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Pensando criticamente sobre crises1

REFLEXÕES NA PANDEMIA
Didier Fassin
Institute for Advanced Study, Princeton, NJ, EUA

A
linguagem da crise se transformou no modo hegemônico de descrição de sociedades
contemporâneas. Sempre que falamos de finanças, meio ambiente, trabalho, migração,
policiamento, identidade, relações de gênero, mídias sociais, democracia liberal,
contestação do conhecimento ou doping nos esportes, a palavra “crise” serve como designação
genérica e fácil para uma multiplicidade de situações que supostamente têm relação com uma
ruptura na ordem normal das coisas. Obviamente, o surgimento da pandemia da Covid-19
sintetiza essa tendência, com suas dramáticas consequências em termos da paralisia de países
inteiros devido ao fechamento de diversos setores em escala sem precedentes.
No entanto, raramente essa linguagem é questionada. De fato, pode parecer fútil fazê-lo
quando as coisas parecem tão evidentes. Todos compreendem o que é uma crise e reconhecem
que vivemos tempos críticos. No entanto, não haveria um risco conceitual e mesmo político
nessa trivialização e essencialização das crises? Se todos os problemas e tensões forem nomeados
de crise, isso significa que um estado crítico permanente paradoxalmente se tornou o novo
normal? E já que a designação de dada situação como crise pede medidas emergenciais, tais
respostas não legitimariam um estado de exceção quase permanente?
De acordo com uma citação apócrifa, Winston Churchill teria dito que não se deve
desperdiçar uma crise. Eu prefiro dizer que: não se deve deixar uma crise sem crítica — e nós
sabemos que esses dois termos têm a mesma etimologia grega e significam simultaneamente o
momento decisivo em que a vida e a morte estão em jogo e a grande decisão que
presumivelmente resolve essa tensão. Uma crítica da crise: esse é precisamente o fascinante
projeto executado pelos oito autores deste dossiê de Reflexões na Pandemia, seção excepcional
de Dilemas, originado em um programa internacional de ciências sociais conduzido no
Instituto de Estudos Avançados, Princeton, em 2018, e levado adiante em painel durante a
conferência da Latin American Studies Association, realizada virtualmente em 2020.
Quando iniciaram seu trabalho coletivo, esses autores, oriundos das áreas de antropologia,
sociologia, história, geografia, ciência política e estudos literários, jamais imaginariam que a escolha
do tema da crise se revelaria tão relevante dois anos mais tarde e tão oportunamente relacionável à
grande ruptura causada pelo novo coronavírus. Porém, mesmo confrontados com esse fenômeno
extraordinário, os autores não renunciaram ao seu projeto crítico. Primeiro, eles consideraram se
essa crise não deveria ser dividida em diversas outras que ficaram ocultas pela crise epidemiológica:
uma crise social manifesta por uma guerra não declarada contra os pobres (Roger Merino); uma

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crise ecológica que põe em questão a relação de seres humanos com outras formas de vida (Lucas
Christel); e uma crise intelectual, na medida em que políticos tiram vantagem da situação para
contestar o conhecimento das ciências sociais (Verônica Toste Daflon). Em seguida, eles indagam
se a presente crise não deveria abrir caminho para uma investigação sobre questões mais amplas e
transcrições ocultas: as tensões surgidas entre urgências e utopias, temporalidade compartilhada e
fragmentação espacial, vida vulnerável e vida produtiva (Anna Grondona); as iniquidades sistêmicas
invisibilizadas por meio da cada vez mais comum e enganosa referência à resiliência (Simón Uribe);
a trágica escolha implicitamente feita no que diz respeito a que vidas devem ser consideradas dignas
de serem vividas, como tem sido por muito tempo o caso das deficiências (Carolina Branco
Ferreira). Finalmente, convidam a um engajamento renovado das ciências sociais e humanas para a
avaliação da crise: a defesa de sua importante contribuição para o conhecimento e a docência (Oscar
Alejandro Quintero) e a compreensão da experiência, a escuta da voz e o respeito ao silêncio dos
afetados (Valeria Añon). Coletivamente, esses pesquisadores de Colômbia, Brasil, Peru e Argentina
trazem uma urgente reflexão para esses tempos incertos.

Notas

1
A pesquisa sobre a qual se refere esta introdução é financiada pela Fundação Nomis. O painel que deu origem ao dossiê
recebeu fundos da Fundação Mellon como parte do Programa de Verão de Ciências Sociais do Instituto de Estudos
Avançados de Princeton.

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Didier Fassin
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DIDIER FASSIN (dfassin@ias.edu) é professor de


ciências sociais no Institute for Advanced Study
(IAS, Princeton, New Jersey, EUA), diretor de
estudos na École des Hautes Études en Sciences
Sociales (EHESS, Paris, França) e ocupa a cadeira
de saúde pública no Collège de France (Paris,
França). Tem doutorado em ciências sociais pela
EHESS e graduação em medicina pela Université
Pierre et Marie Curie (UPMC, Paris, França). É
autor, entre outras obras, de A sombra do
mundo: Uma antropologia da condição
carcerária (2019) e Humanitarian Reason: A Moral
History of the Present (2011).

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