travado
na obra Cegueira moral (2014). Tal conceito pode ser traduzido como uma expressão que se aplica
a obras de literatura (basicamente distopias1) que empregam narrativas, temas e assuntos utópicos
e os levam à sua conclusão lógica, mostrando onde as utopias finalmente terminam e quando se
transformam em realidade (BAUMAN e DONSKIS, 2014, pp. 232-233).
Algumas obras literárias de advertência foram paradigmáticas ao prevenir trajetos da história
do mundo moderno melhor do que muitos pessimistas culturais com suas teorias sombrias sobre
a história e cultura cíclica. Dentre as mais significativas são citadas: Nós, publicado em 1924 pelo
russo Yevgeny Zamyatin, que preveniu a humanidade sobre o germe do totalitarismo contido no

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projeto da modernidade, bem como sobre a possível morte das ciências humanas e o falecimento
dos sentimentos; Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, publicado em 1932; e 1984, de
George Orwell, publicado em 1949 (Idem, ibid.).
Inspirado no conceito de romance de advertência, conforme a abordagem proposta por
Bauman e Donskis, o presente ensaio busca refletir, através da lente do romance Ensaio sobre a
cegueira, de José Saramago, publicado em 1995, sobre a tragédia vivenciada hoje em esfera global
em razão da pandemia de Covid-19.

O ‘Ensaio sobre a cegueira’ como romance de advertência

O livro de Saramago ilustra o drama de um país acometido pelo alastramento de uma


epidemia denominada “cegueira branca”, compreendida não como a tradicional ausência de luz,
mas como uma luminosidade tão intensa que torna tudo duplamente invisível. O primeiro
personagem acometido pela enfermidade rememora a brincadeira de adolescente “E se eu fosse
cego?” e descreve as percepções e sensações suscitadas pela mesma:

Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escuridão em que os cegos viviam não era, afinal, senão a simples
ausência da luz, que o que chamamos de cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos seres e das
coisas, deixando-os intactos por trás do seu véu negro. Agora, pelo contrário, ei-lo que se encontra mergulhado
numa brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias
coisas e seres, tornando-os, por essa maneira, duplamente invisíveis (SARAMAGO, 1995, pp. 15-16).

A grande metáfora de Saramago começa a ser desvelada já no início do romance, mais


exatamente quando o médico, um oftalmologista, perplexo, examina os sintomas apresentados
pelo primeiro personagem, um funcionário do Ministério, não identificando nenhum tipo de
lesão, malformação de nascença ou qualquer outra patologia anteriormente diagnosticada. A
singularidade da situação o impele a recorrer à bibliografia clássica, na qual identifica duas
patologias já bastante conhecidas pela oftalmologia: a agnosia, considerada uma cegueira psíquica
que se caracteriza pela incapacidade de reconhecer o que se vê — ou seja, não há diminuição da
acuidade visual, mas o cérebro perde a faculdade de reconhecimento; e a amaurose, que se
distingue pelo fato de a pessoa ver tudo negro, ou melhor, não ver. Logo, não identificada
nenhuma das características dessas duas modalidades, o médico conclui estar diante de um
fenômeno sem precedentes na história da medicina.
O tratamento impessoal e insolente dispensado pelo funcionário do Ministério ao
oftalmologista, quando, também acometido da moléstia, tenta informar as autoridades
sanitárias do possível surgimento da epidemia, faz com que este, mais triste do que
revoltado, professe à sua esposa: “É dessa massa que nós somos feitos, metade de indiferença
e metade de ruindade” (Idem, ibid., p. 40).

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A complexa trama imaginada por Saramago possibilita importantes digressões sobre as


formas de sociabilidades forjadas na contemporaneidade. Identifica-se, por um lado, as relações
estabelecidas entre os indivíduos, traduzidas na (in)capacidade de estabelecer laços de
solidariedade e compaixão e, por outro, as relações entre indivíduos e Estado, plasmadas na figura
do Ministério, concebido como um corpo burocrático preocupado em ocultar e ao mesmo tempo
controlar a qualquer custo o alastramento da epidemia da cegueira branca.
Outro aspecto que não passa despercebido são as opções dos locais propostos pelo Ministério por
ocasião da decisão de isolar os primeiros doentes. Obviamente, não foi por acaso que o autor elencou
instalações militares, feira industrial, manicômio e hipermercado como locais mais adequados para a
segregação dos cegos indesejáveis. À exceção do último, as três outras opções integraram
tradicionalmente o que se pode chamar de complexo moderno de controle e disciplinamento. A
importância conferida à arquitetura como mecanismo de vigilância fica clara na fala do presidente da
comissão de logística e segurança, encarregado do transporte, isolamento e suprimento dos pacientes:

Sim, senhor ministro, o manicômio. Pois então que seja o manicômio. Aliás, a todas as luzes, é o que apresenta
melhores condições, porque, a par de estar murado em todo o seu perímetro, ainda tem a vantagem de se
compor de duas alas, uma que destinaremos aos cegos propriamente ditos, outra para os suspeitos, além de
um corpo central que servirá, por assim dizer, de terra-de-ninguém, por onde os que cegarem transitarão para
irem juntar-se aos que já estavam cegos (Idem, ibid., p. 46).

A cegueira como epidemia pode ser compreendida de inúmeras maneiras, mas remete,
sobretudo, à incapacidade de enxergar o Outro, à indiferença gélida ou mesmo ao fenecimento
dos sentimentos. O embrutecimento dos indivíduos os impossibilita de colocar-se no lugar do
Outro e faz da imunização a tarefa central para a conservação do lugar que ocupam no espaço
social. Por isso, o contágio deve ser evitado a qualquer custo.
Saramago descreve o pânico instaurado em decorrência da proliferação da cegueira branca, assim
como aponta todas as medidas adotadas para evitar o contágio. Ao iniciar os procedimentos de
isolamento, o governo apela para o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a
propagação da doença. Nesse contexto é utilizado um alto-falante para a transmissão de instruções
disciplinares a serem observadas pelos cegos no interior do manicômio. As determinações são
categóricas: os doentes não poderiam sair do local de segregação, não poderiam ultrapassar
determinados limites estabelecidos e, fundamentalmente, não poderiam se aproximar dos
responsáveis pela vigilância e custódia, sob pena de serem mortos. Como narrado no início da história,
um dos primeiros cegos — tratado pelo autor como “simples ladrãozeco de automóveis sem esperança
de avanço na carreira” (Idem, ibid., p. 25) — foi assassinado ao aproximar-se dos guardas solicitando
medicamentos em virtude de um ferimento. Nesse episódio fica evidente não somente a cegueira como
enfermidade que acomete os internos, mas também a cegueira que afeta os responsáveis pela sua
custódia: “A cegueira estava alastrando, não como uma maré repentina que tudo inundasse e levasse à
sua frente, mas como uma infiltração insidiosa de mil e um buliçosos regatinhos que, tendo vindo a
empapar lentamente a terra, de repente a afogam por completo” (Idem, ibid., p. 124).

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Por outro lado, o alarme social aparece como argumento propulsor e legitimador das estratégias
de governo voltadas para a contenção das ameaças de contágio, conforme descreve o autor:

A prova da progressiva deterioração do estado de espírito geral deu-a o próprio Governo, alterando por duas
vezes, em meia dúzia de dias, a sua estratégia. Primeiro, tinha acreditado ser possível circunscrever o mal
recorrendo ao encerramento dos cegos e dos contaminados em uns quantos espaços discriminados, como
o manicômio em que no encontramos. Logo, o inexorável crescimento dos casos de cegueira levou alguns
membros influentes do Governo, receosos de que a iniciativa oficial não chegasse para as encomendas,
donde resultariam pesados custos políticos, a defender a idéia de que deveria competir às famílias guardar
em casa os seus cegos, não os deixando sair à rua, a fim de não complicarem o já difícil transito nem
ofenderem a sensibilidade das pessoas que ainda viam com os olhos que tinham e que, indiferentes a
opiniões mais ou menos tranqüilizadoras, acreditavam que o mal-branco se propagava por contacto visual
como o mau-olhado (Idem, ibid., pp. 124-125).

Um cenário totalmente destituído de empatia e compaixão vai sendo construído por


Saramago ao descrever as formas e os acordos de sobrevivência firmados pelos cegos no interior
do manicômio. Não obstante a subordinação total para com as regras estabelecidas pelos
responsáveis pela custódia, os cegos que ocuparam a primeira camarata conseguiram estabelecer
regras de convivência minimamente civilizadas, com a mediação da mulher do médico, que,
embora se fizesse passar por cega, não fora acometida pelo mal branco.
No entanto, é a partir da chegada dos outros cegos e da ocupação progressiva do manicômio
que os instintos de sobrevivência assumem total supremacia, soterrando todo e qualquer laço de
solidariedade. As experiências são moduladas pela lei do mais forte, a desonestidade e a traição
são os expedientes mais comuns e a violência define as relações pessoais.
A epidemia da treva branca desenha um espetáculo de horror fortemente marcado por
situações de impotência, humilhação, desespero e fracasso. O ponto culminante do processo de
desumanização que assola a vida no interior do manicômio é o momento em que os cegos
malvados, que conseguiram hegemonizar a distribuição de comida, passam a exigir a submissão
das mulheres das outras camaratas aos seus desejos. Após um tenso debate entre os internos das
outras camaratas com suas esposas ou companheiras de habitação, entre muitas manifestações de
revolta, indignação, objeção e até mesmo da proibição por parte do primeiro cego da ida de sua
esposa, as mulheres foram unânimes ao decidirem se submeter à ingrata tarefa.
No relato do encontro entre as mulheres e os cegos malvados, Saramago lança mão de
atributos grotescos e descrições bestiais, chamando atenção para a natureza selvagem de
usurpação e a violência sexual a que elas as foram submetidas.

De dentro saíram gritos, relinchos, risadas. Quatro cegos afastaram rapidamente a cama que servia de barreira
à entrada. Depressa meninas, entrem, entrem, estamos todos aqui como uns cavalos, vão levar o papo cheio,
dizia um deles. Os cegos rodearam-nas, tentavam apalpá-las, mas recuaram logo, aos tropeções, quando o
chefe, o que tinha a pistola, gritou. O primeiro a escolher sou eu, já sabem (Idem, ibid., p. 175).

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A esposa do médico, que finge estar cega para acompanhar o marido em sua desventura,
é a personagem emblemática do romance. Inicialmente, atua como tábua de salvação dos
internos da primeira camarata, servindo como orientadora e mediadora das cruéis
experiências diárias no manicômio. Resignada pelo fato de não ter sido contagiada pela
enfermidade, a personagem, no decorrer dos acontecimentos, diante do aprofundamento da
penúria, da violência e das disputas, sofre importantes alterações comportamentais.
Motivada não somente pela incapacidade de tolerar, mas, sobretudo, de visualizar a
crescente degradação humana sofrida pelos seus pares, seu primeiro impulso foi declarar a
todos que não estava cega; foi logo dissuadida por seu marido, sob o argumento de que uma
vez cientes de sua condição, os cegos tenderiam a escravizá-la, impondo-lhe as mais diferentes
e abusivas tarefas. No decorrer da narrativa, em razão do surgimento de situações extremas,
em especial as condições impostas pelos cegos malvados, liderados por um sujeito que portava
uma arma, ela assume uma postura profundamente distinta.
A quebra de todos os códigos éticos e morais, o vilipendiar de toda e qualquer expressão
de racionalidade, a negação categórica da fala e, mais do que tudo, do olhar, deixaram em pé
somente a linguagem da violência e da vingança, corporificada no assassinato do líder dos
cegos malvados pela esposa do médico. Gritando com fúria, momentos após assassinar o líder
ela expressou com veemência sua nova postura:

Lembrem-se do que eu no outro dia disse, que não me esqueceria da cara dele, e daqui em diante pensem
no que vos digo agora, que também não me esquecerei das vossas. (...) Talvez eu seja a mais cega de
todos, já matei, e tornarei a matar se for preciso, Antes disso morrerás de fome, a partir de hoje acabou-
se a comida, nem que venham cá todas oferecer numa bandeja os três buracos com que nasceram. Por
cada dia que estivermos sem comer por vossa culpa, morrerá um dos que aqui se encontram, basta que
ponham um pé fora desta porta (Idem, ibid., pp. 187-188).

Ultrapassadas as barreiras éticas iniciais, a urgência da satisfação das necessidades básicas se


tornou o imperativo. É nesse contexto que se insere a decisão dos cegos da primeira camarata de
organizar um assalto à camarata dos cegos malvados, a fim de se apossarem dos suprimentos
alimentares. Com o desfecho do embate, cadáveres espalhados pelo chão motivaram a mulher do
médico a compreender que “não tinha qualquer sentido, se o havia tido alguma vez, continuar
com o fingimento de ser cega, está visto que aqui já ninguém se pode salvar, a cegueira também é
isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança” (Idem, ibid., p. 204).
Por fim, veio a decisão de uma das mulheres de atear fogo à camarata dos cegos malvados, o
que resultou não somente na queima de muitos desses corpos, mas também em pânico, desespero
e disputa entre o restante dos cegos para escapar das labaredas. Destruída parte substancial do
edifício, os cegos que sobraram se questionaram por que não saíam para a rua. Alguém se lembrou
da existência dos soldados que guardavam o manicômio, ponderando ser menos sofrido morrer
com um tiro do que queimado, e o grupo decidiu, então, buscar a saída. Logo se deram conta de
que os soldados tinham ido embora ou tinham sido levados por também estarem cegos.

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Livres, os cegos resistem em sair, ficam parados no meio da rua, se perguntam o que teria acontecido, várias
são as conjecturas, sobre a descoberta de algum remédio para o surto Ou se o contágio havia cessado. Assim,
é que não há comparação entre viver num labirinto racional, como é, por definição um manicômio, e aventurar-
se, sem mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a memória para nada servirá,
pois apenas será capaz de mostrar a imagem dos lugares e não os caminhos para lá chegar (Idem, ibid., p. 211).

Desvendado há algum tempo o fato de não estar cega, a mulher do médico assume, agora
com total legitimidade e clareza, sua condição de guia e líder do grupo. O cenário da cidade
descrito por Saramago evidencia a profunda degradação do espaço urbano organizado, espelho
caótico da desintegração humana que acompanhou o alastramento da epidemia da cegueira
branca. Numa paisagem marcada pela morte e pelo abandono dos corpos, pela acumulação e
putrefação de dejetos, a luta pela sobrevivência se baseia nas mais distintas formas de incivilidade.
Rompidos os laços familiares, sociais e identitários, a cidade é ocupada por “hordas primitivas”
que vagam a esmo condenadas à indigência e ao desespero.
Saramago reafirma a todo o momento a importância e a distinção da capacidade de ver,
conferindo-lhe o status de condição essencial no processo de humanização. O autor demonstra,
metaforicamente, que a habilidade de enxergar não se reduz pura e simplesmente à percepção
visual, ligada a fatores fisiológicos ou neurológicos, mas é a capacidade de pensar a realidade em
que se vive, de visualizar e se colocar no lugar do outro. Ou seja, a habilidade de ver reside na
capacidade de reconhecimento do outro tal como ele é, com semelhanças e singularidades,
clarezas e obscuridades, qualidades e defeitos.
Ao tornar a mulher do médico imune à epidemia da cegueira branca, Saramago a transforma
em protagonista do romance e permite que o leitor, por meio de suas ilações e constatações,
consiga desvendar dimensões substanciais da narrativa. A primeira dimensão que merece reflexão
é a conservação da lucidez e o papel de liderança exercido por parte da protagonista, que pode ser
ilustrado por meio da seguinte fala:

Hoje é hoje, amanhã será amanhã, é hoje que tenho a responsabilidade, não amanhã, se estiver cega.
Responsabilidade de quê, A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam, Não podes guiar
nem dar de comer a todos os cegos do mundo, Deveria, Mas não podes, Ajudarei no que estiver ao meu alcance
(Idem, ibid., p. 241).

A segunda dimensão relaciona-se a como a perda do sentido da visão pode se alastrar por
toda uma comunidade, assim como a quanto ela pode afetar mesmo aqueles que mantiveram a
capacidade de enxergar. O diálogo entre a mulher do médico, o médico e a rapariga dos óculos
escuros sintetiza a proposição do autor.

Falas como se também tu estivesses cega, disse a rapariga dos óculos escuros, De uma certa maneira,
é verdade, estou cega da vossa cegueira, talvez pudesse começar a ver melhor se fôssemos mais os
que vêem... O tempo está-se a acabar, a podridão alastra, as doenças encontram as portas abertas, a
água esgota-se, a comida tornou-se veneno, seria esta a minha primeira declaração, disse a mulher do

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médico, E a segunda, perguntou a rapariga de óculos escuros, Abramos os olhos, Não podemos,
estamos cegos, disse o médico, É uma grande verdade a que diz que o pior cego foi aquele que não
quis ver, Mas eu quero ver, disse a rapariga dos óculos escuros, Não será por isso que verás, a única
diferença era que deixarias de ser a pior cega... (Idem, ibid., pp. 283-284).

O questionamento da mulher do médico e da rapariga dos óculos escuros sobre o quanto a


cegueira branca tem de concreto e real sugere mais uma vez que o autor utiliza a figura de linguagem
para descrever um sintoma social, que, por sua capacidade de alastramento e permanência no
tempo, assume dimensões epidêmicas, sendo capaz de destruir e soterrar as mais conhecidas
relações e formas de sociabilidade. Assim, a perda do sentido da visão pode ser compreendida como
a perda da sensibilidade, da alteridade, da solidariedade e da capacidade de irresignação. É o que
sutilmente indica as falas dos personagens. A mulher do médico diz: “cegos de olhos e cegos de
sentimento, porque os sentimentos com que temos vivido e que nos fizeram viver como éramos, foi
de termos olhos que nasceram, sem olhos os sentimentos vão tornar-se diferentes, não sabemos
como, não sabemos quais...” (Idem, ibid., p. 242). Logo após, o velho da venda declara:

Nem eu me estou a queixar, só digo que apenas servimos para isto, para ouvir e ler a história de uma
humanidade que antes de nós existiu, aproveitamos o acaso de haver aqui ainda uns olhos lúcidos, os últimos
que restam, se um dia eles se apagarem, não quero nem pensar, então o fio que nos une a essa humanidade
partir-se-á, será como se estivéssemos a afastar-nos uns dos outros no espaço, para sempre, e tão cegos eles
como nós.... (Idem, ibid., p. 290).

Após essa digressão sobre a obra, retoma-se o argumento central do presente ensaio: o
romance de Saramago, Ensaio sobre a cegueira, também se inscreve na categoria das obras
literárias de advertência, e é nessa conjectura que se sustenta a possibilidade de ele lançar luz sobre
reflexões acerca do fenômeno da pandemia de Covid-19.

A pandemia de Covid-19: um ‘Ensaio sobre o silêncio’

As circunstâncias singulares da pandemia de Covid-19 lhe conferiram status de fenômeno


inédito no curso das últimas décadas. Se na sua gênese ela pôde ser considerada um evento sanitário,
no curso de sua trajetória assume dimensões de catástrofe social, uma vez que não apenas desnuda,
mas, sobretudo, aprofunda drasticamente os marcadores sociais, econômicos e culturais de
desigualdade e exclusão que desenham as formas de sociabilidade em vários países do mundo.
Distintamente do que se costuma pensar, a pandemia que se alastra globalmente não atingiu
a todos de forma indiscriminada, uma vez que os seus graus de contágio e letalidade se definem
essencialmente pela sobreposição dos marcadores de vulneralibilidade. O caso brasileiro é
bastante ilustrativo da conjectura acima apresentada, pois, no curso da disseminação viral, as
pessoas ou grupos de pessoas mais afetadas são aquelas com os mais frágeis vínculos de acesso à
rede de direitos sociais básicos, entre eles saúde, higiene, habitação, alimentação, educação etc.

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Uma pluralidade de causas expõe grupos sociais mais vulneráveis à contaminação do surto
pandêmico — idosos, portadores de comorbidades, moradores de comunidades periféricas sem
acesso a saneamento básico e assistência à saúde, indígenas, pessoas privadas de liberdade,
adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em meio fechado, pessoas com problemas
de saúde mental, população de rua, entre outros. Soma-se a isto os nocivos efeitos dos processos
de precarização do trabalho em curso no Brasil, que hoje condenam ao desemprego 12,8 milhões
de pessoas entre a população economicamente ativa e deslocam para informalidade
aproximadamente 24 milhões de brasileiros.
A proliferação e a letalidade do vírus ressignificam dramaticamente os pilares da sociedade
contemporânea, traduzidos pela dissolução das fronteiras nacionais, pela circulação incessante de
pessoas, bens e valores e também pela velocidade e instantaneidade que marcam todas as relações sociais.
Não parece coincidência que exatamente neste período da história humana, marcado
pela supremacia destrutiva sobre a natureza, pelo reino absoluto das leis de mercado e dos
fluxos do capital financeiro, pela hegemonia do consenso neoliberal, pelo fim das redes de
proteção social, pelo elogio à responsabilização individual pelas trajetórias, surja uma
patologia que coloca em xeque as atuais formas de vida no planeta. Como na obra distópica,
em questão de poucos de dias milhares de pessoas foram afetadas por um vírus desconhecido
que alterou drasticamente a vida cotidiana, impondo diferentes formas de gestão econômica
e políticas da crise sanitária pelas instituições e governos constituídos.
Adotada a lente proposta por Saramago, que descreve a epidemia do mal branco como
um excesso de luz que suprime a capacidade humana da visão, causando a cegueira coletiva,
lança-se aqui, num pretensioso exercício de analogia, a hipótese de que a pandemia de Covid-
19, diferentemente da ausência de visão, singulariza-se pela suspensão das relações pessoais
presenciais e pela perda da capacidade de construção de projetos contra-hegemônicos, tanto
em relação às consequências da própria pandemia, quanto aos processos de aprofundamento
das desigualdades sociais e econômicas que já estavam em curso.
As principais medidas para a prevenção e o combate ao alastramento do vírus,
efetivadas no isolamento físico e no uso de máscaras protetoras das vias respiratórias,
contribuem para restringir as ações coletivas, as manifestações das inconformidades, os
diálogos e, sobretudo, a possibilidade de construção de um projeto mínimo que inaugure
formas de sociabilidades com clivagens mais humanistas.
A exigência de isolamento, compensada excessivamente pelas relações e manifestações
virtuais, define uma nova forma de suspensão temporal, fixada no presente, que pode configurar-
se como um ingrediente capaz de fortalecer o individualismo e a indiferença, contribuindo para
a fragilização das capacidades altruístas e de resistência.
No Brasil, a situação acima descrita conta com um agravante significativo: o
crescimento do populismo autoritário, reconfigurado com a eleição de Jair Bolsonaro em
2018. A onda ultraconservadora que assola o país encontrou na pandemia um terreno
fértil para o aprofundamento e a consolidação dos ataques às instituições, à ciência e às

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liberdades democráticas, sustentada num consenso ideológico envolvendo setores das


Forças Armadas, das forças de segurança pública, do Congresso Nacional, da elite, da
classe média e até de segmentos populares ligados às igrejas conservadoras. Essas alianças
reivindicam a reconstrução de um modelo autoritário inspirado na glorificação do regime
ditatorial civil-militar inaugurado no país nos anos 1960.
Por tudo o que foi dito, é importante revisitar a obra de José Saramago, que, embora
remonte à década de 1990, aparece como presságio dos sintomas que paulatinamente
preponderam, modulam e definem relações inter-humanas no século XXI. A imunização diante
da dor do outro é com certeza um sinal distintivo da nossa contemporaneidade. Por um lado, a
incapacidade de visualizar o desgaste dos laços de solidariedade, o aprofundamento das
desigualdades sociais e culturais, os crescentes processos de exclusão e eliminação de setores
sociais redundantes. Por outro, a supremacia e o elogio às trajetórias individuais, que não
somente diminuem as possibilidades de arranjo coletivo, mas substancialmente obscurecem a
compreensão acerca de qual caminho deve ser trilhado.
Ensaio sobre a cegueira consiste, portanto, em uma alegoria distópica que ao mesmo tempo
leva às últimas consequências os perigos da perda do sentido visual na sua acepção de compreensão,
reflexão e crítica sobre as formas do viver em sociedade e abre a possibilidade, embora residual, de,
por meio da retomada dos sentimentos de solidariedade, empatia, compaixão e amor, empreender
uma luta irresignada por tudo aquilo que resta do que se pode denominar humano.
O diálogo final entre o médico e sua esposa parece reforçar a metáfora utilizada no curso da
narrativa por Saramago: “Por que foi que cegámos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a
razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos,
Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem” (Idem, ibid., p. 310).
Por fim, diante de tantas incertezas, parece importante resgatarmos “a responsabilidade de
ter olhos quando os outros os perderam” (Idem, ibid., p. 241). E nesse ponto, para além do ver é
preciso urgentemente intervir na realidade, para que não sejamos por ela atropelados.

Notas

1
As chamadas distopias podem ser entendidas filologicamente como “utopias negativas”. Esse neologismo foi cunhado
por Gregg Webber e John Stuart Mill num discurso ao Parlamento britânico em 1868: “É, provavelmente, demasiado
elogioso chamar-lhes utópicos; deveriam em vez disso ser chamados dis-tópicos, ou caco-tópicos. O que é comumente
chamado utopia é demasiado bom para ser praticável; mas o que eles parecem defender é demasiado mau para ser
praticável” (COLETTO, 2011).

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Referências

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.


________; DONSKIS, Leonidas. Cegueira moral: A perda da sensibilidade na modernidade líquida. Rio
de Janeiro: Zahar, 2014.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaio sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
COLETTO, Sergio. “A literatura da distopia”. Obvious Magazine, Artes e Ideias, 2011. Disponível (on-
line) em: http://obviousmag.org/archives/2011/01/a_literatura_da_distopia.html
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

CHRISTIANE RUSSOMANO FREIRE


(christianerussomano@gmail.com) é professora e
pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS, Porto Alegre, Brasil) e
integra o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de
Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC),
da mesma universidade. É doutora pelo Programa
de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS.

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