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REFLEXÕES NA PANDEMIA
Uma trágica antecipação do ‘pandemônio’
que vivenciamos hoje
Christiane Russomano Freire
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Introdução
O
romance, em seus mais diferentes estilos, conforme nos ensina Walter Benjamin (2010),
floresce no início da Idade Moderna, deixando para trás a narrativa como discurso vivo,
baseada na tradição oral e transmitida de geração em geração por narradores autônomos.
Seu surgimento como manifestação literária só foi possível em virtude da invenção da imprensa, e
sua existência e divulgação são indissociáveis do aparecimento do livro.
O que distingue, especialmente, o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e
mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral, nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da
narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros.
E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance
é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e
que não recebe conselhos e nem sabe dá-los (BENJAMIN, 2010, pp. 200-201).
DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social – Rio de Janeiro – Reflexões da Pandemia 2020 – pp. 1-10
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projeto da modernidade, bem como sobre a possível morte das ciências humanas e o falecimento
dos sentimentos; Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, publicado em 1932; e 1984, de
George Orwell, publicado em 1949 (Idem, ibid.).
Inspirado no conceito de romance de advertência, conforme a abordagem proposta por
Bauman e Donskis, o presente ensaio busca refletir, através da lente do romance Ensaio sobre a
cegueira, de José Saramago, publicado em 1995, sobre a tragédia vivenciada hoje em esfera global
em razão da pandemia de Covid-19.
Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escuridão em que os cegos viviam não era, afinal, senão a simples
ausência da luz, que o que chamamos de cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos seres e das
coisas, deixando-os intactos por trás do seu véu negro. Agora, pelo contrário, ei-lo que se encontra mergulhado
numa brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias
coisas e seres, tornando-os, por essa maneira, duplamente invisíveis (SARAMAGO, 1995, pp. 15-16).
Sim, senhor ministro, o manicômio. Pois então que seja o manicômio. Aliás, a todas as luzes, é o que apresenta
melhores condições, porque, a par de estar murado em todo o seu perímetro, ainda tem a vantagem de se
compor de duas alas, uma que destinaremos aos cegos propriamente ditos, outra para os suspeitos, além de
um corpo central que servirá, por assim dizer, de terra-de-ninguém, por onde os que cegarem transitarão para
irem juntar-se aos que já estavam cegos (Idem, ibid., p. 46).
A cegueira como epidemia pode ser compreendida de inúmeras maneiras, mas remete,
sobretudo, à incapacidade de enxergar o Outro, à indiferença gélida ou mesmo ao fenecimento
dos sentimentos. O embrutecimento dos indivíduos os impossibilita de colocar-se no lugar do
Outro e faz da imunização a tarefa central para a conservação do lugar que ocupam no espaço
social. Por isso, o contágio deve ser evitado a qualquer custo.
Saramago descreve o pânico instaurado em decorrência da proliferação da cegueira branca, assim
como aponta todas as medidas adotadas para evitar o contágio. Ao iniciar os procedimentos de
isolamento, o governo apela para o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a
propagação da doença. Nesse contexto é utilizado um alto-falante para a transmissão de instruções
disciplinares a serem observadas pelos cegos no interior do manicômio. As determinações são
categóricas: os doentes não poderiam sair do local de segregação, não poderiam ultrapassar
determinados limites estabelecidos e, fundamentalmente, não poderiam se aproximar dos
responsáveis pela vigilância e custódia, sob pena de serem mortos. Como narrado no início da história,
um dos primeiros cegos — tratado pelo autor como “simples ladrãozeco de automóveis sem esperança
de avanço na carreira” (Idem, ibid., p. 25) — foi assassinado ao aproximar-se dos guardas solicitando
medicamentos em virtude de um ferimento. Nesse episódio fica evidente não somente a cegueira como
enfermidade que acomete os internos, mas também a cegueira que afeta os responsáveis pela sua
custódia: “A cegueira estava alastrando, não como uma maré repentina que tudo inundasse e levasse à
sua frente, mas como uma infiltração insidiosa de mil e um buliçosos regatinhos que, tendo vindo a
empapar lentamente a terra, de repente a afogam por completo” (Idem, ibid., p. 124).
Por outro lado, o alarme social aparece como argumento propulsor e legitimador das estratégias
de governo voltadas para a contenção das ameaças de contágio, conforme descreve o autor:
A prova da progressiva deterioração do estado de espírito geral deu-a o próprio Governo, alterando por duas
vezes, em meia dúzia de dias, a sua estratégia. Primeiro, tinha acreditado ser possível circunscrever o mal
recorrendo ao encerramento dos cegos e dos contaminados em uns quantos espaços discriminados, como
o manicômio em que no encontramos. Logo, o inexorável crescimento dos casos de cegueira levou alguns
membros influentes do Governo, receosos de que a iniciativa oficial não chegasse para as encomendas,
donde resultariam pesados custos políticos, a defender a idéia de que deveria competir às famílias guardar
em casa os seus cegos, não os deixando sair à rua, a fim de não complicarem o já difícil transito nem
ofenderem a sensibilidade das pessoas que ainda viam com os olhos que tinham e que, indiferentes a
opiniões mais ou menos tranqüilizadoras, acreditavam que o mal-branco se propagava por contacto visual
como o mau-olhado (Idem, ibid., pp. 124-125).
De dentro saíram gritos, relinchos, risadas. Quatro cegos afastaram rapidamente a cama que servia de barreira
à entrada. Depressa meninas, entrem, entrem, estamos todos aqui como uns cavalos, vão levar o papo cheio,
dizia um deles. Os cegos rodearam-nas, tentavam apalpá-las, mas recuaram logo, aos tropeções, quando o
chefe, o que tinha a pistola, gritou. O primeiro a escolher sou eu, já sabem (Idem, ibid., p. 175).
A esposa do médico, que finge estar cega para acompanhar o marido em sua desventura,
é a personagem emblemática do romance. Inicialmente, atua como tábua de salvação dos
internos da primeira camarata, servindo como orientadora e mediadora das cruéis
experiências diárias no manicômio. Resignada pelo fato de não ter sido contagiada pela
enfermidade, a personagem, no decorrer dos acontecimentos, diante do aprofundamento da
penúria, da violência e das disputas, sofre importantes alterações comportamentais.
Motivada não somente pela incapacidade de tolerar, mas, sobretudo, de visualizar a
crescente degradação humana sofrida pelos seus pares, seu primeiro impulso foi declarar a
todos que não estava cega; foi logo dissuadida por seu marido, sob o argumento de que uma
vez cientes de sua condição, os cegos tenderiam a escravizá-la, impondo-lhe as mais diferentes
e abusivas tarefas. No decorrer da narrativa, em razão do surgimento de situações extremas,
em especial as condições impostas pelos cegos malvados, liderados por um sujeito que portava
uma arma, ela assume uma postura profundamente distinta.
A quebra de todos os códigos éticos e morais, o vilipendiar de toda e qualquer expressão
de racionalidade, a negação categórica da fala e, mais do que tudo, do olhar, deixaram em pé
somente a linguagem da violência e da vingança, corporificada no assassinato do líder dos
cegos malvados pela esposa do médico. Gritando com fúria, momentos após assassinar o líder
ela expressou com veemência sua nova postura:
Lembrem-se do que eu no outro dia disse, que não me esqueceria da cara dele, e daqui em diante pensem
no que vos digo agora, que também não me esquecerei das vossas. (...) Talvez eu seja a mais cega de
todos, já matei, e tornarei a matar se for preciso, Antes disso morrerás de fome, a partir de hoje acabou-
se a comida, nem que venham cá todas oferecer numa bandeja os três buracos com que nasceram. Por
cada dia que estivermos sem comer por vossa culpa, morrerá um dos que aqui se encontram, basta que
ponham um pé fora desta porta (Idem, ibid., pp. 187-188).
Livres, os cegos resistem em sair, ficam parados no meio da rua, se perguntam o que teria acontecido, várias
são as conjecturas, sobre a descoberta de algum remédio para o surto Ou se o contágio havia cessado. Assim,
é que não há comparação entre viver num labirinto racional, como é, por definição um manicômio, e aventurar-
se, sem mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a memória para nada servirá,
pois apenas será capaz de mostrar a imagem dos lugares e não os caminhos para lá chegar (Idem, ibid., p. 211).
Desvendado há algum tempo o fato de não estar cega, a mulher do médico assume, agora
com total legitimidade e clareza, sua condição de guia e líder do grupo. O cenário da cidade
descrito por Saramago evidencia a profunda degradação do espaço urbano organizado, espelho
caótico da desintegração humana que acompanhou o alastramento da epidemia da cegueira
branca. Numa paisagem marcada pela morte e pelo abandono dos corpos, pela acumulação e
putrefação de dejetos, a luta pela sobrevivência se baseia nas mais distintas formas de incivilidade.
Rompidos os laços familiares, sociais e identitários, a cidade é ocupada por “hordas primitivas”
que vagam a esmo condenadas à indigência e ao desespero.
Saramago reafirma a todo o momento a importância e a distinção da capacidade de ver,
conferindo-lhe o status de condição essencial no processo de humanização. O autor demonstra,
metaforicamente, que a habilidade de enxergar não se reduz pura e simplesmente à percepção
visual, ligada a fatores fisiológicos ou neurológicos, mas é a capacidade de pensar a realidade em
que se vive, de visualizar e se colocar no lugar do outro. Ou seja, a habilidade de ver reside na
capacidade de reconhecimento do outro tal como ele é, com semelhanças e singularidades,
clarezas e obscuridades, qualidades e defeitos.
Ao tornar a mulher do médico imune à epidemia da cegueira branca, Saramago a transforma
em protagonista do romance e permite que o leitor, por meio de suas ilações e constatações,
consiga desvendar dimensões substanciais da narrativa. A primeira dimensão que merece reflexão
é a conservação da lucidez e o papel de liderança exercido por parte da protagonista, que pode ser
ilustrado por meio da seguinte fala:
Hoje é hoje, amanhã será amanhã, é hoje que tenho a responsabilidade, não amanhã, se estiver cega.
Responsabilidade de quê, A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam, Não podes guiar
nem dar de comer a todos os cegos do mundo, Deveria, Mas não podes, Ajudarei no que estiver ao meu alcance
(Idem, ibid., p. 241).
A segunda dimensão relaciona-se a como a perda do sentido da visão pode se alastrar por
toda uma comunidade, assim como a quanto ela pode afetar mesmo aqueles que mantiveram a
capacidade de enxergar. O diálogo entre a mulher do médico, o médico e a rapariga dos óculos
escuros sintetiza a proposição do autor.
Falas como se também tu estivesses cega, disse a rapariga dos óculos escuros, De uma certa maneira,
é verdade, estou cega da vossa cegueira, talvez pudesse começar a ver melhor se fôssemos mais os
que vêem... O tempo está-se a acabar, a podridão alastra, as doenças encontram as portas abertas, a
água esgota-se, a comida tornou-se veneno, seria esta a minha primeira declaração, disse a mulher do
médico, E a segunda, perguntou a rapariga de óculos escuros, Abramos os olhos, Não podemos,
estamos cegos, disse o médico, É uma grande verdade a que diz que o pior cego foi aquele que não
quis ver, Mas eu quero ver, disse a rapariga dos óculos escuros, Não será por isso que verás, a única
diferença era que deixarias de ser a pior cega... (Idem, ibid., pp. 283-284).
Nem eu me estou a queixar, só digo que apenas servimos para isto, para ouvir e ler a história de uma
humanidade que antes de nós existiu, aproveitamos o acaso de haver aqui ainda uns olhos lúcidos, os últimos
que restam, se um dia eles se apagarem, não quero nem pensar, então o fio que nos une a essa humanidade
partir-se-á, será como se estivéssemos a afastar-nos uns dos outros no espaço, para sempre, e tão cegos eles
como nós.... (Idem, ibid., p. 290).
Após essa digressão sobre a obra, retoma-se o argumento central do presente ensaio: o
romance de Saramago, Ensaio sobre a cegueira, também se inscreve na categoria das obras
literárias de advertência, e é nessa conjectura que se sustenta a possibilidade de ele lançar luz sobre
reflexões acerca do fenômeno da pandemia de Covid-19.
Uma pluralidade de causas expõe grupos sociais mais vulneráveis à contaminação do surto
pandêmico — idosos, portadores de comorbidades, moradores de comunidades periféricas sem
acesso a saneamento básico e assistência à saúde, indígenas, pessoas privadas de liberdade,
adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em meio fechado, pessoas com problemas
de saúde mental, população de rua, entre outros. Soma-se a isto os nocivos efeitos dos processos
de precarização do trabalho em curso no Brasil, que hoje condenam ao desemprego 12,8 milhões
de pessoas entre a população economicamente ativa e deslocam para informalidade
aproximadamente 24 milhões de brasileiros.
A proliferação e a letalidade do vírus ressignificam dramaticamente os pilares da sociedade
contemporânea, traduzidos pela dissolução das fronteiras nacionais, pela circulação incessante de
pessoas, bens e valores e também pela velocidade e instantaneidade que marcam todas as relações sociais.
Não parece coincidência que exatamente neste período da história humana, marcado
pela supremacia destrutiva sobre a natureza, pelo reino absoluto das leis de mercado e dos
fluxos do capital financeiro, pela hegemonia do consenso neoliberal, pelo fim das redes de
proteção social, pelo elogio à responsabilização individual pelas trajetórias, surja uma
patologia que coloca em xeque as atuais formas de vida no planeta. Como na obra distópica,
em questão de poucos de dias milhares de pessoas foram afetadas por um vírus desconhecido
que alterou drasticamente a vida cotidiana, impondo diferentes formas de gestão econômica
e políticas da crise sanitária pelas instituições e governos constituídos.
Adotada a lente proposta por Saramago, que descreve a epidemia do mal branco como
um excesso de luz que suprime a capacidade humana da visão, causando a cegueira coletiva,
lança-se aqui, num pretensioso exercício de analogia, a hipótese de que a pandemia de Covid-
19, diferentemente da ausência de visão, singulariza-se pela suspensão das relações pessoais
presenciais e pela perda da capacidade de construção de projetos contra-hegemônicos, tanto
em relação às consequências da própria pandemia, quanto aos processos de aprofundamento
das desigualdades sociais e econômicas que já estavam em curso.
As principais medidas para a prevenção e o combate ao alastramento do vírus,
efetivadas no isolamento físico e no uso de máscaras protetoras das vias respiratórias,
contribuem para restringir as ações coletivas, as manifestações das inconformidades, os
diálogos e, sobretudo, a possibilidade de construção de um projeto mínimo que inaugure
formas de sociabilidades com clivagens mais humanistas.
A exigência de isolamento, compensada excessivamente pelas relações e manifestações
virtuais, define uma nova forma de suspensão temporal, fixada no presente, que pode configurar-
se como um ingrediente capaz de fortalecer o individualismo e a indiferença, contribuindo para
a fragilização das capacidades altruístas e de resistência.
No Brasil, a situação acima descrita conta com um agravante significativo: o
crescimento do populismo autoritário, reconfigurado com a eleição de Jair Bolsonaro em
2018. A onda ultraconservadora que assola o país encontrou na pandemia um terreno
fértil para o aprofundamento e a consolidação dos ataques às instituições, à ciência e às
Notas
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As chamadas distopias podem ser entendidas filologicamente como “utopias negativas”. Esse neologismo foi cunhado
por Gregg Webber e John Stuart Mill num discurso ao Parlamento britânico em 1868: “É, provavelmente, demasiado
elogioso chamar-lhes utópicos; deveriam em vez disso ser chamados dis-tópicos, ou caco-tópicos. O que é comumente
chamado utopia é demasiado bom para ser praticável; mas o que eles parecem defender é demasiado mau para ser
praticável” (COLETTO, 2011).
Referências